janeiro 23, 2006

Os Loucos do Pireu

Ou as Ilusões da Vitória

Escreve a Arte da Fuga sobre a derrota de «Mário Soares e a geração de socialistas dona de Abril. Acabou-se uma era. Acabou-se o direito de propriedade sobre a história». Provavelmente muitos outros pensarão assim. Desenganem-se. A esquerda é como o louco do Pireu, na Atenas clássica, que se reclamava dono do porto e de todas as embarcações que o demandavam. Não importava que só tivesse um pardieiro para se acolher, porquanto aquela posse ilusória valia mais para ele, que todo o tesouro da Anfictionia. A esquerda reclama-se dona da História, dos destinos da humanidade, da emancipação dos deserdados. Pode ser derrotada pela História, podem os destinos da humanidade inflectirem por um caminho oposto, pode criar sociedades que transformem todos os cidadãos em deserdados … a esquerda portar-se-á sempre como o louco do Pireu.

Basta observar a campanha de Manuel Alegre. Alegre apropriou-se, ao longo da campanha, de todos os vultos de interesse histórico. Evocou, em panegíricos solenes, todas a figuras conhecidas desde a extrema-esquerda até ao centro-esquerda; visitou e recolheu-se comovido, perante as campas dos ilustres antepassados, pois enquanto alguns candidatos preferiam o bulício das feiras, Alegre elegeu a paz dos sepulcros e o diálogo com os nossos egrégios avós. Na falta de apoio partidário, Alegre apropriou-se de tudo: República; 25 de Abril; Cidadania; Grupos de Cidadãs e Cidadãos (pois quê, todos??); Democracia; Esquerda; Extrema-Esquerda; Centro-Esquerda; Pátria; Poesia; Língua Portuguesa; Literatura; … e mais que a falta de tempo não me permite enumerar. Se a campanha tivesse durado mais alguns dias, tê-lo-íamos visto a recitar uma ode ditirâmbica frente ao túmulo de Afonso Henriques.

E sucedeu o mesmo, mutatis mutandis, com os restantes candidatos de esquerda. Talvez de uma forma menos notória, mas apenas porque eram candidaturas partidárias.

Aliás, toda a esquerda se comporta assim, tenha as derrotas que tiver, e, mesmo quando ganhe, seja obrigada a inflectir por vias contrárias àquelas que tem inscritas no seu código genético. E, no caso de vitória, se seguiu a via que está inscrita no seu código genético, continua imperturbável na sua tranquilidade de proprietária da História, quando anos depois se verificar que tornou uma população que aspirava à emancipação social, num conjunto informe de deserdados em desespero.

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dezembro 14, 2005

Percursos

Li ontem que Silva Graça tinha decidido apoiar a candidatura de Cavaco Silva. Na sequência aliás do apoio dado por Veiga de Oliveira, de quem é bastante amigo, à mesma candidatura. Curioso o percurso deste homem que é o paradigma do desencanto de uma geração perante utopias que desabaram com fragor arrastando na queda convicções que se tinham por absolutas e indiscutíveis.

Silva Graça é amigo do meu pai desde os tempos universitários, embora ele seja cerca de 5 anos mais velho e de um curso diferente. No mais aceso da guerra do grupo dos 6 contra o núcleo duro do PCP ele esteve, por mais de uma vez, em nossa casa, era eu uma jovem universitária. O cerne da discussão era o desvio de Álvaro Cunhal e dos “incondicionais” relativamente às verdadeiras raízes marxistas-leninistas. Silva Graça pretendia demolir a velha guarda, a golpes de Lenine, e eu passei esse serão a carrear volumes das obras completas de Lenine, desde o local onde eles estavam (a outra extremidade da casa) até à sala onde se conversava. Desde as Teses de Abril, até aos debates nas instâncias do Partido Bolchevique, passando por discursos nos sovietes e nos sindicatos, tudo foi passado em revista. Nem telegramas escaparam à nossa devassa exegética! A ideia era que naquela época haveria lugar para uma diversidade de opiniões (dentro do leque estrito do ideário bolchevique, como é óbvio) que desaparecera depois, com o estalinismo de que o Cunhal seria o herdeiro.

O meu pai, que nunca andara na política activa, tinha um distanciamento sobre aquelas matérias, que iam além das nossas lucubrações. Aquando um congresso do PCP, em 1976, ter-lhe-ia dito, na euforia de um momento em que parecia que o PCP iria crescer em força, que o PCP estava condenado a ficar num gueto – bastava ver as pessoas que tinham sido escolhidas para os órgãos dirigentes do partido, que era o sinal evidente de que o partido se fechava sobre si próprio. Mais tarde, no início dos anos 80 (no fim da época Brejnev) ter-lhe-ia dito que, para além de ser uma potência económica de segunda ordem, a URSS corria o risco de se tornar igualmente uma potência militar de segunda ordem, pois estava a perder a batalha das novas tecnologias, especialmente a tecnologia da informação, e a sua organização social nunca permitiria ter qualquer êxito nessa área. Quando alguns amigos dele, do PCP, como Silva Graça e outros, se queixavam da rigidez política de diversos dirigentes, ele sempre dissera que o principal artífice da rigidez do partido era Álvaro Cunhal. Ora a relação desses comunistas, figuras de topo da política – parlamentares, vereadores, ex-ministros, etc. – com a figura de Álvaro Cunhal era exactamente a mesma que a relação dos ditadores de todas as épocas com os seus súbditos: estes pensam que a culpa do que está mal é sempre de alguns dirigentes demasiado zelosos, mas nunca dos ditadores que, quando se derem conta disso, corrigirão os erros. Várias vezes Silva Graça citou então essas conversas, que ele sempre tomara por “pessimismo”, ou vacilação pequeno-burguesa, mas que agora (fins dos anos 80) percebia que afinal tinham tido consistência.

Ilusões, como se provou, algum tempo depois, com a queda do muro de Berlim e a implosão da URSS. Os erros não estavam apenas naqueles dirigentes demasiado zelosos (aliás, alguns deles seriam anos depois expulsos do PCP); também não estavam apenas no alegado desvio estalinista de Álvaro Cunhal perante a pureza do marxismo-leninismo; também não o estariam na redução leninista do marxismo a uma metodologia de assalto ao poder e sua conservação por métodos totalitários, em nome da necessidade histórica da emancipação do proletariado. O erro é a herança do marxismo como utopia de uma sociedade perfeita e de uma vanguarda consciente que tem por missão conduzir o proletariado à redenção.

Ao arrogar-se como intérprete da vontade de um proletariado que já nem sequer existe, a necessidade de passar da utopia teórica à realidade da construção da utopia, aquela vanguarda consciente produz necessariamente um regime totalitário que massacra impiedosamente aqueles que não desejam ser redimidos, que não querem ser o “homem novo” que a utopia em construção pretende engendrar. Aconteceu assim sempre, em todos os regimes que se estabeleceram com aquele intuito. Portanto os propósitos do Silva Graça nunca teriam êxito, como não o tiverem os outros segmentos do PCP que sucessivamente se foram rebelando. Os renovadores só existem na imaginação dos próprios. Não há nada a renovar. Não é possível renovar algo que conduz necessariamente ao totalitarismo. É a própria ideia de base que está errada.

Na semana passada fui ao lançamento de um livro sobre o João Amaral, numa cerimónia que se realizou no salão nobre dos Paços do Concelho. Foi uma cerimónia limitada à família, amigos chegados da família, vereação e figuras do regime (PR, presidente da AR, líderes partidários, um ou outro renovador, etc.). O orador principal foi o Carlos Brito. O Carlos Brito é talvez, entre os elementos do PC que conheci e com os quais debati ideias, aquele que me pareceu ter uma maior preparação teórica, o que, aliás, não é um grande elogio. O seu discurso foi vazio e lamechas. E foi-o porque ele não tinha nada a oferecer de substantivo. Apenas recordações, mais nada.

Já não há renovadores. Apenas pessoas que se reúnem nestas cerimónias e depois vão dando uns dedos de conversa, aqui e ali, revendo outras pessoas que já não viam há anos. Muitos beijos, apertos de mão e conversas banais. Apenas amigos.

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outubro 24, 2005

Consenso Orçamental

Elogia-se o consenso alargado que se estabeleceu perante o OE 2006. Comentaristas e fazedores de opinião confluem na ideia que a necessidade de uma ruptura drástica com políticas passadas se instalou nas elites políticas, na Comunicação Social e no país. Apenas os sindicatos da função pública e, timidamente, os autarcas protestam contra o OE 2006, mas estão isolados. Quem os ler, concluirá que a classe política e o país, exceptuando algumas margens mais radicais, compreenderam finalmente a necessidade de uma cura de emagrecimento. Será assim?

A minha resposta é não. O que sucede é que o PS está confrontado com uma crise financeira profunda e com as metas impostas por Bruxelas. O PS não tem por onde recuar. Ele é Governo. Ele é o responsável, pelo país, perante Bruxelas. Não se sabe se o Governo está a fazer aquilo que gostaria de fazer. Sabe-se seguramente que está a tentar aplicar as prescrições de Bruxelas, porque não lhe resta outra alternativa.

E o consenso que se instalou resulta do facto do PS ser obrigado a defender um documento que consubstancia os “serviços mínimos” a que está obrigado perante Bruxelas, e do PSD e CDS/PP o defenderem, apesar das insuficiências, por convicção política.

Se o PS, em vez de estar no Governo, estivesse na oposição; se não coubesse ao PS fazer respeitar os compromissos internacionais; se o PS pudesse dar largas, sem restrições, ao que tem inscrito no seu código genético, será que teríamos qualquer consenso? Não teríamos o PS a fazer coro com as facções políticas marginais que se opõem agora ao OE 2006? Não assistiríamos às acções dos sindicatos da função pública e dos autarcas potenciadas pelo apoio do PS? A Comunicação Social não estaria a agitar o país e a pô-lo em estado de sítio? Não se instalaria a divisão e a cizânia entre as elites políticas?

Portugal está numa situação económica e financeira em que são necessárias reformas dramáticas, que irão bulir com muitos interesses particulares e que são incompreensíveis para a visão estatizante e igualitarista que se instalou entre nós. É necessário conter a Despesa Pública e aliviar o ónus que pesa sobre o sector privado – empresas e trabalhadores – de forma a torná-lo mais competitivo. Não é a política de ir buscar dinheiro onde ele existe, pois essa é uma política sem futuro, que conduz ao esgotamento da fonte. É a política de eliminar os gastos improdutivos. É a política de dinamização de criação de riqueza.

O que se está a constatar é que só um Governo PS, a contra gosto e encostado à parede pelo diktat de Bruxelas, pode realizar essa política, mesmo com insuficiências. O PS na oposição poderia ser um terrível obstáculo à política que está agora a implementar. Já o foi durante 3 anos. Porque não pensar que o seria em quaisquer circunstâncias, desde que na oposição?

Por isso há este consenso alargado. Por isso as elites políticas e a Comunicação Social estão de acordo. E volto a questionar: este consenso seria possível com o PS na oposição?

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outubro 07, 2005

A Ética Republicana

Tem-se falado ultimamente, e com insistência, na ética republicana. O PR, o mais prolixo produtor de banalidades do país, caracterizou-a, há dias. Confesso a minha ignorância – não sei o que é a ética republicana. Sei o que é Ética, quer do ponto de vista filosófico, quer do ponto de vista profissional (a deontologia, que sistematiza os deveres que um profissional deve respeitar no exercício da sua actividade). Também sei o que é uma república, embora tendo uma ideia nebulosa sobre a sua caracterização exacta, sabendo as formas que as repúblicas têm revestido no tempo (desde a Antiguidade Clássica) e no espaço (desde a Europa à África, passando pela América Latina e Ásia). Só não atino com o que seja a ética republicana.

Sampaio declarou que A ética republicana exige competência, devoção ao serviço público, transparência, disponibilidade para abandonar o cargo exercido a outros melhores, nos termos da lei. A ética republicana exige que o funcionário sirva a República e proíbe-o de se servir da República para promover os seus fins pessoais ou os de um determinado grupo. Todavia se ele retirasse a palavra “republicana” aquela sentença estava correcta. E se substituísse República por Estado, era uma afirmação universal. A ética da acção política exige aquilo que o PR afirmou. Estou plenamente de acordo.

Então porquê a inserção de “republicana”?

A resposta é simples. Entre os ícones que povoam o relicário mental de Sampaio (bem como do clã Soares e de outros herdeiros do jacobinismo político) resplandecem os egrégios vultos da 1ª República. Mas eu, contrariamente aos próceres socialistas, quando olho para aquelas figuras, apenas detecto ética no grupo Seara Nova e em mais meia dúzia de individualidades como Carlos da Maia, Cândido dos Reis … talvez um José Relvas, um Machado Santos ou um Teixeira Gomes. Havia alguns líderes republicanos probos e desinteressados, mas muitos eram de ética mais que duvidosa, cada vez mais duvidosa à medida que se subia no protagonismo político, e o mais evidente de todos, António Maria da Silva, era um perfeito gangster político.

É ética republicana reduzir, após o triunfo da república, o corpo eleitoral a metade do existente nos fins da monarquia, com receio das opiniões dos cavadores de enxada e dos analfabetos? É ética republicana dissolver os partidos existentes, após o triunfo da revolução (excepto o republicano)? É ética republicana pôr “cientistas” republicanos a medirem os crânios de padres jesuítas, para confirmar, “cientificamente” que eram degenerados e publicar fotografias dessas investigações nas revistas da época? É ética republicana Afonso Costa, quando ministro da Justiça, em 1911, ter provido nos melhores lugares o seu irmão, os seus dois cunhados, o seu sócio do cartório, o seu procurador, um amigo íntimo desde os tempos da juventude, etc.? É ética republicana organizar a carnificina da Noite Sangrenta e assassinar o 1º Ministro e destacadas figuras ligadas à implantação da república? É ética republicana criar um regime tutelado pelos arruaceiros, bombistas e rufias dos cafés e tabernas de Lisboa como elementos catalizadores do debate político? É ética republicana ter criado a Guarda Nacional Republicana, bem municiada de artilharia e armamento pesado, concentrada na zona de Lisboa e cujos efectivos passaram de 4575 homens em 1919 para 14 341 em 1921 (*), chefiados por oficiais «de confiança», com vencimentos superiores aos do exército, afim de ser a Guarda Pretoriana do regime? É ética republicana ser a própria república a criar uma Guarda Pretoriana, que na Roma antiga apenas foi criada após a queda da república? É ética republicana a corrupção e o caciquismo eleitorais do Partido Democrático?

Ou seja, ética republicana carece de significado, porque exigiria a definição prévia que tipo de república se tem em mente. Se se tiver em mente o modelo da 1ª República, não há apenas a ausência de significado, é uma contradição nos termos.

Sampaio não explicitou a que modelo de república se referia. Não foi certamente ao da 2ª República, porquanto um regime autoritário dificilmente pode ser um exemplo de virtudes e de ética. Certamente que, no estado do actual regime, Sampaio não se está a referir à 3ª República, de que ele se deve ter tornado um dos principais coveiros. Igualmente nada indica que se esteja a referir a um modelo abstracto, utópico e intemporal.

Assim sendo, tudo leva a supor que o modelo de república que Sampaio tem em mente, quando adjectiva daquela forma a ética, é o da 1ª República. E provavelmente está a contrapor esse arquétipo imaculado e paradigmático, às misérias da actual república a que ele preside.

Se é isso, está a dar um péssimo exemplo do que entende por ética, não certamente por malevolência, mas apenas porque vive de mitos. A ética republicana é um mito do relicário ideológico do jacobinismo: por muitos desmandos que pratique é, por convenção, o estado perfeito de governação.


(*) Na sequência da Noite Sangrenta de 19-10-1921, do horror público que provocou e da derrota posterior dos golpistas, a GNR foi desmantelada e muito reduzida nos seus efectivos e equipamento, tornando-se numa força de polícia rural.

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setembro 29, 2005

Catástrofes e Irracionalismos

As grandes calamidades naturais, talvez pela sua dimensão desproporcionada à escala humana, agudizam as crises de irracionalismo. Buscam-se racionalizações baratas que justifiquem um fenómeno da Natureza. Buscam-se causas de índole ideológico-políticas pretensamente racionalizadas com chavões que não passam de hipóteses que continuam em debate na comunidade científica e cujo poder explicativo ou é contestado ou não lhe é dado a universalidade que pretende ter. Mas enquanto a comunidade científica prossegue as suas investigações, sempre pronta a submeter-se aos factos, sempre consciente de que mesmo a suas hipóteses mais ousadas nunca serão mais do que um patamar para as que vierem a seguir, há certezas inabaláveis entre os jornalistas de causas, os fundamentalistas do ambiente e os políticos émulos de Savonarola. A sentença de Mário Soares sobre o Katrina quem semeia ventos, colhe tempestades insere-se neste paradigma do misticismo em roupagens de racionalismo barato.

No fundo, Mário Soares não se afasta muito das teses do pregador Gabriel Malagrida que escreveu e pregava que o terramoto de 1755 era uma punição divina por Portugal ter abandonado a verdadeira religião, ou das teses de Cavaleiro de Oliveira que escreveu que o terramoto havia sido uma punição por Portugal seguir uma religião errónea e uma manifestação da cólera divina diante dos absurdos excessos da Inquisição. É um espelho da sociedade portuguesa da época um frade tonto e néscio se ter tornado o pregador predilecto da alta nobreza, e um filósofo medíocre e diplomata corrupto, completamente desprovido de ética, se ter tornado num dos expoentes do iluminismo português. Isto para não falar de Soares, antes do julgamento que a História lhe fará.

Tal como está a acontecer agora com o Katrina, o terramoto de Lisboa tornou-se o centro de acerbas disputas metafísico-ontológicas de então. Nos reinos e principados alemães (protestantes) e do norte da Europa, não havia uma réstia de dúvidas: A providência havia castigado Lisboa pela sua idolatria, por ter acumulado riquezas imensas e pecaminosas através da intolerância e da perseguição religiosa, no Reino e nos domínios do Ultramar. Lisboa era a nova Sodoma e Gomorra punida por Deus.

No caso do Katrina, os habitantes de Nova Orleães estão a expiar os malefícios do imperialismo americano, que dois anos antes havia invadido o Iraque; em 1755, os lisboetas expiaram o imperialismo político-religioso das potências católicas idólatras, porquanto em 1753 havia começado a campanha militar contra as Missões jesuítas dos Índios no Paraguai, que ainda durava e que era muito mal vista pelos iluministas da época.

Voltaire e Rousseau debateram o papel da providência divina e do fatalismo das coisas, Voltaire acentuando o fatalismo e Rousseau as causas naturais, perguntando que “culpa tinha a Providência Divina se os lisboetas decidiram ao longo dos tempos construir vinte mil casas, algumas de seis ou sete andares, e arranjarem-se assim todos amontoados na margem do rio Tejo?” Perguntas que muitos colocam actualmente sobre Nova Orleães, mas apenas com uma diferença: Rousseau acusou a pouca previsão dos lisboetas (naquela época o Estado ainda não era omnipresente), enquanto agora se acusam as autoridades americanas, nomeadamente aquelas que não têm nada a ver com o planeamento urbano, como as federais.

Até Kant, ainda jovem, publicou 3 folhetos sobre o tema, embora apenas preocupado em encontrar explicações naturais para o fenómeno. Era dos poucos verdadeiros racionalistas da época. As causalidades historicistas e oraculares não lhe diziam nada.

Os ingleses, mais pragmáticos e pouco dados a especulações místicas, passaram ao lado desse debate, quase sempre mesquinho. Assim que souberam do cataclismo, Governo e o Parlamento decidiram enviar imediatamente para Portugal, sem esperar por qualquer pedido de auxílio, 300 mil cruzados (moeda portuguesa), 200 mil patacas espanholas, 6 mil barris de carne, 4 mil de manteiga, 1.200 sacas de arroz, 10 mil quintais de farinha, 3.333 moios de trigo etc., e ferramentas para desentulhar as ruas (picaretas, enxadas, etc.). As únicas coisas que criticaram, e com toda a razão, foram a demora (o auxílio demorou poucos dias a reunir e a aportar a Lisboa e consumiu-se cerca de dois anos na sua distribuição, o que provocou a deterioração de muitos bens), a corrupção das autoridades e o descaminho de parte desse auxílio. Descaminho que teve uma excepção: O Marquês de Valença, cujo palácio e bens tinham ficado completamente destruídos, recusou o subsídio de 18 mil cruzados que o Secretário (o futuro Marquês de Pombal) lhe atribuíra, alegando que haveria outros mais necessitados que ele a quem ainda restavam rendas com que poderia subsistir.

Houve espectaculares avanços científicos dos últimos 250 anos. No conhecimento e nas metodologias. A ciência moderna deveria impor ao nosso intelecto a disciplina das comprovações práticas. É assim que ela avança. Todavia, na sua verbosidade mística, os jornalistas de causas e os políticos “fracturantes” são livres de afirmar o que quer que seja, porque não precisam de recear qualquer comprovação. Estão acima dela. As suas verdades são absolutas.

Por isso não há diferenças significativas entre os juízos sobre o Katrina e sobre o terramoto de Lisboa. Desde que apareceu o feiticeiro tribal, o pensamento místico não evoluiu qualitativamente.

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julho 24, 2005

Autos-Da-Fé

A notícia caiu como uma bomba. Por muitas e diversas razões que direi adiante. Não que a Esquerda Totalitária não tivesse perpetrado actos destes noutras paragens. Não que houvesse qualquer diferença entre os métodos da Esquerda Totalitária e da Direita Nazi-fascista, excepto no facto da primeira aplicar esses métodos com total hipocrisia e sob a capa das virtudes públicas. Nada disso. Sucede que as pessoas que promoveram estes autos-da-fé, se exceptuarmos Rogério Fernandes, então do PCP, eram gente da área do socialismo democrático.

Para além dos manuais do ensino estavam incluídos, nessa lista de material combustível, livros ou páginas a arrancar (!!) de livros de escritores como Ana Hatherly, José Régio, Urbano Tavares Rodrigues(?!), Tomás Ribas, Vitorino Nemésio, Barrilaro Ruas, Esther de Lemos (escrever com th é obviamente reaccionário), Calvet de Magalhães e Maria de Lurdes Belchior(!?). Estavam livros de Hermano Saraiva, de Fernanda de Castro (certamente por ser viúva de António Ferro!) e do pai do Marcelo Rebelo de Sousa. Etc., etc.. Não eram apenas manuais de propaganda (e se o fossem, acaso haveria direito de os queimar?). Apenas uma coisa distingue estes autos-da-fé daqueles praticados pelos nazis: foram feitos sem alarido público, nas traseiras de uma qualquer escola. Os nazis assumiam os autos-da-fé que faziam; a esquerda portuguesa fazia-os à sorrelfa, nas traseiras.

Segundo o Público relata hoje, Sottomayor Cardia, num discurso dirigido ao país, em Outubro de 1976, 2 anos depois do despacho de Rui Grácio que determinava os autos-da-fé, acusou o ME de ter «à maneira inquisitorial», ordenado a «destruição de livros pelo fogo … Há no Ministério prova da realização de autos-da-fé por determinação oficial». Na altura os jornais não ligaram a estas denúncias. Segundo o Público porque eram 2 frases numa imensidão de um discurso que demorou 70 minutos a ser lido. Na minha opinião porque a tirania do politicamente correcto dominava os meios de comunicação social e exercia uma censura cobarde, porque camuflada atrás das boas intenções. Provavelmente nessa época, os mandarins da opinião achariam “profiláctica” a queima dessa literatura viciosa.

Mas a tirania do politicamente correcto está a perder terreno, pouco a pouco, no nosso país. A emergência de articulistas independentes, e com audiência, a banalização desses serventuários dos ícones da esquerda totalitária, a dificuldade que há em amordaçar as opiniões na época da globalização informativa e da blogosfera, etc., tudo concorre para a liberalização progressiva da informação. Por isso, hoje em dia é possível dar relevo a estes factos, com mais de 30 anos, coisa que nunca até agora havia sido possível.

Umas últimas linhas para assinalar que esta notícia deixou os meus pais siderados. Escrevo-as porque acho importante mostrar que o ovo da serpente germina nos ninhos mais inesperados.

Vitorino Magalhães Godinho, então ministro da Educação, é da família (de forma colateral) da minha mãe, que mantém relações de amizade, embora espaçadas, com ele e as duas filhas, que são da geração dela. Vitorino Magalhães Godinho alega não ter conhecido o despacho e considera-o «totalitário, embora apresentando-se de esquerda». Na ausência de outros testemunhos não se pode duvidar da palavra dele, embora se possa estranhar que não soubesse o que um seu subordinado fazia. Teria pelo menos a chamada “responsabilidade política”.

O meu pai conheceu bem Rui Grácio que considerava um sujeito extremamente cordato e tolerante que, apesar de ser então um guru na área das pedagogias e dos estudos sociais, ouvia com igual atenção nomes sonoros ou jovens que começavam a trilhar o caminho das “alegrias cívicas”. Apesar da sua notoriedade científica, nunca usou essa notoriedade como forma de ostentação. O meu pai tinha-o em grande consideração.

Os meus pais põem a hipótese que esse despacho e a sua execução tivessem origem em Rogério Fernandes, então do PCP e da linha de António Teodoro, que no Público de hoje, produz declarações bastante ambíguas sobre esta matéria. Mas tal não invalida a responsabilidade directa de Rui Grácio, pois foi ele que assinou o despacho.

Estes factos são, na minha opinião, exemplares. Pessoas de bem, de formação democrática, politicamente tolerantes (sublinho “politicamente” porque, como pessoa, o Vitorino é rabugento que se farta!) caem na tentação totalitária e promovem acções idênticas em tudo às dos fascistas que eles haviam combatido. Sucumbem à tentação totalitária “arrastados” pela gritaria de grupos radicais cuja força reside apenas nos decibéis da gritaria e não tem qualquer expressão popular, como se viu depois.

Não há vocações totalitárias. Há ideologias que fazem com que gente boa sucumba à tentação do mal em nome de princípios vazios de sentido moral, mas que foram sacralizados por essas ideologias em travesti de construtoras e zeladoras de uma sociedade alegadamente igualitária e feliz.

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junho 09, 2005

A Teoria da Conspiração

E a Prática da Conspiração

Um dos modelos explicativos mais acarinhados pelas ideologias totalitárias e pelos intelectuais que se deixaram seduzir por elas é o da Teoria da Conspiração. A sociedade é dividida em dois grupos antagónicos – os dominadores (ou os poderosos) e os dominados – e os poderosos estão em permanente conspiração para levarem os dominados à miséria e ao aviltamento. Esta “posição” social não tem nada a ver com a correlação de forças do poder político: A Nomenklatura que exerceu um poder totalitário nos regimes comunistas, pertencia aos “dominados”, dizia-se uma permanente vítima da conspiração dos “poderosos” e criou os Gulags para condenar à morte lenta os “poderosos” conspiradores. E os intelectuais dos países ocidentais certificavam essa conspiração em movimentos de opinião, comunicações emocionadas ou em teorias de absoluto rigor conceptual em jornais, revistas e livros.

Essa conspiração é tanto mais credível quanto menos visível. Por exemplo, o patronato está em permanente conspiração para levar os trabalhadores à miséria. Quando o patronato não emite opiniões, está em conspiração silenciosa; quando um dirigente empresarial emite alguma opinião sobre as relações laborais, é o clamor público: Nós bem avisámos … mais uma ofensiva brutal inserida na insidiosa conspiração dirigida contra os trabalhadores.

No caso da comunicação social há uma conspiração permanente para lhe cercear as liberdades. Os jornalistas podem inventar factos, mentir descaradamente ou distorcer a realidade, mas quando alguém contesta o seu direito à recriação da realidade, é o alvoroço público: lá estão a conspirar contra as liberdades democráticas! Curiosamente, quando essa contestação é feita ao nível da arruaça, os jornalistas ficam semi-afónicos e correm a pedir a protecção do PR, a fazer queixinhas. A Teoria da Conspiração baseia-se na não evidência de alegados factos. Quando confrontada com o real vernáculo, a Teoria da Conspiração fica desarmada.

Se a Teoria da Conspiração foi inventada pelos regimes totalitários e todos os aspirantes ao totalitarismo e à ditadura: guerras da religião, guerra civil inglesa, Revolução Francesa (onde os jacobinos a levaram à malvadez mais requintada), movimentos sindicais, revolução e regime bolchevique, nazismo alemão e todos os regimes fascistas e comunistas em geral, onde essa teoria serviu para massacres e genocídios, etc., etc., há uma permanente prática conspirativa que, ela sim, tem sido em extremo danosa para a prosperidade da sociedade.

Essa Prática da conspiração é quotidianamente exercida por todos os lobbies que põem os seus “interesses corporativos” à frente do interesse de todos e que só aceitam reformas e medidas estruturantes, desde que apenas sejam aplicáveis aos outros. É quotidianamente divulgada por todos os meios de comunicação e tem direito a horário nobre.

É essa prática conspirativa que tornou o SNS num sorvedouro de dinheiro e num prestador de serviços cada vez mais ineficiente. São os lobbies dos médicos e os lobbies dos enfermeiros contra a sociedade e uns contra os outros. E os lobbies são tanto mais poderosos quanto menos visibilidade qualificativa têm. Por exemplo, o caos organizativo e a nova derrapagem das listas de espera devem ser levados mais a crédito das corporações dos enfermeiros que das dos médicos.

É a prática conspirativa que tornou o Sistema Público de Educação o mais caro da Europa e o mais ineficiente. Nela têm desenvolvido os seus talentos os funcionários do ME, os professores, na docência ou destacados no ME e dependências, e todos os auxiliares de educação. Todos têm concorrido para levar o nosso sistema de ensino ao estado lamentável em que ele se encontra.

É a prática conspirativa que tornou o nosso sistema judicial um caso paradigmático de obsolescência. Tem sido uma actividade onde todos os agentes envolvidos se têm empenhado, mas os legisladores, os arquitectos dos procedimentos de funcionamento da nossa justiça, merecem um lembrete especial. Foi devido à sua argúcia conspirativa que o sistema ficou completamente entupido e Portugal se tornou um país de caloteiros inimputáveis.

E essa prática conspirativa alarga-se a todo o aparelho do Estado, registos, notariado, fisco, segurança social, autarquias, etc..

Mas essas práticas conspirativas são accionadas e apoiadas exactamente pelos mentores das Teorias da Conspiração: a Esquerda “à esquerda” e os Sindicatos. São os teóricos da Conspiração os principais agentes e mentores da Prática da Conspiração que levou o nosso país à beira do abismo.

Aqueles que passam a vida a falar da Teoria da Conspiração, estão simplesmente a lançar uma nuvem de fumo sobre a sua permanente prática conspirativa. Fabricam conspirações dos outros, enquanto conspiram às claras contra a nossa sociedade, a sua prosperidade e o seu futuro. Contra a prosperidade e o futuro daqueles que dizem representar.

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abril 11, 2005

O Apóstata Cravinho

O liberalismo económico tem um novo apoiante – João Cravinho. Não o trato pelo título académico, porque ele nunca engenheirou. Começou como funcionário público e foi nesse cadinho de comportamentos inovadores que formou a sua mentalidade. Mas hoje fez, publicamente, a sua apostasia. E com o arrebatado fanatismo dos recém-conversos Cravinho não se ficou pelos nossos dias, irrompeu pela História Pátria numa impetuosa fúria revanchista, não deixando pedra sobre pedra dos nossos ícones mais caros.

A revolução liberal, cuja hagiografia havia constituído o enlevo dos profissionais da democracia em Portugal, é esconjurada liminarmente – ela “não criou um solo fértil para a irradiação do pensamento liberal”. Esta frase mortífera liquidou a questão. Pois é ... a “revolução liberal” produziu uma nova classe, em substituição da anterior, ainda mais dependente do Estado ... pois se até o seu património era fruto da “venda” dos bens nacionais. De facto criou uma classe privilegiada dependente do Estado e toda uma sociedade urbana dependente de empregos públicos sustentados pelos impostos.

Pior ... o Rubicão havia sido atravessado, e nada deteve Cravinho na sua ânsia iconoclasta de ajustar contas com o estatismo gerado e acarinhado pela “revolução liberal” – acusa-o de ter levado à ditadura. Na verdade concorreu para ela, mas Cravinho, se não estivesse possuído do furor apóstata, certamente reconheceria que o anti-clericalismo e as fraudes eleitorais gigantescas da 1ª República, que não permitiam alternativa eleitoral ao “republicanismo laico” pré-socialista de então, ajudaram em muito a criação de uma base social de apoio à instauração da Ditadura.

Depois do ajuste contas com o passado, Cravinho explica porque foi iluminado pela fé: “a direita liberal ... continuaria espécie exótica adiada, não fossem os brutais choques externos que ameaçam fazer implodir o passado que foi sobrevivendo na sociedade portuguesa, cega aos riscos da nova concorrência global ... É neste contexto que a direita liberal vê a sua janela de oportunidade. Pensando que em breve se tornará evidente que só ela tem as respostas certas para dar futuro aos portugueses no mundo globalizado.”.

Mas Cravinho é um profissional da política. Formou o seu pensamento no percurso entre o aparelho de Estado e aparelho partidário. Ele tem uma reconhecida e fecunda experiência do que é mentir aos eleitores em campanha, como acto necessário para colher dividendos políticos: “Mas o que é evidente para intelectuais e quadros cosmopolitas bem instalados na vida nem sempre é sufragado eleitoralmente pelos familiarizados e desesperados com os problemas da sobrevivência quotidiana. O que inviabiliza praticamente o combate a peito descoberto

E é neste impasse que o recém-convertido põe a sua experiência de aparatchik à disposição dos neoliberais, menos versados na chicana política: “fazer o takeover ideológico de um partido de Governo a partir de centros de poder capazes de fazer acontecer novas realidades no plano mediático e novos protagonistas no plano político. Esses centros terão de existir, pelo menos, no meio empresarial, na comunicação social e nas universidades e, claro está, dentro do próprio partido. Terá de haver também um partido de Governo em arrasadora crise de identidade susceptível de se deixar levar pela direita liberal na procura de novas soluções de fundo.” No fundo sugere que se faça aquilo que já havia acusado Sócrates de pretender fazer, no último congresso do PS.

Embora esta conversão do Cravinho me tivesse obviamente emocionado, julgo que talvez seja desnecessário recorrer à chicana política para convencer o eleitorado. É certo que o “Partido do Estado”, como lhe chama Medina Carreira, tem 52% do eleitorado. Todavia 70% desse “Partido” é constituído por pensionistas, reformados, e subsidiados por diversos motivos, principalmente por estarem no desemprego. Ora essa gente sobrevive, na sua quase totalidade, com rendimentos miseráveis justamente porque o sector público, o Moloch estatal, devora a seiva vital do país ... sobeja uma ninharia. E os desempregados devem a sua situação à perda de competitividade das empresas, perda de competitividade para a qual o devorismo do sector Estado tem concorrido sobremaneira. Embora pertencentes ao “Partido do Estado”, há um notório conflito de interesses entre eles e o Moloch.

Por sua vez o sector público não é constituído exclusivamente por “asilados”. Entre os mais jovens e entre os mais qualificados há muita gente capaz que gostaria de ver o seu mérito recompensado, que olha com desgosto para o que vê à volta e que aspiraria a uma reforma desse sector que o modernizasse e tornasse eficiente. Os mais capazes não se sentem realizados profissionalmente nesse ambiente esclerosado.

É claro que para toda esta gente perceber de que lado está a saída do impasse em que estamos, será necessário haver um corpo coerente de doutrina, haver soluções claras para a reforma do sector público (porque senão continuará instalado o medo do desconhecido) e continuar a haver este resvalar lento, mas inexorável, para o abismo.

Bastam estas condições. Não é preciso que os neoliberais façam um takeover ideológico de um partido de Governo. Provavelmente o que irá acontecer é um partido de Governo fazer um takeover político à ideologia neoliberal. Por enquanto, os chicaneiros políticos dominam em ambos os partidos. Mas o país está confrontado com as duras realidades de hoje da economia real, sem os instrumentos de há 20 anos – desvalorização cambial, taxa de juro, etc..

Sabe-se lá se não será o próprio Sócrates o primeiro a tentar esse takeover? ... agora, que tem o apoio inesperado de Cravinho!

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março 20, 2005

Os Bonzos do “Bem”

Ou a Audiência Portuguesa do Tribunal sobre o Iraque

O aspecto mais caricato do folclore pseudo-cívico e pseudo-participativo é o de desenvolver-se segundo uma liturgia pré-determinada, sempre igual, imolando aos mesmos ídolos, socorrendo-se da mesma fé messiânica, indiferente a factos ou a raciocínios. Como toda a religião revelada, é maniqueísta: Os bons são sempre bons, independentemente do “bem” ser representado por ditaduras sanguinárias, por assassinos terroristas ou por aqueles que subalternizam e escravizam as mulheres, desde que se invoquem do anti-capitalismo ou do anti-americanismo. Os maus são, em qualquer circunstância, os defensores da democracia e do mercado livre.

Independentemente das razões invocadas, e eu já aqui debati a questão diversas vezes, a intervenção no Iraque saldou-se pelo fim da ditadura sanguinária de Saddam, pela possibilidade dos iraquianos exercerem o direito de voto, e pelas mudanças positivas que começaram a ocorrer na região – o abandono pela Líbia do seu programa de ADM e abertura das suas fronteiras às inspecções, avanços da democracia na Palestina, Líbano e noutros países da área, o início da retirada síria do Líbano, etc.. Estas mudanças favoráveis têm uma particularidade: terem ocorrido, desde o início da intervenção, contra as previsões dos sacerdotes dos “bons”, e, na maioria dos casos, por pressão das massas árabes.

Em 22-01-04 Rosas postulava no Público que «as forças ocupantes anglo-americanas já não podem sair do Iraque como quereriam. Ou o abandonam expeditamente e a curto prazo, não garantindo o controlo político, militar e das matérias-primas da região, .... Ou prolongam e intensificam a sua presença militar para ver se agarram alguma coisa, e arriscam-se a sair de Bagdad como um dia saíram dos terraços da embaixada de Saigão: pendurados nos helicópteros». E não era a opinião apenas do bonzo Rosas, mas a opinião generalizada de todos os politicamente correctos, de todos os prosélitos do “bem”. Hoje a esquerda americana interroga-se angustiada sobre se afinal não seria Bush que teria razão.

As eleições realizaram-se após uma campanha de descrédito promovida pelos apóstolos do “bem” que controlam a comunicação social, o que é aliás uma consequência necessária da sua missão evangelizadora – só o “bem” deve ser servido às mentalidades frágeis dos gentios. Durante semanas foram transmitidas imagens dramáticas sobre o desastre que se perspectivava nas eleições iraquianas e da certeza do seu previsível fiasco. As opiniões reportadas pelos apóstolos do “bem” eram irrefutáveis. Infelizmente para o “bem” os factos contrariaram mais uma vez as suas ladainhas apostólicas. Os iraquianos, com enorme coragem, afluíram maciçamente às urnas, excepto nas zonas sunitas, onde se concentram os apoiantes do antigo ditador. Mas mesmo entre os sunitas surgem tentativas para que a sua participação futura na democracia iraquiana, não seja menorizada pelo seu boicote eleitoral.

Mas para os bonzos do “bem” os factos são apenas incidentes irrelevantes que não deixam rasto. E assim promoveram a realização este fim de semana (de 18 a 20 de Março) a “Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque” (AP-TMI). A Assembleia Nacional Iraquiana iniciou os trabalhos a 16 de Março – isso é irrelevante para os bonzos do “bem”, a quem a democracia apenas interessa porque lhes permite atacarem os governos democráticos. Os iraquianos discutem em liberdade o futuro do país e as estratégias das diversas forças políticas – os bonzos em êxtase anti-imperialista apenas se interessam na condenação do imperialismo por “ocupar o Iraque e se apropriar ilicitamente dos recursos naturais e dos fundos financeiros iraquianos, em seu benefício, e de subverterem as bases da estrutura produtiva do país” e na execução da sentença, cominada a priori, “da retirada das forças ocupantes e a devolução integral da soberania ao povo iraquiano, condição indispensável da pacificação e democratização do país”. As eleições permitiram a eleição de 86 mulheres entre os 275 deputados, que estão decididas a lutarem pela melhoria da sua condição, mas os bonzos passam displicentemente ao lado de factos irrelevantes para as suas crenças e pretendem com esta “Audiência” mobilizar todos os bonzos para “abreviar o sofrimento do povo iraquiano”.

Quando se “julga” o “mal”, não há lugar para o contraditório. O “mal” é para ser exorcizado, não para ser confrontado. Além do que, como os bonzos afirmaram, seria duvidoso que os “visados reconhecessem os benefícios cívicos deste tribunal". Estes rituais apenas são “julgamentos” pelo rótulo que os próprios bonzos lhes atribuíram. Não são mais que autos de exorcismo do “capitalismo e do imperialismo”.

A “Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque” não tem rigorosamente nada a ver com o povo iraquiano. Ignora olimpicamente o que lá se passa. Provavelmente até gostaria que os terroristas, a quem chama, delicadamente, militantes da resistência, causassem ainda mais sofrimento ao povo iraquiano. A AP-TMI tem apenas a ver com as crenças messiânicas dos bonzos que a integram. É um ritual litúrgico. É uma praxe catártica para drenar periodicamente os humores segregados pelos traumas da orfandade de Lenine e dos amanhãs que cantam.

É a expiação rancorosa em lausperene.

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março 13, 2005

As Fêmeas do Parque Jurássico

Mário Mesquita e Ana Sá Lopes dedicaram-se hoje, no Público, a formar um «contra-governo feminino, com o declarado objectivo provocatório, de contrapor à misógina constituição do XVII Executivo Constitucional uma alternativa imaginária, embora dotada de credibilidade suficiente».

Ora este exercício foi uma ofensa pública e indelével à mulher portuguesa, ou a qualquer mulher, em qualquer latitude ou longitude. Francamente nós não merecíamos isso! Estão lá todas. Toda a tralha guterrista do “Segundo Sexo”. Todas aquelas que se guindaram à política ou a instituições corporativas não pela sua competência, mas apenas por serem mulheres, foram criteriosamente escolhidas pelo guru Mesquita e pela sua ex-aluna.

À medida que aqueles nomes ... Elisa Ferreira (como primeira-ministra!!), Maria de Belém, Edite Estrela (!!!),Helena Roseta, Maria Carrilho, Ana Gomes (!!), Ana Benavente(!!), Leonor Coutinho, ... se perfilavam ante os meus olhos, eu fui-me apercebendo da diversidade e da vetustez das espécies femininas que povoam o Parque Jurássico socialista.

Apenas um último aceno de simpatia para 2 ou 3 dos nomes citados no artigo, que não mereciam terem sido capturadas pelos articulistas para figurar naquele Parque. Isto se estivessem, como calculo, entre aquelas que o guru e a sua aluna julgam que “recusariam, por motivos políticos ou profissionais”.

E o que é mais espantoso é o guru e a aluna escreverem que aquela equipa era «dotada de credibilidade suficiente». Eles lá sabem ... de há tanto viverem naquele Parque, saberão certamente as espécies mais credíveis que por lá habitam.

O Blasfémias comenta que se trata certamente de “uma espécie de filme de terror com que os autores quiseram justificar a composição do actual Governo e a sua falta de alternativa em razão do género”. É uma interpretação plausível ...

Publicado por Joana às 11:47 PM | Comentários (18) | TrackBack

março 10, 2005

Aron e Sartre

Faz em 2005 cem anos que nasceram Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Têm muito em comum. Nasceram ambos em 1905; foram condiscípulos na Escola Normal Superior da Rua de Ulm; estiveram, até às suas mortes (Sartre em 1980 e Aron em 1983), empenhados em todas as grandes lutas e eventos do século. Apenas houve duas pequenas diferenças entre ambos: 1) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado certo, de acordo com o pensamento politicamente correcto da época; Aron esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com esse mesmo pensamento politicamente correcto; 2) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com o posterior julgamento da história; Aron esteve, sempre, do lado certo, de acordo com esse mesmo julgamento.

Sartre foi sempre o ídolo do pensamento politicamente correcto, mesmo quando se verificava, poucos anos depois, que tinha apoiado um erro – o pensamento politicamente correcto não tem memória. Aron foi sempre diabolizado pelo pensamento politicamente correcto – as injustiças da História (ou seja, os factos que tramaram o pensamento politicamente correcto) são imperdoáveis para aqueles que tomam as suas ideias como valores absolutos.

Aron pressentiu o que adviria com a ascensão do nazismo. Para ele, o dizer não a Hitler deveria ter ocorrido em Março de 1936 (ocupação militar da Renânia) e não após Munique. O espírito de Munique nascera em 1936. Pelo contrário, Sartre sempre pensou que Hitler seria um epifenómeno transitório e mesmo aquando dos acordos de Munique, não se apercebeu logo da dimensão exacta do que estava em jogo. Após a derrota, Aron foi para Londres, enquanto Sartre, saído do cativeiro, dedicou-se à escrita em Paris. Foi, segundo ele, «un écrivain qui résiste, et non un résistant qui écrit», porque resistir não pode ser uma finalidade em si. Tentaram, mais tarde, fazer dele um resistente, mas como afirmou J-C Casanova num debate recente «Si la résistance consiste à discuter dans un café, alors il y a eu beaucoup de résistants en France!».

Depois de acabada a guerra, Sartre (e os Temps Modernes, a cujo Comité Directivo, Aron também pertenceu de início) envereda pela 3ª via, nem capitalismo, nem comunismo. Mas o futuro Sartre já está prefigurado na apresentação dos Temps Modernes (lançado em Outubro de 1945): quer se queira quer não, todo o texto «possui um sentido»: «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também» «as palavras são pistolas carregadas». Já tive ocasião de me debruçar, aqui, sobre a perversão da filosofia do “intelectual comprometido”.

E pouco a pouco, Sartre deixa-se impregnar pelo fascínio do PCF, que se apresentava como o futuro da humanidade perante os crentes, como o agente decisivo da História. Vai ser o percurso de Sartre, o da tentativa (sempre frustrada, mas sempre permanente) de reconciliar o aventureiro de origem burguesa, motivado pelo seu ego a agir, e o militante revolucionário cujo ego é motivado pela acção. O PC continua, apesar de tudo, a ser a única chave no que respeita à sua vontade de romper com a burguesia e com a «civilização da solidão» que ela traz em si e na qual foi educado. A invasão da Coreia do Sul pela tropas norte-coreanas e a intervenção americana sob o patrocínio da ONU extremou os campos. A partir daí, Sartre tornou-se um compagnon de route do movimento comunista – «Um anticomunista é um cão, persisto e persistirei em dizê-lo».

Aron ficou decididamente, no outro lado da barreira. Para ele, a influência de Estaline não parava no Elba. A força do imperialismo soviético dependia menos do seu potencial militar do que da sua irradiação ou da penetração da sua propaganda. A existência, na própria Europa Ocidental, de grandes partidos comunistas, como em França e na Itália, é descrita por Aron, em 1948, como sendo a de «quintas colunas». Sem dúvida, os milhões de eleitores que confiam nos partidos comunistas ocidentais nutrem-se de esperanças honrosas, mas isso não deve ocultar a realidade, a saber, que os dirigentes e os aparelhos desses partidos fazem a política da URSS no quadro nacional onde exercem as suas actividades.

Aos olhos de Aron, para frustrar os seus objectivos três condições se impunham: primeiramente, o restabelecimento dos grandes equilíbrios económicos, financeiros e monetários; logo - em segundo lugar - a restauração de um poder de Estado; e, em terceiro lugar, a luta decidida contra a ideologia comunista no próprio terreno das ideias e da propaganda.

E disso se encarregou Aron «Os revolucionários têm como que um ódio ao mundo e um desejo da catástrofe. Todos os regimes conhecidos são condenáveis face a um ideal abstracto de igualdade e liberdade. Apenas a Revolução, porque é uma aventura, ou um regime revolucionário, porque este consente no uso permanente da violência, parecem capazes de conjugar este objectivo sublime. O mito da Revolução serve de refúgio ao pensamento utópico, torna-se o intercessor misterioso, imprevisível, entre o real e o ideal. .... A própria violência atrai, fascina, mais que repele. O mito da Revolução converge com o culto fascista da violência

A crítica ideológica [ do intelectual de esquerda] é moralista contra uma parte do mundo e em extremo indulgente perante o movimento revolucionário. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a contra-revolução ou é ministrada por um movimento revolucionário. A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre «revolucionários». Quantos intelectuais aderiram aos PC’s por indignação moral e acabaram subscrevendo de facto o terrorismo soviético e a razão de Estado?

Estes escritos de 1955 tornaram Aron no “lacaio da burguesia”, encarregado de lhe «fornecer a dose de justificações capazes de permitirem a esta ter boa consciência e enfraquecer os seus adversários». E isto não foi dito por nenhum radical, mas sim por Maurice Duverger, que de esquerda nunca teve nada. Tal era o ambiente intelectual que se vivia na época.

E quando lhe objectaram que o anticomunismo conduz ao fascismo, Aron respondeu com firmeza: «Não temos qualquer credo ou qualquer doutrina a opor à doutrina e ao credo comunistas, mas isso não nos humilha, porque as religiões seculares são sempre mistificações. Elas propõem às multidões uma interpretação do drama histórico e atribuem a uma causa única as infelicidades da humanidade. Ora, a verdade é outra, não há uma causa única ... Não há Revolução que, de um golpe, possa inaugurar uma fase nova da humanidade. A religião comunista não tem rival, ela é a última dessas religiões seculares, que acumularam as ruínas e espalharam torrentes de sangue».

Enquanto isso, Sartre apressava-se a estar do lado da causa do proletariado comunista. Em 1954, de regresso de uma viagem à Rússia onde fora passeado, louvado e empanturrado, dá entrevistas onde afirma: «A liberdade de crítica é total na URSS. O contacto é tão alargado, tão aberto, tão fácil quanto possível». E avança esta predição ousada: «Por volta de 1960, antes de 1965, se a França continuar a estagnar, o nível médio de vida na URSS será 30 a 40 por cento superior ao nosso. É bem evidente, para ela e para todos os homens, que a única relação razoável é uma relação de amizade». E Sartre conhece os factos, sabe do Gulag, mas tem uma atitude dúplice, pois embora condene existência dos campos soviéticos, alerta contra a exploração que disso faz, todos os dias, a imprensa burguesa. Todavia, 2 anos depois, o esmagamento da revolta húngara era um facto demasiado evidente e demasiado público – Sartre anuncia então que quebra «as relações com os escritores soviéticos meus amigos, que não denunciaram, ou não podem denunciar, o massacre da Hungria», e descobre, finalmente, que «já passou o tempo das verdades reveladas, das palavras de evangelho: um Partido Comunista não pode viver no Ocidente se não adquirir o direito de livre exame».

Aron tinha mais uma vez acertado. Sartre precisou da brutalidade dos factos para ver, não direi claro, mas alguma ténue luz.

Foi igualmente oposta a posição deles perante o fim da IV República, incapaz de encontrar uma solução para a guerra da Argélia. Sartre preconizava uma nova Frente Popular e o combate ao gaullismo que seria a continuação da política colonial sob uma espécie de monarquia constitucional, Aron apostou no general, prevendo que ele faria uma política contrária aos militares que o tinham chamado. Mais uma vez foi Aron que acertou.

Mas Sartre encontrou outros heróis. Meses antes da crise dos mísseis, escreve «Os cubanos, é preciso repeti-lo, não são comunistas e nunca pensaram em instalar bases de foguetões russos no seu território»!! Fidel é um anjo... Fidel é «o homem para tudo e é o homem de todos os pormenores»... Fidel «é, a um tempo, a ilha, os homens, o gado, as plantas e a terra; ele é a ilha inteira»... vi Fidel no meio dos «seus» cubanos - «os cubanos tinham adormecido um após outro, mas Castro unia-os numa mesma noite branca: a noite nacional, a sua noite...»

Com a crise de Maio de 1968, Sartre abre uma nova página da sua intervenção política. Novos heróis se prefiguram diante dele: os estudantes revoltados e os grupúsculos trotskistas, maoistas e anarquistas que tentavam acaudilhar a revolta. Declara então que o PC e a CGT já não estão na corrida revolucionára: «O que está prestes a formar-se é um novo conceito de sociedade baseado na democracia plena, numa conjunção de socialismo e de liberdade»

Aron, do outro lado da barricada, declara com enorme coragem política, face ao vendaval existente, que os «estudantes franceses formulam várias reivindicações legítimas a partir de motivos de queixa autênticos. Mas uma pequena minoria entre eles, aproveitando a capitulação de muitos professores, graças à inocência política da massa estudantil e dos professores tradicionais, está prestes a conseguir levar a cabo uma operação verdadeiramente subversiva .... Dirijo-me a todos, mas em primeiro lugar aos meus colegas, de todas as correntes de opinião, aos estudantes, tanto aos dirigentes como aos manipulados. Convido todos aqueles que me lerem, e que encontrarem nos meus pontos de vista o eco das suas próprias inquietações, a escreverem-me. Talvez tenha chegado o momento, contra a conjura da lassidão e do terrorismo, de nos reagruparmos, fora de todos os sindicatos, num vasto comité de defesa e de renovação da universidade francesa

Nada mais distante das posições de Sartre que acusa com brutalidade o antigo condiscípulo: «Aposto que Raymond Aron nunca se pôs em causa e é por isso que ele é, na minha opinião, indigno de ser professor. Não é o único, evidentemente, mas vejo-me obrigado a falar dele porque, nestes últimos dias, ele escreveu muita coisa.» Contra Aron, Sartre defendia a eleição dos professores pelos estudantes e a participação dos estudantes nos júris dos exames. «Isso implica que deixemos de pensar, como Aron, que pensarmos sozinhos atrás das nossas secretárias - e pensarmos a mesma coisa há trinta anos - representa um exercício de inteligência». Todavia, esse exercício de inteligência tinha permitido ao pensamento político de Aron ser validado pela história, enquanto o de Sartre era apenas uma verdade absoluta enquanto durava cada contexto; depois ele próprio se encarregava de mudar de rumo.

Também aqui as posições de Aron se revelaram correctas. Foi perseguido e para receber um prémio universitário teve que o fazer clandestinamente, mas as eleições marcadas na sequência da crise foram um triunfo para De Gaulle e uma derrota clamorosa para os protagonistas do Maio de 68. Sartre, perante a recusa do PCF e dos sindicatos de encabeçarem o movimento, propôs a refundação da esquerda, «à esquerda» do PCF

E assim Sartre seguiu um percurso ligado ao radicalismo de esquerda. Em 1972 afirmava em entrevista que «continuava a favor da pena de morte por motivos políticos ... num país revolucionário em que a burguesia terá sido expulsa do poder, os burgueses que fomentassem um motim ou uma conspiração mereceriam a pena de morte ... um regime revolucionário deve desembaraçar-se de um certo número de indivíduos que o ameaçam e, para este caso, não vejo outro meio a não ser a morte; é sempre possível sair de uma prisão». No La Cause du Peuple, do qual ele é, desde Maio de 1970, o director titular, pode ler-se apelos a «sangrar os patrões», «esfolá-los vivos como porcos que são», a «linchar os deputados», a «catar os «pequenos chefes», a responder aos patrões sequestrados que ainda pedem «autorização para ir urinar»: «mija nas calças! Não sabes o que são umas cuecas que colam ao traseiro por causa do suor, assim, pelo menos, ficarás a saber o que é ter o cu molhado...», dos comunicados de «operários em revolução», «Vai chegar o dia em que exterminaremos toda a corja de patifes a que pertences». E outras expressões que prefiro não transcrever aqui.

A barbárie de outros textos publicados num jornal, J’accuse, na década de 70, do qual ele se mantém como director e em relação ao qual, ao que se sabe, não deixou nunca de se mostrar solidário: «quanto a esse patrão, será preciso tirar-lhe os miúdos, se eles os tiver, até que as reivindicações sejam satisfeitas...» e a imagem - que também não o parece escandalizar - de Dreyfus, nessa altura patrão da Régie Renault, em que este surge caricaturado como um cão ocupado a sodomizar outro, suposto representar a «canalha sindical» de Billancourt.

Em meados da década de 20, Aron e Sartre haviam prometido, um ao outro, que aquele que sobrevivesse escreveria o obituário do outro no Boletim dos Antigos Alunos da Escola Normal. Aron não honrou essa promessa e explicou porquê: «Demasiado tempo passou entre a intimidade de estudantes e o aperto de mão na conferência de imprensa do “Barco para o Vietname”(*), mas ficou qualquer coisa. Deixo aos outros o encargo, ingrato, mas necessário, de celebrar uma obra cuja riqueza, diversidade e amplitude confundem os contemporâneos, de pagar um justo tributo a um homem cuja generosidade e desinteresse ninguém porá em dúvida, mesmo quando se empenhou, e fê-lo por diversas vezes, em combates duvidosos»

É, de facto, preferível, no interesse da memória de Sartre – que é um filósofo importante e um escritor de mérito – esquecer o Sartre político, cuja lógica do absoluto revolucionário o levou a escrever textos que poderiam figurar em antologias de literatura fascizante. E continuarmos a ler os escritos políticos de Aron, o intelectual lúcido, que durante 40 anos se debateu com a actualidade, tentando captar-lhe o sentido, com objectividade, sem sentimentalismos nem romantismos. Um intelectual que permanece actual.


(*)Em 1979, quando da tragédia dos “boat people” estiveram juntos para sensibilizarem o Eliseu e o povo francês a colaborarem na tentativa de salvamento das dezenas de milhares de refugiados vietnamitas que fugiam do país por mar em condições dramáticas.

Publicado por Joana às 11:45 PM | Comentários (112) | TrackBack

fevereiro 16, 2005

Má Fé

Louçã é um político de sistemática má-fé, que apregoa virtudes próprias e enxovalha permanentemente os concorrentes. Tem todas as características dos pregadores fundamentalistas de certas facções religiosas americanas de extrema direita, sobejamente retratados na literatura e no cinema. No debate de ontem Louçã criou o que a imprensa, parcial e ignorante, designou por "caso" do debate denunciando uma suposta isenção fiscal concedida em Agosto passado pelo actual governo ao grupo Santander. Santana Lopes, em vez de aproveitar o intervalo para se municiar com o diploma legal que justifica essa isenção, municiou-se com referência a idênticas isenções, muito mais vultuosas, concedidas pelo governo de Guterres a grupos bancários, o que daria ao pregador de extrema-direita, com chavões de radical de esquerda, a possibilidade de o acusar de ser "muito feio falar-se do que os outros fizeram para justificar os nossos erros".

Ora aquela isenção é regulada pelo Decreto-Lei n.º 404/90, que o OE 2005 prorrogou até 31 de Dezembro de 2006. Sem isso as empresas portuguesas não poderiam beneficiar da isenção de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis, de Imposto do Selo, de emolumentos e de outros encargos legais decorrentes da prática de operações de reorganização empresarial, situação que seria extremamente prejudicial para a capacidade competitiva de grande parte do tecido empresarial português.

Para obterem essas isenções as empresas terão que provar que não haverá mais-valias resultantes desse processo de reestruturação. As empresas que pretendam essa operação terão que apresentar um requerimento à Direcção Geral dos Impostos com um estudo demonstrativo das vantagens da operação que pretendem realizar, um parecer do ministério da tutela da actividade da empresa relativo ao estudo referido, bem como um parecer da autoridade da concorrência sobre a compatibilidade da operação com a existência de um grau desejável de concorrência no mercado. Por outro lado, para beneficiarem destes incentivos, as sociedades envolvidas têm que exercer a mesma actividade económica, ou actividade integrada na mesma cadeia de produção ou distribuição desde que manifestamente complementares. Estas últimas obrigações foram introduzidas pelo OE 2005.

Portanto o que se verificou no debate foi má-fé do Louçã que, ao apresentar aquele papel e fazer aquela acusação, deveria ter-se informado antes das respectivas disposições legais, foi a demagogia saloia de Sócrates que se apressou a dizer que as explicações do PSL eram insuficientes. Quanto a PSL e P Portas, admite-se que, colocados de surpresa perante aquela acusação, não estivessem seguros do enquadramento da situação. Só omniscientes o estariam. O que já não se justifica é que, durante o intervalo, PSL em vez de ser informado do que era substantivo, se municiasse apenas de farpas contra o governo de Guterres/Sócrates.

Sócrates não insistiu a seguir ao intervalo. Provavelmente informou-se e viu o “buraco” em que se tinha metido.

Por outro lado só esquecidos ou desonestos intelectualmente ignoram as benesses que os governos de Guterres/Sócrates deram aos grupos económicos. Não fica mal meter aquelas farpas. Fica mal, sim, mostrar ignorância sobre o assunto.

Publicado por Joana às 01:15 PM | Comentários (48) | TrackBack

fevereiro 09, 2005

Sócrates nunca terá maioria absoluta

... mesmo que o PS a obtenha

É ilusório pensar que uma eventual maioria absoluta do PS conduza a um governo estável com um projecto coerente. Em primeiro lugar, o espectro político dentro do PS é demasiado amplo para permitir tal suceda; em segundo lugar, Sócrates está na margem direita desse espectro político, tendo sido eleito para liderar o partido apenas por ser a hipótese mais viável para o aparelho socialista regressar às sinecuras do poder. A questão de fundo é que existe uma ambivalência genética no socialismo, que nasceu e tem vivido no seio de relações de produção, que originalmente detestava e pretendia eliminar, mas de cuja gestão, posteriormente, se tem, por diversas vezes, encarregado. Essa ambivalência moldou a teoria e a praxis política socialista nas últimas décadas.

Por isso não surpreende a actual campanha de Sócrates; campanha onde não existe um projecto, mas apenas alguns chavões cujo conteúdo não se conhece, admitindo que o tenham; campanha baseada em banalidades e na ausência de assumpção de compromissos. Por isso os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. Por isso gerem o sistema no papel do gestor pouco à vontade, contrariado por estar a administrar uma empresa num ambiente cujas regras do jogo detesta. Como solução de compromisso, revestem essa gestão com tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, porquanto não sabem desenvolver os mecanismos que permitem a sua criação.

E essa necessidade de compromisso interno é o resultado de um espectro político muito vasto, onde afluem diversas heranças políticas, do jacobinismo ao marxismo, passando pelo radicalismo pequeno-burguês, e económicas, de Proudhon a Keynes, passando pelos “revisionistas” alemães de Marx. Mas estas heranças, cada vez mais longínquas e esvaziadas de conteúdo, servem fundamentalmente de bandeiras nos conflitos internos, quando o aparelho partidário, depois de se ter apoderado do poder e distribuído entre si os almejados cargos públicos, se vê confrontado com a desilusão social provinda de todos os quadrantes.

Quando a experiência governativa chega a este estádio e a sua popularidade está em queda, a ala esquerda do partido, no interior, e os grupos radicais, no exterior, acusam o governo socialista de “meter o socialismo na gaveta”, de estar a perder porque “fez uma política de direita”. Obviamente que esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar essa perda pela alegação que o governo socialista teria feito uma política de direita?

A verdade é que o PS, face a uma realidade em mutação, plena de transformações e rupturas, carregando o lastro da sua ambivalência genética, não tem ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acaba, forçado pelas circunstâncias económicas, a aplicar receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sente pouco à vontade em aplicar essas medidas, fá-lo de forma incoerente e errática e tenta disfarçar essas contradições com políticas sociais de intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.

Sócrates não conseguiria resistir, internamente, a uma política reformista. Conhece certamente as maleitas que a sociedade portuguesa sofre. Talvez saiba que essas maleitas só se curam com uma política de ruptura face ao modelo actual, modelo que teve a sua expressão mais calamitosa no período guterrista, mas que já vinha de trás, e com o qual o próprio Cavaco pactuou, e mais acentuadamente na segunda metade da sua governação. Por isso é o cinzentismo da sua campanha e a contínua fuga aos debates, de forma a não ser obrigado a precisar as suas propostas programáticas. Limita-se a desfiar um rosário de banalidades pouco exaltantes nos comícios, deixando o aquecimento das plateias para a trauliteirice verbal do aparatchik Coelho.

Esta impossibilidade de maioria absoluta de Sócrates, mesmo que o PS tivesse maioria absoluta na AR, não significa que esse eventual governo possa cair na AR. Na AR prevalecerá a disciplina de voto, principalmente se a alternativa for a perca do poder. A questão põe-se ao nível dos conflitos internos que transbordam para a praça pública e corroem a imagem do governo e da estabilidade governativa. Todos estamos lembrados que, mesmo num período de vacas gordas, durante o consulado guterrista, como ex-membros do governo criticavam o governo na praça pública e com azedume inaudito: Sousa Franco, Fernando Gomes, Manuela Arcanjo, etc., etc.. Todos estamos lembrados como destacados parlamentares socialistas encetaram cruzadas mortíferas contra iniciativas governamentais.

Ora se numa época que, para os menos avisados, tudo parecia sorrir – as taxas de juro baixas incentivavam o consumo e diminuíam os encargos com a dívida pública; as obras públicas eram feitas no sistema “faça agora e comece a pagar daqui a alguns anos”; a diminuição dos encargos com a dívida pública e as disponibilidades geradas pelo fazer de obras sem pagamento imediato, permitiam que o governo encontrasse meios para aumentar o emprego público; etc., etc. – o que acontecerá agora, quando aqueles mecanismos já não estão disponíveis; quando chegou a época do “pague depois”; quando o emprego público criado nessa época se tornou num peso insustentável que suga o nosso sector produtivo e lhe diminui a competitividade?

Neste entendimento, se o PS chegar ao governo, mesmo com maioria absoluta, encontrará uma forte oposição dentro de si próprio. O erário público está quase vazio e o país exangue. A continuação do actual modelo significa a progressiva deslocalização (ou fecho) das empresas que tenderá a acelerar-se. A deslocalização das empresas, o aumento do desemprego e a diminuição do peso do sector privado fará diminuir a base de incidência fiscal. Primeiro sairão as empresas e depois emigrarão os trabalhadores cuja ambição e qualificação não se satisfizerem com o subsídio de desemprego. Na ausência de medidas de fundo, este processo é cumulativo mas não é sustentável – mesmo que a sociedade portuguesa não se tenha entretanto mobilizado para evitar o colapso do país, haveria uma fase intermédia desse processo em que ocorreria o colapso do Estado.

Portanto é inevitável fazer qualquer coisa para, no mínimo, suster este processo. A partir do “pântano” guterrista, as alternativas que se colocam, e se continuaram a colocar, resumem-se à escolha entre tomar medidas impopulares, ou tornar-se impopular pela pauperização contínua do país, isto é, por não tomar essas medias. Confrontado com estas alternativas, um eventual governo PS estará em permanência sob o fogo das próprias hostes. Numa situação muito mais favorável, Guterres não conseguiu evitar a queda, mais provocada por factores internos que por uma oposição frágil, liderada por um político fraco e sem carisma, como Durão Barroso mostrou ser na oposição, no governo do país, e está a mostrar agora na presidência da Comissão Europeia. Numa situação muito mais complexa, como a actual, a questão é saber quanto tempo aguentaria Sócrates.

Há uma convergência muito maior no espectro político português à direita de Sócrates, incluindo a margem direita do PS, para um projecto de reformas sociais e económicas que travem esta descida aos abismos, que dentro do próprio PS. E isso pode ser mortífero.

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janeiro 27, 2005

Défice Democrático

Há um blogue de um especialista em sondagens, onde este fez uma análise, bastante elaborada, sobre a razão pela qual as estimativas de resultados publicadas antes das eleições pelas diferentes empresas de sondagens tendem a subestimar a votação do CDS-PP. O palpite dele, alicerçado na comparação entre os tipos de amostragem das diferentes sondagens, em diversos actos eleitorais, é que “o eleitorado do CDS tende a ocultar o seu sentido de voto, mais do que o eleitorado dos restantes partidos”. Esta conclusão-palpite dá que pensar.

Porque é que as pessoas do PP, ou da chamada Direita, têm receio em revelar directamente a opinião que exprimem na discrição da cabine de voto? Se têm receio, é porque sentem que há uma sanção pública relativamente as opiniões políticas que têm. Opiniões que, aliás, são perfeitamente legítimas e, teoricamente, garantidas constitucionalmente. Portanto, essa sanção pública viola os direitos, liberdades e garantias que constituem a base de um Estado de Direito. Portanto nós vivemos numa situação de défice democrático.

Essa sanção pública é veiculada pela comunicação social, sob as mais diversas formas em que esta se processa, e decorre do facto da superestrutura ideológica da sociedade actual ter sido colonizada pela esquerda. Escrevi em 21-04-2004 que, “A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.” E as conclusões daquele estudo vêm reforçar as opiniões que então exprimi.

Terei, talvez, quando escrevi aquele texto, sido algo superficial na caracterização política. Na verdade, esquerda e direita voltaram a ser apenas a disposição geométrica dos assentos parlamentares. A esquerda, hoje em dia, tem apenas um significado geométrico e, no caso do PS, de geometria variável. Actualmente a esquerda é o conservadorismo, é a defesa do statu quo, daquilo que chama “direitos adquiridos” ou “conquistas irreversíveis”. A esquerda olha para o futuro, saudosa do passado, defendendo-o, e recuando combatendo trincheira a trincheira. A esquerda não tem quaisquer ideias operacionais, para além de falar em ser amiga das políticas sociais, mas sem as concretizar, pois já viu, ela e todos nós, o fundo ao tacho.

Em contrapartida, a esquerda, a esquerda actual, vive da contemplação extática dos seus sublimes e imortais valores sociais e culturais. E esse êxtase, esse arrebatamento a que a sua ideologia a transporta, leva-a a sentir um intenso desdém pelos ignaros que não comungam dessa ideologia. Ora um sistema coerente de ideias e valores ou se baseia no conhecimento do real concreto, na experiência, tendo portanto uma fundamentação científica continuadamente validada pelos factos, ou quando ele se mantém apenas pela fé, pois a experiência e os factos invalidam-no, não é mais que uma religião.

E sabe-se com que determinação e furor as religiões defendem os seus cânones, as suas matérias de fé. A história está repleta das violências que as religiões exerceram para manterem a pureza da fé e exterminarem os heréticos.

Foi pelo facto dos sistemas de ideias e valores da esquerda se terem tornado numa religião, numa profissão de fé, que a esquerda actual é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda actual não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.

E essa arrogância, esse acinte e, acima de tudo, um enorme desdém pelos que não estão iluminados pela revelação da verdade absoluta, transparece na comunicação social, ideologicamente colonizada pela esquerda (*) e, genericamente, na superestrutura ideológica da sociedade portuguesa.

Esse totalitarismo ideológico, essa tirania da religião dos bem-pensantes, tem as suas sequelas: quanto mais as pessoas se sentem afastadas daqueles valores, mais se sentem afectadas por uma heresia que devem ocultar de estranhos para tranquilidade do seu espírito. Na realidade, o que estas pessoas sentem ... é medo. Não é o medo físico, não é o medo do trauliteirismo da moca do cartaz do BE – é o medo da sanção social, da rejeição, de serem enjeitados como heréticos

A esquerda, que se afirma como democrática, gerou o défice democrático existente na nossa sociedade, não tanto pela ingerência opressiva (também ... basta ver como Vital Moreira, que tão chocado ficou pelo facto do Prof. Marcelo ter abandonado a TVI, encetou agora uma cruzada contra a contratação daquele comentador pela RTP) mas principalmente pela disseminação obsidiante, mas subtil, da sua ideologia alcandorada em verdade absoluta e incontestável.

No que respeita às sondagens, é natural que as metodologias utilizadas para corrigir os enviesamentos das amostras, passe a integrar correcções sobre esse comportamento do eleitorado de direita. Se o fizer desta vez, é natural que a diferença entre as sondagens e o acto eleitoral se atenue ou mesmo se inverta.

Mas a questão que eu aqui coloco não é a da correcção de enviesamentos de amostras estatísticas, é a do défice democrático que leva portugueses a ocultarem as suas opiniões de estranhos. E essa, é uma questão sumamente inquietante, é uma questão de regime.


(*) Essa colonização não pressupõe, necessariamente, a detenção do poder político. Meses atrás, António Barreto, num artigo sobre a lastimável situação da educação em Portugal, afirmava que era culpa da ideologia educacional da esquerda, apesar das reformas terem sido feitas, indiferenciadamente, por governos de esquerda e de direita. Barreto afirmava que, em matéria de educação, a direita, tendo perdido o seu modelo arcaico autoritário e disciplinador, tinha sido colonizada, ideologicamente, pela esquerda.

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janeiro 23, 2005

Uportugalia

Uma Utopia académica para Portugal

O programa do Partido Socialista constitui um excelente exercício académico. Está perfeito. Consegue prometer os resultados de uma pujante economia de mercado, com menos Estado e melhor Estado, e o conformismo imobilista de uma economia da matriz estatizante. Portugal, dentro de 4 anos, vai conseguir o milagre económico que irá abalar os fundamentos do pensamento económico contemporâneo: criar uma eficiente economia de mercado, mantendo o estatuto de Estado providência, esmoler e burocrata. Uma Utopia ... ou, neste canto da Europa, uma Uportugalia.

A questão da burocracia estatal fica resolvida com a Via Verde ... mas só para produtos inovadores, pois será criada uma “Via Verde” para produtos inovadores - canal de decisão rápida na Administração Pública para licenciamentos ou apoios aos investimentos;”. Excelente ideia. Quem quiser investir num produto inovador arranja uma certidão de produto inovador e passará sempre pela Via Verde. Só estou curiosa em saber quantos anos demorará a obter uma certidão de produto inovador que permita aquele trânsito rápido através da burocracia estatal. A burocracia estatal é intocável. A única possibilidade será utilizar a Via Verde!

Está prometido “Viabilizar a criação de 200 novas empresas de base tecnológica;”. 200? Porque não 500 ou 1.000? Ou 10? Que magia terá o número de 200 no que respeita a empresas de base tecnológica? Será algum código esotérico? Imaginemos que eu queria criar a empresa de base tecnológica nº 201 ... será que me respondiam: V.Exa desculpar-me-á, mas atingimos o limite de largura de banda desta legislatura.

São números de uma semiótica esotérica e cabalística, tais como os 150 mil novos empregos e os 3% de crescimento real prometidos.

Outra promessa é a Prestação Extraordinária de Combate à Pobreza dos Idosos, por forma a que finalmente nenhum pensionista tenha que viver com um rendimento abaixo de 300 €. A solidariedade nacional fará com que aproximadamente 300.000 pensionistas vejam os seus rendimentos totais significativamente aumentados com efeitos muito poderosos na diminuição da taxa de pobreza. Quando as famílias dos restantes souberem desta dádiva, deixarão de apoiar os seus familiares, ou pelo menos dirão isso. O nosso povo tem desenvolvido os mais engenhosos esquemas de candidatura a subsídios. Certamente não lhe escasseará a arte e a indústria quando este subsídio for criado.

Outra medida de grande alcance é a de “Criar a regra global de entrada de um elemento recrutado do exterior por cada duas saídas para aposentação ou outra forma de desvinculação. Este programa visará diminuir em pelo menos 75 mil efectivos o pessoal da AP, ao longo dos quatro anos da legislatura”. Uma das mais imorredoiras obras do socialismo foi a da indiferenciação, ou do igualitarismo, das pessoas. Portanto, no sector público português passará a haver UTs (unidades de trabalho). Saem duas UTs, não importa de que sítio e com que qualificações e habilitações, entra uma UT.

Por exemplo: reformam-se uma professora de inglês e um mergulhador da marinha. Sócrates vai à lista de espera e lá está: um cantoneiro para a Direcção de Estradas de Faro.

Antes de ler este programa, eu julgava, ingenuamente, que um organismo, para emagrecer, deveria ser objecto de um processo de reestruturação, definindo objectivos, circuitos e missões, avaliando o pessoal necessário e o excedentário, e criando procedimentos para avaliação permanente do desempenho. Afinal todos aqueles especialistas de gestão que escreveram milhões de páginas sobre organização de empresas e gestão do pessoal estavam completamente equivocados. A solução era simples e estava à vista de todos: por cada dois que saem, entra um.

A próxima investigação nesta matéria vai ser sobre o que fazer quando a saída do pessoal se processar por números ímpares: 1, 3, 5, ... 2n+1.

Neste programa também são contempladas proezas científicas: “criar condições para que pelo menos um curso pósgraduado de gestão (MBA) venha a estar entre os 100 melhores do mundo;”. Obviamente que seria interessante, e de significado para o país, se as nossas escolas estivessem bem colocadas no ranking mundial. Mas isso não é um objectivo, é uma consequência das políticas. Se as políticas forem as adequadas, os resultados aparecem. É um pouco indiferente verificar-se que está um curso entre os 100 primeiros, ou 2 entre os 100 e os 120. E acho provinciano, ou uma infantilidade, propor este objectivo.

O programa diz que: “Governo do PS promoverá a revisão do Código do Trabalho, tomando por base as propostas de alteração que em devido tempo apresentou na Assembleia da República, bem como a avaliação do novo regime legal”. Paralelamente tece diversas considerações sobre o actual código, genericamente críticas, mas sem nunca concretizar essas críticas. Julgo que se trata apenas de “conversa para sindicato ler”.

Quanto à questão das SCUTs estou de acordo, embora por razões diversas das do PS. Julgo que as receitas financeiras líquidas resultantes de pôr portagens nas SCUTs existentes dificilmente cobrirão mais que 20% ou 25% dos custos anuais. As SCUTs foram um péssimo negócio e o PS não reconhece isso, mas agora pouco há a fazer. Aliás, numa entrevista recente, Santana Lopes afirmava, orgulhoso, que fora ele quem convencera Mexia, porquanto este não estava inicialmente de acordo. Isso só prova que Mexia é um sujeito competente.

Quanto à Lei do Arrendamento Urbano, o PS compromete-se a apresentar na Assembleia da República uma iniciativa legislativa nos primeiros 100 dias do seu mandato. Mas é muito nebuloso sobre o conteúdo dessa lei. A lei do PSD é má, como já escrevi aqui. Mas a do PS poderá não ser melhor, nomeadamente porque o PS é muito mais susceptível aos lobbies que o PSD. Portanto, tudo permite concluir que os comerciantes irão ser bastante beneficiados por essa iniciativa legislativa.

Mas o programa tem também bons momentos, nomeadamente quando se situa ao nível do ensaio académico. Eu, por exemplo, não desdenharia escrever, neste blogue que:

“o Estado pode facilitar a formação de parcerias para a inovação em clusters em que Portugal já tem competência e onde acrescenta valor e reforçar a sua competitividade internacional. São exemplos:
• Combinar as indústrias dos têxteis, confecções e calçado com o design e a
distribuição, para desenvolver o cluster da moda;
• Partir das indústrias automóvel e aeronáutica para desenvolver o cluster da mobilidade, da electrónica e da logística;
• Promover a indústrias dos moldes como uma base fundamental de desenvolvimento de capacidades de concepção, do desenho e da engenharia de produto, com aplicaçãoem múltiplos sectores;
• Apoiar o cluster das florestas;
• Apoiar a indústria de software especializado;
• Promover a agricultura de precisão em áreas como os vinhos e as horti-frutícolas;
• Combinar o turismo com a cultura, a gastronomia, o desporto, a protecção ambiental e a recuperação do património, para desenvolver as indústrias do lazer;
• Combinar estas actividades com o sector da saúde para desenvolver um cluster de apoio à terceira idade, aberto a nacionais e estrangeiros

Está excelente, mas não passa de intenções vagas, bom para um ensaio académico, mas inconsistente, para um programa de governo.

Publicado por Joana às 10:13 PM | Comentários (34) | TrackBack

janeiro 21, 2005

The Harder They Fall

O beirão Candal acusou Paulo Portas, algumas campanhas eleitorais atrás, de ser homossexual. O manifesto caiu mal, foi considerado um enxovalho contrário à ética política, e Carlos Candal acabou mais mal visto que o seu acusado. Mas há duas coisas a reconhecer no beirão Candal: foi frontal e a sua acusação corresponderia, tudo o indicava, às opiniões que ele tinha sobre a homossexualidade.

Francisco Louçã foi muito pior e mais baixo que Candal. Louçã não foi frontal ... apenas insinuou e, na questão da IVG, insinuou da forma mais torpe: trouxe a filha à colação - "O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança", e repetiu isto insistentemente, para que não restassem dúvidas. Louçã foi farisaico, porque não se espera de um defensor dos direitos dos homossexuais, das uniões de facto e de tantos outros temas ditos “fracturantes” utilize, como marketing político, insinuar que o opositor é homossexual e utilizar a filha para que essa insinuação fosse mais clara.

Candal apenas usou a baixa política, frontalmente, por convicção, mas não deixou por isso de ser baixa política. Louçã foi um Candal, mais a pusilanimidade e mais o farisaísmo. Foi um Candal pusilânime e farisaico.

Quanto ao resto do debate nem vale a pena falar. No que respeita às questões nacionais ficou claro aquilo que já se sabia – que Portas tem obra feita, quer nas OGMA, quer nos Estaleiros de Viana de Castelo, e que Louçã é apenas um maldizente que tenta enganar o auditório falseando os números, comparando valor da transacção com capitais próprios, passando displicentemente ao lado de passivos, o que é de estranhar num economista ... mas não num demagogo.

Quanto à questão da fiscalidade bancária, há medidas que não podem ser tomadas abruptamente, se não têm efeitos perversos na economia. Ora a situação, a partir do OE2005, passou a ser mais justa do que era anteriormente, e tenderá, assim se espera, a evoluir nessa direcção. Mas Louçã não percebe destas coisas: ele é mais demagogo que economista.

Por isso os conceitos que ele mais utilizou no debate foram: ladrões, medíocres, sem-vergonha, mentirosos, roubalheiras, etc. etc.

Publicado por Joana às 02:29 PM | Comentários (109) | TrackBack

novembro 21, 2004

Mário Soares diagnostica-se

Ao ler as declarações proferidas por Mário Soares, quinta-feira à noite, no Porto, fiquei empolgada. Senti-me transportada às leituras dos manifestos e proclamações que lançaram o PRD na arena política. Certamente, naquela noite sublime, flutuaria um halo sobre a cabeça do «Patriarca da Democracia», o mesmo halo que terá refulgido sobre o penteado de Manuela Eanes, então transfigurada em Nossa Senhora de Fátima, que se aprestava a salvar o país da desgraça em que se encontrava, e a repô-lo sob a sua divina protecção. O diagnóstico que Soares fez do país é um perfeito remake do diagnóstico que os promotores do PRD e o casal Eanes fizeram do mesmo país há 2 décadas.

Apenas uma ligeira diferença formal, sem substância. Em 1985 Portugal encontrava-se, conforme aquele diagnóstico (um deles, pois qualquer serve), numa «situação bem difícil, sem estratégia para o futuro, desorientado, perdido no seu labirinto político», onde «os abusos, as injustiças e as corrupções» campeavam e onde havia o «polvo da corrupção que alastrava os seus tentáculos no Estado, na sociedade, nos partidos e nas autarquias». Todavia quem então fazia aquele diagnóstico considerava o próprio Mário Soares, e a camarilha que o rodeava, como os autores materiais e morais daquela situação calamitosa. Mário Soares e os seus acólitos eram considerados a prova «que o sistema estava a seleccionar, para baixo e para o mal, os políticos» e que só se viam então «figuras menores».

Os eleitores aceitaram aquele diagnóstico e as eleições de 1985 foram um completo descalabro para o PS. Se eles aceitaram maioritariamente aquele diagnóstico em 1985, é porque ele teria substância. Portanto todos «os abusos, as injustiças e corrupções», de que fala agora Soares, deveriam ainda ser mais revoltantes nessa época, dada a reacção dos eleitores. Reacção que validou não apenas aquele diagnóstico, como constituiu um veredicto de culpa, para Mário Soares e os líderes do PS da altura, no julgamento que os eleitores fizeram sobre os responsáveis do estado em que o país estava.

Portanto Mário Soares não disse nada de novo no seu diagnóstico. Limitou-se a repetir o que outros haviam dito sobre o estado do país em 1985. Só omitiu uma coisa: É que ele havia sido declarado o principal responsável por essa situação, situação que ainda se manteria, segundo as suas palavras. Quem reflectir sobre as palavras de Mário Soares terá que concluir que ele lançou um terrível libelo acusatório ... sobre si mesmo. Só que inflamado pela sua prolixa eloquência se esqueceu que o arguido ali, era ele. Mas isso é normal – os políticos têm a memória curta, fenómeno que se vai agravando com a senectude.

Todavia há algo de abonatório que se deve dizer, duas décadas volvidas. Mário Soares lembrou que "as televisões dão a conhecer escândalos impensáveis e depois não acontece nada". Em 1985 a televisão pública não dava a conhecer nada. Em 2004, mesmo que não aconteça nada, pelo menos ficamos a «conhecer escândalos impensáveis». Já é alguma coisa, pelo menos muito mais que há duas décadas. Mário Soares fala horrorizado do caso Casa Pia. Mas o caso Casa Pia já existia na época. Apenas não era um «caso», porque não havia então condições para vir a lume.

Mário Soares revolta-se por o país ser "uma espécie de telenovelas de desgraças. E a justiça mostra-se incapaz de agir. As polícias sabem muita coisa mas só actuam por critérios pouco claros". Mário Soares confunde os sintomas com a doença. A doença já existia então, provavelmente mais grave, mas os sintomas permaneciam ocultos, por falta de meios de diagnóstico: canais televisivos privados, banalização da informação (TV cabo, Internet, blogs, etc.), etc.. Mário Soares afirma, cheio de virtudes democráticas, que o caso Marcelo nunca ocorreria no seu tempo. Tem toda a razão. Nunca ocorreria porque nunca chegaria ao domínio público. MRS seria despedido ... mas não haveria «caso Marcelo». E a hipocrisia destas afirmações é certificada pelo facto de elas provirem de quem, quando PR, se travou de razões com o J E Moniz, na altura director da RTP, e que mandou Alfredo Barroso repreender o director de um canal TV por este ter o desplante de responder ao PR. Quando foi PM, com tutela sobre os meios de comunicação, na maioria estatais, sabe-se lá o que terá acontecido.

A lógica obriga pois que se conclua da alocução de Soares que, em 2004, o país está mal, talvez não tanto como em 1985, e que um dos principais responsáveis é precisamente Mário Soares, já então seleccionado «para baixo e para o mal» como «figura menor».

O que é revoltante neste diagnóstico é que ele enfatiza, com cores sombrias, o que a população conhece agora devido à banalização da informação. Mas quando Mário Soares foi 1º ministro, ele estaria certamente informado (quando não implicado) de muitos dos podres e corrupções então existentes, e no mínimo tão graves como os actuais, cujo conhecimento era vedado à população por falta de transparência da comunicação social. Para Soares, os problemas só adquirem gravidade quando vêm a lume. Enquanto estão no domínio restrito das chefias políticas (a que ele pertence) ... são irrelevantes.

Por isso, quando apela à «honradez republicana», e sabendo-se do nepotismo e corrupção existentes durante as suas governações, sabendo-se, quando já PR, do caso de Macau, tal invocação não é para ser levada a sério. São frases sem conteúdo para uma plateia ansiosa por ouvi-las, independente de terem ou não substância.

Uma das afirmações de MS pode causar estranheza. «É preciso restituir a voz aos cidadãos, se quisermos evitar ... rupturas». Sabe-se que em Portugal há regularmente eleições, de acordo com os prazos e preceitos constitucionais e para as diversas instâncias do poder. É assim que funciona a democracia representativa de que Mário Soares foi um dos principais promotores, e acérrimo defensor, antes e na sequência do 25 de Abril. Esta afirmação só será compreensível se significar que Mário Soares deixou de acreditar naquilo porque lutou durante décadas, e que se tornou um adepto da democracia participativa.

Ainda o veremos a correr pelas ruas, empunhando cartazes anti-globalização, a apedrejar montras e a incendiar automóveis.


Nota-Ler a continuação em:
Cassandra ao Retrovisor

Publicado por Joana às 10:18 PM | Comentários (26) | TrackBack

novembro 08, 2004

Politicamente Correcto

Várias vezes tenho usado o termo politicamente correcto, ou o termo “intelectuais bem pensantes”, ou seja, os intelectuais que pensam “politicamente correcto”. Embora o termo tenha sido importado, directa ou indirectamente, dos EUA, ele ganhou autonomia própria e “nacionalizou-se”. Portanto não me vou interessar pela sua génese e avatares além fronteiras.

O politicamente correcto é comportar-se e pensar de acordo com os cânones impostos pela ideologia dominante. Mas essa ideologia não é necessária e exclusivamente política. Misturam-se nela diversos conceitos – puritanismo, censura, dogmatismo, ditadura das minorias, obrigação de fazer de qualquer particularismo uma lei geral para a comunidade, eliminação do fantasma de se tornar minoritário pela subvalorização da normalidade e das decisões ou da vontade da maioria, etc.

Do ponto de vista da ditadura sobre o pensamento, o politicamente correcto é o equivalente actual da moral burguesa, só que de sinal contrário quanto aos conceitos que erige em absolutos, o que é normal, visto a ideologia dominante se ter ela própria modificado. Portanto, todos os disparates que a ditadura da moral burguesa fez viver os nossos avós, equivalem àqueles que o politicamente correcto nos tenta impingir actualmente. Com uma diferença – a moral burguesa preocupava-se mais com o comportamento que com a política ou o pensamento, enquanto o politicamente correcto é totalitário porque invade tudo, incluindo aquilo que tínhamos de mais íntimo: o pensamento.

Formalmente o politicamente correcto é o depósito de todas as virtudes: prega a igualdade entre todos, o respeito pelo outro sob qualquer forma, o anti-racismo, a tolerância para com todas as outras crenças políticas e religiosas. O politicamente correcto abre apenas uma excepção a esta tolerância universal: O politicamente incorrecto é absolutamente interdito. Sendo assim, o politicamente correcto consiste na observação da sociedade e da historia em termos maniqueístas: O politicamente correcto representa o bem e o politicamente incorrecto representa o mal.

O politicamente correcto tem portanto a característica de uma religião total, pois para além da moral e do comportamento, abrange a política, a sociologia, as ciências da comunicação, etc., etc.. Não existe no plano económico, porque os protagonistas do politicamente correcto apenas se movem nas áreas das ciências humanas onde os critérios de validade são assegurados por quem tem mais verve ... ou quem tem uma corte mais numerosa. Em economia apenas utilizam frases simples: subsidiar os menos favorecidos, aumentar o emprego, atingir a igualdade social, etc.. Como não sabem fazer contas é-lhes despiciendo o saber como isso se faz, quanto custa e quem vai pagar. O politicamente correcto não abrange portanto as ciências baseadas em números, pois os números têm uma característica incómoda – não dependem da raça, do credo ou das preferências sexuais. São uns chatos!

Assim, para o politicamente correcto só há uma verdade: a sua. O politicamente correcto defende a tolerância ... mas apenas para o que é a sua verdade.

Neste universo perfeito é exaltante ser-se politicamente correcto, pois tem-se sempre a resposta certa para tudo. Só que têm que se fazer as penitências necessárias. Por exemplo um branco, para se tornar politicamente correcto, tem que assumir a sua culpa original por ter participado, mesmo in absentia, na escravatura, nos genocídios, no extermínio das espécies e nos maus tratos aos animais, etc.. As mulheres brancas têm um nível inferior de culpa, pois embora tenham nos seus currículos aqueles pecados originais, têm a atenuante de haverem sido vítimas de três mil anos de civilização judaico-cristã. Apenas uma espécie não tem qualquer culpa: a mulher negra, de uma crença não cristã, imigrante, sem-abrigo e lésbica.

Mas mesmo uma mulher, para se manter politicamente correcta tem que ter imenso cuidado: saber se o que usa para a maquilhagem não teria sido testado em animais, nunca usar peles ou tecidos oriundos de animais, reciclar todos os sobejos das refeições até à exaustão, ou até ao divórcio por alegada tentativa de envenenamento alimentar, etc.

Todavia, para o politicamente correcto, a mulher está num nível menos elevado que a etnia. O politicamente correcto zela pela igualdade dos sexos, mas é extremamente tolerante e compreensivo para os grupos étnicos ou religiosos que degradam a vida das mulheres e fazem delas suas vítimas.

Vejamos alguns exemplos:

Não é politicamente correcto referir a origem étnica dos delinquentes. Sempre que algum órgão de comunicação não conseguia evitar essa referência (na TV há dificuldade em impedir que o telespectador veja a etnia do delinquente) aparecia uma organização, SOS Racismo, a chamar a atenção para aquele conteúdo racista. De há alguns anos a esta parte, o SOS Racismo tem aparecido muito menos, porque verificou que o resultado junto da opinião pública era exactamente o oposto. As pessoas sentiam-se injustiçadas por julgarem que haveria uma protecção especial para delinquentes de outras etnias. Eis um exemplo em como o politicamente correcto anti-xenofobia fez, para surpresa dos p.c., aumentar a xenofobia.

Não é politicamente correcto gostar de touradas ou de tudo o que envolva qualquer sofrimento público dos animais. Os animais devem ser abatidos discretamente e aparecerem nos nossos pratos disfarçados de bifes. Como o politicamente correcto é um animal urbano, ele tem dificuldade em se aperceber que existe qualquer relação entre um bife, um entrecosto grelhado e qualquer espécie animal, por isso fica tranquilo enquanto se delicia com uma galinha de cabidela. Depois das grandiosas manifestações de massas que os arautos do politicamente correcto organizaram em Barrancos, em que cerca de cem pessoas, agitando centenas de cartazes repletos de frases politicamente correctas, condenaram firmemente as touradas, nunca estas estiveram tão em voga. O entusiasmo por esse espectáculo bárbaro aumentou em flecha. Esta é, aliás, a faceta mais brilhante do politicamente correcto – Obter junto da opinião pública o efeito exactamente oposto do que pretende.

Não é politicamente correcto pretender para as outras culturas o que se exige para a nossa. Os quadrantes políticos que mais pugnam pela descriminalização do aborto, foram aqueles que conseguiram adiar, na AR, o estabelecimento de legislação que condenasse a excisão do clítoris, a pretexto de se tratarem de culturas tradicionais e que era necessário, previamente, um estudo mais aprofundado.

Há dias foi assassinado, numa rua de Amesterdão, em pleno dia, Theo van Gogh, que havia realizado um filme sobre o humilhante papel da mulher na sociedade islâmica. Já havia recebido ameaças de elementos islâmicos. O suspeito do assassínio foi descrito como tendo barba comprida, estar vestido como um muçulmano e ter nacionalidade marroquina. Qualquer descrição que ultrapassasse esta forma de adivinha poderia ser considerada racista e xenófoba. Este assassinato tem permanecido relativamente em silêncio nos meios intelectuais. É natural, o politicamente correcto tem dificuldade em lidar com europeus loiros serem assassinados por muçulmanos de barba comprida. Se fosse o contrário, toda a intelectualidade estaria a redigir proclamações e abaixo-assinados de protesto. Neste caso o politicamente correcto tem o dever de ser discreto, pois se o não fosse poderia passar por racista, xenófobo, etc..

Também em matéria de ditaduras, o politicamente correcto é extremamente exigente. Ditaduras terceiro-mundistas, ou que se invoquem do anti-capitalismo ou do anti-americanismo são ditaduras boas. Em contrapartida, qualquer regime democrático que se lhes oponha é um regime imperialista e opressor.

O politicamente correcto é insidioso porque se insinua sob diversas formas, inocentes e de fácil assimilação. Começa pela linguagem. O vocabulário politicamente correcto é o principal veículo de contágio. O politicamente correcto usa eufemismos na sua linguagem. Determinadas expressões são condenadas a serem eliminadas do vocabulário para evitar associações de tipo discriminatório. Por exemplo, já não se diz contínuo da escola, mas Auxiliar da Acção Educativa, as mulheres a dias passaram a ser empregadas domésticas, os varredores de rua a serem técnicos de limpeza e jardinagem, etc.. Há determinadas categorias para as quais já se torna difícil encontrar no léxico uma denominação adequada, como no caso dos homossexuais. Mas há sempre o recurso aos circunlóquios.

A desintoxicação é difícil, na medida em que vivemos num mundo em que os meios de comunicação adquiriram uma importância desmedida e são estes os principais agentes encarregados da contaminação maciça. O primeiro remédio consiste em tomar consciência de que o politicamente correcto existe e que circula sobretudo através do nosso vocabulário. O segundo remédio consiste em pôr em prática a renúncia a toda a terminologia politicamente correcta e às ideologias nas quais ela se apoia. Chamar as coisas pelos nomes!

Como disse acima, há necessidade de uma contínua renovação de linguagem para caracterizar um conjunto de pessoas que executem uma tarefa considerada de menor nível, ou que tenham qualquer diferença que as tornem uma minoria, pois as palavras vão-se desvalorizando com o uso. O léxico vai-se esgotando. Quando isso acontece, os eufemismos utilizam circunlóquios cada vez mais tortuosos. Cito um exemplo retirado da Wikipedia (cf “Political correctness”). A forma politicamente correcta de escrever a frase "The fireman put a ladder up against the tree, climbed it, and rescued the cat" deveria ser:

"The firefighter (who happened to be male, but could just as easily have been female) abridged the rights of the cat to determine for itself where it wanted to walk, climb, or rest, and inflicted his own value judgments in determining that it needed to be 'rescued' from its chosen perch. In callous disregard for the well-being of the environment, and this one tree in particular, he thrust the mobility disadvantaged-unfriendly means of ascent known as a 'ladder' carelessly up against the tree, marring its bark, and unfeelingly climbed it, unconcerned how his display of physical prowess might injure the self-esteem of those differently-abled. He kidnapped and unjustly restrained the innocent animal with the intention of returning it to the person who claimed to 'own' the naturally free animal."

P.S. - Estava a escrever isto e a ver na TV o Miguel Portas dizer que o facto de contas bancárias, onde se decobriu estarem depositadas muitas centenas de milhões de euros, estarem no nome de Arafat, não significava que o dinheiro era dele. O azar do Isaltino foi não ter enfiado um turbante, deixado crescer a barba, passar a chamar-se Al-Satino. Então Portas passaria também a ter fundadas dúvidas. Este é um exemplo típico do politicamente correcto, acabado de vir directamente do produtor.

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novembro 07, 2004

Intolerância Congénita

... Ou de Dreyfus a M Moore, passando por Lukacs ...

Uma parte não despicienda do espectro político da esquerda portuguesa perdeu o sentido das proporções, perdeu a noção do significado prático dos valores democráticos e perdeu o espírito de tolerância e do respeito pelas opiniões que não sejam absolutamente coincidentes com as suas.

Provavelmente estou a ser lisonjeira. Provavelmente esta esquerda a que me estou a referir nunca teve o sentido das proporções, nunca praticou os valores democráticos e sempre foi intolerante e totalitária.

Mas enquanto a esquerda foi oposição, o fragor da luta contra regimes frequentemente retrógrados, intolerantes e despóticos, obscurecia todas aquelas facetas. Quando a peleja é extremada e sem quartel, é-nos impossível, por vezes, distinguir onde acaba a bravura e começa a crueldade e a malevolência; onde há ética ou onde há apenas facciosismo. Porém, quando a situação se inverte, as dúvidas desaparecem e os que eram, de facto, bravos na época de sofrimento e opressão, revelam-se gente honrada, tolerante e sensata e os outros, os apenas cruéis e facciosos, revelam-se indignos, intolerantes e émulos dos ex-opressores.

Sempre tive, e tenho, simpatia pelos dreyfusards e pela sua luta, que tanta influência teve na História. Reconheço todavia que a maioria deles pôs, nesse combate, tanta intolerância e desdém pelos outros, como a direita militarista. Zola foi tão intolerante quanto o general Mercier. A diferença é que o Ministro da Guerra estava envolvido, embora na altura não o soubesse, numa fraude que fundamentava uma acusação falsa, enquanto Zola defendia a verdade, embora na altura não tivesse provas disso. Isso não invalida que Zola estivesse no lado certo e Mercier no lado errado.

Nessa disputa que, embora hoje esquecida, marcou a evolução futura da França, e não só, a tolerância, a racionalidade e o heroísmo estiveram na parte sã do exército francês, no coronel Picquart, um conservador, com preconceitos contra os judeus, mas que quando começou a analisar as provas que tinham levado Dreyfus à Ilha do Diabo, descobriu que o documento incriminador era forjado e pôs a verdade acima das suas convicções políticas e sociais, lutou e sofreu por essa verdade (foi expedido para a zona de combate mais perigosa do norte de África e esteve preso algum tempo) e a ele se deve o deslindar do caso, embora, se não fosse a agitação promovida pelos dreyfusards, aquele caso tivesse provavelmente caído no esquecimento e Picquart nunca fosse chamado a analisar as peças do processo Dreyfus.

Mas esta luta marcou o declínio da época da prevalência da objectividade e da racionalidade na procura da verdade. No mesmo dia (13 de Janeiro de 1898) em que era publicada no Aurore a carta aberta a Félix Faure (J’Accuse), o grupo parlamentar socialista reunia-se e a maioria decidia, a alguns meses das eleições seguintes, que não deve ir contra a opinião pública para seguir Zola, que era apenas um escritor burguês. Dias depois os deputados socialistas assinariam uma resolução distanciando-se das «duas fracções rivais da classe burguesa», de um lado «os clericais» do outro, «os capitalistas judeus». «Na luta convulsiva das duas fracções burguesas rivais, tudo é hipocrisia, tudo é mentira. Proletários, não vos envolvais em nenhum dos grupos desta guerra civil burguesa ... ». Esta posição só mudou quando Jaurés percebeu os dividendos políticos que obteria se apoiasse os dreyfusards.

O terramoto pelo qual passou a Europa, a partir do deflagrar da 1ª Guerra Mundial e da Revolução de Outubro (que hoje faz 87 anos), acelerou a degenerescência da objectividade e do racionalismo. Ao contrário do que Lukacs escreveu, a Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft) não se deu apenas no pensamento alemão que, segundo ele conduziu de Schelling e Nietzsche até Rosenberg e Hitler, deu-se igualmente pela emergência e divulgação do marxismo soviético, na sua forma estalinista, à qual aquele livro, publicado no ano anterior à morte do Pai dos Povos constituía uma respeitosa elegia. O que houve de perverso é que a verdade deixou de ser matéria objectiva, para ser matéria operacional: a verdade era a interpretação (ou mesmo a deturpação ou a invenção) dos factos que servissem os interesses da classe que tinha por missão histórica derrubar o statu quo existente, e quem faria essa exegese sobre o que era a “verdade” seria a elite política que se atribuía a si mesma a direcção daquela classe.

Aliás, já na História e Consciência de Classe (Geshichte und Klassenbewusstsein), Lukacs se havia empenhado em demonstrar que as ideologias de classe não são equivalentes e que a ideologia da classe proletária é a verdadeira, porque o proletariado, na situação que lhe impõe o capitalismo, é capaz, e só ele é capaz, de pensar a sociedade no seu desenvolvimento, na sua evolução a caminho da revolução, e portanto na sua verdade. No mundo capitalista, o proletariado, e só o proletariado, pensa a verdade do mundo, porque só ele pode pensar o futuro para lá da revolução.

A perversidade teórica de que a verdade é aquilo que serve os nossos interesses, individuais ou de classe, e que os factos não passam de meros empecilhos, agiu como um vírus que já viciara a extrema direita e contaminou toda a esquerda que foi influenciada pelo marxismo. Como a extrema direita foi posta de quarentena a seguir à 2ª Guerra Mundial, coube apenas ao marxismo, na sua forma degenerativa corrompida pela praxis político-filosófica, colonizar o pensamento da maior parte da esquerda e não só.

A responsabilidade do combatente deve sobrepor-se aos escrúpulos do intelectual. A crítica ideológica joga, com naturalidade, em 2 tabuleiros. Ela é moralista contra uma parte do mundo, aquela a que nos opomos, mesmo que seja aquela onde vivemos, e em extremo indulgente perante os movimentos que querem destruir esse mundo. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a “contra-revolução” ou é ministrada por um movimento radical ou revolucionário (ou terceiro-mundista, ou islamista ...). A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre aqueles que os querem destruir.

Basta citar o lamentável poema de Aragon no regresso do Congresso de Kharkov (1931), para nos apercebermos como o vírus da perversão da verdade e dos valores democráticos havia minado a base moral da nossa civilização:

O som da metralha acrescenta à paisagem
Uma alegria até então desconhecida
Estão a executar médicos e engenheiros
Morte aos que ameaçam as conquistas de Outubro
Morte aos sabotadores do plano quinquenal

A toda esta lamentável evolução se referiu então Julien Benda na La Trahison des Clercs, onde se dá conta daquela rotura. O intelectual era anteriormente o campeão do eterno, da verdade universal. «Os intelectuais de outrora afastavam-se da política pela ligação que estabeleciam com uma actividade desinteressada (Vinci, Malebranche, Goethe), ou então pregavam, em nome da humanidade ou da justiça, a favor de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas (Erasmo, Kant, Renan) ... Graças a eles pode dizer-se que, durante dois mil anos, a humanidade praticava o mal, mas honrava o bem. Essa contradição era o ponto de honra da espécie humana e constituía a brecha por onde podia passar a civilização».

Para Benda, os intelectuais contemporâneos dele (e os que lhe sucederam, digo eu) colocaram-se ao serviço das paixões políticas, tornaram-se intelectuais de fórum:«O nosso século deve ser realmente o século da organização intelectual dos ódios políticos»

Esta doença degenerativa da espécie intelectual, que afectou sobretudo, no mundo ocidental, os países onde a consciência cívica estava menos disseminada por toda a sociedade: França e países do sul da Europa, criou o estatuto do intelectual comprometido, do jornalista de causas. Sartre (na apresentação dos Temps Modernes) teorizou essa degenerescência, elevada por ele a postulado teórico. Quer se queira quer não, «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também ... as palavras são pistolas carregadas».

Este vírus tem sido endémico em toda a intelectualidade e jornalismo portugueses e tem vindo a condicionar, não apenas o discurso estritamente individual do plano ético, mas ainda e de forma excessiva o debate ideológico e político. Vejamos, a propósito disso, o comportamento dos nossos intelectuais da “verdade à medida dos nossos desejos”, face às eleições americanas. Comportamento aliás que não diferiu significativamente do que sucedeu no resto do Velho Continente.

George W. Bush foi permanentemente apresentado como um imbecil, ignorante, burro, em suma, um idiota chapado. Mas não será esta imagem excessiva? Pior, não é isto que os nossos doutos intelectuais têm pensado de todos os presidentes americanos. Carter, quando apostrofou a URSS devido à intervenção no Afeganistão e promoveu o boicote às Olimpíadas de Moscovo, foi igualmente alcunhado de imbecil e idiota. E a redenção do seu QI só começou a ocorrer quando ele se dedicou a missões “politicamente correctas”. De Reagan nem vale a pena falar. Milhões de pessoas desfilaram centenas de vezes, nas avenidas do Velho Continente, protestando coléricas contra a sua política de contenção da URSS, chamando-lhe os nomes mais ofensivos que encontraram nos seus dicionários. Bush pai teve sempre a fama de débil mental, ainda era Vice-presidente. Quanto a Clinton foi objecto das maiores zombarias, pela sua vida privada, e das maiores contestações, pelas suas decisões em matéria de política internacional (ex-Jugoslávia, bombardeamentos no Sudão e Afeganistão, etc.).

E Kerry seria melhor? Jon Stewart, o apresentador do Daily Show e ferrenho anti-Bush, perguntava há meses «porque será que uma mentira de Bush parece muito menos idiota que uma verdade de Kerry?». Kerry, que ao longo da sua vida política se tem notabilizado por uma completa incoerência e pelas cambalhotas mais inesperadas, não seria tentado, se fosse eleito presidente e para mostrar a sua “virilidade presidencial”, a tomar alguma atitude mais drástica que o seu antecessor?

Michael Moore e o seu Fahrenheit 9/11 tornaram-se, até à derrota de Kerry, um ícone para a intelectualidade “de combate e de causas”. Cannes deu-lhe a Palma de Ouro, a distinção máxima. Como é possível premiar aquele acervo de manipulações grosseiras, de omissões intencionais, de colagens forjadas? Leni Riefenstahl também ganhou a medalha de ouro da Exposição Mundial de Paris (1937), mas o seu Triumph des Willens (1935) é uma obra-prima e o seu efeito propagandístico não resulta de colagens forjadas ou de manipulações grosseiras: resulta do poder das imagens e dos acordes musicais, habilmente filmados e montados. Há manipulação pela arte de obter e coordenar as imagens e não pela fraude de colagens forjadas. O Triumph des Willens continuará a ser uma obra-prima do filme propaganda, enquanto o Fahrenheit 9/11 já está no caixote do lixo da História e da arte cinematográfica. Aliás, o Fahrenheit 9/11 estará mais próximo do Der Ewige Jude (1940) que do Triumph des Willens. Aqueles que o elogiavam interrogam-se agora se o filme não teria condensado «um dos erros políticos crassos da "intelligentsia" liberal americana e também da opinião pública europeia, a desconsideração de Bush em termos do chamado "dumb factor": que o homem é ignorante, burro e por aí adiante», como escreveu hoje um dos mais façanhudos «opinativos» (Augusto M. Seabra) e paladinos da “verdade que temos que transmitir”.

E este paladino da verdade “instrumental” mostra-se apreensivo porque se «quis atacar "Fahrenheit" em termos de "verdade" quando, suponho, a questão cinematográfica e ética que se coloca em cada documentário é o modo como interpela o real, para além da mais imediata visibilidade da qual não se deduz uma "verdade" imanente». Esta frase é o grau zero da racionalidade. Mais baixo que isto não se pode descer no totalitarismo informativo. Portanto a verdade não interessa, nem deve ser a medida da validade de um «documentário» ou «exposição de um facto». O que interessa «é o modo como se interpela o real», leia-se «como se distorcem os factos», para deduzir uma «verdade imanente», leia-se «a verdade do “intelectual de causas” liberta do empecilho incómodo dos factos». É esta a gente que defende a liberdade de expressão e verbera a alegada censura dos outros.

Entre a intelectualidade europeia (e portuguesa) o tom em que se fala da derrota de Kerry é o de um desastre civilizacional, não o de um acto em que os mecanismos políticos da democracia representativa funcionaram normalmente. Os jornalistas perguntam angustiados: John Kerry tinha o apoio esmagador dos mídia, ganhou os três debates televisivos com George W. Bush e, no entanto, perdeu. Será que televisões, imprensa e rádio estão a perder influência?

A resposta é simples: a opinião dos jornalistas tem uma influência poderosa. Infelizmente, para eles, influencia sobretudo a própria opinião dos jornalistas. O comportamento do eleitorado português é disso um exemplo paradigmático: em todos os referendos votou sempre contra a opinião dominante nos meios de comunicação.

Infelizmente os paladinos da “verdade a que acham que temos direito” nunca reconhecerão isso. Só após todo o lastro do irracionalismo induzido pelas ideologias que se digladiaram no século XX for destruído, e com ele o pensamento instrumentalizador desses paladinos, é que será possível regressar ao intelectual «campeão do eterno e da verdade universal ... de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas».


Ler ainda, sobre este tema:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus
O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (22) | TrackBack

outubro 20, 2004

O Fundamentalismo Laico

Não estava nos meus planos pronunciar-me sobre o «caso Buttiglione». Não sou crente, quer por opção própria, quer pelo ambiente em que fui educada. Não acho que a homossexualidade seja um «pecado», nem que o casamento exista para «permitir que as mulheres tenham filhos e contem com a protecção de um homem que cuide delas». Todavia julgo que este «caso» ganhou contornos que não me permitem ficar indiferente.

Sou favorável a que se dê protecção às mães solteiras, mas reconheço que uma criança criada apenas pela mãe (ou apenas pelo pai) não é uma boa solução. É indispensável, a uma educação equilibrada, a existência da figura da mãe e da figura do pai. A criança precisa de ambas. É claro que estou a comparar situações comparáveis: gente com igual capacidade de educar os seus filhos ... pois, às vezes, mais vale só que mal acompanhada. Pelas mesmas razões duvido que homossexuais vivendo em união tenham capacidade para criar um filho de uma forma equilibrada. Poderia acontecer que num ou noutro caso não desse maus resultados. Todavia as crianças não são cobaias e não devemos permitir experiências que moldarão a sua personalidade adulta de forma irreversível. Bem bastam as que são criadas por entidades de assistência social por não haver alternativa. Portanto, quando Buttiglione fala da importância da família como matriz indispensável a uma educação equilibrada e afirma que uma criança criada por uma mãe solteira não é uma boa solução, concordo com ele.

E concordo, sobretudo, porque essa constatação de Buttiglione é do foro moral e não pretende traduzir essa concepção na lei, pelo contrário, pois ao reconhecer essas dificuldades fica subentendida a necessidade de terem maior protecção. Do mesmo modo que não concordando com Buttiglione sobre o «pecado» da homossexualidade, considero que essa posição é do foro exclusivamente moral e religioso, e que Buttiglione não pretende que ela tenha tradução na lei.

Buttiglione limitou-se a referir aos membros da comissão do Parlamento Europeu, a distinção kantiana entre a moral e o direito. Uma coisa é a «lei» moral, outra a lei de um Parlamento. Buttiglione afirmou aí: «não renuncio à minha moral, mas não pretendo que o Parlamento a siga», ou seja, é contrário à discriminação legal dos homossexuais sem renunciar à sua consciência de condenação moral.

Para os membros da comissão não foi suficiente. Segundo Buttiglione, eles queriam «de mim uma profissão de fé sobre a bondade moral da homossexualidade. Isto significava exercer uma violência sobre a minha consciência». E queixou-se que «fui discriminado porque sou católico, mas não abjuro», sublinhando: «Ninguém pôs em dúvida a minha competência, ou a minha capacidade. Censurou-se uma posição moral. Colocou-se em grave perigo a liberdade de expressão».

Segundo ele, foi vítima de um lobby animado por «preconceitos contra as suas convicções morais e religiosas ... uma consciência que eu não trocarei por um lugar»

Na verdade, o presidente do Parlamento europeu, o socialista espanhol Josep Borrell apenas o atacou por delito de opinião: «não queria, enquanto cidadão espanhol, ter um ministro da justiça que pensa que a homossexualidade é um pecado». Para Borrell o grave é o que Rocco Buttiglione pensa, não o que decide enquanto político.

O que é paradoxal, ou talvez não, em toda esta controvérsia, é que o conservador Rocco Buttiglione se portou com inteiro respeito pela tolerância e pelas opiniões dos outros, separando a moral do direito, e foram os defensores do laicismo que se portaram com intolerância, misturando a moral e o direito e subordinando aquela a este. Foi Buttiglione que mostrou solidez de carácter, ao não ter abdicado das suas convicções morais na audição no Parlamento Europeu quando sabia, à partida, que estas não eram «politicamente correctas» e que iriam contra a corrente dominante naquele areópago.

A União Europeia assenta em valores, em que o respeito pela diferença e pela pluralidade são dois princípios fundamentais. Neste entendimento, a simples ideia de colocar em discussão a liberdade de consciência e de opinião de um comissário de formação e fé católica, contestando a distinção laica entre moral e lei, entre moral e direito, tem um carácter fundamentalista, releva do obscurantismo. O laicismo, neste caso, renegou os seus princípios de tolerância e de separação da moral e do direito, ao contestar politicamente quem tinha opiniões morais contrárias às suas.

Vital Moreira, no seu blogue, escreve que «Os fundamentalistas religiosos como Rocco Buttiglione tendem geralmente a impor os seus valores religiosos a todos por via de lei». Mas são os fundamentalistas laicos que pretendem vetar Buttiglione ao quererem impor os seus valores à consciência moral de Buttiglione. E poderia, talvez com mais propósito, escrever-se que «Os fundamentalistas laicos como Vital Moreira pretendem (a) impor os seus valores morais a todos por via de lei» ... com a perversão de o fazerem em nome da liberdade e da tolerância.

O voto contrário da comissão, pela diferença mínima, não é vinculativo. Tudo indica que Durão Barroso manterá a sua decisão de ter Buttiglione como comissário da Justiça. Mas esta controvérsia vai deixar marcas profundas. Buttiglione é um filósofo e político de reconhecido mérito, independentemente das suas convicções morais, foi conselheiro e é amigo pessoal de João Paulo II, e estas posições podem reforçar as convicções, nos meios católicos, de que há em Bruxelas um preconceito anti-católico que se traduz na criminalização de uma fé e de uma cultura que constituem uma das matrizes da própria civilização europeia.

Publicado por Joana às 12:01 AM | Comentários (22) | TrackBack

setembro 29, 2004

O Gestor Contra Natura–Adenda

Em jeito de adenda e face a alguns comentários no meu post anterior, queria acrescentar o seguinte:

-A Social-democracia não deveria constituir um termo pejorativo para a esquerda. Engels pertenceu à social-democracia alemã e Lenine à social-democracia russa. Aliás os bolcheviques eram assim chamados porque constituíram a dada altura a ala “maioritária” do partido social-democrata russo, por oposição aos mencheviques, assim chamados por serem a ala “minoritária”. No caso francês foi algo diferente e as diversas facções socialistas uniram-se constituindo a SFIO (Section Française de l'Internationale Ouvrière) em 1905 (dissolvida sob pressão de Mitterand em 1969). As cisões deram-se na sequência das opiniões contraditórias sobre o carácter da Grande Guerra. Começou na Rússia e estendeu-se, também por influência da tomada do poder pelos bolcheviques, à Europa ocidental – O KPD, Partido Comunista Alemão, foi constituído em 1920, assim como o PCF, Partido Comunista Francês – ambos por cisão do SPD (alemão) ou da SFIO (francesa).

-A Social-democracia passou a constituir um termo pejorativo para a esquerda radical e ortodoxa quando esta pretendeu diabolizar as concepções reformistas dos socialistas da Europa do norte. É óbvio que houve anexações semânticas sem conteúdo. O PSD português não tem nada a ver com a social-democracia. Aliás o próprio PSL insiste muito na tecla do PPD, certamente um nome muito mais adequado.

- Eu, quando referi o comunismo, não estava a pensar numa sociedade ideal futura, mas nos partidos comunistas, nos seus ideários e nos modelos que estabeleceram na Europa do Leste onde tomaram o poder. Aliás Marx e Engels não tiveram problemas “teóricos” ao apelidarem uma obra escrita em 1848, destinada a ser panfletária, mas que se tornou numa obra teórica de relevo, como o “Manifesto do Partido Comunista”.

A terminologia marxista não me fere a sensibilidade, nem tenho pavor a citar “o nome de Deus em vão” nem o meu intuito foi substitui-la por “expressão mais civilizada”. A questão é que a noção marxista de classe é muito específica e eu, ao falar em classe social. poderia conduzir a alguns quiproquós. Afinal conduzi na mesma! Para Marx apenas existem, na verdade, 2 classes. Marx não nega que entre os capitalistas e os proletários, existam múltiplos grupos intermédios, artesãos, pequeno-burgueses, comerciantes, camponeses proprietários. Mas afirma duas proposições. Por um lado, à medida que o regime capitalista evoluir, tenderá para uma cristalização das relações sociais em apenas e só dois grupos, de um lado os capitalistas e do outro os proletários. Por outro lado, duas classes, e só duas, representam uma possibilidade de regime político e uma ideia de regime social. As classes intermédias não têm nem iniciativa nem dinamismo histórico. Há apenas duas classes capazes de imprimirem a sua marca à sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos e cada um serão obrigados a juntar-se ou aos capitalistas ou aos proletários.

Nada na história é eterno, nem eu me referi ao sistema capitalista e à economia de mercado como eternos, embora a economia de mercado, desde que as comunidades humanas deixaram de viver na fase da caça e da recolha, tenha sempre existido. Mesmo nas formações sociais em que o modo de produção dominante (escravatura, servidão, socialismo “científico”, etc.) impunha coacções extra-económicas, onde fosse possível haver trocas livres, havia mercado. Basta estudar a história, incluindo a dos mercados paralelos na ex-URSS. Fechem a porta ao mercado e ele entra pela janela.

Eu escrevi «Hoje em dia, o que está em causa é a gestão mais eficiente do actual sistema económico e social e não a sua alteração radical.». “Hoje em dia” e não “Definitivamente”.

Não é uma falácia escrever-se que não se pode “distribuir o que não há”. Há desigualdades sociais. Mas essas desigualdades são imprescindíveis ao desenvolvimento económico. Podemos ir ao espólio dos grandes empresários e distribuir o seu património pelos necessitados. E a seguir? Quem voltará a investir em Portugal? Para haver criação de riqueza tem que haver protecção aos resultados das actividades económicas. Sem essa protecção não há investimento e os capitais irão demandar locais mais seguros. Onde não há protecção à propriedade não há desenvolvimento económico, antes estagnação.

É evidente que tem que haver reafectação de recursos, transferências sociais para compensar as desigualdades excessivas introduzidas pela economia de mercado. É importante para combater a exclusão social e manter a coesão social. Mas essa reafectação tem que ser optimizada em face da necessidade de manter os incentivos à iniciativa privada.

Publicado por Joana às 03:46 PM | Comentários (9) | TrackBack

O Gestor Contra Natura

A actuação socialista, no governo e na oposição, as campanhas para secretário-geral e a vitória de Sócrates sugerem-me algumas reflexões.

O socialismo nasceu e formou-se na luta contra o statu quo económico e político. Nasceu e formou-se, no século XIX e início do século XX, nas lutas dos trabalhadores contra um sistema económico em que a sua vida era degradante e a sua subsistência precária. Pelas suas referências históricas e culturais, socialismo formou-se como um contra-poder. Mas não apenas como um contra-poder, pois o socialismo apresentou, desde Marx, duas vias: a via da luta pela reforma do sistema económico e social vigente versus a via da luta pela destruição desse sistema e estabelecimento de um novo modelo baseado noutras relações de produção. Essas duas vias foram progressivamente divergindo e deram origem, após a primeira guerra mundial, à cisão entre o socialismo e o comunismo. O segundo implodiu após se ter julgado, a si próprio, como o futuro ridente e necessário da humanidade e o primeiro passou de conta-poder a gestor ocasional desse mesmo poder.

Foi essa ambivalência, entre os genes que lhe deram a luz e a vivência no seio de relações de produção, que inicialmente detestava e que depois protagonizou a sua gestão, que modelou o comportamento socialista nas últimas décadas, principalmente nos países latinos, porque nos países do norte da Europa, quer na sua génese, quer na sua vivência, o socialismo esteve sempre muito mais apostado na reforma que na destruição do sistema.

É essa ambivalência que conduz à situação em que, após cada experiência governativa, os socialistas sejam acusados de “meterem o socialismo na gaveta”. É essa ambivalência que faz com que a ala esquerda acuse os governantes socialistas, quando a sua popularidade está em queda ou perdem as eleições, de perderem porque “fizeram uma política de direita”. Ora esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar a derrota pela alegação que os socialistas teriam feito uma política de direita?

A questão é que os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. A solução em que caem sempre é a de gerirem o sistema no papel do gestor contrariado e embalarem essa gestão contra-natura com um revestimento de tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, pois que não a souberam criar.

A sociedade e o mundo mudaram muito na sequência da última guerra, com especial incidência nas últimas três décadas. Houve a globalização, com a emergência das economias de muitos países, os gigantes China e Índia em especial. Houve, nas sociedades ocidentais, importantes alterações das condições económicas, o aparecimento de novos segmentos e camadas sociais, com as suas aspirações e necessidades, houve importantes modificações nas correlações de força entre os diversos segmentos sociais (evito chamar-lhes classes sociais para evitar confusões com a terminologia marxista). Houve drásticas alterações demográficas. Houve imensas transformações e rupturas.

Os socialistas, como partido, ou não se aperceberam disso, ou não conseguiram encontrar respostas adequadas. Quando na oposição mantêm-se prisioneiros de um discurso reivindicativo classista e estéril. Quando no governo não têm ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acabam, forçados pelas circunstâncias económicas, a aplicar as receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sentem pouco à vontade em aplicar essas medidas, fazem-no de forma incoerente e errática e tentam disfarçar essas contradições com políticas sociais com intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.

A direita, nas sociedades ocidentais, tem tentado encontrar modelos de intervenção na esfera económica e social para tomar em consideração essas mudanças na estrutura e dinâmica dos grupos sociais, uma nova postura de afirmação da procura individual do sucesso induzida pelo aumento significativo das qualificações e pelo enorme crescimento da mobilidade social. A direita faz isso com a naturalidade de quem sempre defendeu os valores económicos e sociais que conduziram às modernas sociedades de economia de mercado. Ela nunca foi contra-poder ao sistema. Quando não estava no governo poderia criticar as decisões governativas, nunca o statu quo, nunca pôr em causa os fundamentos daqueles valores. A direita, quando governa, fá-lo sem complexos e com a naturalidade de quem pertence ao sistema, quer erre, quer acerte nas medidas económicas e sociais que toma.

Hoje em dia, o que está em causa é a gestão mais eficiente do actual sistema económico e social e não a sua alteração radical. A direita, errando ou não, gere sem complexos; os socialistas gerem com os complexos de quem, pela sua vivência histórica tem dúvidas sobre o sistema que estão a gerir, e portanto erram quase sempre e acabam sob a acusação, dos seus correligionários, de fazerem uma política de direita.

Ora os socialistas, em vez de proclamarem sistematicamente a sua fidelidade aos “imortais princípios” referidos a experiências históricas de há mais de século, e que a própria história demonstrou estarem mais que ultrapassados, precisam de redefinir as suas referências no quadro da sociedade actual, mas construindo um projecto próprio (e portanto alternativo ao da direita) de desenvolvimento económico e social viável, e sublinho viável, porque o que têm feito é uma mistura canhestra do projecto de direita desvirtuado pela subsidiarização excessiva, pelo empolamento do Estado, pela dependência face aos lobbies mais perigosos da sociedade portuguesa (os sindicatos da administração pública e congéneres, isto na douta opinião do socialista Silva Lopes), o que leva periodicamente o país à beira do abismo.

E nesse projecto alternativo, os socialistas não devem ter complexos em apostar na eficiência: na eficiência do aparelho do Estado, na eficiência do funcionamento do mercado (melhorando as práticas concorrenciais e a sua transparência), na eficiência social (mas também económica) na realocação dos recursos, no intuito de aumentar a coesão social sem menoscabo da eficiência económica, na eficiência da mobilização social e na afirmação da cidadania para a construção de um país mais próspero, com melhor qualidade de vida e onde seja mais gratificante viver

Ou os socialistas se afirmam no quadro da sociedade actual, acreditando sem reservas mentais nos valores da sociedade actual (na democracia representativa, no mercado livre, na liberdade de escolhas) com um projecto próprio, esvaziado das contradições em que se têm debatido, entre a contestação dos valores da sociedade e a gestão da mesma sociedade baseada nesses valores, ou não passarão de contra-poder.

E como contra-poder, os socialistas somente podem ambicionar chegar ao governo apelando ao populismo demagógico das quimeras distributivas. Mas chegados ao governo apenas se aguentarão o tempo suficiente para o eleitorado verificar que as suas propostas não têm qualquer consistência e a sua aplicação prática, a médio prazo, arruína o país.

Nota - Ler ainda
O Gestor Contra Natura–Adenda

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setembro 26, 2004

A Vitória de Sócrates

A eleição para Secretário Geral do PS deu um resultado à primeira vista bastante surpreendente: uma votação muito pouco significativa em Manuel Alegre e em João Soares. José Sócrates teve assim uma vitória esmagadora. A votação pouco expressiva nos adversários de Sócrates foi claríssima no seu significado: a deriva esquerdista do PS de Ferro Rodrigues, que o trouxe a reboque do BE nos últimos 2 anos, dispõe de um apoio muito minoritário dentro do PS.

Como é normal nas facções radicais, a sua expressão mediática é muito superior à sua efectiva representação no corpo social em que se movem. A sua truculência e a forma como menorizam aqueles que não partilham as suas opiniões confere-lhes um peso comunicacional completamente desproporcionado em face do peso social das suas convicções. Os seus líderes ficam de tal forma empolgados pelo ruído que produzem, que se atribuem, a si próprios, uma aceitação social muitíssimo superior à que realmente têm.

E não são apenas os líderes radicais: os próprios fazedores de opinião acreditam nessa quimera. É normal, é sempre assim, foi sempre assim, mas a opinião “publicada” nunca acredita. Numa próxima vez, com os mesmos ou outros protagonistas, qualquer que seja o cenário, a opinião “publicada” voltará a atribuir às teses da esquerda radical um peso social muito superior àquele que ela tem efectivamente.

E, devido a isso, surgem depois acusações diversas sobre o porquê do “enviesamento” da votação. No limite, o próprio sistema representativo é contestado, atribuindo-se-lhe toda a espécie de vícios e de não reflectir “os sentimentos profundos das populações”, quando o que não reflecte é o excessivo ruído emitido pelos líderes radicais.

No caso destas eleições, Manuel Alegre, a “alma da esquerda socialista”, mostrou-se sempre convicto de um resultado muito superior, que lhe permitisse, no mínimo, fazer posteriormente valer, com o apoio dos votantes de João Soares, o pleno da alma esquerda socialista. Foi completamente esmagado mas, apesar disso, na sua declaração final, falou com a veemência, a convicção e a autoridade de quem tinha tido 49,9% ...

Todavia, a vitória de José Sócrates não foi apenas a recusa da deriva esquerdista do PS de Ferro. Foi também a vitória dos meios do PS que apostam na carta Sócrates única e exclusivamente para regressarem ao poder. Ora esse grupo que anseia pelo regresso ao poder já mostrou, durante o governo guterrista, que não tem competência, que não tem rigor financeiro, que governa vendendo ilusões e apostando no laxismo para anestesiar a opinião pública e se manter ao leme do Estado.

Sócrates cometerá um enorme erro se se deixar amarrar a essa gente. Mas terá, certamente, dificuldade em evitá-lo. O PS é um partido onde os quadros oriundos dos meios empresariais têm pouca expressão Os seus quadros vêm fundamentalmente do aparelho do Estado (incluindo as universidades) e do próprio aparelho interno e têm uma ideia escolástica ou livresca do funcionamento tecido produtivo português. E quando se tem uma ideia livresca é fácil construir mitos e perseguir ilusões. Não há critérios substantivos para validarem as opções.

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agosto 31, 2004

O Neoliberal Vital Moreira

Há uma semana (Público, 24-08-04) Vital Moreira dava ao lume um texto “Debates Socialistas” em que se comprazia com a possibilidade de as moções em discussão levarem a um «debate fecundo» num partido que, ao contrário dos seus congéneres europeus, tem dado pouco ênfase a esta matéria, preferindo centrar a controvérsia em meia dúzia de palavras de ordem que o tempo se encarregou de esvaziar de significado, tornando-as chavões ressequidos, mas que servem de biombo ao objectivo único de encontrar um líder capaz de levar o partido ao poder.

O que aquele texto tinha de interessante era a contradição entre a satisfação mostrada por Vital Moreira pelas propostas «inovadoras» de Manuel Alegre relativas ao «Estado estratega» e as suas teses de que «Nem a candidatura de Manuel Alegre pode permitir-se ignorar e deixar de responder aos novos desafios que as mudanças sociais, económicas e políticas da última década, em Portugal, na Europa e no Mundo, trouxeram». Ora as propostas de Manuel Alegre, quer sobre a Saúde, quer sobre a Segurança Social, quer ainda sobre o papel «insubstituível» do Estado, não traziam nada de inovador relativamente às «velhas pechas socialistas» na «competência na governação económica, a disciplina financeira e a eficiência da gestão pública» (limito-me a citar Vital Moreira). Parecia que a satisfação de Vital Moreira seria prematura.

Hoje, igualmente no Público, Vital Moreira escreve sobre “A Questão dos Serviços Públicos”. O que há de interessante (para mim) e curioso (em face do anterior pensamento do constitucionalista coimbrão) é que eu subscreveria quase tudo o que Vital Moreira escreve a nível de propostas.

Também eu subscrevo (aliás tenho-o escrito aqui por diversas vezes) que «não é possível continuar a ignorar o desafio que a chamada “nova gestão pública” veio trazer no que respeita ao desempenho da gestão pública tradicional, baseada ... na falta de autonomia e da avaliação e responsabilização das unidades prestadoras. O desperdício e ineficiência são o melhor argumento contra os serviços públicos». Igualmente tenho advertido que «há um problema do limite dos recursos financeiros para enfrentar as crescentes exigências dos serviços públicos».

Mas Vital Moreira, na sua iconoclastia hodierna, vai por aí fora, arrebatado, cavalgando o pensamento neoliberal em desvairado galope, de alabarda em punho e viseira cerrada, carregando impiedoso sobre o Estado Social. Nada escapa à sua transfiguração em “flagelo do Estado-Providência” que tanto acarinhou in illo tempore: a gestão dos serviços públicos deve ser «melhorada» «mediante a introdução de formas de gestão empresarial e de “mecanismos de tipo mercado”» ... a crescente participação de entidades privadas no sector público «incluindo as de natureza lucrativa, seja em cooperação com entidades públicas (“parcerias público-privadas”), quer inclusive como substitutos do Estado na prestação de cuidados e prestações sociais». Todos os piedosos ícones da visão socialista do Estado Social são fragorosamente demolidos e reduzidos a cinzas por este novo e fervoroso advogado do neoliberalismo.

Porém Vital Moreira recusa essa designação. No conflito do “ser ou não ser” neoliberal, Vital Moreira “é neoliberal”, de acordo com o rótulo que os seus correligionários colam na testa de quem advoga semelhantes proposições, e “não é neoliberal”, de acordo com o que ele considera como definidor da «alternativa neoliberal»:a «alternativa mais estreme, que exalta o sistema norte-americano». À laia de providência cautelar, Vital Moreira esculpe uma imagem neoliberal adequada para mostrar que ele cai fora desse rótulo desonroso e aviltante. Neoliberal? Vital Moreira? Nunca! O que ele esquece, ou finge esquecer, é que as propostas de reforma do modelo social europeu, que têm sido diabolizadas como neoliberais pelos seus correligionários, não têm nada a ver com a exaltação de um “estreme modelo americano”, mas são similares às que ele advoga no seu artigo de hoje.

É verdade que as considerações que Vital Moreira tece sobre a progressiva falência do modelo social europeu, tal como foi estabelecido ao longo das “3 décadas de ouro”, são condizentes com o que tenho escrito aqui em diversos registos: «o crescente aumento de custos» dos «serviços e prestações sociais públicos universais e gratuitos» ... o efeito do «aumento considerável da idade média das pessoas», etc..

Mas as conversões rápidas deixam sempre sequelas. O peso da tradição estatizante ainda tem muita força ... Vital Moreira refere como um dos efeitos que levaram aos problemas com que se debate o modelo social europeu é «a contestação da eficiência do modelo tradicional de gestão pública» ... Vital Moreira, o efeito é «a contestação da eficiência» ou a ineficiência propriamente dita? Ineficiência que aliás Vital Moreira reconhece noutro passo do artigo. E mais adiante, quando refere que «o fim do modelo fiscal em que o sistema assentava» foi devido à «contestação da progressividade fiscal» e à «competitividade fiscal internacional, que levou à baixa da carga fiscal», voltamos à questão de saber se o efeito foi o peso fiscal, que tem retirado competitividade às empresas europeias face à emergência dos novos países industrializados, ou foram as “queixinhas” relativas à carga fiscal.

A questão é saber se Vital Moreia assimilou as causas profundas da actual situação económica e social relativamente à qual ele advoga as medidas em apreço, ou se advoga essas medidas apenas porque lhe parece que há actualmente muitas “contestações” aos valores que ele anteriormente defendia. E essa questão é pertinente: tomam-se medidas porque são “racionalmente” necessárias, e não porque estão na moda. Tomar medidas porque estão na moda tem conduzido aos maiores disparates e, em alguns casos, levado à ruína das nações.

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agosto 24, 2004

Mitos e Ideologias 3

Economia de Mercado sim, Sociedade de Mercado não

Analisemos agora a «palavra de ordem» «economia de mercado sim, sociedade de mercado não».

Numa sociedade pluralista, baseada na livre iniciativa individual e na liberdade de escolha não é possível delimitar uma esfera social onde não haja competição a menos que a iniciativa individual e a liberdade de escolha sejam limitadas (ou reguladas) por lei. A economia sem a sociedade é um jogo abstracto e a sociedade sem a economia uma realidade hemiplégica. A liberdade pressupõe competição e não há liberdade sem competição. A concorrência é parte intrínseca da vida social numa sociedade livre. Começa nos bancos da escola onde, por exemplo, sonhar com uma aprendizagem sem competição tem sido uma das quimeras que tem ajudado a tornar o nosso desempenho escolar uma desgraça colectiva.

É evidente que a competição deve ser regulada. Em primeiro lugar há que assegurar que ela não é desvirtuada por políticas anti-concorrenciais perpetradas pelos agentes económicos (cartelização, monopólio ou monopsónio, etc.). Como a concorrência pura e perfeita é uma situação de referência inatingível na moderna organização industrial (economias de escala, diferenciações dos produtos, barreiras naturais à entrada, etc.), devem ser regulados os procedimentos que permitam uma prática o mais próxima possível dessa situação ideal.

Em segundo lugar verifica-se que a concorrência produz na sociedade um efeito idêntico ao da selecção natural das espécies (empresas e famílias): cavam assimetrias e produzem a prazo a sua extinção. Se no caso das empresas a intervenção estatal só deve ter lugar se, e unicamente, a empresa em vias de extinção for viável por as suas dificuldades serem apenas conjunturais, no caso das famílias a sociedade deve intervir para assegurar a equidade (e não igualdade) social conforme escrevi no meu texto anterior (Mitos e Ideologias 2).

Portanto, é contraditório apostar numa economia de mercado e apostrofar a sociedade de mercado. A menos que este anátema se destine apenas a consumo caseiro.

Um texto que consubstancia as contradições socialistas foi o publicado por Jorge Bateira no Público (22-08-04 – O Estado Estratega). Jorge Bateira, que Aarons de Carvalho qualifica noutro artigo no mesmo jornal de «reputado economista», desfia uma série de proposições ou pouco rigorosas ou mesmo absolutamente incorrectas.

Sobre o mercado escreve: «os mercados são uma construção social, não resultaram de qualquer ordem natural. ... É falsa a ideia de que “no princípio era o mercado”». Pois não, Jorge Bateira, ao princípio era o Australopithecus. Enquanto os hominídeos viveram em bandos, subsistindo através da colecta (frutos e caça) não havia mercado, nem economia, nem socialismo, nem debates no Público ... O mercado iniciou-se com a divisão social do trabalho (diferenciação e especialização progressivas das diversas tarefas e empregos necessários à boa evolução de uma sociedade, conforme escreveu Marx).

Com a divisão social do trabalho aparece a necessidade das trocas (aliás, para Adam Smith é o inverso: a divisão do trabalho é fruto do gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro) e a existência da propriedade (no mínimo, a propriedade do stock de bens para troca posterior) e a necessidade do estabelecimento de uma entidade que, de alguma forma, proteja ou dê segurança à propriedade. Escreve Adam Smith: "É, pois, a aquisição de propriedade ... que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário". Sem haver Estado e um enquadramento legal (escrito ou consuetudinário) que proteja a propriedade e dê segurança à actividade económica, não há mercado, mas também não há economia, apenas miséria. A aquisição pela violência e pelo saque, através da guerra ou da pirataria, conduz ao sofrimento, à miséria e à desmotivação pela actividade económica dada a insegurança que pende sobre os seus frutos.

Portanto quando o «reputado economista» Jorge Bateira escreve que «apenas os economistas de matriz ideológica neoliberal continuam a raciocinar como se fosse possível haver mercado sem intervenção pública» está a dizer um completo disparate pois para haver mercado, economia e civilização, o Estado tem que assegurar a protecção da propriedade e que o mercado funcione sem imperfeições. Nenhum neoliberal tem dúvidas sobre isso. Onde o pensamento neoliberal torce o nariz é ao que considera um excessivo protagonismo do Estado em matéria de justiça social.

Para Hayek: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Calamitosa: a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais.

Às vezes é necessário gritar que o rei vai nu para se começar a notar que o vestuário do rei é absolutamente inadequado. Hayek, inicialmente maldito, passou ao estatuto de guru quando, a partir do fim dos anos 70, o estatismo ultrapassou os limites do razoável e os seus efeitos perversos nas economias ocidentais se tornaram visíveis e iniludíveis. Foi a partir daí que, inicialmente nos países anglo-saxónicos (Reagan e Thatcher) e depois na Europa continental, se começaram a implementar as privatizações de empresas públicas e as parcerias público-privadas para gestão de sectores até então considerados como vocação exclusiva do serviço público.

Prossegue o «reputado economista» Jorge Bateira: «... Não percebendo que sem Estado não há mercado, para estes economistas (os neoliberais ... claro) a intervenção do Estado é uma “impureza” ... um mal menor. ...Ora os mercados, não sendo entidades cognitivas, também não tomam decisões sobre o futuro, não elaboram estratégias».

No meu texto anterior acima referido escrevi que «o mercado não é uma entidade, é o conjunto de vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. ... Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas» e decisões sobre o futuro ... acrescento agora. E acrescento igualmente que «os mercados, não sendo entidades cognitivas», as empresas que constituem o mercado são-no.

Queria abrir entretanto um parêntesis sobre o termo neoliberalismo. Apesar da aplicação progressiva, embora muito tímida, de algumas receitas neoliberais, ter permitido um novo fôlego às economias ocidentais (incluindo a portuguesa), tem havido um coro enorme de calúnias movidas contra o termo neoliberalismo, mesmo pela gente de esquerda que quando no governo se vê constrangida a que aplicar algumas das suas receitas. O neoliberalismo passou a ser o culpado de tudo o que de mau que acontecia no mundo, sobretudo em regiões onde jamais houve qualquer pensamento neoliberal, como na África, onde predominam regimes que se intitulavam ou intitulam marxistas ou socialistas. O termo "neoliberal" adquiriu uma conotação negativa, embora os que a apliquem não expliquem o porquê. Ora, pode concordar-se ou não das ideias neoliberais, desde que se procure conhecer o que são exactamente essas ideias, submetendo-as então a uma crítica fundamentada. É absurdo “debater” ideias pela imagem caricatural forjada pelos seus detractores. Mas é exactamente isso que ocorre. Por exemplo, Jorge Bateira apenas o usa como elemento pejorativo. Para facilitar, atribui-lhe intenções que não correspondem às doutrinas dos pensadores neoliberais.

Regressemos a Jorge Bateira: ... «importa reconhecer as limitações da intervenção do Estado na economia ... vários factores ... imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica; dificuldade em encontrar um nível de intervenção adequado para reduzir a incerteza do investimento; criação de efeitos perversos em algumas políticas

Estas limitações deixam-me perplexa. Não é o Estado, mas as empresas, fundamentalmente as empresas industriais, que estão confrontadas com a imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica, ou com a incerteza do investimento. São elas que estão permanentemente confrontadas com as incertezas dos mercados. O Estado não tem qualquer vocação para tal. As empresas correm riscos, mas são elas que pagam se cometem erros. Quando o Estado comete erros nas suas decisões sob risco (ou na incapacidade de tomar decisões), quem paga esses erros são os contribuintes. Foi isso que os contribuintes portugueses têm andado a fazer relativamente aos erros cometidos pelo Estado no seu sector público empresarial. Portanto não se vê que tal constitua problema para o Estado, a menos que este regresse às nacionalizações.

Quanto aos «efeitos perversos em algumas políticas» estou de acordo. O Estado português tem tomado medidas enviesando o funcionamento de alguns mercados que a longo prazo se têm virado contra os grupos sociais que pretendiam proteger. Muitas dessas medidas foram entretanto abolidas. Outras ainda se mantêm (mercado laboral, mercado do arrendamento urbano, etc.). A perversidade dos efeitos dessas políticas é de tal monta que a sua abolição, embora necessária, pode causar no imediato situações em extremo complicadas e ter custos sociais elevados, e os resultados positivos só serem sentidos a médio ou longo prazo.

Jorge Bateira termina de forma tranquilizadora: a sua tese «não é compatível com uma Administração Pública desqualificada porque grande parte deste processo só tem eficácia se os interlocutores por parte do Estado forem credíveis.» ... e ... «contudo, há uma condição essencial para que esta alternativa ao neoliberalismo possa fazer o seu caminho: é indispensável que a qualidade cívica, técnica e política dos protagonistas do PS seja consistente com esta visão do Estado».

Ou seja, duas condições que inviabilizam as suas proposições. Podemos ficar tranquilos.

Publicado por Joana às 11:22 PM | Comentários (26) | TrackBack

Mitos e Ideologias 2

O Estado Estratega

As contradições nas relações dos socialistas com o capitalismo estão plasmadas em alguns chavões que têm acompanhado a campanha para a sucessão a Ferro Rodrigues, como por exemplo, «economia de mercado sim, sociedade de mercado não» e «o Estado estratega».

Na raiz do pensamento dos «Alegretes» está a tese de que o Estado não compete produzir riqueza, mas que o mercado não define estratégias nem, por si só, realiza a justiça social. Quanto à justiça social, obviamente que o Estado deve esbater as assimetrias sociais e económicas, decorrentes do funcionamento do mercado, de forma a serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades e com a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, ordenamento do território, etc., fazendo discriminações positivas.

Quanto à afirmação que «o mercado não define estratégias», tomada na sua generalidade, resulta de uma enorme confusão sobre o que é o mercado e o que são estratégias. O mercado não é uma entidade, o mercado é o conjunto de agentes económicos, vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. A maioria dos agentes económicos que participam nesse mercado nem sequer se conhece. Não é o mercado que toma decisões. São as relações entre vendedores e compradores que asseguram, desde que o mercado funcione em regime de concorrência, o estabelecimento de um sistema de preços e quantidades eficientes, isto é, que constituam o melhor resultado possível para o conjunto dos agentes económicos envolvidos, tendo em conta as funções de custo dos vendedores a as funções de utilidade dos compradores, e, para o conjunto da economia e dos mercados que a constituem, o óptimo para a comunidade.

Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas: política de preços, políticas de produto (quantidades a produzir, diferenciação e segmentação dos mercados, modificações nos produtos e nas tecnologias de produção), políticas de investigação e qualificação e políticas de investimentos necessárias para suportar as anteriores políticas e promover, eventualmente, o crescimento. São estas as estratégias que condicionam ou promovem o crescimento, a prosperidade económica e o nível de emprego e não estou a ver o Estado a substituir-se às empresas afirmando-se como o «Estado estratega».

Mas quando Alegre concretiza quais as estratégias verifica-se que fala da intervenção do Estado nas políticas sociais, e lista uma série de rubricas de distribuição pecuniária (seguro social, revisão da lei de Bases da Segurança Social, de Rendimento Social de Inserção, sistema de protecções à doença e ao desemprego, estabelecimento do mínimo vital de sobrevivência, etc.), percebe-se o «Estado estratega» de Manuel Alegre – é o Estado distributivo ... Alegre não se refere à produção mas à distribuição. A vocação de Manuel Alegre (e do esquerdismo) não é produzir, é distribuir.

Mas a estratégia de Manuel Alegre abrange também o nível de emprego. Nada a opor ... vejamos todavia qual a estratégia. Ora Alegre defende que a política do pleno emprego é «a forma mais eficaz de proteger as sociedades da desigualdade e da exclusão social» ... daí que se deve proteger as pessoas contra a «instabilidade dos mercados de trabalho». Alegre cai assim no vício do Parque Jurássico do sindicalismo português querendo manter à força os empregos existentes e desmotivando a criação de novos empregos ao tornar rígido e não concorrencial o mercado de trabalho.

A experiência prática mostra que os países em que o mercado de trabalho é mais concorrencial são aqueles em que se consegue atingir os níveis de pleno emprego e há mais incentivos à qualificação laboral. Essa experiência mostra igualmente que quanto maior for a rigidez e imperfeição daquele mercado maior é a percentagem de desemprego e que, em caso de expansão económica, o aumento do nível de emprego se faz de forma hesitante e mais lentamente que num mercado menos rígido. Circunstância, aliás, que funciona como travão à expansão económica.

Em Portugal, embora o mercado de trabalho seja rígido, existem escapatórias para os empregadores: recibos verdes, contratos a termo, etc.. Essa precaridade laboral coexiste com as pessoas protegidas contra a «instabilidade dos mercados de trabalho». É a existência desse importante segmento laboral com estatuto precário que tem permitido, nas duas últimas décadas até à recessão de 2002, manter um nível próximo do pleno emprego, apesar da rigidez das lei laborais. Quando as perspectivas são boas, os empresários não têm dúvidas em aumentarem a sua massa laboral em regime de trabalho precário, porque sabem que, em caso dessas perspectivas se frustrarem, poderão diminuir essa massa laboral. Ora sucede que essas decisões acabam por ter, normalmente, um efeito dinamizador na economia e muito daqueles trabalhadores precários acabam, mais tarde ou mais cedo, por passarem ao quadro.

Manuel Alegre continua pois agarrado aos mitos do passado desmentidos pela experiência do funcionamento das economias reais.

E como se paga o Estado estratega-distributivo? Com o «orçamento plurianual» responde Alegre. Mas o «orçamento plurianual» apenas permite uma maior estabilidade do horizonte orçamental e não um aumento dos réditos. Isso não perturba Alegre que explica depois ... «as receitas fiscais ...é ... um dos elementos-chave da justiça social». Portanto sangrar o contribuinte é o que promete Alegre, quer directamente, quer indirectamente através das empresas, porque o dinheiro tem que vir de algum lado: vem de quem produz a riqueza. Quem produz riqueza é a vaca à disposição do Moloch estatal para a ordenhar até à exaustão.

Para amenizar, Alegre inventa a «fiscalidade verde»: penalização, através do aumento de impostos, das indústrias poluentes, desagravando por outro lado os produtos que não prejudicam o meio ambiente. Isto é completamente disparatado e contraria a legislação portuguesa. O chamado princípio do poluidor-pagador passou a utilizador-pagador e serve de justificação pertinente às taxas ou tarifas dos R.S.U. (lixo), do saneamento, de utilização do domínio hídrico, etc.. No que se refere aos poluentes industriais só há duas situações: 1) a empresa rejeita efluentes com uma carga poluente abaixo dos valores definidos na legislação, e tem alvará para funcionar; 2) a empresa rejeita efluentes com uma carga poluente acima daqueles valores e é objecto de uma coima e pode ter que fechar as portas (se não for uma situação pontual ou acidental) até repor os valores legais. Uma empresa não pode pagar para ter o direito de poluir o ambiente. Isso contraria a legislação portuguesa, as directivas da UE e é ambientalmente condenável.

É evidente que há empresas que são useiras e vezeiras em fazerem descargas poluentes quando julgam que a fiscalização está ausente. Mas isso é uma questão do foro criminal e a sua repetição decorre do mau funcionamento da nossa administração e não é resolvido por novas leis. As leis que existem estão razoavelmente bem elaboradas, apenas a fiscalização não é suficiente.

Quando Alegre fala da «fiscalidade verde» não sabe o que diz.

Publicado por Joana às 01:07 AM | Comentários (11) | TrackBack

agosto 23, 2004

Mitos e Ideologias 1

Os textos que os apoiantes das diferentes candidaturas à liderança do PS têm publicado nos jornais combinam uma inegável qualidade literária (alguns) com uma desesperante mediocridade conceptual, técnica e teórica (todos). E quanto mais vazios de substância estão mais tentam disfarçar esse vazio com um notável aprumo literário.

O paradigma dessa produção literária é o texto de Jorge Lacão (PS, para que te quero) publicado sábado (21-08-04) no Público. Quem aprecia «les grands mots» deve-se ter deliciado com aquele parágrafo em que ele escreve: «A democracia não deve subordinar-se à pressão do “Estado-espectáculo”. Logo a esquerda tem dois caminhos: o de aceitar a lógica da pressão mediática da produção dos factos políticos e subordinar-se à vertigem do jogo virtual dos espelhos, onde só a imagem conta, por mais desfocada que seja da realidade; ou o de promover o retorno ao espírito republicano de governo, onde prudência, responsabilidade e credibilidade são lemas incontornáveis.». O medíocre ... é que quer este parágrafo, quer o resto do texto, não tem qualquer conteúdo operacional, não tem substância. São só palavras.

A escrita gongórica de Lacão torna-se menos hermética quando fala da possibilidade das alianças à esquerda: «O dilema é ... entre a opção daqueles que pouco ou nada aprenderam com as experiências do poder do PS e preferem sujeitá-lo, e ao país, aos riscos da deriva estratégica e da instabilidade política.».

Ora quem não aprendeu com a última experiência do poder do PS foi Lacão. Não era a 3ª via de Guterres que foi um mal em si – foi a sua incompetência, incapacidade de tomar decisões, laxismo e a sua consequente submissão aos lobbies partidários e aos interesses corporativos que impedem o país de progredir. Não é a política mediática que é um mal em si. Sê-lo-á apenas na medida em que servir para disfarçar a inconsequência política. Uma mulher que se esmera em ser bela e atraente não é um mal – sê-lo-á se a sua beleza e sensualidade servir para disfarçar o seu vazio de ideias e a malevolência dos seus sentimentos.

A ala Alegre e a ala Soares, quando atacam o guterrismo, fazem-no colocando-se no ponto de vista da esquerda radical. Por isso não admira que, duma forma rebuscada, Lacão justifique uma aliança com o radicalismo de esquerda.

Todavia, a vocação do esquerdismo não é produzir, é distribuir. Os empresários têm, no imaginário do esquerdismo, o papel de gangsters, sequiosos de lucro, vampirizando os trabalhadores, que protagonizam, em quaisquer circunstâncias, o papel de vítimas indefesas. São uma espécie em vias de extinção e o dever dos esquerdistas é acelerar rapidamente essa extinção. Enquanto não a extinguem, é deixar aos "maus" a responsabilidade de produzir e de gerar postos de trabalho, cuja qualidade e nível salarial constantemente se condena. Como é que Lacão compagina tal com a «prudência, responsabilidade e credibilidade» que enuncia. A menos que estas “virtudes” de Lacão tenham uma leitura diferente.

Baptista Martins um apoiante de João Soares escreveu em 16-08-04 que a Direita e os seus comentadores demonstram uma certa apetência por Sócrates. E conclui que «a Direita precisa deste adversário». Do ponto de vista do articulista isto constitui uma reposição da tese da esquerda ortodoxa de que se algum dos nossos é elogiado pelos que não comungam a nossa ortodoxia, então é porque ele é um traidor. Constitui também um rótulo que ele aplica a todos os analistas preocupados com a situação económica do país e que pretendem uma política de seriedade, rigor e competência para tirar o país do aperto em que se encontra. Quem se preocupa com a competitividade das empresas e com a eficiência da Administração Pública é rotulado de direita. A esquerda de Baptista Martins preocupa-se com as políticas de distribuição. Por isso aqueles analistas preferem Sócrates. Por isso aqueles analistas não querem correr o risco de uma pugna eleitoral entre o PSD e uma aliança tácita PS-esquerdistas, porque se a demagogia populista, de distribuir o que não há, vencer as eleições, será um desastre para o país.

É certo que a Sócrates pode acontecer o mesmo que a Guterres: ficar submerso pelos caciques e máfias locais do PS. Parte substancial do aparelho do PS apoia Sócrates porque este é o candidato mais bem posicionado para ganhar e há uma grande apetência pelos “jobs for the boys” de que o PS é muito mais sedento que o PSD porque os seus quadros não são oriundos dos quadros superiores das empresas, muito melhor remunerados e com carreiras que não desejam prejudicar, mas sim, em muito maior grau que o PSD, do próprio aparelho, do funcionalismo público e autárquico, do ensino, etc..Esse aparelho não tem qualquer ideologia ou conceitos económicos e políticos. Estão no PS como quem está no topo da militância no FC Porto, no Benfica ou no Sporting. Apenas esperam que o seu candidato ganhe para obterem o almejado lugar.

Todavia Sócrates tem (ou pelo menos tinha) uma vantagem sobre Guterres: é um homem obstinado e com mais autoridade pessoal.

Todas estas controvérsias e contradições resultam do próprio percurso do socialismo e das suas relações com o capitalismo desde os fins do século XIX até agora: começaram por defender a sua destruição e depois, gradualmente, defenderam a sua reforma. Mas essas reformas, de que os socialistas foram protagonistas importantes, acabaram por conduzir a novas realidades económicas e sociais e à progressiva globalização, que por sua vez possibilitou a emergência de novas economias (primeiro o Japão, depois o Sueste Asiático e agora a irrupção da China e da Índia). Esse alargamento do mercado mundial e do comércio internacional melhorou as condições de vida de mais de um bilião de pessoas, mas acarretou problemas para a competitividade da economia europeia e para o modelo social que fora estabelecido ao longo das «3 décadas de ouro», entre o fim da guerra e o primeiro choque petrolífero.

Os socialistas, na Europa e em Portugal, estão presentemente desarmados perante essas novas realidades que ou não compreendem, ou não querem compreender, ou compreendem, mas não as conseguem explicar ao trabalhadores.

Mas isto será matéria de um próximo texto.

Nota - ler ainda:
Mitos e Ideologias 2
http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/144466.html

Publicado por Joana às 04:59 PM | Comentários (5) | TrackBack

agosto 17, 2004

Uma Questão de Choques

A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais

João Dias escreveu um longo panegírico, ontem, no Público, sobre o Plano Tecnológico de José Sócrates (Choque fiscal “versus” choque tecnológico). É um texto com que na generalidade estou de acordo. Aliás, há dias escrevi aqui que o Plano Tecnológico de Sócrates tinha uma virtude: dizia coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falhava onde nós sempre falhámos: não explicava como é possível concretizar o plano.

Ora o texto de João Dias, embora seja mais elaborado do que o Plano do Sócrates, pelo menos a versão que apareceu na imprensa, enferma do mesmo vício. O exemplo da Finlândia, que aponta, é conhecido e é um caso de sucesso. Todavia, para o reeditar em Portugal torna-se necessária a reforma total da administração pública e, principalmente, do sistema educativo. E Sócrates está disposto a arrostar com os interesses corporativos instalados, nomeadamente os sindicatos?

Mas a reforma não passa apenas pelos corpos docentes. A questão é que na Finlândia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério. Em Portugal todos aqueles segmentos sociais gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices.

Em 4 de Junho escrevi aqui, em Novos Rumos para a Escola que, segundo um estudo da Organização Mundial de Saúde, abrangendo 37 países e entre eles o nosso, os adolescentes portugueses estão, no que respeita à aprendizagem, entre os que mais se sentem pressionados pelo trabalho na escola e os que mais acreditam que os professores não os consideram capazes. Simultaneamente Portugal aparece no grupo dos seis países onde mais adolescentes dizem gostar muito da escola e são os que mais acham que os colegas são simpáticos.

Este estudo prova, como escreveu Fátima Bonifácio anteontem no Público (Mais Dinheiro para a Educação?), que os trabalhos escolares «são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel para crianças e adolescentes» ... e ... «trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a que não dão importância». A escola apenas serve para espaço lúdico. Esforços mentais provocam um stress desnecessário às crianças e são de evitar.

Portanto acabam todos, funcionários do ministério, professores, alunos e pais, por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.

João Dias ao falar na aposta das tecnologias da informação como um desígnio nacional está a pôr o carro à frente dos bois. Devia começar por explicar como se consegue pôr o nosso sistema educativo a funcionar para possibilitar ganhar a seguir a aposta das tecnologias da informação. Na minha opinião tal reforma dificilmente será possível sem um pacto de regime que envolva os dois maiores partidos portugueses, que tenha a duração necessária para que surta efeito e que não seja objecto de chicana por um desses partidos quando na oposição, ou de desvirtuamento pelo outro, quando estiver no governo. Mas para isso seria preciso estarem ambos de acordo sobre um modelo viável e há muitos interesses corporativos que agiriam por dentro dos partidos no sentido de minarem qualquer tentativa de acordo ou tornar o modelo acordado sem efeitos operacionais.

Onde João Dias erra é na oposição que estabelece entre choque fiscal e choque tecnológico. Não se opõem, antes podem ser complementares: se houver incentivos às empresas estas investem e entre esses investimentos haverá sempre uma parcela que é utilizada no aumento da qualificação dos seus efectivos. Certamente que João Dias não pensa que o choque tecnológico é apenas promovido pelo Estado. Em todos os casos de sucesso, parte importante da requalificação da mão de obra passou sempre pela acção das empresas.

Portanto, os incentivos às empresas são necessários. O que eu duvido é que, de facto, a diminuição da taxa de IRC seja o incentivo mais importante. O mais importante continua a ser a reforma da administração pública: desburocratizar os seus procedimentos e tornar, por exemplo, a justiça rápida e eficiente. A actual lentidão e fragilidade de competência da justiça portuguesa protege objectivamente os vigaristas e os que agem de má fé. As empresas que interessam à nossa economia não podem estar à mercê de incumprimentos contratuais que demoram anos ou décadas a serem resolvidos pelos tribunais, quando não prescrevem. Ou estarem à espera que o Estado, os seus institutos e as autarquias demorem 6 meses, um ano ou mais, a pagarem as facturas.

A argúcia dos nossos políticos resume-se, face à dificuldade de fazerem reformas a sério, à implementação do ditado «quem não tem cão, caça com gato». Não resolvem a questão ciclópica da administração pública e, para distrair, prometem o rebuçado do choque fiscal. Mas isso também será o que Sócrates irá enfrentar se chegar a primeiro ministro. Será ele capaz de resolver? Pelas banalidades que tenho lido ... duvido.

Mas, que fique bem claro: Sócrates diz banalidades, porque não explica a concretização das suas propostas ... mas fala sobre factos, sobre o país real. Posso achar que ele está a pôr o carro à frente dos bois, mas ele sabe que existem o carro e os bois e está preocupado como os há-de atrelar. Manuel Alegre só fala de ícones: a «alma da esquerda», «refazer a esquerda», «lutar por convicções de esquerda e não piscar o olho ao centro», «é necessária a convergência à esquerda nesta época globalizante», «combate e construção de alternativas às opções neo-liberais», etc., etc.. Há apenas ícones ideológicos no seu discurso e nos discursos dos seus apoiantes. Não há nada de substantivo. Há apenas rezas aos sacralizados ícones ideológicos.

O problema da esquerda que se reclama de ter «alma» é que não tem qualquer ideia viável sobre a governação e a gestão económica do país. E ícones ideológicos só servem para entreter a devoção dos intelectuais.

A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais.

Publicado por Joana às 03:07 PM | Comentários (14) | TrackBack

agosto 03, 2004

Sócrates: da Ideologia à Tecnologia

E vice-versa

O Plano Tecnológico de Sócrates tem uma virtude: diz coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falha onde nós sempre falhámos: não explica como é possível concretizar o plano.

O Plano é, por via disso, um rosário de banalidades: «estamos a divergir» ... temos que «descobrir como obter uma taxa de crescimento superior» ... «a nossa competitividade não pode continuar a assentar no velho e inviável modelo dos baixos salários», etc. e de ilusões, tais como «precisamos de retomar o rumo de uma convergência sustentada». A ilusão (?) de Sócrates é que nós nunca tivemos «uma convergência sustentada». A nossa convergência resultou do realinhamento de diversas variáveis macroeconómicas decorrente da adesão e do estabelecimento da moeda única e dos efeitos directos e, sobretudo, induzidos, dos fundos comunitários.

O governo de que o Engº Sócrates fez parte não se deu conta dessa ilusão. Com a queda drástica das taxas de juro e o incremento do consumo público, os agentes económicos, famílias e empresas, endividaram-se e a procura interna, o emprego e o PIB cresceram significativamente, mas de forma não sustentada. Neste quadro, e em face das debilidades estruturais da economia portuguesa, o que iria obviamente acontecer seria um aumento desmedido das importações, uma diminuição do peso das exportações e um desequilíbrio insustentável, a médio prazo, da balança de transacções com o exterior.

Esgotada a capacidade de endividamento de empresas, das famílias e do Estado (este por imperativos do PEC), veio a recessão e o desemprego, visto que, como Sócrates muito bem assinala no seu Plano, no enquadramento actual já não é possível esse ajustamento fazer-se recorrendo «às receitas tradicionais da desvalorização cambial». O reajustamento faz-se, mais tardiamente e mais dramaticamente, através da recessão e do desemprego. Foi o que veio a acontecer.

A afirmação de Sócrates que a «escolha do Governo foi apostar tudo numa agenda financeira e orçamental» está incorrecta. A contenção orçamental era um imperativo resultante de estarmos no euro. O insucesso dessa contenção (se não entrarmos em conta com as receitas extraordinárias) resultou fundamentalmente da recessão económica portuguesa gerada pela política financeira e económica do governo anterior (onde estava o Engº Sócrates) e do marasmo económico europeu, nosso principal parceiro comercial.

É evidente que Sócrates tem razão ao afirmar que o nosso problema está na economia e que a actuação do governo nessa área não foi convincente. Eu também tenho essa opinião. Todavia duvido que, por muito boa que tivesse sido a actuação governativa, fosse possível evitar o aumento do desemprego. Aliás, também duvido (e nisso concordo com Sócrates) que a diminuição da taxa de IRC tenha impacte significativo na competitividade.

A eterna questão de Portugal é que as medidas com impacte, capazes de inverter as tendências da nossa economia são muito difíceis de implementar porque bolem com todo o nosso tecido social, porque implicam sacrifícios no imediato em muitos segmentos sociais e porque não temos competências suficientes para as implementar no terreno.

Ora a questão que se coloca é saber se Sócrates está interessado nessa política de verdade ou se o «salto qualitativo» de que fala é apenas uma figura de retórica. Porque Sócrates pretende a quadratura do círculo: o salto qualitativo sem as medidas impopulares necessárias para se «formar» esse salto. Diz, por exemplo, que «países que recusaram uma visão neo-liberal conseguiram dar um salto qualitativo». Gostava de saber quais. Se ele se está a referir à Europa Central e Setentrional das «3 décadas gloriosas» entre o fim da guerra e o 1º choque petrolífero, está a viver de ilusões porque aquele enquadramento económico e demográfico já não se volta a repetir. E são justamente os países que deram aquele «salto» que agora tentam reajustar os seus modelos sociais e económicos para permitir sustentar a continuação do crescimento.

Quando Sócrates escreve que o problema está na «baixa infra-estrutura social, nomeadamente nos domínios da qualificação dos recursos humanos e da tecnologia» ou que «Quanto mais baixa é a qualificação dos recursos humanos, maior é a tendência para se instalarem actividades com baixa componente tecnológica, sobretudo quando as novas tecnologias reclamam elevadas competências» apenas edita algo que qualquer um de nós subscreveria. Mas isso não é suficiente.

O que Sócrates propõe a nível do ensino do Inglês, Português e Matemática é o que se pratica, por exemplo, na Suécia (pelo menos era o que se fazia há 3 anos quando passei por lá). A questão que ponho é saber porque é que os suecos conseguem isso (obviamente com o Sueco em vez do Português) com despesas na educação proporcionalmente inferiores às nossas e nós não o conseguimos sequer em Português e Matemática. Na Suécia não é possível a progressão de ano sem se passar nas 3 disciplinas. E há turmas de recuperação em horário suplementar para quem mostre dificuldades. Em Portugal tentaram-se medidas semelhantes mas não resultaram. Havia demasiadas reprovações o que degradava as estatísticas do ensino e as turmas de recuperação não funcionavam apesar do rácio professor-aluno ser superior em Portugal. A questão é que na Suécia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério e aqui todas aquelas corporações gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices. E assim acabam todos por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.

David Justino declamou coisas maravilhosas sobre a educação. O que é que ele realizou? Sócrates proclama que temos que «desenvolver medidas sérias de combate ao abandono escolar». Medidas sérias? Antes deveria interrogar-se porque é que há décadas que ninguém leva a sério quaisquer medidas que se tomem e que acabam sempre por ficar sem efeito. Quando não se sabe como resolver as coisas, usam-se adjectivos e advérbios «fortes»: medidas «sérias», programas «consequentes». Que eu saiba, nunca ninguém prometeu medidas «hilariantes» ou programas «inconsequentes». Infelizmente foi o que sempre aconteceu depois.

Um edifício constrói-se a partir das fundações. Portanto, nesta matéria, Sócrates deveria primeiro resolver o que está de errado no sistema educativo português e pô-lo a funcionar devidamente. Mas sem gastar mais dinheiro, pois o nosso sistema educativo já é o segundo mais caro da UE dos 15, e o pior, de longe, em desempenho.

Relativamente à formação científica e profissional, Sócrates repete aquilo que todos os governos têm prometido, cada vez com mais veemência, de há décadas a esta parte, e sempre falharam a seguir. Não constitui por isso novidade.

Nesta matéria tenho verificado uma clivagem completa entre a comunidade universitária e científica e as empresas. A comunidade universitária e científica portuguesa não sabe o que se passa nas empresas e estas, na sua quase totalidade, não têm qualificação suficiente para saberem como melhorarem significativamente o seu desempenho.

Por um lado, para que as empresas admitam pessoal com elevada qualificação científica e apostem na inovação tecnológica, não basta que tal se encontre disponível no mercado. É preciso que elas percebam que isso lhes traz vantagens.

Por outro lado, não vale a pena apregoar grandes investimentos nas áreas de investigação científica e interessar os investigadores em permanecerem no país, sem se compreenderem as razões que levam a que a investigação científica não tenha efeitos práticos no tecido produtivo português.

Há que promover, de forma intensiva, protocolos entre empresas e universidades e centros científicos para dinamizar uma investigação com efeitos práticos. Promover a investigação para dizer que temos investigadores, para além dos efeitos positivos na docência universitária, é deitar dinheiro à rua. Nomeadamente porque os investigadores, para ascenderem na sua carreira (e não apenas por questões salariais) acabam por ir para o estrangeiro.

É óbvio que não devemos descurar a investigação abstracta. Interessa à melhoria da docência universitária e é um dever que temos para com os membros da nossa comunidade científica. Mas devemos sobretudo apostar na investigação ligada com o nosso tecido económico, porque aí se poderão gerar muitas sinergias que melhorem as qualificações e competitividade de empresas e institutos públicos e agarrem os investigadores aos nossos problemas e à sua solução.

É essa investigação que teremos que dinamizar quer através de incentivos às empresas, quer interessando nela universidades e centros científicos. E é essa investigação direccionada que poderá abrir novas perspectivas às empresas e às universidades e centros científicos e realimentar futuros desenvolvimentos. Só a permanente permeabilidade do conhecimento e de ideias entre as entidades económicas e científicas permitirá, em Portugal, o avanço científico e tecnológico de uma forma sustentada e a rentabilização dos investimentos na investigação.

Mas isso não pode ser feito «à portuguesa», aproveitando eventuais subsídios para as empresas obterem mão de obra barata durante alguns anos. Têm que ser protocolos com objectivos claros e com avaliações intermédias.

A questão socrática do Plano Tecnológico é que ele não é convincente para o tecido empresarial, porque se perde em banalidades, nem para a esquerda «mais à esquerda» para a qual o que continua a valer são os seus ícones ideológicos de que nunca abdicarão ... por muitos Muros de Berlim que caiam. Tecnologias ... disciplina orçamental ... competitividade ... avaliações de desempenho ... tudo truques do capitalismo para tornear os imperativos éticos e cívicos e vacilar a alma esquerda do PS.

Neste entendimento, a luta entre o Plano Tecnológico de Sócrates e o Plano Ideológico de Alegre pode acabar, em face das banalidades do primeiro e da obsolescência do segundo, numa mistela sem efeitos operativos, eventualmente satisfatória para a vender a eleitores em busca de ilusões. A menos que a consabida obstinação de Sócrates consiga outro tipo de equilíbrio.

Sócrates termina sublinhando que o seu Plano Tecnológico não é um truque de magia que aspire a transformar a nossa sociedade e a nossa economia da noite para o dia. Não ... ele teve o cuidado de dizer que levava algum tempo. Quanto ao resto, pela forma como está elaborado, parece mesmo um «truque de magia»

Publicado por Joana às 10:25 PM | Comentários (23) | TrackBack

julho 20, 2004

Esquerda e Direita

A escolha principal nas actuais sociedades desenvolvidas, na esfera da política, não é entre esquerda e direita, mas entre quem gere melhor ou pior o Estado, a coisa pública, e consegue trazer para a sociedade uma maior ou menor prosperidade e bem estar.

O princípio actualmente aceite, embora muitos não tenham coragem de o anunciar publicamente, é o princípio da diferença: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de forma a trazer aos mais desfavorecidos as melhores perspectivas e serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades.

Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa, segundo este princípio, que o rico se torne muito mais rico se o pobre se tornar menos pobre. Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, ordenamento do território, etc., fazendo discriminações positivas.

Este princípio decorre da economia de mercado e da vontade de tornar os mercados eficientes: mercados dos produtos, mas também os mercados dos factores (capital e trabalho). Ora, por exemplo, a eficiência do mercado do trabalho só é possível com a sua liberalização e com a aceitação de derrogações à actual rigidez desse factor em Portugal.

Mas essas derrogações, se fossem totais, implicariam um grafo salarial, e nos rendimentos em geral, bastante mais amplo do que seria desejável em termos do bem estar entre os menos qualificados, ou menos aptos em concorrer no mercado laboral. Todavia o princípio da diferença tem outra face: o objectivo da equidade. A prossecução desse objectivo obriga à existência de uma política de transferências sociais que assegura não apenas equidade na educação, saúde, segurança social, como evita que o rendimento dos menos desfavorecidos seja inferior a um patamar fixado como nível mínimo de sobrevivência.

Em termos abstractos, estas derrogações levam a que os mercados sejam menos eficientes e a produtividade, medida em termos macroeconómicos, menor, devido ao aumento dos custos de produção para subsidiar aquelas transferências sociais. Todavia, em termos concretos, essas derrogações evitam a miséria e a exclusão social, aumentando o consenso e a estabilidade social. Ora uma sociedade tem que funcionar assente num consenso alargado. Sem esse consenso alargado e com instabilidade, geram-se expectativas pessimistas nos agentes económicos e a eficiência dos mercados é corroída pela instabilidade do mercado dos factores: fuga de capitais e menos bom desempenho do factor trabalho.

A solução óptima passa por maximizar a eficiência dos mercados, assegurando as prestações sociais suficientes para atingir o objectivo da equidade. Nesse óptimo, se as prestações aumentarem mais que o devido, a eficiência da economia diminui e todos perdem, mesmo que alguns fiquem, ilusoriamente, a pensar que ganharam; se as prestações forem inferiores ao limiar mínimo de sobrevivência, uma eficiência dos mercados, teoricamente superior, é contrariada e degradada pelo dissenso e instabilidade sociais.

Esta receita é independente de se ser da esquerda ou da direita, visto ser uma receita meramente técnica. Partidos socialistas, e do centro e da direita, do norte e centro da Europa têm conseguidodo aplicá-la, e com êxito razoável, até há alguns anos. O êxito da sua aplicação deveu-se mais à consciência cívica dos povos em questão, e ao rigor e ética dos respectivos políticos, que às diferenças de posicionamento nos hemiciclos parlamentares. A alternância eleitoral entre socialistas e não-socialistas não trouxe alterações significativas nos modelos económicos e sociais.

A questão complica-se em países onde a consciência social e cívica ainda é frágil. Se a administração pública é burocratizada e ineficiente, não há transferências sociais que cheguem para assegurar o objectivo da equidade. Por outro lado, a punção financeira excessiva degrada drasticamente a eficiência dos mercados, faz com que o tecido produtivo perca competitividade e não permite que esse país saia de uma situação de baixo desenvolvimento económico e de reduzido bem estar. A solução deste problema complica-se porque, para além da determinação do nível de transferências sociais, põe-se a grave questão de melhorar o desempenho do sector público.

Por isso, mais que a distinção entre esquerda e direita, a escolha é ditada pela distinção entre populismo/demagogia e rigor/sentido de Estado. Pela sua tradição ideológica e base social de apoio, a esquerda cai mais facilmente na demagogia e no populismo, que o centro ou mesmo a direita. Os governos de Guterres foram o exemplo da demagogia anestesiante que durou enquanto a crueza dos resultados não lhe puseram cobro e obrigaram Guterres a abandonar o cargo. Todavia essa demagogia não foi extirpada e o seu sucessor manteve, na oposição, uma postura de demagogia financeira e orçamental que nem os avisos do PR, durante a crise política recente, fez tergiversar.

Mas a ideia ontem expendida pelo governo centro-direita de diminuir o IRS na actual conjuntura é igualmente uma escolha populista. Apenas aumenta o rendimento disponível das famílias, com algum impacte positivo na procura interna, mas com um impacte negativo na nossa balança de transacções devido às importações induzidas. Isto para não falar no impacte a nível do défice orçamental. Já uma diminuição do IRC, se tal fosse permitido pela nossa situação orçamental, teria alguns efeitos positivos, aumentando o autofinanciamento das empresas e, portanto, quer a sua capacidade de investimento, quer a sua capacidade de diminuir o seu nível de endividamento, os seus encargos financeiros e os seus custos.

Mas a base social de apoio dos partidos de esquerda também pode facilitar políticas de rigor. As chamadas medidas impopulares, ou seja as medidas que se destinam a diminuir o peso das transferências sociais para aumentar a competitividade da economia, promover a retoma económica e, a prazo, o nível de emprego, são mais facilmente levadas a cabo por um governo com o rótulo de esquerda do que por um governo com o rótulo de direita. Um governo de esquerda tem mais facilidade em convencer os sindicatos e o seu eleitorado da necessidade dessas medidas. Além do que não encontra, normalmente, uma oposição forte da direita. As políticas dos governos socialistas do norte da Europa são exemplo típico disso. As medidas tímidas esboçadas por Pina Moura na ponta final do guterrismo poderiam sê-lo igualmente, se aquele não tivesse sido despedido pelo laxismo guterrista.

A luta que se perspectiva no interior do PS é justamente entre a ala «histórica» agarrada às concepções pseudo-sociais da política económica («pseudo» porque acabam por piorar a situação de todos, incluindo daqueles que pretendiam beneficiar) e uma visão mais moderna da política económica e social. Mas o PS está como a Convenção Nacional durante a Revolução Francesa: a luta entre duas minorias (reduzidas, mas combativas) os jacobinos e os girondinos, e uma larga maioria, o «pântano» que se pode inclinar para um lado ou para o outro, onde se encontra a maioria dos caciques e máfias locais, cujo apoio pode garantir a eleição, mas que irá cobrar mais tarde esse apoio, com juros.

Neste entendimento tenho sérias dúvidas que mesmo que Sócrates venha a triunfar, o PS tenha capacidade de conduzir uma política social e económica que ponha o país no bom caminho.

Dúvidas que também tenho relativamente ao governo actual, como certezas tive relativamente ao governo anterior. Todavia, quer num caso como no outro, pelo menos até agora, qualquer outra alternativa seria muitíssimo pior.

Publicado por Joana às 10:13 PM | Comentários (33) | TrackBack

maio 20, 2004

Santo António e o Pecado do Lucro

A morte de António Champalimaud e os obituários que, nos dias que se seguiram, foram aparecendo nos meios de comunicação, é o exemplo do país que temos – um país pequeno, mesquinho, reverente, que não sabe lidar com o sucesso dos seus filhos.

Entre a subserviência da AR que se “curvou” perante a figura que... e a diabolização feita pelos jornalistas e fazedores de opinião «politicamente correctos», não há qualquer distância: são lídimos exemplares de uma espécie mesquinha e subserviente, porque a mesquinhez e a subserviência são as duas faces de uma mesma moeda.

Champalimaud foi um empresário de sucesso, frio, objectivo e impiedoso. Se não o fosse, não teria feito (e refeito) a sua extraordinária fortuna. Essa frieza tornaram-no numa figura solitária mas única, que os empresários olham com distanciamento, os políticos com desconfiança e os sindicalistas com ódio.

É óbvio que soube aproveitar as facilidades concedidas pela legislação salazarista. Mas é hipocrisia acusá-lo de o ter feito. A legislação existia, porque não a aproveitar? Aliás, se fosse possível “medir a protecção” auferida pelos grandes empresários da época salazarista, certamente que, no caso de Champalimaud, entre o deve e o haver, o benefício líquido de Champalimaud seria inferior ao dos demais.

Ainda hoje, um reverente admirador do bonzo Mário Mesquita, escrevia no Público que «António Champalimaud representava "o mais típico industrial da era salazarista, mandão e prepotente", que erigiu o seu "império cimenteiro e bancário à sombra da protecção que lhe conferia a legislação proteccionista do "condicionamento industrial" e os instrumentos ditatoriais do regime».

Quanto ao “Império Bancário”, sabe-se como a aquisição do BPA por Champalimaud falhou por intervenção do poder político, devido a uma lei posterior feita pelo governo de Marcelo Caetano e com efeitos retroactivos, o que num Estado de Direito seria inconstitucional. Quanto aos Cimentos, o Sr. Luís Costa ignora que a indústria de Cimentos tem uma barreira à entrada fortíssima dada pelo rácio peso/custo muito elevado. Os custos de transporte e a perecibilidade do produto tornam a concorrência a mais de 100 ou 150 kms praticamente impossível. Por outro lado, a dimensão mínima óptima de uma cimenteira é bastante inferior ao consumo anual de cimento em Portugal. Portanto, com ou sem protecção e a menos que houvesse um grande atraso tecnológico, seria impossível a uma cimenteira estrangeira concorrer no mercado português, excepto em algumas áreas fronteiriças do nordeste.

A maior linha de cimentos em Portugal foi construída em Souselas justamente porque aí existe o maciço calcário mais a norte do nosso país. Mas mesmo assim há entrepostos de moagem na Maia e em diversos pontos do norte do país. O produto sai de Souselas ainda na fase de clinker (que não é perecível) e é moído e ensacado nesses entrepostos, onde é distribuído. No caso da Siderurgia, Champalimaud teve efectivamente vantagens. Todavia, uma unidade com aquela dimensão não seria competitiva em economia aberta. E viu-se o que sucedeu, após a nacionalização, com as tentativas canhestras para a manter. Se Champalimaud tivesse continuado à frente da Siderurgia, talvez o país não perdesse tanto dinheiro com a tentativa frustrada de a manter à tona de água.

Este comportamento instável dos portugueses perante o sucesso empresarial é fruto do nosso atraso ideológico. O conceito do lucro como pecado é uma “aquisição” do cristianismo medieval e perdurou nos países católicos, onde a ética protestante não penetrou, nomeadamente naqueles onde o reaccionarismo clerical sobreviveu mais tempo. É conhecida a proposição de São Jerónimo postulando que «dives aut iniquus aut iniqui haeres» (O opulento é criminoso ou filho de criminoso). Nicolau Santos, no Expresso de há dias, punha-a a circular na “versão de Balzac”.

Santo Agostinho exprimiu o receio de que o comércio afastasse os homens do caminho de Deus e a doutrina de que nullus christianus debet esse mercator (Nenhum cristão deve ser mercador) era geral na Igreja dos começos da Idade Média. No Concílio de Latrão de 1179 foi decretada uma série de proibições severas para a usura. Embora com o desenvolvimento da actividade comercial o Direito Canónica começasse a aceitar alguns “desvios” relativamente à “pureza” primitiva, como o conceito do «justo preço» e o do lucrum cessans (lucro cessante) para justificar o juro dos empréstimos em dinheiro, nunca se libertou da concepção pecaminosa do lucro.

Se as doutrinas protestante e puritana foram ou não conducentes, por si mesmas, ao desenvolvimento do espírito capitalista e, portanto, do próprio capitalismo, é problema que não me proponho aqui resolver. O que é historicamente certo é que com o fim do predomínio do Direito Canónico ocorrem profundas alterações nas relações entre o pensamento teológico e pensamento económico. A harmonia entre os princípios da Igreja e a sociedade feudal que fora a determinante da universalização do âmbito do Direito Canónico, declinou com o fim da sociedade feudal. O pensamento canónico, como concepção social, pretendeu encontrar a unidade onde ela não existia, e manteve-se vigente enquanto o equilíbrio instável se não rompeu por completo. Não obstante as tentativas sucessivamente feitas para introduzir elementos éticos, como esteios da armadura do pensamento económico, este rompeu com eles, ante as solicitações dos novos impulsos sociais que lhe eram antagónicos.

É curioso igualmente verificar que, contrariamente às ideias de Marx sobre os países onde as concepções comunistas se afirmariam mais cedo, foi exactamente nos países da Europa Ocidental mais atrasados que os Partidos Comunistas se revelaram mais fortes e têm sobrevivido mais tempo. Se exceptuarmos a Alemanha imperial e de Weimar (que constitui um caso específico, explicado por outras circunstâncias), é no sul da Europa que os partidos comunistas se têm mantido com maior capacidade de sobrevivência.

Nos países onde a ética protestante mais se entranhou na sociedade, os partidos comunistas e afins são, praticamente, inexistentes. Igualmente nesses países o sucesso empresarial é visto com uma óptica completamente diversa daquela que predomina nos países em que o clericalismo mais perdurou.

No fundo, o horror ao lucro, pecaminoso e demonizado, une o clericalismo tardio (o Direito Canónico medieval) e o comunismo, nomeadamente o comunismo cujos conceitos cristalizaram no leninismo. Esse horror ao lucro e ao sucesso empresarial permanece entranhado na nossa sociedade, mesmo nas elites intelectuais que pululam na comunicação social e que se julgam avançadas e modernistas. É uma mistura paradoxal do reaccionarismo clerical milenar, entranhado no subconsciente social, caldeado por conceitos leninistas ultrapassados e esvaziados de conteúdo.

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abril 21, 2004

Esquerda, herdeira da Direita

A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Quando me refiro quer à esquerda quer à direita, não faço a injustiça de me referir a «toda» a esquerda nem a «toda» a direita. Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias e no acinte e desdém que mostram (ou mostraram) pelas ideias dos outros.

Esta similitude, eventualmente incompreensível, pela aparente distância ideológica entre aqueles campos, tem todavia explicações simples.

Quer a «actual» esquerda, quer a «antiga» direita, são (ou eram) conservadoras e reaccionárias face a um mundo em mutação de que elas não eram agentes da mudança. A direita «antiga» lutava para manter (ou restaurar) um mundo cujo sentido das transformações abominava, cujos mecanismos de mudança lhe eram incompreensíveis e que lhe prefiguravam um novo mundo cuja dominação considerava monstruosa. Foram os anti-dreyfusards, foi a Action Française, foram os Camelots du Roi, foram os diversos partidos de direita alemães que emergiram da primeira guerra mundial e da liquidação da revolução espartaquista, foram os nazis com as suas SA e, posteriormente, com as SS, foram os «fasci di combattimenti» e os «Camise Nere» de Mussolini, e isto só para falar das principais nações ocidentais.

A esquerda «actual» herdou tudo isso. Também ela está órfã de conceitos que ruíram; também ela se agarra desesperadamente a um statu quo obsoleto; também ela luta para manter um mundo cujo sentido das transformações abomina e cujos mecanismos de mudança lhe são totalmente inexplicáveis e também ela se insurge contra a perspectiva de um novo mundo que prefigura como monstruoso.

É esse horror perante uma mudança que diaboliza, que torna a esquerda «actual» profundamente reaccionária, intolerante, argumentando de forma trauliteira, agarrando-se, no seu naufrágio, a todos os despojos que lhe sugiram a possibilidade de reversão, de barreira à mudança, pactuando com formas medievas, violentas e bárbaras de contestação à nossa sociedade e, sempre que a ocasião surge, actuando com toda a violência, vandalizando cidades inteiras em nome da «luta contra a globalização» ou por um «mundo alternativo». E, tal como a direita de há 80 anos, com a benevolência dos meios de comunicação que conseguem entrever alguns «argumentos» naquela violência bárbara e gratuita.

Mas o que há de mais perverso na esquerda «actual» é que ela continua a reclamar-se de Marx. Ora o fundamento do pensamento marxista era a análise dialéctica das condições sociais, da base material da sociedade, das relações de produção emergentes dessa base material e da forma como essa base material influencia a superestrutura. É da essência do marxismo o não ficar asilado no statu quo, o encontrar explicações adequadas para as mudanças e o devir social, ou seja, ser capaz de interpretar o mundo na sua mudança e nunca ficar atemorizado perante essa mudança, rejeitando-a liminarmente.

A esquerda «actual», todavia, na sequência da interpretação soviética do marxismo, reduziu este a chavões e depois a um mero tropo patrocinador que, prudentemente, já não é matéria para nenhum debate, não vá o diabo tecê-las.

Os filósofos (?!) soviéticos deitaram Marx no «leito de Procusta» das exigências político-ideológicas estalinistas e foi esse «Marx» desfigurado e deformado que a esquerda «actual» usa como travesti ideológico.

Neste entendimento, a esquerda «actual» é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda «actual» não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.

Usa os argumentos mais soezes e acusa, paradoxalmente, a direita de trauliteira, quando foi ela que herdou essa postura argumentativa. A esquerda «actual» adoptou, por convenção, por postulado (que só essa esquerda reconhece) que a direita, quando riposta é, por definição, trauliteira, enquanto ela, a esquerda «actual», pode debitar as maiores insolências, ser da máxima truculência, do maior vazio argumentativo, que está permanentemente desculpada: a esquerda «actual» é a detentora da verdade e tudo o que a contraria é trauliteiro.

E o que é paradoxal nesta convicção da esquerda em deter a verdade absoluta é que os seus ícones e os seus mitos foram todos derrubados. Nada escapou à inclemência, à razia do devir histórico. Parafraseando Marx, tudo o que era sólido, se dissolveu no ar.

A História é feita de fluxos e refluxos. A esquerda «actual» espanta-se e impreca o «neo-liberalismo», mas este é a resposta para os indispensáveis reajustamentos estruturais necessários para equilibrar e sanear as economias e as sociedades ocidentais, para alavancar progressos na prosperidade e na riqueza dessas sociedades, que estavam a estagnar. O «neo-liberalismo» não veio para ficar. Nada na História vem para ficar. Tudo é feito de mudança. O «neo-liberalismo» veio como refluxo para inverter correntes que, sem essa inversão, teriam conduzido o mundo ocidental à ruína económica e social.

Mas o «neo-liberalismo», tendo embora os seus méritos na situação actual, quando acabar de desempenhar o seu papel histórico, a sua missão, terá esgotado o seu modelo. E sobre os seus restos erguer-se-á um modelo novo, mais aperfeiçoado, mais adequado á nova realidade. E assim sucessivamente.

Mas tudo isto, para quem cristalizou no marxismo ortorrômbico, é muito difícil de entender.

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abril 07, 2004

Crise da Democracia ou Crise da Velha Europa?

A polémica sobre o recente livro de Saramago, e as suas declarações públicas, levantou a questão do valor e da legitimidade da democracia representativa. Não vou abordar aqui as raízes totalitárias em que normalmente se filiam as dúvidas que se levantam sobre esse valor e essa legitimidade. E não vou abordar porque considero redutor reduzir essas dúvidas a uma perversão totalitária. Essa perversão pode existir em quem questiona essa legitimidade, existe certamente nas consequências que a ilegitimação da democracia representativa normalmente acarreta, mas não existirá na generalidade das pessoas que possam aderir a esse conceito.

Há uma crise no nosso sistema político. As expectativas criadas pelo estabelecimento do modelo social europeu, e os seus desenvolvimentos subsequentes, estão a ser postergadas pela evolução de um conjunto de variáveis – declínio demográfico, emergência dos «Novos Países Industrializados», etc. – e pela incapacidade da classe política de adoptar uma estratégia capaz, coerente e constante, e conseguir explicá-la e obter a adesão das populações. Esta crise não tem directamente a ver com a Direita, o Centro ou a Esquerda. Existe em França, com um governo de direita e existe na Alemanha com um governo de esquerda.

Os governos da maioria dos estados europeus não conseguem gerir satisfatoriamente as respectivas economias, não conseguem reformar, de forma satisfatória e sustentada, o Estado Social, e não conseguem compaginar as necessidades de um e de outro e, perante o desconforto que sentem pela dificuldade das medidas, protelam-nas, titubeiam, tomam meias medidas incoerentes e causam danos a ambos sem resolverem os respectivos problemas.

Rosas assegura que a Europa está em crise, uma crise drasticamente agravada pela lógica essencial da globalização capitalista. Esta afirmação, aplicada à Europa, é um perfeito disparate. Quanto mais uma economia é desenvolvida, mais globalização lhe é benéfica. O mercado aproveita aos mais aptos. Por isso, os países mais avançados na lógica do mercado criaram, para a sua população, mecanismos de transferências sociais e instrumentos reguladores para compensarem as assimetrias introduzidas pelo funcionamento do mercado. Como no mercado internacional esses mecanismos não existem, são incipientes ou pontuais, os países mais pobres podem ver a sua balança de trocas com o exterior degradada e empobrecerem ainda mais. Mas a Europa (como um todo) não.

Outra tese do radicalismo de esquerda é a da existência de uma alegada «tensão autoritária e centralista contraditória com a democracia política e que está, paulatinamente, a esvaziá-la de conteúdo, a transformá-la numa burocracia ritualizada, cada vez mais distante dos cidadãos e com menos poder real, que pretende a destruição de mais de um século de conquistas sociais do mundo do trabalho». Essa «tensão autoritária» seria a tentativa dos governos democraticamente eleitos (de esquerda ou de direita) conseguirem reformular o modelo social de forma a adequá-lo às novas situações.

Porém, nunca como hoje, nas nossas sociedades, os cidadãos tiveram tantas possibilidades de participarem na vida pública. A difusão dos meios de comunicação aumenta incessantemente, as pessoas exprimem as suas opiniões em cada vez mais diversificados meios públicos (por exemplo, na net, fóruns, blogs, etc.). Basta ver como as manifestações em Espanha, na noite da véspera eleitoral foram convocadas pela net e telemóveis. Portanto, nunca, como hoje, o autoritarismo teve tão poucas possibilidades de se exercer. E os resultados das eleições espanholas são disso o exemplo mais recente e flagrante.

O problema do Rosas, Saramago, e de outros radicais de esquerda é que, nas urnas, as pessoas, maioritariamente, não têm escolhas idênticas às suas e que os governos não mudam de opinião ao acaso das manifestações de rua. São essas as «tensões autoritárias».

Portanto, a crise do nosso sistema político não tem a ver com «tensões autoritárias», nem com a globalização, nem com uma alegada conspiração para destruir as «conquistas sociais do mundo do trabalho». Tem a ver com a previsível falência do nosso modelo social (ou de toda a economia) que os políticos, quando na oposição, pretendem afincadamente defender, para angariarem votos, e, quando no governo, tentam desesperadamente reformar para evitar a bancarrota.

E tem a ver, e muito, com a falta de líderes capazes de mobilizarem as pessoas para essas reformas. É fácil, e dá dividendos políticos no imediato, distribuir dinheiro. É difícil, face a uma situação complicada e a previsões que apontam para a bancarrota, dizer as verdades, congeminar medidas eficazes e adequadas, e saber obter a adesão das pessoas .

Francamente não estou a ver, na Europa actual, um líder político, no dia do voto de confiança na sede da representação nacional, declarar «Não tenho nada para vos oferecer senão sangue, trabalho insano, lágrimas e suor» ("I have nothing to offer but blood, toil, tears and sweat."). Infelizmente também não vejo qualquer motivação quer da restante classe política, quer da população em geral em dar esse voto de confiança sem reservas mentais.

Também não estou a ver qualquer saída para a crise política actual. Esperemos que ela não surja apenas em desespero de causa, com custos muito superiores ao de soluções planeadas com tempo e discernimento.

Não há crise da democracia. Há uma crise da Europa que chegou ao fim de um ciclo e não atina com um novo modelo para encetar um novo ciclo. A Europa tornou-se numa «tia» de meia idade, ainda próspera, mas avessa a qualquer risco, e que vai deixando as suas economias serem corroídas pela inacção, por essa aversão ao risco.

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abril 06, 2004

Lucidez e Cegueira

O Ensaio sobre a Lucidez e a campanha que Saramago desencadeou por todo o país, desdobrando-se em entrevistas, palestras, colóquios, vernissages, etc., de apelo ao voto em branco, corresponde às suas convicções políticas e ideológicas mais viscerais e de longa data, e vem na linha do Ensaio sobre a Cegueira e da desilusão de Saramago por uma evolução política e social que ele é incapaz ou se recusa a compreender. Saramago e estes dois escritos são paradigma do desespero de uma esquerda caduca e sem norte, incapaz de se constituir como alternativa política, social e económica minimamente mobilizadora.

Saramago tem saudades do antigo regime onde tudo era simples. De um lado estavam os «bons», os que combatiam o regime; do outro lado estavam os «maus», os que apoiavam o regime ou, pelo menos, que conviviam com ele ou não o punham em causa. E essa classificação era independente de poder haver, entre os «bons», gente de ética duvidosa, e entre os «maus» gente com valor e préstimo.

E tem igualmente saudades do PREC, que se seguiu à queda do regime, onde essa dicotomia era a mesma, exceptuando o facto de que muitos dos combatentes do regime anterior, dos antigos «bons», terem entretanto enfileirado na hoste dos «maus». Os jornalistas que Saramago saneou politicamente enquanto Director do DN também pertenciam aos «maus», segundo a taxinomia da época.

A democracia representativa não é perfeita, mas se existe défice de democracia ele deve ser superado justamente através do combate à renúncia, à capitulação, ao deixar andar, à desistência, ao voto branco ou nulo e à abstenção. Consegue-se através da participação activa nas eleições e, igualmente, na vida pública e quotidiana. Não se combate apelando à desistência.

Mas a hipocrisia desta contestação da democracia representativa por Saramago está no próprio acto do lançamento do livro. Não foram literatos, críticos da literatura, ou vultos proeminentes da intelectualidade que foram os patrocinadores, mas sim figuras emblemáticas da democracia representativa – Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares – juntamente com um intelectual comunista, professor e autor do «Joana Come a Papa», por acaso responsável por alguns dos mais atormentados momentos da minha infância.

Saramago contesta a democracia representativa, mas serve-se dos seus corifeus, da liberdade que ela representa e do funcionamento do mercado de bens culturais de que ela é o suporte, para publicitar a sua obra e angariar clientela.

Perante estes factos é importante que tenhamos na lembrança é que os regimes totalitários, de direita ou de esquerda, que a Europa produziu durante o século XX, foram sempre gerados pelo clima de suspeição ou pela menorização da democracia representativa. E o que é mais perverso é que essa contestação usou a liberdade e a possibilidade de crítica que é a própria essência do regime democrático e que mais que uma vez lhe foi fatal.

Saramago e outros atacam a democracia representativa, apesar da liberdade e da prosperidade que esta lhes proporciona, porque ela é um estorvo para que as suas convicções se tornem na ideologia preponderante no país, independentemente do que pensem os outros. A liberdade para eles é um meio para veicularem as suas concepções, mas é um estorvo, porque não obriga a que essas concepções se tornem a ideologia reinante.

Para Saramago e outros, absolutamente convencidos que o que pensam é o que está certo e que só a cegueira ou a falta de lucidez impede a restante população de partilhar dessas convicções, a democracia representativa é uma permanente fonte de decepções.

Quem acredita na democracia representativa luta pelas suas convicções na esperança de que estas tenham acolhimento ou, se constata que essas convicções não são compagináveis com a consciência possível da sociedade, luta por um projecto que contenha aquilo que, dessas convicções, é passível de ser aceite pela sociedade em que vive. Quem não acredita na democracia representativa não põe em questão a adequabilidade das suas convicções à sociedade em que vive; põe sim em questão o discernimento dos eleitores em não perceberam que são aquelas que estão certas e, como consequência, põe em questão a validade da democracia representativa em exprimir a vontade dos eleitores. A democracia está errada porque permite aos eleitores errarem sistematicamente, e o critério do erro é o dos iluminados descrentes do julgamento do voto popular.

Queria deduzir uma última observação sobre a dualidade de critérios: se as teses do Saramago fossem expostas por um intelectual de direita o que não seria! Certamente ao lançamento do seu livro não iriam Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares e o autor do «Joana Come a Papa». Provavelmente nem o M Monteiro ousaria aparecer. Em vez de apreciações na sua maioria contrárias, mas benevolentes, seria o olvido ou, se este não fosse possível, o apelo à união contra o fascismo, que estava à espreita, já ali, ao virar da esquina.

O fascista Brasillach foi executado pelas suas convicções que o levaram a colaborar com Vichy. O facto de ser um escritor de mérito incontestado não lhe serviu de atenuante perante a justiça de uma França que queria ajustar contas com a sua derrocada. Muitos pedidos de clemência, nomeadamente o de Mauriac, que foi um dos que mais tinha sofrido com a pena acerada de Brasillach, foram em vão. Não me consta que intelectuais comunistas, que colaboraram com regimes totalitários, fossem executados por causa disso, excepto pelos próprios regimes, quando se afastavam alguns milímetros da ortodoxia.

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março 31, 2004

Guterres Aguilhoado

Guterres, o Prometeu em versão tuga, regressou este fim de semana.

Prometeu ensinou os gregos a observar as estrelas, a cantar e a escrever; mostrou como fazer para subjugar os animais mais fortes; demonstrou-lhes como fazer barcos e velas e como poderiam navegar; ensinou-os a enfrentar os problemas quotidianos e a fazer unguentos e remédios para suas feridas. Por último, deu-lhes o dom da profecia, para o entendimento dos sonhos; mostrou-lhes o fundo da Terra e suas riquezas minerais: o cobre, a prata e o ouro e a fazer da vida algo mais confortável. Prometeu significava, literalmente, “aquele que prevê”.

Guterres anestesiou os portugueses; criou-lhes um universo paralelo e virtual onde as coisas aconteciam sem esforço nem contrapartidas; autoestradas que não eram pagas; prestações sociais de fiscalização duvidosa, mas de comparticipações seguras; empregos fáceis e abundantes na administração pública; etc., etc.. Guterres tornou-se, literalmente, “aquele que não faz a mínima ideia do futuro”.

Zeus, Deus inclemente, vingou-se de Prometeu tornando a Terra num vale de lágrimas e de dor, espalhou as doenças, silenciosas e mortíferas. E cevou a sua vingança em Prometeu, acorrentado-o a um penhasco nas montanha caucasianas em face de um abismo horrendo, com correntes inquebráveis. Zeus ainda ordenou que um abutre devorasse todos os dias o fígado do prisioneiro, que sempre se reconstituía à noite.

Guterres não precisou de Zeus. O seu universo paralelo e virtual foi destruído pelas misérias deste mundo: a falta de dinheiro, o défice excessivo, o PEC, dívidas incobráveis, etc.. Quanto à vingança sobre ele próprio, não precisou de ajuda - encarregou-se ele mesmo dela. A partir dos primeiros meses do seu governo, quando começou a verificar que o seu universo virtual não era compaginável com as duras realidades do mercado, escassez de fundos, descalabro financeiro à vista, amarrou-se ele próprio ao Cáucaso da política e criou a lamentosa imagem que lhe estavam a debicar permanentemente o fígado e o resto das vísceras: eram os barões do seu partido, era a oposição de direita, era a oposição de esquerda, era a necessidade de degustar o queijo limiano, era o povo que não o compreendia.

Guterres arrastou-se, durante a maior parte do tempo dos seus governos, como uma vítima incompreendida. Era o nosso Prometeu, o nosso Prometeu de trazer por casa.

Finalmente os Hércules da política, os eleitores, libertaram-no e permitiram-lhe um exílio tranquilo por essa Europa, longe do nosso Cáucaso escarpado.

No fim de semana passado regressou ao nosso Cáucaso, novamente como vítima, novamente a queixar-se de disfunção hepática-política.

Afinal Guterres «tinha condições para ficar no Governo, mas não tinha condições para executar o projecto em que acreditava. Era uma questão indiscutível», disse, e continuou: «Não faria qualquer sentido tentar agarrar-me a um lugar, sabendo que não existiam as condições políticas para realizar o projecto que, em minha opinião, era a única justificação para estar nesse lugar»

Houve pois um lamentável equívoco. Guterres acreditava num projecto e ia executá-lo, mas as autárquicas de finais de 2001 criaram uma «lógica política pantanosa que era preciso interromper, dando o voto e a decisão ao povo». Portanto, a acreditar no seu discurso de sábado passado, nos finais de 2001 é que Guterres iria começar a governar a sério. Entretanto havia estado 6 anos a treinar-se, a congeminar o projecto, a desbaratar as finanças e a anestesiar a população. O projecto deveria ser grandioso, pois tudo indica que a política orçamental de Guterres foi conduzida de forma genial para mostrar como é possível fazer prosperar um país após um completo descalabro financeiro. Não foi desleixo ... apenas subtileza. Um Super-herói só é possível com um Super-vilão. Foi para protagonizar o Super-herói a partir de 2002, que Guterres criou um buraco orçamental desmedido nos primeiros 6 anos de treino obstinado.

Infelizmente a manifesta má vontade dos eleitores nas autárquicas impediu, indirectamente, que esse projecto visse a luz da política e que as ciências políticas e económicas se enriquecessem com uma contribuição notável. E foi um impedimento indirecto porque a partir desse voto, Guterres ficou com o «temor de um parlamento bloqueante às propostas do Governo», apesar do parlamento continuar exactamente com a mesma composição partidária. A única coisa que mudou, foi o «temor» de Guterres.

Guterres, profissão: vítima, agora e sempre.

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março 22, 2004

O Núncio da Al-Qaida

Semiramis está em condições de informar que encontrou e entrevistou Mário Soares, algures na zona montanhosa do Hindu-Kush, num local que por razões de segurança não revelamos. Trata-se de uma zona muito patrulhada pela tropa paquistanesa, pela Legião Estrangeira do general Bentegeat e por agentes da CIA, e desvendar mais pormenores poderia por em risco a preciosa vida do patriarca da nossa democracia.

Encontrámo-lo ao entardecer. O terreno era escalvado e íngreme. Uma vereda despontava a seguir a um alcantilado penhasco. Por essa vereda emergia, lentamente, uma pequena caravana. A elevada figura do Soares destacava-se dos demais. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azuis, cobria-o até aos pés, calçados de sandálias já gastas pelos caminhos acidentados do deserto e atadas com correias; tinha um turbante branco, feito de uma longa faixa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os ombros. Debaixo dele, ajoujado ao seu peso, um camelo com beiços pendentes e resignados, ia-se arrastando, gemendo penosamente pelas escarpas.

Um macho levava as bagagens; atrás, uma figura bojuda, embrulhada num farrapo azul que já fora uma burqa refulgente, tentava desajeitadamente empoleirar-se no dorso de um camelo, praguejando ao ritmo do baloiçar da alimária. Aquela voz era indisfarçável: era ela, a destemida Ana Gomes. Por detrás do rendilhado da burqa vislumbrava-se o negro cintilar do seu olhar de velcro. Como escolta, seguia-os um talibã, velho, catarroso, com o albornoz de lã de camelo listrado de cinzento, e uma AK-47 ferrugenta toda enfeitada de borlas.

Pararam para o obrigatório recolhimento religioso. Após as preces, enquanto o talibã erguia a tenda e Ana Gomes mungia umas cabras, porquanto a caminhada tinha exacerbado o já de si pouco frugal apetite de Soares, este circunvagava o olhar por aquela paisagem agreste e desolada, entrevendo talvez o caminho pelo qual Alexandre se havia internado pelo vale do Indo, mais de 2 milénios antes. Por cima pesava um céu pardacento.

Foi então que estugando o passo por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos das piteiras (evitei cuidadosamente vestuário que recortasse a minha figura e pudesse ser motivo de pensamentos pecaminosos do pessoal masculino, aliás enfraquecido pelos jejuns e orações continuadas), me abeirei do nosso patriarca da democracia. Após uns Salam Alaikum e de me ter identificado como compatriota e dona de um blog pouco respeitável e muito contestado, perguntei-lhe como tinha decorrido a viagem e que tal o diálogo com bin Laden e os outros chefes da Al-Qaida.

O nosso patriarca, com a voz pausada e irradiando uma incontida satisfação foi dizendo:

- As conversações foram um sucesso. Não há como estabelecer o diálogo e a compreensão para as questões se resolverem consensualmente, a contento de todos.

- Estremeço de júbilo por poder dar essa boa nova quase em directo, no meu blog. Quais foram os pontos de consenso?

- O mais imediato e que gerou um consenso mais rápido de ambas as partes foi que a ocupação do Iraque pelos cruzados tinha que terminar imediatamente. Depois, com muita persuasão da nossa parte, a Al-Qaida concordou nas seguintes regras gerais para a sociedade portuguesa:
· proíbe-se o trabalho fora de casa por parte das mulheres
· proíbe-se a presença fora de casa de uma mulher quando não acompanhada por um parente do sexo masculino
· proíbe-se que os homens façam a barba
· proíbe-se que os homens não usem um turbante
· proíbe-se que as mulheres usem no exterior outra coisa que não uma burqa
· proíbe-se a exposição de fotos de animais ou pessoas
· proíbe-se a audição de música
· proíbe-se que se assobie
· proíbe-se que se tirem fotografias ou se façam vídeos
É claro que tivemos de ceder ligeiramente num ponto: os israelitas serão lançados ao Mediterrâneo.

- Lançados, sem mais?

- Não, de forma alguma! Nunca aceitaríamos isso! Todos levarão uma pedra amarrada aos pés. Consegui todavia que o meu querido amigo Shimon Peres, companheiro de tantas lutas, tivesse um tratamento de favor.

- ??

- A pedra dele será da Judeia. As outras serão das pedreiras do Alto Nilo ... nada que faça lembrar a Terra Prometida.

Nesta situação embaraçosa, uma pergunta se impunha:

- A Ana Gomes não fez nenhumas objecções? Além do mais, com aquelas prescrições ela já não poderá ir para o Parlamento Europeu, ir aos debates na SIC Notícias. Aceitou de boamente todas as deliberações?

- Bem ... a minha querida correligionária Ana Gomes não pôde assistir às conversações. Mal chegámos, enfiaram-lhe aquela coisa azul ... a burqa, e esteve sempre recolhida. Só saía para ir ao estábulo mungir as cabras e as burras. Sabe que ganhou enorme destreza nessa arte?

- Muito me alegra sabê-lo e vê-la ocupada em tarefas tão nobres e cuja tradição entronca nos primórdios da nossa civilização, em vez daquelas peixeiradas da SIC Notícias, pouco próprias de uma mulher avisada. E agora?

- Agora vou regressar a Portugal e dar conta aos meus concidadãos e ao meu secretário-geral destas decisões que são o paradigma do triunfo do diálogo e da tolerância, sobre o belicismo americano. Julgo que vou ter uma enorme e entusiástica recepção. O Carvalhas e o Carvalho da Silva já deram o seu assentimento. Espero a toda a hora um telefonema do Louçã. Acho que ele está com alguns problemas ... sabe ... aquela história da Ana Drago que tem o útero tutelado pelo Estado. Misturar a política com a coisa pública, ou vice-versa, é, às vezes, complicado. Mas tenho esperança.

Quanto ao Ferro, não há problemas. Com aquele buraco da Casa Pia em que está metido, não tem ânimo para nada. Se até o Louçã manda nele! Vai ser canja!


Nota: ler também Mário Soares e o Terrorismo

Publicado por Joana às 12:20 AM | Comentários (26) | TrackBack

março 21, 2004

Mário Soares e o Terrorismo

O ex-Presidente da República e eurodeputado socialista Mário Soares defendeu que é importante perceber os objectivos da al-Qaida e apostar no diálogo com a organização Al-Qaida para perceber os seus objectivos e combater o terrorismo, em alternativa ao uso da força. «Quais são os objectivos da al-Qaeda? O que os motiva?», questionou Mário Soares, numa conferência em Lisboa, adiantando que «há uma galáxia que não conhecemos bem e a única maneira é tentar percebê-la», sublinhando que «esmagando-os [os terroristas] não chegamos a lado nenhum»

«Para fazer a paz não vale a pena falar com os que fazem a guerra?», questionou o eurodeputado, ao intervir numa conferência sobre direitos humanos em Lisboa, na Fundação Mário Soares. Quando alguém na plateia perguntou se Mário Soares também teria defendido um diálogo com Hitler, o eurodeputado respondeu que «se fosse necessário, para evitar um ano de guerra, valia a pena».

O ex-presidente de República deu o exemplo do dirigente da Esquerda Republicana da Catalunha Josep-Lluis Carod-Rovira, que teve um encontro com elementos da ETA, numa iniciativa «a que o povo espanhol respondeu com bom senso e sabedoria», fazendo aumentar o número de deputados daquele partido de um para oito nas eleições de 14 de Março. Na minha opinião esta afirmação é o que há de mais perverso nas alegações de Soares. E é perversa porque dá uma visão perversa da democracia, quando se perdem os valores e se trocam votos por um prato de lentilhas.

Daladier quando regressava a Paris depois da assinatura dos acordos de Munique e se apercebeu da multidão que o esperava temeu o pior, julgando que iria ser linchado. Afinal a multidão vitoriava-o em delírio. O comentário de Daladier para os seus acompanhantes foi lapidar: “Estão loucos”. Daladier passou à História como um capitulacionista. Mário Soares passaria à História, tudo o indicava, como o político que nos momentos decisivos, a seguir ao derrube da ditadura, soube liderar as forças democráticas no combate às forças que tentavam instaurar um novo totalitarismo. Mas a continuar na via que encetou de há dois anos para cá a sua imagem ficará, certamente, muito degradada.

Daladier negociou com o terror nazi, mas compreendeu que apenas ganharia alguns meses de paz. Ganhou um ano, o mesmo ano pelo qual Mário Soares achou que valeria a pena dialogar com Hitler. Esqueceu-se é que não foi menos um ano de guerra, mas sim que a guerra começou um ano depois e foi certamente mais duradoura e cruenta do que se as potências ocidentais tivessem mais cedo posto cobro aos projectos de Hitler.

Himmler, num discurso para oficiais da SS em Kharkov, em 19/4/43, afirmou: «A melhor arma política é a arma do terror. A crueldade gera respeito. Podem odiar-nos, se quiserem. Não queremos que nos amem. Queremos que nos temam.».

O terror nazi era diferente do terror do fundamentalismo islâmico. Tinha mais meios e chegou a ocupar a maior parte do continente europeu. Mas em contrapartida tinha uma lógica mais inteligível e tinha rosto. Por isso o terror islâmico consegue, com muito menos vítimas (até agora), a criação de um clima de pânico proporcionalmente muito superior aos meios e efectivos de que dispõe.

Com o terror não se dialoga. Só se dialoga quando há trocas possíveis, quando há campo para fazer cedências; quando os objectivos da parte contrária não são ilimitados. Senão, não há diálogo, mas apenas capitulação. Os políticos da Europa democrática da década de trinta julgaram que estavam a dialogar e só perceberam, tarde demais, que estavam a capitular através de cedências sucessivas: o objectivo de Hitler era ilimitado.

António Barreto citando a frase de Mário Soares: «"É preciso negociar com os terroristas"!», escreveu; « Ele [Mário Soares] não disse "opositores", "adversários", "colonizados", "oprimidos" ou "resistentes". Disse "terroristas". Nunca alguém o dissera antes dele. E creio que ninguém o dirá depois.”»

Esperemos que ninguém o diga depois, pois será bom sinal.

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fevereiro 17, 2004

O Estado dos Direitos

Se há matéria onde os meios de comunicação e a opinião publica(da) estão unanimemente de acordo é sobre a descriminalização do aborto. Há uma completa e absoluta unanimidade. Quem se atreve a emitir uma opinião contrária àquela é um troglodita fundamentalista, fanático, contumaz e medieval.

Infelizmente essa opinião unânime não coincidiu com a opinião da população expressa em referendo. Mas, pela leitura que tem sido feita e repetida por vários líderes políticos, os resultados do referendo indicam, sem ambiguidades, que uma parte significativa da população portuguesa é troglodita e a maioria, a que se absteve, está à beira do trogloditismo. Ah! Mas havemos de fazer os referendos que forem necessários até os trogloditas abandonarem as cavernas mentais, onde a ignorância os mantém, e se lhes revele a luz da verdade.

Para essa opinião poderosa e imperiosa, a lei é a sua verdade.

Por exemplo: quando populares se juntam perto do local onde Carlos Cruz está preso, ou fazem almoços de solidariedade, logo vozes se elevam para protestar contra as pressões inaceitáveis que se estão a fazer sobre a justiça. E logo a comunicação social se enche de gente afadigada a censurar tamanho desconchavo e desrespeito pelo funcionamento da justiça.

Todavia, dezenas de pessoas lideradas por individualidades com responsabilidades políticas como Odete Santos, Ilda Figueiredo (ambas do PCP) e Miguel Portas (Bloco de Esquerda) manifestaram-se no exterior do Tribunal, enquanto decorria a audiência do Tribunal de Aveiro que julgava arguidos do processo de aborto clandestino, sem quaisquer escrúpulos sobre se estariam ou não a pressionar a justiça, nomeadamente tratando-se de representantes da nação, gente que deveria ter especiais cuidados no respeito pelos fundamentos do Estado de Direito.

Uma acção que, segundo o próprio juiz, não perturbou a audiência nem pressionou o tribunal, decorrendo, ao que afirmou, com o devido respeito. Tratou-se, disse, de "um saudável sinal de vitalidade da sociedade, que vale como impulsionador de tomada de posição do poder político sobre a matéria".

Portanto, em Portugal, há dois tipos de opinadores:

Aqueles cujas opiniões são as verdadeiras, mesmo que sejam minoritárias e, para os quais, as leis do Estado de Direito não são aplicáveis, se da sua aplicação resultar contrariedades para que as suas opiniões tenham o relevo que merecem e vinguem como é imprescindível. É uma regra evidente porquanto as opiniões contrárias às suas são próprias de trogloditas e indignas de uma sociedade civilizada.

Os trogloditas que, mesmo que sejam maioritários nas urnas, não passam, segundo os detentores daquela verdade, de meia dúzia de fanáticos fundamentalistas que têm que se cingir às estritas normas do Estado de Direito e, por acréscimo, aceitarem que, os que os tomam por trogloditas, não cumpram essas normas. É o castigo por terem opiniões fanáticas, fundamentalistas e medievais.

E, castigo maior, hão de fazer os referendos que forem necessários até acertarem com o raio do «sim»! E enquanto eles não acertarem com esse advérbio monossilábico, qualquer referendo não passará de um treino para o referendo final, aquele que irá valer definitivamente, o referendo do «sim».

Publicado por Joana às 11:46 PM | Comentários (23) | TrackBack

fevereiro 04, 2004

Hoje não vou falar do Rosas

Não ... decididamente, não. Hoje recuso-me a escrever sobre o Rosas.

É certo que o Rosas se produziu hoje, com a roseiral pesporrência, perante O Público.

É igualmente certo que o Rosas mostrou, nessa sua produção, que continua a viver na dependência de imagens obsessivas que lhe povoam o cérebro e onde os jovens de direita têm sempre, e todos, o aspecto engomadinho e pomposo de vendedores de Alfa-Romeos e de estagiários pretensiosos de escritórios de advogados chiques.

É ainda certo que a iconolatria do Rosas se centra nas matrioshkas, onde se abrindo o vendedor de Alfa-Romeos se encontra um estagiário pretensioso, onde se abrindo o estagiário pretensioso se encontra um convencionalista postiço, onde se abrindo o convencionalista postiço se encontra um caceteiro instintivo e onde se abrindo o caceteiro instintivo se encontra ... nada ... absolutamente nada, rigorosamente nada, apenas o vazio ideológico.

Para quê falar de um sujeito que reduziu a ciência política a ícones? O Jardim da Madeira é, segundo Rosas, um Gauleiter. Saberá Rosas o que era um Gauleiter? Jardim é, sem dúvidas, um Leiter. Mas será a Madeira um Gau? E o iconólatra Rosas já experimentou abrir um Gauleiter? E está seguro que ao fim de 4 ou 5 aberturas sucessivas não encontrará um vendedor de Volkswagens?

Rosas (de quem hoje não vou falar, garanto-vos) está irritado por a direita, ao que parece, ter posto a correr « a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e início dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa».

Rosas está cheio de razão. É que aquele facto não foi uma lenda, foi uma realidade.

Há duas maneiras de expressarmos a nossa discordância relativamente a situações com que não concordamos:

1 – Argumentar que se trata de uma lenda «posta a correr» pela direita trauliteira: é um argumento fortíssimo e seguro, posto que haverá gente que não precisa de mais argumentação para ficar exaltada e convicta; também não seria difícil, porque ela já estava antecipadamente exaltada e convicta. Esta é a forma de discordar daqueles que discordam, mas não sabem porquê. Isto é, sabem: não concordam porque não gostam daqueles que concordam.

2 – Analisar objectivamente a questão. E se a analisarmos, verificamos que, embora a economia crescesse, no período marcelista, a um ritmo muito elevado, tratava-se de um modelo de crescimento que não era possível sustentar a longo prazo, visto basear-se em salários muito baixos e na existência de mercados fechados ao exterior e pouco exigentes em matéria de qualidade (os mercados coloniais) que também não eram sustentáveis a longo prazo. É evidente que se não houvesse o 25 de Abril, aquele modelo poderia continuar a funcionar durante mais algum tempo, nomeadamente se as intenções marcelistas de acordo com a Guiné-Bissau vingassem. Poderia ter havido uma transição mais pacífica, «à espanhola», e uma descolonização mais satisfatória, quer para os nossos interesses, quer para os interesses dos povos em causa. Mas o modelo existente seria sempre insustentável a longo prazo.

Portanto, não vale a pena iludir a questão, considerando lenda algo que afinal era uma realidade. O que se deve fazer é analisar a questão e ver para além da superfície das coisas, o que está por debaixo, camada a camada.

Mas quanto a ver para além da camada superficial, o iconólatra Rosas (de quem hoje não vou falar, garanto-vos) apenas conhece a matrioshka pintada de vendedor de Alfa-Romeos, que lhe ensinaram a abrir.

Num ponto tem que se dar razão ao Rosas. Ele não tem nada a ver com a direita caceteira. Esta, segundo Rosas, « não esqueceu nada, nem aprendeu nada.». Rosas esqueceu tudo e não aprendeu nada.

Como vêem, hoje não falei do Rosas.

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janeiro 22, 2004

Rosas atravessa o Lethes a meio de um artigo

Uma interessante faceta de alguns intelectuais da nossa praça é a de serem capazes de fazerem, sobre um dado tema, uma afirmação e a sua negação de forma peremptória, conclusiva e sem margens para dúvidas, quer quando afirmam, quer quando negam.

Esse fenómeno quase-hegeliano pode suceder quer em escritos espaçados no tempo – quem se afadiga a escrever nem sempre se lembra do que havia escrito dias ou meses antes – quer num único e contraditório escrito.

Rosas postulava ontem no Público mais uma definitiva tese sobre o envolvimento americano no Iraque. Nesse artigo seminal, para demonstrar como a posição americana estava irremediavelmente comprometida, Rosas afirmava que « as forças ocupantes anglo-americanas já não podem sair do Iraque como quereriam. Ou o abandonam expeditamente e a curto prazo, não garantindo o controlo político, militar e das matérias-primas da região, ainda por cima com o risco de deixar no governo uma reedição xiita dos "ayatollahs" iranianos que lhes fará ter saudades do cooperante Saddam de outros tempos e isso será o reconhecimento público de uma grave derrota da estratégia da "guerra infinita". Ou prolongam e intensificam a sua presença militar para ver se agarram alguma coisa, e arriscam-se a sair de Bagdad como um dia saíram dos terraços da embaixada de Saigão: pendurados nos helicópteros

Portanto, Rosas é claro: quer os americanos, quer os iraquianos estão «entalados». Os primeiros porque qualquer solução é uma derrota, os segundos porque, se os ocupantes coloniais e imperialistas retirarem, vão ficar à mercê dos "ayatollahs" iranianos, dos independentistas curdos no norte, da resistência armada dos apoiantes do Baas e do terrorismo islamista.

Um caos horrível, pavoroso, pior que o pior dos noticiários da TVI. Eu já me dispunha a fazer um zapping misericordioso para outro artigo, quando me lembrei que o Rosas é um intelectual cheio de recursos e deixei-me ler o resto. E o resto era uma mensagem de felicidade.

E era uma mensagem de felicidade, porque Rosas pretendia fazer um apelo à comparência na «segunda grande manifestação internacional contra a guerra que vai ter lugar no próximo dia 20 de Março». Agora, escreve ele, «é urgente que a possamos repetir para esconjurar a injustiça e a desumanidade resultantes de a não termos conseguido impedir

Mas como é possível convencer o pessoal a ir a uma manifestação para apelar à instalação do caos no Iraque, segundo os sábios e iniciais parágrafos do preclaro ensaísta e historiador?

Simples (e cito): «a despeito do caos, da destruição e da violação de direitos que a invasão do Iraque originou, só há uma solução possível para o problema: a retirada incondicional das tropas ocupantes; a instituição no terreno de uma entidade internacional reconhecida por todas as partes que viabilize a autodeterminação democrática e a independência nacional do povo iraquiano»

A varinha mágica de Rosas viabiliza, no seu último parágrafo, aquilo que tinha inviabilizado nos primeiros.

É que, ao entrar nesse último e salvador parágrafo, Rosas atravessou o Rio Lethes, o rio do eterno esquecimento. Com a sua memória «limpa» Rosas escreve « Continuo a surpreender-me com os "realistas", que dizem que uma solução deste tipo precipitará o país no caos».

Rosas post-Lethes surpreende-se com o Rosas anterior à travessia desse rio fatal.

É normal: os génios não param de se surpreenderem a si próprios!

Publicado por Joana às 09:37 PM | Comentários (19) | TrackBack

janeiro 05, 2004

O Charme Discreto do Poder, ou os avatares do BE

A esquerda radical tem como ideário de base a teoria de que todas as formas de governo são opressivas e indesejáveis e devem ser abolidas; a resistência activa contra o Estado e a rejeição de todas as formas coercivas de controlo e da autoridade. Para ela, o despotismo não reside somente na forma do Estado, mas no próprio princípio do Estado e do poder político. "A novidade da política vindoura é que ela não será mais uma luta para a conquista ou o poder do Estado, mas uma luta entre o Estado e o não-Estado (humanidade)...". É questionando os fundamentos do sistema e abrindo horizontes alternativos que é possível criar a relação de forças que dá consistência à batalha anticapitalista.

Estas teorias são sólidas, para quem acredita nelas. Todavia, como asseverou Marx, é o ser social que determina a consciência social, primeiro, e, depois, a expressão ideológica dessa consciência. A partir daí as antigas teorias, mesmo as mais sólidas, podem ser derrogadas, por transformação do ser social, mesmo que continuem a serem exibidas, tais trajes de cerimónia, apenas usadas em recepções mundanas e oficiais. Basta observar a curiosa trajectória que Louçã e os líderes bloquistas têm descrito, desde que Ferro Rodrigues assumiu a liderança do PS e, mais nitidamente, desde que este começou a ficar fragilizado com o desenvolvimento do processo Casa Pia.

Sendo o PS um partido da área do poder, cujos dirigentes têm, ao sabor da alternância democrática, gerido o Estado, estando por isso implicados em “formas de governo que são opressivas e indesejáveis e que devem ser abolidas”, comprometidos com “formas coercivas de controlo e da autoridade”, que devem ser rejeitadas e enredados no “próprio princípio do Estado e do poder político” onde reside o despotismo, os seus políticos são, por este postulado teórico incontestável, opressores indesejáveis, déspotas, gestores da exploração dos trabalhadores, logo potencialmente ladrões e corruptos. Sendo assim, os políticos (PS e restantes da área do poder) estarão permanentemente sujeitos, de acordo com este sólido postulado, ao “prejuízo da dúvida” – isto é, são culpados até provas irrefutáveis em contrário, e obviamente, a menos que provem o contrário, objecto permanente de enxovalho público.

Durante anos toda a esquerda radical, antes e depois do nascimento do BE, se indignou face à inacção da justiça perante a malversação da coisa pública, a corrupção dos políticos e os roubos e fraudes dos detentores do poder económico.

Mas isso foi antes do BE ter entrevisto a miragem de se tornar um partido da área do poder. Agora é a justiça, que alegadamente persegue os políticos opressores indesejáveis, déspotas e gestores da exploração dos trabalhadores, que está na mira do BE. O Bloco de Esquerda não está satisfeito com os comunicados produzidos pela Procuradoria-Geral da República e quer levar o assunto à Assembleia da República. Luís Fazenda afirmou que Souto Moura "deve mais explicações ao país" sobre a razão que explica a permanência de cartas anónimas irrelevantes no processo da Casa Pia. "Após as notícias vindas a público, esperava-se uma declaração clarificadora e não foi isso que aconteceu", resumiu o deputado.
De acordo com Luís Fazenda, a situação é "grave" e "tem que haver algum grau de responsabilização na estrutura da Procuradoria". O Bloco de Esquerda critica o facto de "sem qualquer finalidade visível ou utilidade para o processo, diferentes personalidades são salpicadas de lama". Por isso mesmo acrescenta que é "na Assembleia da República que este debate vai ocorrer".

Portanto, na sua actual metamorfose, o BE recusa liminarmente qualquer lama lançada sobre os políticos (entenda-se, os políticos amigos que o BE julga que o vão levar ao colo até ao ambicionado poder). Enquanto a justiça não perseguiu os poderosos, o BE repreendeu-a por não ser capaz de pôr a grilheta no pé aos políticos obviamente culpados. Quando a justiça começou a agir e se prefigurou o risco da grilheta no tornozelo de políticos, o BE tornou-se tão descrente da justiça, como anteriormente o era dos políticos. Se críticas faz, são críticas à justiça: “entendemos que há gente de mais a comentar, juízes a comentarem decisões de outros juízes” discreteava Louçã, quando há meses era questionado sobre os “erros de Ferro Rodrigues na gestão deste processo da Casa Pia”, adiantando que compreendia bem a “emotividade” do Ferro amigo, face à prisão e ao regresso de Paulo Pedroso à AR…

Uma das críticas da Esquerda Radical ao marxismo é a de que as lutas sociais já não estão dominadas pela luta entre o proletariado e o capitalismo. Há uma série de novos espaços de dominação e novas áreas de antagonismo - racismo, discriminação sexual, minorias étnicas e sexuais, etc. - que não cabem na categoria marxista de luta de classes e que geram novos movimentos sociais e identidades. Isto é, as classes em luta já não são caracterizadas pela posição que ocupam face aos meios de produção e pelas relações de produção daí decorrentes.

Todavia, o que é curioso neste processo de aproximação do BE ao “poder” é que ele está a decorrer em simultaneidade com a mudança de discurso. Ou seja, a transfiguração do BE comprova a tese marxista que é o ser social que determina a consciência social (tese da qual deriva toda a teoria da luta de classes entre proletariado e burguesia no capitalismo). Logo, o BE está a agir, “determinado” pela concepção marxista do devir histórico, cuja validade contesta. O BE mudou o discurso porque entreviu a possibilidade de ser um partido da área do poder, em vez de ser, como até há pouco tempo, um partido anti-poder.

Recordo, para terminar, uma das mais belas frases de Marx (e/ou Engels) do Manifesto, quando se referia à desregulamentação de todo o edifício feudal durante a génese do capitalismo: “Tudo o que é sólido se dissolve no ar”. O que hoje parece “sólido” – o PS estar politicamente refém do BE – dissolver-se-á no ar quando o PS sair desta crise de identidade em que se debate, agravada pelas posições insensatas do seu actual líder e as tontices da Ana Gomes, e a inexorável lógica de poder, de um partido da área do governo, vier ao de cima e se impuser entre as suas chefias.

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dezembro 30, 2003

O Indulto Presidencial

O PR tem toda a legitimidade para dar indultos nos termos em que o fez, sob proposta do Ministério da Justiça e depois de passar pela tramitação usual: pareceres do Tribunal de Execução de Penas, director do estabelecimento prisional, Instituto de Reinserção Social, etc..

Os indultos presidenciais são dados a quem está a cumprir penas por prática de um qualquer crime. Logo, um indulto presidencial não deveria ser considerado um “sinal” à sociedade e à classe política, porquanto se se fosse por essa interpretação, o PR estaria todos os anos a dar sinais pressionando a despenalização de homicídios, assaltos, latrocínios, fraudes, violações, etc., etc..

Portanto, o PR teve toda a legitimidade para conceder o indulto à enfermeira Maria do Céu e o país terá toda a legitimidade para concordar ou não com ele, mas apenas isso.

No caso em apreço, no julgamento do Tribunal da Maia sentaram-se no banco dos réus 17 mulheres, uma enfermeira e 25 alegados angariadores, todos respondendo pela prática de aborto.

Das 17 mulheres acusadas de terem praticado interrupção voluntária da gravidez, apenas uma foi condenada à pena simbólica de 120 dias de prisão remível por uma multa de 120 euros (um euro por cada dia). Todas as outras foram absolvidas. O próprio Ministério Público assumiu uma atitude deveras invulgar, pedindo, em simultâneo, a condenação e a absolvição das 17 mulheres. Ou seja, não insistiu no pedido de condenação, que pode ir até 3 anos.

A enfermeira Maria do Céu - que garantiu peremptoriamente, durante o julgamento, ser contra o aborto – foi condenada por tráfico de estupefacientes e falsificação de documentos, e por ter feito desde a década de oitenta mais de uma centena de abortos na "clínica" ilegal. Os magistrados classificaram como crime de tráfico de estupefacientes agravado o facto da enfermeira ter trazido do Hospital de S. João, onde trabalhava, centenas de ampolas de substâncias analgésicas para utilizar nas interrupções de gravidez.

Os réus, que faziam parte da rede de influências de Maria do Céu, e que lhe angariavam clientes - vários ajudantes de farmácia, enfermeiros, um médico, um assistente social e um taxista - foram condenados a penas que variaram entre três e cinco meses de prisão, remíveis em multas entre 448 e mil euros.

Dizer, como Miguel Portas, do BE, e Honório Novo, deputado do PCP, que se deve interpretar o indulto de Sampaio como um "significado político evidente", um sinal que o PR enviou ao país, é um desconchavo completo. Quem foi indultada não foi uma mulher que praticou a interrupção voluntária da gravidez, foi uma enfermeira, que se diz contra o aborto, mas que montou um negócio próspero de prática de aborto, socorrendo-se de angariadores em posições estratégicas e utilizando o dinheiro dos contribuintes: roubando produtos farmacêuticos de um hospital público e falsificando documentos. Tornar o indulto desta mulher um “sinal” para a sociedade é a mais completa perversão.

Ou seja, discutir a penalização ou a despenalização do aborto agitando como símbolo a enfermeira Maria do Céu é profundamente errado e está-se a dar ao país um sinal muito negativo. E muito mais negativo seria se o PR com o indulto quisesse dar esse “sinal”. Recuso-me a acreditar em tamanha insensatez por parte do PR.

Outro tema agitado pelo BE, PCP e alguns sectores do PS é a de que a maioria de direita é a responsável pela manutenção do actual quadro legal.

Quando foi referendada a questão da interrupção voluntária da gravidez, em 1998, a lei que se propunha referendar já tinha obtido a maioria de votos na generalidade na Assembleia da República. Foi o PS que, em face de internamente a questão não ser pacífica (como o continua a não ser, haja em vista o comunicado de hoje dos jovens socialistas católicos), levou a assunto a referendo.

Pode colocar-se a questão do porquê da realização de um referendo naquela altura, em que havia, na AR, uma ampla maioria para aprovar a lei. Pode acusar-se o PS de cobardia por não ter legislado, apoiado nessa maioria. Mas, depois de se ter realizado o referendo, já não havia condições políticas para a aprovar na AR, embora o referendo não fosse vinculativo, dado o elevado número de abstenções. A própria JS na altura o reconheceu e retirou a proposta de lei, contra a vontade do PC e BE que exigiam que essa lei fosse aprovada na AR, apesar dos resultados do referendo.

Portanto, a questão da interrupção voluntária da gravidez, se exceptuarmos a extrema esquerda e a extrema direita, onde é uma bandeira política, é uma questão do foro pessoal, sobre a qual há posições divergentes que atravessam transversalmente os partidos. Fazer disto uma questão política, uma luta esquerda-direita é falso e politicamente errado. A esquerda que bate esta tecla “perdeu” o referendo justamente por não ter sabido interpretar correctamente o que estava em jogo.

As declarações que tenho lido e ouvido, de políticos e de “representantes na net” dessa esquerda, nomeadamente no que toca ao caso deste indulto, mostram que afinal não aprenderam rigorosamente nada com a campanha e resultados do referendo.

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dezembro 10, 2003

São Rosas, meu senhor, são Rosas

A facção da esquerda que se diz e julga libertária e o fórum por excelência da participação dos cidadãos é, intrinsecamente, intolerante e persecutória. Não tem qualquer respeito pelas opiniões dos outros, mesmo quando elas constituem a opinião maioritária entre a população, como é geralmente o caso.

Há dias, no Parlamento, um deputado do BE fez um requisitório indignado, arrogante e autoritário relativamente a uns debates que tiveram lugar na Universidade Católica sobre a teologia do corpo. Eram ideias que eu, na generalidade, não compartilho, mas que são ideias expressas por pessoas que, erradas ou certas, o fizeram na legalidade e têm legitimidade para tal. Essas ideias foram por esse deputado do BE violentamente atacadas e caluniadas de fundamentalismo e direitismo. E com a gravidade desse discurso intimidatório ocorrer na Assembleia da República que deveria ser a salvaguarda da liberdade e da tolerância. Gravidade, porque ao serem proferidas na sede dos nossos direitos e liberdades constituíram como que uma denúncia de um alegado golpe em marcha contra a democracia.

Hoje, no Público, Fernando Rosas escrevendo sobre o julgamento de Aveiro, diz que “o Governo e a maioria reféns do fundamentalismo irresponsável do Partido Popular, com a extrema-direita a estabelecer os cânones da moral pública e privada, esse país antigo e a sua essência fanática e neo-inquisitorial reemergem, estalando o verniz frágil de um cosmopolitismo postiço e demasiado recente” e continua no seu requisitório “A direita fundamentalista, além de fanática, é irresponsável, como demonstrou a recente reunião dos movimentos antiescolha sobre a "teologia do corpo", verberando que “queiram impor as suas normas de conduta a todos os outros e fazer disso, através da chantagem da extrema-direita no Governo e no Parlamento, lei geral do país”.

Será que Fernando Rosas desconhece que houve um referendo sobre esta matéria e que houve mais votantes contra do que a favor, embora o facto de ter votado menos de metade do eleitorado levasse a que cada político pudesse interpretar esses resultados segundo a sua conveniência?

Será que a maioria dos votantes está refém “do fundamentalismo irresponsável do Partido Popular, com a extrema-direita a estabelecer os cânones da moral pública e privada”?

Será que a maioria dos votantes representa o “país antigo e a sua essência fanática e neo-inquisitorial reemergem, estalando o verniz frágil de um cosmopolitismo postiço e demasiado recente”?

Mas, no meio da sua diatribe, no crânio do Rosas tremeluziu um lampejo de democracia e tolerância, e Rosas escreveu “Pessoalmente, acho tudo isso, quando levado a sério, do domínio das trevas, mas obviamente reconheço que cada um tem o direito de pensar como entende. O que não tem é o direito de, num gesto totalitário e antidemocrático inaceitável, impor as suas crenças privadas, as suas concepções ideológicas particulares acerca da "vida", da sexualidade, da moral, da religião, etc... como lei imperativa do comportamento de todos os demais”.

Mas, Rosas, o referendo não serviu para a população exprimir o que pensava? E você assegura-nos que o que ela pensava foi um “gesto totalitário e antidemocrático inaceitável, impor as suas crenças privadas ... como lei imperativa do comportamento de todos os demais”?

Ó Rosas, mas não é isso que sucede em qualquer consulta popular?

Por essa lógica, quando o Guterres ganhou as eleições, a direita deveria ter ido para a tribuna declamar que tal vitória era um “gesto totalitário e antidemocrático inaceitável, impor as suas concepções ideológicas... como lei imperativa do comportamento de todos os demais”. E o mesmo deveria ter dito o PS quando a direita ganhou as últimas eleições.

Pela lógica do “democrata participativo” Rosas, as eleições não servem para nada, são apenas “gestos totalitários e antidemocráticos inaceitáveis”. O “democrata participativo” Rosas e os seus amigos são os depositários da verdade e quem não comunga dessa verdade são fundamentalistas, neo-inquisitoriais, totalitaristas, da extrema-direita, etc., etc..

Durante a campanha sobre o aborto, torcia-me toda perante a campanha que parte significativa da esquerda fazia. Apareciam na TV umas meninas com ar de filhas família, falando do direito ao seu corpo, de que tinham abortado, patenteando a convicção e a empáfia de quem tinha praticado um acto cívico. Eu olhava para aquele despautério e pensava: quem te vir e ouvir pensará que apenas quiseste alijar uma responsabilidade e, para evitar chatices e preocupações, deitaste o miúdo na pia.

O aborto não é um acto cívico, não é a expressão da mulher do direito ao seu corpo visto o filho ser feito a dois e o pai não poder ser considerado um mero banco de esperma. A descriminalização do aborto destina-se apenas a evitar a chaga social do aborto clandestino. Embora eu não seja favorável ao adágio “já que não os consegues vencer, junta-te a eles”, reconheço que há razões que militam a favor dessa descriminalização. Mas abortar é matar um ser humano. Qualquer um de nós poderia ter sido morto se os nossos pais tivessem tomado tal decisão. Por exemplo, o Rosas poderia ter sido vítima desse acto cívico. Portanto a campanha pelo aborto deveria ter tomado aqueles conceitos em consideração. E alguma esquerda, a menos visível infelizmente, seguiu essa via.

O Rosas e os amigos apenas se têm que queixar do seu próprio fundamentalismo e totalitarismo. Das suas convicções de que são os depositários da verdade absoluta e de quem não comunga essa verdade é fundamentalista, neo-inquisitorial, totalitarista e da extrema-direita. Das suas certezas de que a democracia representativa não presta e de que o que vale é a democracia participativa, constituída por eles próprios, cujas organizações têm chefias que se perpetuam ad eternum, sem nunca se submeterem ao escrutínio público e que são as únicas a saberem interpretar fielmente a vontade popular, mesmo que essa “vontade” não corresponda à vontade expressa nas urnas.

Foi esta sobranceria ideológica que esteve na base da inesperada derrota do referendo sobre o aborto. A Igreja aprendeu e, na campanha do referendo, abandonou as frases bacocas e retrógradas como “não matem o Zézinho”. A esquerda sobranceira, arrogante e auto-convencida do Rosas e afins não aprendeu nada. Não aprendeu, não aprende e nunca aprenderá. Refugia-se apenas no insulto intimidatório a quem não pensa da mesma maneira

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novembro 10, 2003

Louçã, o Arqui-secretário-geral do PS

A deriva esquerdista do PS, cujo percurso historiei e descrevi nos textos “O PS refém da Casa Pia” (insertos aqui em 21-10-03), mais especificamente no “Acto 4”, foi confirmada em absoluto pela entrevista de Francisco Louçã publicada hoje no Pùblico.

Francisco Louçã fez um longo percurso em pouco tempo. Já não fala como um líder de um pequeno partido da esquerda radical. Louçã fala como o Arqui-secretário-geral do PS, função que objectivamente ocupa, hoje em dia.

E como líder de um grande partido da área do poder, já não alinha no enxovalho dos políticos a pretexto de questões judiciais. De forma alguma! Louçã é de uma enorme discrição no que se refere à justiça, e se críticas faz, são críticas veladas à justiça: “entendemos que há gente de mais a comentar, juízes a comentarem decisões de outros juízes” quando a pergunta se referia a “erros de Ferro Rodrigues na gestão deste processo da Casa Pia”, pois que quanto ao PS, Louçã compreende bem a “emotividade” do Ferro amigo…

Quanto a Paulo Pedroso ter voltado ao Parlamento, … “ele tinha esse direito, tendo esse direito, exercia-o ou não em função da sua escolha política”. É óbvio que não estamos a escutar um líder da esquerda radical, mas sim o Arqui-secretário-geral do PS, um partido da área do poder!

E como Arqui-secretário-geral do PS, a sua política é clara: “a esquerda tem sido muitas vezes portadora de uma herança difícil no PS que é a herança guterrista. Dessa herança, temos que nos ver livres radicalmente”. E para se ver livre do guterrismo, para obter esse desiderato, para o BE e para o Arqui-secretário-geral do PS Louçã, “Ferro Rodrigues … será o líder ideal do PS”.

Se Louçã ainda fosse apenas líder do BE acharia bem, e provavelmente insuficientes, quaisquer inquéritos às gestões de ministros e de ex-ministros. Mas Ferro? Nunca! Ferro tem que ser poupado! É pela delegação de Ferro, que Louçã gere o PS. Ferro é o elo fundamental da função de Arqui-secretário-geral do PS. Logo os inquéritos são apenas a “mão do ministro Bagão Félix” a perseguir o Ferro.

A deriva esquerdista do PS e as fragilidades políticas dos protagonistas dessa deriva, nomeadamente Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso, tornaram o PS refém do BE. Já não bastavam os erros políticos da direcção do PS na gestão do processo da Casa Pia. Estes erros tornaram o PS refém do processo da Casa Pia. A deriva esquerdista, causa ideológica do emaranhamento do PS no processo da Casa Pia, como referi nos meus textos citados acima, sobrepõe-se ao efeito que produziu e torna, por acréscimo, o PS refém do BE.

Presentemente, o PS não existe como oposição e, como partido político, perdeu a autonomia. O enfraquecimento do PS a que estamos actualmente a assistir é a situação mais dramática do actual quadro político português. Se o PS não recuperar rapidamente, e não reocupar o lugar que lhe cabe no espectro político, é a estabilidade social e política e o funcionamento da democracia portuguesa que poderão estar em causa num futuro próximo.

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outubro 23, 2003

Princípios da Esquerda e Eficácia da Direita - 1

Virtudes e vícios do espectro político

Face a alguns comentários que li relativos aos textos sobre o PS e a Casa Pia, quero referir que nunca afirmei que a direita fosse mais ou menos virtuosa que a esquerda. O que referi foi a hipocrisia de uma certa esquerda (sublinho, uma certa esquerda) em postular como sendo ela a depositária das virtudes cívicas e da democracia em contraponto com a depravação e venalidade da direita.

Vícios e virtudes, espírito democrático e espírito totalitário há-os em todos os quadrantes políticos, embora em ambos os extremos do espectro político haja uma perversa tendência para considerar que os fins justificam os meus e que a verdade é a “nossa verdade”.

Nos textos anteriores apenas referi o pragmatismo da direita. Não falei em eficácia, como alguns comentadores me contrapuseram, nem nos seus princípios, que não vieram à colação.

Aliás tal não faria sentido porque eu própria referi a inabilidade do actual governo na gestão de alguns dossiês (o da Metropaço, p. ex.).

O governo actual não tem sido eficiente, no sentido económico do termo. É certo que recebeu uma herança desastrosa do governo PS (e quem finge não perceber isso, ou argumentar que essa herança tem um prazo de validade curto, é de uma enorme hipocrisia). O actual governo é, numa apreciação generalista, tecnicamente pouco competente, tirando algumas excepções, politicamente inábil e não tem tido coragem para tomar todas as medidas necessárias para colocar o país na rota certa, mas as críticas que eu vejo serem feitas são as dos anestesiados pelas facilidades e laxismo guterristas, dos saudosos da época em caminhávamos, tranquilamente para o abismo.

A questão é que as críticas que ouço me inquietam, porque prefiguram uma alternativa muito pior que o actual governo. O governo não será eficiente, mas a alternativa é absolutamente catastrófica.

Vender as jóias da família, mesmo que elas estejam a render pouco ou a dar prejuízo, não é necessariamente competência, embora se reconheça que dado o estado em que as finanças do país estavam seriam necessárias diversas medidas de emergência.

Quando eu escrevi que a direita é pragmática quis significar que ela, normalmente, não fica refém de princípios que entretanto se tornaram mitos e que perderam a sua força operacional.

E esse pragmatismo, na situação actual, em que o que se pede é que o governo faça uma gestão cuidadosa da coisa pública, é absolutamente imprescindível.

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Princípios da Esquerda e Eficácia da Direita - 2

Princípios e virtudes da Esquerda

Os conceitos de direita e esquerda são relativos. A sua origem remonta à localização dos assentos que os representantes da nação francesa tomaram na sequência dos Estados Gerais de 1789. Foi essa escolha, aleatória na altura, que determinou esta classificação posterior.

Os Girondinos eram inicialmente de esquerda. Três anos depois eram a direita a abater. Eram os políticos mais brilhantes, cujas convicções melhor correspondiam aos interesses da sociedade francesa de então mas, mercê do facto da Assembleia Legislativa e da Convenção, posteriormente, terem ficado sujeitas à ditadura da Comuna de Paris e às manifestações de rua, acabaram na guilhotina. Isto foi conseguido pela vontade de pouco mais de 10% dos convencionais (a Montanha) e pelo terror que o centro (na maioria deputados da província) tinha da populaça armada pelas secções da Comuna e convocada, nos momentos decisivos, para manifestações ameaçadoras.

O resultado foi o aprofundamento do processo revolucionário, a aversão crescente contra a clique minoritária que se apoderara do poder, o Thermidor, o regime corrupto da Montanha anti-Robespierre (Barras e outros), o bonapartismo e a restauração dos Bourbons após a derrota de Napoleão.

Quem ler Condorcet, Brissot ou Vergniaud e os contrapuser a Sain-Just, Robespierre e Danton, onde detectará os princípios ou as virtudes? Certamente nos primeiros.

Todavia, Robespierre considerava-se virtuoso. Os seus apoiantes consideravam-no virtuoso e incorruptível. Mas enviou muitos milhares de inocentes para a guilhotina, incluindo os seus adversários políticos. E continuava sempre um homem cheio de princípios e pleno de virtudes. E o mesmo se passava com Saint-Just, o “anjo da morte”. E o mais paradigmático é que estas figuras sinistras são ciclicamente recuperadas, como virtuosas e representantes dos imortais princípios da liberdade e da democracia, pelos historiadores e sociólogos de esquerda.

Os princípios e virtudes da esquerda passam ao largo dos crimes praticados em nome desses princípios e dessas virtudes. E a esquerda é coerente, pois se esses crimes são praticados em nome desses imortais princípios e generosas virtudes, estão antecipadamente justificados.

Mutatis mutandis, o mesmo se passou durante a revolução bolchevique. Basta ler os “10 dias que abalaram o mundo”. Perigosas figuras de esquerda eram, poucos dias volvidos, considerados membros reaccionários da direita conspirativa. O relativismo entre o ser de esquerda ou o ser de direita era uma questão de dias e da velocidade do aprofundamento do processo revolucionário em curso.

A diferença entre a França e a Rússia residiu na duração: o regime da facção Robespierre durou cerca de 2 anos. O regime comunista durou mais de 70 anos.

Foram por isso cometidos muitos mais crimes na URSS, e nos países de regime comunista, que em 1793/94. Mas os princípios e as virtudes não ficaram desmerecidos por isso.

É por isso que há uma unânime condenação do nazismo e do fascismo (se exceptuarmos uma extrema direita muito minoritária), mas há uma enorme continência verbal ao referir os crimes praticados pela esquerda. Não é politicamente correcto. Passam normalmente em silêncio.

É por isso que há maus ditadores (os de direita) e bons ditadores (os de esquerda, ou apenas anti-americanos)

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Virtudes privadas, vícios públicos

Vejamos o rol dos delitos (não os qualifico, nem os diferencio porque me escasseia a formação jurídica) em que incorreu a direcção do PS ou, como diria Leporello:

Madamina, il catalogo è questo
……………………………………
Osservate, leggete com me

Violou o segredo de justiça pois conhecia diversas peças processuais, como resulta das conversas reveladas pelas escutas telefónicas.;

Ao que parece essa violação era sistemática e datava de 2 meses antes da detenção de P Pedroso;

Manteve a candidatura do irmão de Paulo Pedroso para o Conselho Superior de Magistratura, depois de saber dos indícios que pesavam Paulo Pedroso. É irrelevante o facto de João Pedroso ter sido contactado antes ou depois do PS ter conhecimento do caso. O que é relevante é que, quando ele foi empossado, o PS já sabia há algum tempo do caso;

O PS adoptou, nas semanas, dias e horas que antecederam a detenção de Paulo Pedroso uma política de tráfico de influências, de cunha, incompatível com as posições ocupadas pelos dirigentes que a levaram a cabo. Tal atitude pode igualmente ser interpretada como tentativa de obstrução à justiça ou obtenção de favores para indiciados, que julgo ser punível por lei;

Os dirigentes do PS mostraram um completo desprezo pelos fundamentos do Estado de Direito. Alguns desvalorizam as declarações, dizendo que as expressões utilizadas resultam de serem conversas entre amigos. Eu nunca utilizei aquele tipo de expressões em conversas, na intimidade ou não e não costumo ouvir de amigos, colegas ou pessoas com quem me relaciono profissionalmente, expressões daquele tipo. Porém o que está em causa não é a forma, mas o conteúdo das expressões. Pode ser secundário saber que os dirigentes do PS são uns ordinários. Não é secundário saber que acumulam a ordinarice com o desprezo pelo Estado de Direito e pelo princípio da separação de poderes.

Isto para não referir as ofensas à magistratura, porquanto as circunstâncias em que foram proferidas não parecem poderem ser entendidas como públicas.

Como podem agora os dirigentes do PS considerarem-se vítimas da violação do segredo da justiça e ameaçarem com tribunais, se foram eles próprios a admitirem que o haviam violado e utilizaram essa violação para favorecerem Paulo Pedroso?

Como podem, por exemplo, serem compaginadas os comportamentos acima relatados com o pedido sistemático de demissão do ministro Portas, que não era arguido, mesmo que houvesse razões para admitir que teria havido situações menos claras? Ou com os pedidos pontuais de demissão de diversos ministros?

Como podem dirigentes políticos com responsabilidades mostrarem, de forma tão evidente, que os valores que usam para julgar os outros, não se aplicam quando se julgam a si próprios?

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outubro 21, 2003

O PS refém da Casa Pia - Acto I

O PS refém das suas virtudes cívicas

A actual direcção do PS colocou o partido refém do processo da Casa Pia e do destino de Paulo Pedroso. Esta situação é o corolário de uma estratégia que começou na campanha eleitoral de Ferro Rodrigues e se aprofundou após a derrota eleitoral.

Ferro Rodrigues e os seus apoiantes puseram, desde que são a oposição, a fasquia muito alta. Assumindo-se, desde o início, como guardião da democracia portuguesa, alegadamente em risco de ser estrangulada pela “ofensiva antidemocrática” da direita, assumindo-se como guardião das virtudes cívicas, face a um governo que incluía um ministro alegadamente envolvido num mega-processo de gestão danosa, o PS tentou protagonizar um papel para o qual não tinha nem talento, nem meios, nem, objectivamente, virtudes.

Mesmo os casos graves do governo anterior, como o acordo danoso com a Metropaço, não beliscaram essa postura. A inabilidade do actual governo e a arrogância virtuosa de Ferro Rodrigues deram, perante a opinião pública, uma imagem de alguém que protagoniza o papel de vítima de uma cabala, e não de alguém que era responsável por um acto inequívoco de gestão danosa.

Enquanto isso, Paulo Portas era servido a todas as refeições. A sua demissão era diariamente exigida em nome das virtudes cívicas de que o PS era o fiel depositário. Não por pesar qualquer acusação sobre ele, mas porque havia suspeitas. E um ministro sobre o qual recaiam suspeitas é uma contradição no universo de virtudes políticas do PS.

Quando surgiu o caso Paulo Pedroso, o PS foi apanhado na armadilha da sua virtude imanente. Paulo Pedroso teria que estar inocente. Paulo Pedroso, como dirigente nacional de um partido virtuoso, era por definição virtuoso e obviamente inocente. Nem era possível admitir, perante a opinião pública, qualquer facto que fosse contrário àquela presunção. Se se postula uma teoria baseada em convicções, desdenha-se necessariamente do empecilho incómodo dos factos.

Mesmo quando um dos factos tenha sido a entrada do irmão de Paulo Pedroso no Conselho Superior de Magistratura, sob proposta do PS, numa altura em que a direcção do PS já sabia que Paulo Pedroso estava sob investigação, enquanto reclamava publicamente que outro nome proposto para o Conselho Superior de Magistratura constituía um escândalo, visto possibilitar a ingerência doutro partido político no funcionamento da justiça.

A truculência que Ferro Rodrigues usou durante um ano, quando atestava as suas próprias virtudes morais e cívicas e a ausência destas na área governamental, foi a mesma que utilizou no seu “dia mais longo”, 21 de Maio de 2003, quando declarou que se estava “cagando” para o segredo de justiça e que o processo não pode ser resolvido “num plano tão elevado”, mas antes “à canelada”.

Ao proferir aquelas afirmações, Ferro Rodrigues não se deu conta que, para quem as ouvisse ou soubesse delas, elas constituiriam uma contradição com a sua teoria de virtudes cívicas. Quando se têm convicções fortes, os únicos factos que interessam são os que comprovam a teoria. Os outros não existem.

E só pode duvidar disso quem estiver empenhado numa cabala contra o PS e contra a democracia.

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O PS refém da Casa Pia - Acto II

O PS refém de Paulo Pedroso

Refém da sua virtude, o PS tornou-se, como corolário necessário, refém do processo da Casa Pia e do caso judicial de Paulo Pedroso. Não era a pessoa Paulo Pedroso que estava arguida do crime de pedofilia, mas sim o virtuoso dirigente do virtuoso PS, Paulo Pedroso, et pour cause.

Nesse entendimento não era um caso de pedofilia, do foro pessoal, que estava em justiça, mas um processo político, uma cabala, uma maquinação montada pelo aparelho judicial manipulado por obscuros adversários políticos. Assim, o PS politizou o caso Paulo Pedroso desde o início. Não enjeito a possibilidade de malevolência de algum ou alguns dos seus dirigentes na teoria da cabala. Mas ela decorre igualmente, ou foi facilitada, pela convicção que os dirigentes actuais do PS têm de si próprios, e dos outros, sobre ética, civismo, liberdade e democracia.

A libertação de Paulo Pedroso foi assim festejada como uma vitória política, não só pela forma como os dirigentes socialistas viveram os acontecimentos, mas também pelo local onde decorreram as manifestações de regozijo – a Assembleia da República.

Ao realizar o que foi, objectivamente, uma manifestação de desagravo, transmitida em directo por todos os meios de comunicação, o PS esqueceu-se que Paulo Pedroso continuava indiciado por mais de uma dezena de crimes de pedofilia, tendo unicamente sido alterada a medida de coacção aplicada. E esqueceu-se que o processo da Casa Pia ainda estava no início.

Logo a seguir, um segundo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desta vez apreciando um recurso do advogado de Paulo Pedroso sobre a decisão do juiz Rui Teixeira em antecipar a reapreciação da prisão do socialista, é demolidor para as teses socialistas, criticando duramente o seu comportamento face ao poder judicial, considerando o recurso em causa uma "descabida e lamentável provocação processual" e acusando os recorrentes de só agora se preocuparem com as injustiças: "Lamenta-se, contudo, que a suposta injustiça das leis e rigor de procedimentos só sejam invocados e censurados em determinados momentos e perante certos arguidos que se julgam credores de um estatuto especial que não têm."

Face ao mal estar causado pela manifestação de desagravo na AR nos meios judiciais e nos meios políticos, mesmo entre os socialistas, o PS poderia ter mudado de táctica, repondo o processo onde ele nunca deveria ter saído: a esfera judicial. Mas não, prisioneiro de si próprio e da “verdade” que tinha construído, o PS aprofundou mais a politização do processo e da justiça em geral – permitiu o regresso de Paulo Pedroso à bancada parlamentar, apesar de estar na situação de arguido e soltou Ana Gomes em diatribes incendiárias, fazendo-se eco de boatos postos a correr por uma revista francesa meses atrás.

O regresso de Paulo Pedroso é uma situação insustentável para o maior partido da oposição. É ter em permanência o processo da Casa Pia na sua bancada parlamentar. É viver quotidianamente em função das evoluções do processo mais importante e mediático da sociedade portuguesa dos últimos anos. É usar para si um critério diametralmente oposto ao que usou durante mais de um ano para Paulo Portas.

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O PS refém da Casa Pia - Acto III

O PS refém de Ferro Rodrigues

Ter permitido a Ana Gomes verter a sua incontinência verbal sobre o sistema judicial aprofundou o fosso entre o poder judicial e a actual direcção do PS.

A justiça não é ministrada por pessoas sem memória nem emoções. Nem sempre, na aplicação da lei, a razão se liberta da paixão. Neste processo, que envolve gente poderosa e muito mediática, não é a primeira vez, nem será a última, que a acusação é tentada a usar a comunicação social como "arma de arremesso" para contrapor as suas teses aos excessos de despeito e de demagogia da defesa e às teses que esta igualmente carreia para a comunicação social.

O vir a lume das escutas telefónicas é mais uma etapa em todo este processo, que deveria ser deixado apenas na esfera judicial mas que extravasou dela, e que coloca a direcção socialista numa situação extraordinariamente embaraçosa.

O teor das escutas evidencia um total desprezo pelas instituições democráticas, pelo poder judicial e pelo princípio da separação de poderes. As escutas mostram que os dirigentes do PS conheciam dados processuais que estavam em segredo de justiça, o que lhes retira autoridade moral para protestar contra a violação do segredo de justiça que a divulgação destas escutas constituem, e que se empenharam nas semanas, dias e horas que precederam a detenção de Paulo Pedroso em utilizarem os seus conhecimentos, políticos e outros, no sentido de interferirem no processo e de favorecerem a situação do seu dirigente. O que se designa sumariamente por tráfico de influências ou, num vernáculo mais genuíno, por cunha.

O desprezo que o líder do principal partido da oposição confessa ter pelo segredo de justiça é politicamente demolidor e será sempre um elemento que virá a lume em qualquer eleição futura a que ele se apresente. Muitos eleitores questionar-se-ão se será possível escolherem para primeiro-ministro e terceira figura do Estado um político que se comporta desta forma e evidencia tal desprezo pelos fundamentos do Estado de Direito.

Órfão do poder, o PS não soube constituir internamente uma alternativa à liderança truculenta de Ferro Rodrigues. O primeiro aviso público, demasiado tardio, partiu de Mário Soares: "Se eu pudesse dar algum conselho a algum deputado, o que não é o caso porque não tenho categoria nem autoridade, o que lhe diria, … , é que em matéria política pela boca morre o peixe".

Os factos que vieram a lume este fim de semana suscitaram, de acordo com a comunicação social, a maior inquietação entre os próceres socialistas. Francisco Assis, líder do PS/Porto, é citado como tendo afirmado que «O PS não pode estar acorrentado a este caso de pedofilia, que prejudica fortemente o partido. Os portugueses não podem ter a suspeita de que o PS está a alimentar uma guerra contra parte do sistema judicial».

Frases como «ou ele abre caminho para sair por si ou terá de ser o partido a pedir-lhe para o fazer, reunindo os notáveis e fazendo-lhe ver o óbvio»; ou «há que pôr fim a este plano inclinado»; ou ainda: «Se Ferro saísse seria um alívio para o partido» apareceram em diversos meios de comunicação como tendo sido proferidas por importantes membros do PS.

Todavia, a declaração mais óbvia e a que, provavelmente, melhor reflecte a actual situação interna do PS é a de que «Ferro não tem margem para se manter, mas não parece que queira sair por si». Na verdade, quando a primeira reacção do núcleo ferrista ao conteúdo das escutas é que tal constituía "a prova que faltava que isto é um processo político", quando se fazem, internamente, apelos patéticos à intervenção do Presidente da República, já que “o próprio Sampaio é envolvido num processo judicial e político” pela divulgação das escutas, sem se aperceberem que esse pedido pode corroborar eventuais alegações de que já teria havido uma tentativa de intervenção do PR aquando da detenção de Paulo Pedroso, tudo indicia que aquele núcleo duro do PS vai continuar a apostar na politização do processo e na pressão sobre o sistema judicial.

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O PS refém da Casa Pia - Acto IV

O PS refém da deriva esquerdista da sua direcção

Ferro Rodrigues declarou ontem nos Açores que estes últimos desenvolvimentos constituíam “ameaças muito fortes ao PS e à democracia”. Foi igual a si próprio. O PS é, por definição, pelo postulado Ferro Rodrigues, o depositário da democracia e das virtudes cívicas, o tabernáculo onde estas estão em permanente lausperene. Algo que menoscabe essa verdade absoluta constitui um atentado à democracia e ao PS, visto o PS ser a democracia, e a democracia ser o PS.

Um dos estereótipos mais queridos da esquerda radical é o da esquerda ser a portadora da virtude e da honestidade, em contraponto à direita, que é a portadora do vício e do peculato. Uma esquerda que amarra os factos ao leito de Procusta das suas convicções até terem um “formato” que não ponha em causa as suas opções políticas e ideológicas, ou os seus princípios virtuosos. As excepções apenas confirmariam aquele postulado absoluto.

Foi a essa esquerda radical, portadora de mitos, incapaz de uma leitura dialéctica da realidade social em permanente mutação, extasiada por se supor agente de um processo histórico absoluto e inevitável, que Ferro Rodrigues hipotecou a condução política do PS.

Uma esquerda que agita os seus princípios, sem se aperceber que entretanto ficaram reduzidos a mitos, e que fica ideologicamente desarmada e sem soluções viáveis face a uma direita pragmática. Uma esquerda que arruina o país, abandona o barco quando vê que este se dirigia para o abismo e aparece depois a protagonizar o papel de vítima.

A deriva esquerdista do PS, imposta por Ferro Rodrigues e o seu núcleo, constitui o substracto ideológico que tem sido o motor da política contraditória do PS, julgando publicamente os outros por critérios elevados de ética e de apego à democracia e ao Estado de Direito, mas que considera despiciendos e inaplicáveis quando se julga a si próprio. Que é truculento e agressivo quando detecta um desempenho alegadamente menos virtuoso nos outros, e que é igualmente truculento e agressivo quando o confrontam com a sua própria carência de virtudes, porque criticar as atitudes da direcção socialista constitui uma grave ameaça à democracia e ao PS (o que, de facto, é o mesmo pois o PS está refém da sua direcção) e um sintoma de que a liberdade corre sérios riscos.

Um PS (ou melhor, uma direcção do PS) que, sem se dar conta, está a utilizar os conceitos que levaram aos totalitarismos: a convicção absoluta da verdade de que é portador; a de que a verdade é a nossa verdade; a de que a esquerda pode agir, sem estar espartilhada por concepções burguesas do Estado de Direito, porque é ela que é o motor necessário do progresso histórico e social; a de que à direita apenas lhe resta a sarjeta da história e, portanto, tudo o que ela faça ou proponha é uma acção celerada que apenas visa comprometer o futuro da humanidade e os amanhãs que cantam.

Um PS que tem que arrepiar caminho rapidamente, a bem da saúde das instituições políticas portuguesas, da democracia e do Estado de Direito. O país precisa de um PS como força de oposição capaz.

Para protagonizar o papel actual do PS já existe o Bloco de Esquerda.

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outubro 15, 2003

O Nick Ana_Gomes

Há um equívoco monumental, quer na comunicação social, quer na comunidade dos comentadores da net, entre eles os do Expresso online, sobre Ana Gomes.

Quer as declarações acerca de José Lamego, classificadas por este como "insinuações reles" e "impropério grosseiro", quer a sua habilitação, já a correr nas conservatórias e nas finanças, de herdeira do defunto blogue "muitomentiroso", são atitudes que de forma alguma poderiam ser assacadas a alguém com responsabilidades políticas e membro de órgãos de topo de um partido da área do poder .

É certo que, desde que o PS se encontra na oposição, os seus dirigentes enveredaram por tácticas de terrorismo parlamentar e de chicana política que se pensaria serem impróprias pela sua herança histórica e, principalmente, por ser um partido que teve, e terá certamente, responsabilidades governativas.

Mas esta peixeirada, as "insinuações reles" e a criação de um blogue no mídia-espaço que é a continuação lógica e perfeita do blogue "muitomentiroso", que se apagou, ou foi apagado, ingloriamente, do ciber-espaço, é demais, mesmo tendo em conta a truculência e a chicana política dos actuais dirigentes socialistas.

Portanto é de recusar liminarmente a hipótese de que Ana_Gomes é alguém com responsabilidade política e membro de órgãos de topo do PS.

O que está a acontecer, e peço-vos que acreditem em mim, a bem da sanidade mental do país e da saúde democrática das nossas instituições, é a consequência da criação do blogue http://www.muitomentirosa/ana_gomes.tv&jornais.blogspot/peixeirada.ps/, powered by Ferro.Rodrigues.chicana.ps.

Estou a escrever isto e a entrever sorrisos trocistas, risos escarninhos e testas franzidas de dúvidas e hesitações entre muitos de vocês. Muitos contestam: então não a temos visto em carne (e abundante!) e osso, na TV? E a voz dela, bem colocada e estridente, como convém a quem apregoa peixe fresco?

Ilusão meus queridos amigos (e não menos queridos inimigos)! Ana_Gomes é a mais recente inovação tecnológica do software nacional, já prenunciada no “Disclosure” (aquele filme longínquo, de 1994, onde a Demi Moore assedia o M. Douglas). Foram introduzidas novas facilidades, a imagem virtual já não necessita de bater as asas e consegue ser reproduzida sentada numa cadeira televisiva, a descer a Avenida da Liberdade, no tejadilho de uma camioneta a arengar as massas, nos estúdios de rádios locais, etc..

É óbvio que há bugs que terão que ser corrigidos. Os programadores equivocaram-se na relação entre os pixels horizontais e verticais e a imagem do nick Ana_Gomes aparece demasiada larga para a altura (ou vice-versa). Já foram dadas instruções aos programadores para se reduzirem em 50% os pixels horizontais e se aumentarem os verticais. Igualmente, o sintetizador terá que ser aperfeiçoado por forma a que os sons que aquele nick emite não sejam tão estridentes, tão incómodos.

Mas o facto é que Ana_Gomes está a caminho do estrelato e do reconhecimento internacional. Não pela via política, é óbvio, mas isso também está fora de questão, porquanto ela se tornou num dos nicks mais ordinários do espaço virtual … e olhem que a experiência do meu blog e da frequência da net, indica-me que é uma competição onde é difícil de se atingir o topo.

É seguro, quase tanto como as confidências do "muitomentiroso", que Ana_Gomes vai dar origem ao próximo remake do Disclosure, o Disclosure.pt. Barry Levinson já está a trabalhar no assunto e Michael Crichton prometeu um argumento reforçado (e ele conhece bem Portugal e a TAP).

Há ainda uns aspectos enfabulatórios do argumento a ultimar como, por exemplo, quem assedia quem. Mas isso deixo à vossa imaginação. Sugestões que tenham, queiram dirigi-las a Michael Crichton, quer directamente, quer por meu intermédio.

Portanto, José Lamego, quando diz Ana Gomes está a destruir a credibilidade que o PS acumulou em matéria de política externa nos quase 30 anos que levamos de vida democrática … e que "O PS merece melhor e diferente", você está equivocado. Trata-se apenas de um nick da net, Zé Lamego, um reles e ordinário nick.

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