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abril 21, 2004
Esquerda, herdeira da Direita
A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Quando me refiro quer à esquerda quer à direita, não faço a injustiça de me referir a «toda» a esquerda nem a «toda» a direita. Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias e no acinte e desdém que mostram (ou mostraram) pelas ideias dos outros.
Esta similitude, eventualmente incompreensível, pela aparente distância ideológica entre aqueles campos, tem todavia explicações simples.
Quer a «actual» esquerda, quer a «antiga» direita, são (ou eram) conservadoras e reaccionárias face a um mundo em mutação de que elas não eram agentes da mudança. A direita «antiga» lutava para manter (ou restaurar) um mundo cujo sentido das transformações abominava, cujos mecanismos de mudança lhe eram incompreensíveis e que lhe prefiguravam um novo mundo cuja dominação considerava monstruosa. Foram os anti-dreyfusards, foi a Action Française, foram os Camelots du Roi, foram os diversos partidos de direita alemães que emergiram da primeira guerra mundial e da liquidação da revolução espartaquista, foram os nazis com as suas SA e, posteriormente, com as SS, foram os «fasci di combattimenti» e os «Camise Nere» de Mussolini, e isto só para falar das principais nações ocidentais.
A esquerda «actual» herdou tudo isso. Também ela está órfã de conceitos que ruíram; também ela se agarra desesperadamente a um statu quo obsoleto; também ela luta para manter um mundo cujo sentido das transformações abomina e cujos mecanismos de mudança lhe são totalmente inexplicáveis e também ela se insurge contra a perspectiva de um novo mundo que prefigura como monstruoso.
É esse horror perante uma mudança que diaboliza, que torna a esquerda «actual» profundamente reaccionária, intolerante, argumentando de forma trauliteira, agarrando-se, no seu naufrágio, a todos os despojos que lhe sugiram a possibilidade de reversão, de barreira à mudança, pactuando com formas medievas, violentas e bárbaras de contestação à nossa sociedade e, sempre que a ocasião surge, actuando com toda a violência, vandalizando cidades inteiras em nome da «luta contra a globalização» ou por um «mundo alternativo». E, tal como a direita de há 80 anos, com a benevolência dos meios de comunicação que conseguem entrever alguns «argumentos» naquela violência bárbara e gratuita.
Mas o que há de mais perverso na esquerda «actual» é que ela continua a reclamar-se de Marx. Ora o fundamento do pensamento marxista era a análise dialéctica das condições sociais, da base material da sociedade, das relações de produção emergentes dessa base material e da forma como essa base material influencia a superestrutura. É da essência do marxismo o não ficar asilado no statu quo, o encontrar explicações adequadas para as mudanças e o devir social, ou seja, ser capaz de interpretar o mundo na sua mudança e nunca ficar atemorizado perante essa mudança, rejeitando-a liminarmente.
A esquerda «actual», todavia, na sequência da interpretação soviética do marxismo, reduziu este a chavões e depois a um mero tropo patrocinador que, prudentemente, já não é matéria para nenhum debate, não vá o diabo tecê-las.
Os filósofos (?!) soviéticos deitaram Marx no «leito de Procusta» das exigências político-ideológicas estalinistas e foi esse «Marx» desfigurado e deformado que a esquerda «actual» usa como travesti ideológico.
Neste entendimento, a esquerda «actual» é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda «actual» não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.
Usa os argumentos mais soezes e acusa, paradoxalmente, a direita de trauliteira, quando foi ela que herdou essa postura argumentativa. A esquerda «actual» adoptou, por convenção, por postulado (que só essa esquerda reconhece) que a direita, quando riposta é, por definição, trauliteira, enquanto ela, a esquerda «actual», pode debitar as maiores insolências, ser da máxima truculência, do maior vazio argumentativo, que está permanentemente desculpada: a esquerda «actual» é a detentora da verdade e tudo o que a contraria é trauliteiro.
E o que é paradoxal nesta convicção da esquerda em deter a verdade absoluta é que os seus ícones e os seus mitos foram todos derrubados. Nada escapou à inclemência, à razia do devir histórico. Parafraseando Marx, tudo o que era sólido, se dissolveu no ar.
A História é feita de fluxos e refluxos. A esquerda «actual» espanta-se e impreca o «neo-liberalismo», mas este é a resposta para os indispensáveis reajustamentos estruturais necessários para equilibrar e sanear as economias e as sociedades ocidentais, para alavancar progressos na prosperidade e na riqueza dessas sociedades, que estavam a estagnar. O «neo-liberalismo» não veio para ficar. Nada na História vem para ficar. Tudo é feito de mudança. O «neo-liberalismo» veio como refluxo para inverter correntes que, sem essa inversão, teriam conduzido o mundo ocidental à ruína económica e social.
Mas o «neo-liberalismo», tendo embora os seus méritos na situação actual, quando acabar de desempenhar o seu papel histórico, a sua missão, terá esgotado o seu modelo. E sobre os seus restos erguer-se-á um modelo novo, mais aperfeiçoado, mais adequado á nova realidade. E assim sucessivamente.
Mas tudo isto, para quem cristalizou no marxismo ortorrômbico, é muito difícil de entender.
Publicado por Joana às abril 21, 2004 09:30 PM
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Lista dos links para blogues que mencionam Esquerda, herdeira da Direita:
» A Esquerda, a velha Direita e o Ruído que anda por aí from Von Freud
Afinal o que é que a Esquerda defende? Semiramis: Esquerda, herdeira da Direita. O PCP defende o quê, o Marxismo Estalinista? O Bloco de Esquerda defende o quê? Trotski? Fidel, o ditador democrata? É contra Sharon e Bush (esses assassinos)... [Ler...]
Recebido em abril 22, 2004 03:38 PM
Comentários
Olha, olha... Joana começa a ficar nervosa...
# : - ))
Publicado por: (M)arca Amarela às abril 21, 2004 10:00 PM
Bem merece, essa gaja!
Publicado por: Cisco Kid às abril 21, 2004 10:09 PM
(M)arca Amarela em abril 21, 2004 10:00 PM
Nota-se que o meu elegante cursivo está a tremelicar?
Publicado por: Joana às abril 21, 2004 10:18 PM
pelo menos a direita de Joana não está orfão ; sempre tem 2 "pais" para poder escolher.
Bush:
O Mundo deve um «obrigado» a Sharon
O presidente norte-americano, George W. Bush, disse esta quarta-feira que o mundo deve um «obrigado» ao primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, pelos seus planos de pacificação para os territórios ocupados.
diariodigital
Publicado por: zippiz às abril 21, 2004 10:25 PM
zippiz em abril 21, 2004 10:25 PM:
Eu bem tenho escrito, por diversas vezes, que a estratégia de Arafat estava a dar péssimos resultados.
Está a ver?
Publicado por: Joana às abril 21, 2004 10:38 PM
E o Bush está todo ternuras para o Sharon, para ver se ganha alguns votos judeus ao Kerry.
O Kerry ainda vai ser pior! Parece-me muito mais permeável ao lobby judeu que o Bush
Publicado por: Joana às abril 21, 2004 10:40 PM
Joana: eu não concordo consigo em muitas coisas. Mas há algo que tenho que reconhecer. Você é muito hábil em pegar numa questão e dar-lhe a volta de forma que já ninguém sabe como é que ela era antes de ter passado pelas suas meninges.
Discordo, mas sei bem de quê, pois o que escreveu estar certo.
Publicado por: Vitapis às abril 21, 2004 10:47 PM
Você baralhou-me mesmo.
O que eu queria escrever, no último período era:
Discordo, mas não sei bem de quê, pois o que escreveu não pode estar certo.
Era isto que eu queria escrever.
Publicado por: Vitapis às abril 21, 2004 11:04 PM
Vitapis:
Lastimo tê-lo baralhado. Creia-me que foi sem intenção.
Garanto-lhe que vou estudar o assunto e tentar perceber porque é uma coisa que parece certa, não o está, mas não se sabe porquê.
E obrigada pelos seus comentários. Mesmo discordando. Se todos concordassem era um enfado.
Publicado por: Joana às abril 21, 2004 11:08 PM
Lastimo, mas tenho que dizer que li com umito interesse o que escreveu.
Nunca fui adepto da filosofia marxista, mas se ela permite perceber o desastre em que a esquerda caiu, afinal serve para alguma coisa
Publicado por: Novais de Paula às abril 22, 2004 12:00 AM
Vejo que você gosta de combater os outros com as armas deles. Isso às vezes resulta, outras não
Publicado por: vde às abril 22, 2004 12:03 AM
Muito bem dito. A esquerda precisa de ouvir estas coisas.
Publicado por: Mocho às abril 22, 2004 12:40 AM
Não concordo com este discurso. É fácil, para quem tem, ainda cedo, êxito na vida, tecer elogios ao mercado e ao neo-liberalismo.
Agora para quem não tem nem dinheiro, nem sorte, nem físico que ajude pensa de maneira diferente.
Publicado por: c seixas às abril 22, 2004 12:49 AM
Claro que a Joana tem todo o direito de escrever o que escreve. Argumenta bem, sabe o que diz, a sua competência está estabelecida, etc.
Mas muito dos seus argumentos estão focados pelos óculos de quem a vida corre de vento em popa. Terão que ser vistos sob essa óptica
Publicado por: c seixas às abril 22, 2004 12:53 AM
Há um ponto em que ela tem razão. Entre os que a contestam há alguns, poucos, que são de uma grande mediocridade e que, ao fim e ao cabo, acabam por lhe levar a água ao moinho.
A esquerda devia olhar para este blog com atenção e combatê-lo com argumentos consistentes.
Publicado por: c seixas às abril 22, 2004 12:56 AM
Há um ponto em que ela tem razão. Entre os que a contestam há alguns, poucos, que são de uma grande mediocridade e que, ao fim e ao cabo, acabam por lhe levar a água ao moinho.
A esquerda devia olhar para este blog com atenção e combatê-lo com argumentos consistentes.
Publicado por: c seixas às abril 22, 2004 12:57 AM
Essas afirmações são injustas. Há muitos que discordam da Joana que argumentam com nível.
O Marca Amarela, o Vitapis (às vezes) e outros.
Eu digo o que acho que tenho adizer face à conversa torcida da Joana. Acho que não merece mais
Publicado por: Cisco Kid às abril 22, 2004 01:22 AM
E não vou perder o meu latim com ela
Publicado por: Cisco Kid às abril 22, 2004 01:23 AM
Carlos:
Não concordo com essa sua teoria simplificadora dos mecanismos de formação dos conceitos. Pelo menos na parte que me toca.
E mais não digo, como compreenderá.
Publicado por: Joana às abril 22, 2004 09:05 AM
Bom dia Joana
Para quem recorre a um certo anticomunismo primário em momentos de aperto, reconheço que esta análise representa alguma evolução.
No entanto, está incompleta (ou desiquilibrada, se preferir). Concordo com o desajustamento das teorias marxistas na realidade actual da(s) nossa(s) sociedades, no entanto a sua análise não aborda as contradições básicas da actual direita no exercício do poder político.
Quer completar o seu texto ?
LA
Publicado por: LA às abril 22, 2004 09:43 AM
Joana: lá vem você baralhar o que parecia simples.
Isto é um blog. Evite raciocínios laboriosos!
Publicado por: David às abril 22, 2004 10:33 AM
Joana: sugiro-lhe que se dedique a estes temas (onde estou basicamente de acordo consigo) e deixe a defesa do bussho-ssharonismo, onde só costuma dizer disparates...
Publicado por: euroliberal às abril 22, 2004 12:39 PM
"A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX."
a joana anda mesmo a ficar nervosa.
o marca amarela acertou em cheio.
dá-lhe gás...
Publicado por: dionisius às abril 22, 2004 03:32 PM
É bom que o pessoal contrário a estas teorias reaccionária venha aqui contestar tudo isto.
Publicado por: Cisco Kid às abril 23, 2004 12:28 AM
E não me parece que esta sujeita se enerve por tão pouco
Publicado por: Cisco Kid às abril 23, 2004 12:29 AM
Eu?! ... enervada!? ...
O que parece, por algumas reacções é que acertei em algum alvo importante e doloroso.
Será assim?
Publicado por: Joana às abril 23, 2004 09:20 AM
ai!... ai! (sou eu a queixar-me...)
dói-me...e é doloroso ver perder-se o melhor da minha geração ou será preciso relembrar-lhe a história de esaú e jacob?
no final, se não "emendar a mão" , a joana verá como tudo foram lentilhas. Ai! ai! ai!
por emendar a mão não entenda que a quero converter seja a que for.... por amor de um grupo de malucos como o maia e outros ( não foram todos iguais e aí a joana tem razão mas issso não basta) vivemos, ainda, mum país livre.por emendar a mão quero dizer que não pode dizer barbaridades como a que disse no que a seguir vai "A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX." e ficar impune.
primeiro de que esquerda fala?
da esquerda,esquerda,esquerda? da esquerda, esquerda? ou da Esquerda? é preciso esclarecer. e não me venha com pc's, ps's. be's etc.etc etc..
segundo , não pode insultar-nos a inteligência dizendo que a direita só foi intolerante, arrogante e totalitária nas primeiras décadas do séc XX. dava-lhe menos trabalho comprar um pacote de tide ou de omo e aqui a malta da esquerda que até gosta de a ler agradecia.
terceiro- se acertou em cheio foi em si mesmo.espero que não tenha havido danos graves....
quarto- não chego ao ponto do Cisco de lhe chamar torcida e por aí fora pois não tenho o talento e a imaginação dele. daqui só poderá esperar "friendly fire" ou lá como é que se escreve que eu nunca fui muito bom em Italiano.De qualquer forma nunca fará baixas .
quinto- há uma parte do mundo que para si parece não existir : suécias, noruegas e afins.... que deveram a sua riqueza, paz e bem-estar social a governos de Esquerda e são , ainda hoje, os locais do mundo onde melhor se vive .... ou estarei enganado?
sexto- não sei quem foi que disse mas concordo com ele: " a História da humanidade não é mais do que a história de um homem que está num buraco e tenta sair dele. quando está quase cá em cima aparece sempre um fdp qualquer que o empurra oura vez lá para baixo."
Publicado por: dionisius às abril 23, 2004 10:52 AM
dionisius em abril 23, 2004 10:52 AM:
Eu escrevi:
«Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias» Foi a essa esquerda que me referi. Que eu saiba apenas tomou o poder na Europa de Leste, Albânia, etc. Nunca na escandinávia
Você, nos países nórdicos só vê as vantagens sociais. Não vê as obrigações e a disciplina laboral que, a aplicar-se cá, levaria a uma greve geral por prazo ilimitado.
Quanto à intolerância e à arrogância de uma certa esquerda basta ler os comentários nos fóruns da net. Ou ouvir os discursos do Louçã e do Carvalhas.
Publicado por: Joana às abril 23, 2004 07:35 PM
Está excelente, Joana. Descreve a actual arrogância da esquerda e a tentativa de domínio que ela pretende ter sobre a comunicação e a expressão cultural
Publicado por: Viegas às abril 23, 2004 11:08 PM
A Joana soltou a tormenta ao escrever estas coisas. A esquerda não admite ser considerada intolerante e trauliteira.
Basta ler a gritaria ofendida
Publicado por: Mocho às abril 24, 2004 12:38 AM
É, afinal quem ficaram nervosos foram os canhotos.
eh eh eh eh eh eh eh eh eh eh eh eh!
Publicado por: Cerejo às abril 24, 2004 01:06 AM
Muito nervosos mesmo!
Publicado por: Cerejo às abril 24, 2004 01:07 AM
É, isto é muito irritante para quem está convencido que o seu lado é que sabe tudo e tem sempre razão
Publicado por: Fred às abril 24, 2004 12:55 PM
Não vejo porque é que andam todos nervosos. É uma opinião apenas.
Não concordo com a extensão de "esquerda" para a intolerância. Mas gostaria que alguns dos protagonistas da esquerda como Louçã e Rosas falassem de forma menos sectária
Publicado por: Bsotto às abril 24, 2004 01:02 PM
A esquerda é tolerante por si mesma, não precisa de lições dos outros
Publicado por: Cisco Kid às abril 24, 2004 06:12 PM
Viva o 25 de Abril. 25 de Abril sempre!
Publicado por: Cisco Kid às abril 25, 2004 12:45 AM
Obrigado por me ter parafraseado
Publicado por: Marx às abril 25, 2004 10:29 AM
É interessante o artigo de hoje do Público «Política à mocada» sobre a nova teoria política do BE.
Parece que afinal a esquerda actual é que é trauliteira!
Só não quer admitir isso.
Publicado por: Mocho às maio 30, 2004 04:39 PM
Se não fossem as consequências políticas, de ideais degradados, sujos, completamente utópicos e sem fundamento na realidade de um país como o nosso, eu diria mesmo que o 25 de Abril, foi o inicio do fim de muito trabalho que não merecia ser desprezado de tamanha forma...
Publicado por: Filipe às setembro 24, 2004 12:12 AM