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fevereiro 17, 2004

O Estado dos Direitos

Se há matéria onde os meios de comunicação e a opinião publica(da) estão unanimemente de acordo é sobre a descriminalização do aborto. Há uma completa e absoluta unanimidade. Quem se atreve a emitir uma opinião contrária àquela é um troglodita fundamentalista, fanático, contumaz e medieval.

Infelizmente essa opinião unânime não coincidiu com a opinião da população expressa em referendo. Mas, pela leitura que tem sido feita e repetida por vários líderes políticos, os resultados do referendo indicam, sem ambiguidades, que uma parte significativa da população portuguesa é troglodita e a maioria, a que se absteve, está à beira do trogloditismo. Ah! Mas havemos de fazer os referendos que forem necessários até os trogloditas abandonarem as cavernas mentais, onde a ignorância os mantém, e se lhes revele a luz da verdade.

Para essa opinião poderosa e imperiosa, a lei é a sua verdade.

Por exemplo: quando populares se juntam perto do local onde Carlos Cruz está preso, ou fazem almoços de solidariedade, logo vozes se elevam para protestar contra as pressões inaceitáveis que se estão a fazer sobre a justiça. E logo a comunicação social se enche de gente afadigada a censurar tamanho desconchavo e desrespeito pelo funcionamento da justiça.

Todavia, dezenas de pessoas lideradas por individualidades com responsabilidades políticas como Odete Santos, Ilda Figueiredo (ambas do PCP) e Miguel Portas (Bloco de Esquerda) manifestaram-se no exterior do Tribunal, enquanto decorria a audiência do Tribunal de Aveiro que julgava arguidos do processo de aborto clandestino, sem quaisquer escrúpulos sobre se estariam ou não a pressionar a justiça, nomeadamente tratando-se de representantes da nação, gente que deveria ter especiais cuidados no respeito pelos fundamentos do Estado de Direito.

Uma acção que, segundo o próprio juiz, não perturbou a audiência nem pressionou o tribunal, decorrendo, ao que afirmou, com o devido respeito. Tratou-se, disse, de "um saudável sinal de vitalidade da sociedade, que vale como impulsionador de tomada de posição do poder político sobre a matéria".

Portanto, em Portugal, há dois tipos de opinadores:

Aqueles cujas opiniões são as verdadeiras, mesmo que sejam minoritárias e, para os quais, as leis do Estado de Direito não são aplicáveis, se da sua aplicação resultar contrariedades para que as suas opiniões tenham o relevo que merecem e vinguem como é imprescindível. É uma regra evidente porquanto as opiniões contrárias às suas são próprias de trogloditas e indignas de uma sociedade civilizada.

Os trogloditas que, mesmo que sejam maioritários nas urnas, não passam, segundo os detentores daquela verdade, de meia dúzia de fanáticos fundamentalistas que têm que se cingir às estritas normas do Estado de Direito e, por acréscimo, aceitarem que, os que os tomam por trogloditas, não cumpram essas normas. É o castigo por terem opiniões fanáticas, fundamentalistas e medievais.

E, castigo maior, hão de fazer os referendos que forem necessários até acertarem com o raio do «sim»! E enquanto eles não acertarem com esse advérbio monossilábico, qualquer referendo não passará de um treino para o referendo final, aquele que irá valer definitivamente, o referendo do «sim».

Publicado por Joana às fevereiro 17, 2004 11:46 PM

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Comentários

Eu também sou um troglodita, tenho que o reconhecer. Não sei como aconteceu, mas é uma triste realidade

Publicado por: Cerejo às fevereiro 18, 2004 12:37 AM

A arrogância daquela gente é nojenta. E dizem-se democratas.

Publicado por: Cerejo às fevereiro 18, 2004 12:38 AM

Aquela gente não é nojenta pois estava no seu direito de se manifestar por uma causa justa.

Publicado por: Cisco Kid às fevereiro 18, 2004 01:05 AM

Bom dia

O que dizes tem toda a razão de ser. Repara que o titulo do JN de hoje é "Juizes exigem uma solução definitiva para o aborto". Fantástico! A solução actual é provisória. Será a única provisória? Ou será que "a tal" solução definitiva, a tal verdadeira, será eterna, para todo o sempre?

Publicado por: Filipe às fevereiro 18, 2004 08:42 AM

Ninguém protestou, à porta do Tribunal, contra o destino das vítimas: os seres humanos que foram para a pia.
Também, como diz a canção: quando nasces não és de ninguém. Os embriões humanos, seres vivos, não são de ninguém, ninguém, entre os nossos bem pensantes se interessa por eles.
Que vão para a pia.

Publicado por: Mendes às fevereiro 18, 2004 09:08 AM

Como classifica aqueles que, como eu, não pretendem a criminalização das mulheres que praticam o aborto, mas que são "Pró Vida", ou seja, que quando se faz um aborto se elimina uma vida?
Alguém é capaz de dizer quando começa a vida?
Às 12 semanas? Após o parto?
Então o que é que existia até esses momentos?Nada?
O problema está somente entre uma gravidez desejada, ou uma gravidez não desejada, e isto é que deve ser assumido. Dizer-se que o que está em causa é um "embrião", um "feto", etc. é escamotear a realidade.
Já alguém ouviu dizer a uuma mulher grávida e que deseja levar a gravidez até ao fim, coisas do género: "Hoje o meu embrião (ou feto) está muito activo". (que coisa aberrante!!!)
Ou, pelo contrário, o que lhes ouvimos dizer, independentemente do tempo de gravidez, é,ou não:
"O meu FILHO"?

Publicado por: Luís Monteiro às fevereiro 18, 2004 04:17 PM


"Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a crítica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal do espírito combativo. Que importa que eles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideias e para a fortificação dos meus motivos de viver; eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo."

(http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/054321.html)

Publicado por: re-tombola às fevereiro 18, 2004 05:38 PM

Num país onde as leis são meras «sugestões», que podem ser ou não ser cumpridas, como observava recentemente o Presidente da República, o desfecho do polémico julgamento de Aveiro não é surpresa nenhuma. Surpresa, apesar de tudo, são a verdadeira mascarada e a hipocrisia geral que leva os líderes parlamentares e deputados da maioria ao despudor de aplaudirem a decisão judicial, congratulando-se com o facto de ter sido feita Justiça.

Quando toda a gente percebe - e o próprio juiz o reconhece indirectamente - que o que se fez no tribunal de Aveiro foi, na melhor da hipóteses, um não julgamento; e, na pior, um julgamento político à medida das indefinições que reinam em matéria de aborto, bem como das pressões a que o PCP e o Bloco entenderam sujeitar o tribunal.

O juiz lembrou que um julgamento vive de provas e que estas não foram produzidas em número e qualidade bastantes para condenar qualquer dos arguidos. Isto apesar de o tribunal ter dado como provado que o médico acusado vive do aborto, actividade criminosa à luz da lei em vigor e muito lucrativa. E mal grado as sete mulheres em julgamento nunca terem negado publicamente aquilo que os próprios líderes das manifestações em seu apoio diziam preto no branco, isto é, que tinham abortado.

Daí que, não se pondo em causa a falta de provas alegada pelo tribunal, a decisão deste se afigure bastante bizarra aos olhos da opinião pública. E apenas compreensível pelo propósito, que o juiz tem a honestidade de assumir de forma mais ou menos directa, de não penalizar as mulheres enquanto o poder político não se decide.

Ora, depois de um referendo sobre esta matéria, a única via razoável e legítima para enfrentar o problema do aborto consiste, pura e simplesmente, em dar outra vez a palavra ao povo. E mais vale a maioria PSD-CDS quebrar o compromisso eleitoral de não reabrir o dossier na actual legislatura - este não seria, aliás, o seu primeiro compromisso a ser desrespeitado - do que persistir no ridículo de manter uma lei a todo o custo e vir depois regozijar-se com o facto de ela não ser cumprida. Como fez Telmo Correia, do CDS, ao registar o facto de o aborto ser um crime em certas circunstâncias e não haver uma única mulher presa por tê-lo cometido.

Este jogo de faz-de-conta, com os tribunais a fingirem que aplicam a lei, ou a fugirem dela com qualquer subterfúgio, e com os políticos a fingirem que cumprem o seu papel quando só no aperto de situações como a de Aveiro se lembram de pressionar o Serviço Nacional de Saúde a aplicar a própria lei há anos em vigor, isto, sim, é contribuir activamente para o descrédito das instituições. É fazer de conta que vivemos num Estado de Direito.
Fernado Madrinha no Online

Publicado por: aj ribeiro às fevereiro 18, 2004 10:20 PM

Quer se esteja a favor ou contra o aborto, tem que se concluir que isto é uma farsa

Publicado por: Dominó às fevereiro 18, 2004 10:55 PM

As declarações do juiz são típicas de um país onde nada é levado a sério. Nem os juizes!

Publicado por: fbmatos às fevereiro 18, 2004 11:59 PM

Na Itália é a mesma coisa. Se os impostos forem muito altos o Berlusconi não paga. E ele é o primeiro ministro. As leis têm que ser vistas com criatividade

Publicado por: Arroyo às fevereiro 19, 2004 12:37 AM

Quanto à questão do referendo, se é verdade que não é justo que se façam os referendos que forem necessários até que o sim vença, também não é lógico que um referendo em determinado tempo possar passar, nos seus resultados a ser como que um artigo da Constituição, intocável.

Ou seja, há um período após o qual, sendo razoável, uma vez que a sociedade é feita de mudança, e uma vez que hoje já nem no CDS se houvem vozes que às claras defendam a criminilização das mulheres que infelizmente abortam, se pode novamente, se não legislar directamente em sede de Assembleia da República, que se possa proceder novamente nova consulta popular, e que esse resultado possa ser um "sim".

Actualmente chegou-se ao ponto do líder parlamentar do CDS defender a não condenação das mulheres e simultaneamente manter a lei tal como está.

E de outros houvem-se vozes de satisfação pelo resultado do julgamento de Aveiro.

Em que ficamos?
Claro que a insistência na repetição dos refendos pode funcoinar nas duas direcções:

Os defensores do não também podem eles insistir nos referendos que forem necessários até que o não vença de novo.

Mas parece-me que para esses o tempo corre ao contrário.

Podiam, ao meno aplicar a lei existente, e nomeadamente não ter vergonha de aplicar a disciçlina de educação sexual nas escolas, tal como passam a vida a defender, sempre que se fala deste tema.

Não fosse a Sra. D. Mariana Cascais...

Publicado por: Al_Mansour às fevereiro 19, 2004 12:58 PM

Há dois níveis, o da moral individual e o da ética, que se reproduz no Direito, e na Lei. O que estamos a discutir é a Lei e não a moral. E o que procuramos é uma Lei, ou seja uma regra que premita uma aplicação generalizadamente considerada justa.

Ora a presente Lei nem sequer é aplicável. Logo tem de ser mudada. Queremos discutir o processo de discussão para mudá-la ou não?

Publicado por: pepe às fevereiro 19, 2004 07:03 PM

Essa teoria tem um grande futuro. Eu acho que tal e tal lei não é aplicável. Logo acho-me isento dela e vou para a net escrever que tem que ser mudada porque não é aplicável.
A questão aqui é que os jornais são contra a lei e os políticos têm medo de os contrariar, mesmo, como neste caso, em que a lei foi referendada pela população.
Portanto o Pepe é que sabe que leis devem ser aplicadas, não o voto popular.

Publicado por: Viegas às fevereiro 19, 2004 07:36 PM

O povo pode enganar-se. É dar-lhe outra vez a voz.

Publicado por: Rita às fevereiro 19, 2004 07:50 PM

E se o povo se enganar outra vez? Isto do povo é de desconfiar, gente ignorante, que se engana muito. O melhor é nem lhe ligar.

Publicado por: Viegas às fevereiro 19, 2004 08:57 PM

Se o povo se enganar vota outra vez. Isso já foi dito

Publicado por: Cerejo às fevereiro 19, 2004 09:50 PM

Cerejo: você percebeu o que eu quis dizer. Está é torpedear o que escrevi

Publicado por: Rita às fevereiro 19, 2004 10:03 PM

Quer estejamos ou não de acordo com a lei, o que se passou em Aveiro foi uma vergonha do ponto de vista do Estado de Direito. Uma vergonha para os deputados e também para o juiz, não pela sentença, que mal ou bem, é soberano, mas pelas declarações que prestou, que fazem duvidar da sua isenção.

Publicado por: Hector às fevereiro 20, 2004 12:46 AM

Nota: o meu intuito foi sublinhar a hipocrisia de alguns líderes políticos que fizeram da questão do aborto uma bandeira política, que desprezam o Estado de Direito que deveriam defender, e não tomar qualquer posição sobre esta matéria.

Publicado por: Joana às fevereiro 20, 2004 09:13 AM

Adenda: Nestas questões fico afectivamente do lado dos injustiçados. Neste caso do lado daqueles que comteram a "imprudência" de votarem não e que agora não passam de trogloditas, de "meia dúzia de fanáticos" como dizia há tempos o Louçã e passam a vida a serem martelados pelos meios de comunicação que, de independência nesta matéria, não têm nenhuma.

Publicado por: Joana às fevereiro 20, 2004 09:17 AM

Caro Viegas,

Eu não sei quais as leis que são ou não aplicáveis, é o Bisp do Porto, a bancada parlamentar do PSD e ... estranho ... do CDS-PP. Não fui que disse foram eles, que t~em o poder legislativo nas mãos.

Cumprimentos

Publicado por: pepe às fevereiro 20, 2004 01:02 PM

É lamentável a situação a que a justiça em Portugal chegou. Todos temos culpa disso e neste caso os meios de comunicação em especial, que tratam esta lei como se fosse uma coisa "ilegal", para não se cumprir

Publicado por: A Nereu às fevereiro 23, 2004 01:48 PM

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