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setembro 29, 2004
O Gestor Contra Natura
A actuação socialista, no governo e na oposição, as campanhas para secretário-geral e a vitória de Sócrates sugerem-me algumas reflexões.
O socialismo nasceu e formou-se na luta contra o statu quo económico e político. Nasceu e formou-se, no século XIX e início do século XX, nas lutas dos trabalhadores contra um sistema económico em que a sua vida era degradante e a sua subsistência precária. Pelas suas referências históricas e culturais, socialismo formou-se como um contra-poder. Mas não apenas como um contra-poder, pois o socialismo apresentou, desde Marx, duas vias: a via da luta pela reforma do sistema económico e social vigente versus a via da luta pela destruição desse sistema e estabelecimento de um novo modelo baseado noutras relações de produção. Essas duas vias foram progressivamente divergindo e deram origem, após a primeira guerra mundial, à cisão entre o socialismo e o comunismo. O segundo implodiu após se ter julgado, a si próprio, como o futuro ridente e necessário da humanidade e o primeiro passou de conta-poder a gestor ocasional desse mesmo poder.
Foi essa ambivalência, entre os genes que lhe deram a luz e a vivência no seio de relações de produção, que inicialmente detestava e que depois protagonizou a sua gestão, que modelou o comportamento socialista nas últimas décadas, principalmente nos países latinos, porque nos países do norte da Europa, quer na sua génese, quer na sua vivência, o socialismo esteve sempre muito mais apostado na reforma que na destruição do sistema.
É essa ambivalência que conduz à situação em que, após cada experiência governativa, os socialistas sejam acusados de meterem o socialismo na gaveta. É essa ambivalência que faz com que a ala esquerda acuse os governantes socialistas, quando a sua popularidade está em queda ou perdem as eleições, de perderem porque fizeram uma política de direita. Ora esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar a derrota pela alegação que os socialistas teriam feito uma política de direita?
A questão é que os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. A solução em que caem sempre é a de gerirem o sistema no papel do gestor contrariado e embalarem essa gestão contra-natura com um revestimento de tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, pois que não a souberam criar.
A sociedade e o mundo mudaram muito na sequência da última guerra, com especial incidência nas últimas três décadas. Houve a globalização, com a emergência das economias de muitos países, os gigantes China e Índia em especial. Houve, nas sociedades ocidentais, importantes alterações das condições económicas, o aparecimento de novos segmentos e camadas sociais, com as suas aspirações e necessidades, houve importantes modificações nas correlações de força entre os diversos segmentos sociais (evito chamar-lhes classes sociais para evitar confusões com a terminologia marxista). Houve drásticas alterações demográficas. Houve imensas transformações e rupturas.
Os socialistas, como partido, ou não se aperceberam disso, ou não conseguiram encontrar respostas adequadas. Quando na oposição mantêm-se prisioneiros de um discurso reivindicativo classista e estéril. Quando no governo não têm ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acabam, forçados pelas circunstâncias económicas, a aplicar as receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sentem pouco à vontade em aplicar essas medidas, fazem-no de forma incoerente e errática e tentam disfarçar essas contradições com políticas sociais com intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.
A direita, nas sociedades ocidentais, tem tentado encontrar modelos de intervenção na esfera económica e social para tomar em consideração essas mudanças na estrutura e dinâmica dos grupos sociais, uma nova postura de afirmação da procura individual do sucesso induzida pelo aumento significativo das qualificações e pelo enorme crescimento da mobilidade social. A direita faz isso com a naturalidade de quem sempre defendeu os valores económicos e sociais que conduziram às modernas sociedades de economia de mercado. Ela nunca foi contra-poder ao sistema. Quando não estava no governo poderia criticar as decisões governativas, nunca o statu quo, nunca pôr em causa os fundamentos daqueles valores. A direita, quando governa, fá-lo sem complexos e com a naturalidade de quem pertence ao sistema, quer erre, quer acerte nas medidas económicas e sociais que toma.
Hoje em dia, o que está em causa é a gestão mais eficiente do actual sistema económico e social e não a sua alteração radical. A direita, errando ou não, gere sem complexos; os socialistas gerem com os complexos de quem, pela sua vivência histórica tem dúvidas sobre o sistema que estão a gerir, e portanto erram quase sempre e acabam sob a acusação, dos seus correligionários, de fazerem uma política de direita.
Ora os socialistas, em vez de proclamarem sistematicamente a sua fidelidade aos imortais princípios referidos a experiências históricas de há mais de século, e que a própria história demonstrou estarem mais que ultrapassados, precisam de redefinir as suas referências no quadro da sociedade actual, mas construindo um projecto próprio (e portanto alternativo ao da direita) de desenvolvimento económico e social viável, e sublinho viável, porque o que têm feito é uma mistura canhestra do projecto de direita desvirtuado pela subsidiarização excessiva, pelo empolamento do Estado, pela dependência face aos lobbies mais perigosos da sociedade portuguesa (os sindicatos da administração pública e congéneres, isto na douta opinião do socialista Silva Lopes), o que leva periodicamente o país à beira do abismo.
E nesse projecto alternativo, os socialistas não devem ter complexos em apostar na eficiência: na eficiência do aparelho do Estado, na eficiência do funcionamento do mercado (melhorando as práticas concorrenciais e a sua transparência), na eficiência social (mas também económica) na realocação dos recursos, no intuito de aumentar a coesão social sem menoscabo da eficiência económica, na eficiência da mobilização social e na afirmação da cidadania para a construção de um país mais próspero, com melhor qualidade de vida e onde seja mais gratificante viver
Ou os socialistas se afirmam no quadro da sociedade actual, acreditando sem reservas mentais nos valores da sociedade actual (na democracia representativa, no mercado livre, na liberdade de escolhas) com um projecto próprio, esvaziado das contradições em que se têm debatido, entre a contestação dos valores da sociedade e a gestão da mesma sociedade baseada nesses valores, ou não passarão de contra-poder.
E como contra-poder, os socialistas somente podem ambicionar chegar ao governo apelando ao populismo demagógico das quimeras distributivas. Mas chegados ao governo apenas se aguentarão o tempo suficiente para o eleitorado verificar que as suas propostas não têm qualquer consistência e a sua aplicação prática, a médio prazo, arruína o país.
Nota - Ler ainda
O Gestor Contra NaturaAdenda
Publicado por Joana às setembro 29, 2004 12:42 AM
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Comentários
Sempre a cascar na esquerda
Publicado por: Cisco Kid às setembro 29, 2004 01:31 AM
Salvo erro, ou melhor opinião, a cisão foi entre socialismo e social-democracia e ocorreu antes da Segunda Guerra Mundial...
Por definição, o comunismo é um limite. Note-se, aliás, que nenhum dos países chamados de «comunistas» pelas Selecções do Reader's e afins reclamava para si essa qualificação. Eram repúblicas socialistas.
É claro que ninguém tem culpa que em Portugal haja um partido social-democrata com o nick «Partido Socialista».
Publicado por: (M)arca Amarela às setembro 29, 2004 01:45 AM
Bom...naum sei se poderia estar escrevendo isso aki...ou melhor perguntando..mas como percebi q quem escreve no site e bem informado..peço uma ajuda o mais rapido possivel...se puder..e q eu tenho um tabalho pra fazer..q estou achando um pouco complicado...gostaria de alguma ajuda...a questao e a seguinte: Aperspectiva materialista na analise politica: luta de classes e rel internacionais. Movimentos contra-hegemonicos. Eh isso se pudesse me ajudar ficaria mt grata...meu trabalho eh para o dia 30/09..mas de qlqr forma Obrigada!
Publicado por: Patricia às setembro 29, 2004 03:22 AM
Gosto sempre, mesmo quando não concordo, dos comentários da Joana. A questão que aqui coloca é complexa, e obriga a que se saia dos caminhos habituais de reflexão.
1. Nenhuma sociedade que se queira civilizada pode aceitar que haja no seu seio uma franja - talvez de 10% ou mais - de excluidos. "Socialistas" que se conformem com essa aberração não são dignos desse nome. Para evitar a exclusão é mesmo necessário redistribuir, e bem. Critica a Joana os socialistas pelo facto de quererem a "distribuição de uma riqueza que não existe, pois que não a souberam criar". Mas o que se quer é distribuir melhor a riqueza que existe, não aquela que não existe. E a que existe é mais do que suficiente para conseguir combater a exclusão social. O que não há é vontade de o fazer, camuflada nessa falácia de que se "não pode distribuir o que não há". Se assim se tivesse pensado, no século XIX, nunca se teria conseguido melhorar a condição dos trabalhadores. O que é facto é que os sindicatos de então tiveram a capacidade para forçar essa melhor distribuição do produto entre os factores capital e trabalho, não só sem levar à ruina as empresas, mas promovendo mesmo a eficiência produtiva.
2. Ao conformar-se com a gestão capitalista da produção, e ao aceitar uma globalização neo-liberal, os "socialistas" estão a contribuir para o incremento da desigualdade económica e social. Incapazes de sair do (falso) dilema capitalismo-colectivismo, esses "socialistas" tornaram-se em meros gestores de segunda do capitalismo mais injusto. A saída deste dilema passa pela aceitação dos mecanismos de mercado e pela negação da posse privada dos meios de produção. Não pela estatização desses meios de produção, mas pela transformação da empresa capitalista em empresa cooperativa. Como é demonstrado pela experiência da Mondragon, no País Basco, cujo sucesso é sistematicamente silenciado.
É claro que o primeiro erro é equacionar "socialismo" com "Partido Socialista". Este nada mais é do que uma peça da oligarquia que nos desgoverna, com um novo secretário-geral ligado ao Grupo de Bilderberg (tal como o actual primeiro-ministro). Dividido entre nostálgicos do marxismo e lacaios do capitalismo mais despudorado, estes "socialistas" encartados não têm os recursos mentais e morais para sair do dilema acima referido. No entanto nem sequer seria muito dificil.
Publicado por: Albatroz às setembro 29, 2004 09:33 AM
Daqui se podem tirar várias conclusões:
- Que a diferença entre os capit..., perdão, a direita e os socialistas, é que os primeiros sabem criar riqueza mas não a sabem distribuir, e os segundos sabem distribuir riqueza mas não a sabem criar.
- Que os socialistas deveriam abandonar as suas ideologias e integrar-se definitivamente no sistema capit..., perdão, na direita, deixando-se de atitudes erráticas.
- Que o sistema capit..., perdão, a direita, é único, infalível e eterno, que garante um futuro radioso para toda a humanidade, os novos amanhãs que cantam.
- Que a terminologia marxista fere certas sensibilidades e, portanto, deve ser banida e substituida por expressões mais civilizadas; por exemplo, deve dizer-se segmentos em vez de classes sociais, tal como os católicos puritanos que não dizem diabo, mas sim dianho ou diacho, quando se referem ao dito cujo. Nada de confusões...
- Que o marxismo é mesmo o dianho (o diacho) no meio disto tudo.
Publicado por: Senaqueribe às setembro 29, 2004 10:32 AM
Cara amiga Joana,
Ao ler o titulo e conteúdo deste texto, voltei a interrogar-me(continuo sem obter explicação lógica) sobre os motivos(contra natura?) que a levaram a votar Guterres...
Publicado por: incredulo às setembro 29, 2004 01:25 PM
Joana, veja o artigo de hoje do Jornal de Notícias:
Leonel Moura
O PS e o futuro
O PS devia criar um Museu com a sua história e começar a viver mais no tempo contemporâneo.
A recente disputa no PS teve o mérito de trazer para a agenda política e mediática um partido que durante mais de um ano só foi notícia pelas piores razões. Afogado na Casa Pia e condenado a responder a ataques, Ferro Rodrigues raras vezes teve espaço para fazer oposição e afirmar alternativas. Por uma vez o PS foi o centro das atenções em causa própria. E esse facto, mais do que qualquer outra coisa, justifica o generalizado contentamento com o sucedido. Já que, bem vistas as coisas, tanto o debate quanto o seu resultado não poderiam ser mais surpreendentes.
Desde logo os intervenientes passaram o tempo a discutir três coisas. Quem era e não era candidato a primeiro- ministro, quem escolhiam para próximo candidato a Presidente da República e quem faria ou não faria alianças à esquerda. Matérias orgânicas e tácticas com pouco significado em termos de políticas concretas.
Propostas práticas só duas. O Estado Estratega de Manuel Alegre e o Plano Tecnológico de Sócrates. O que é pouco e inconclusivo. O Estado tem sempre uma estratégia, nem que seja desvalorizar-se face à iniciativa privada, como é o caso da actual direita. Ficou por conhecer uma nova estratégia. Já o Plano Tecnológico, um quase oximoro, pois se alguma coisa as novas tecnologias nos ensinam é que se dão mal com os planos e se desenvolvem de forma distribuída e caótica. Ficou por saber como se realiza um choque ou salto tecnológico num país com uma elite tão inculta, uma população tão iletrada e uma juventude que odeia a matemática e o pensamento racional.
Quanto à votação a coisa ainda foi mais peculiar. Menos pelo apoio massivo a Sócrates, mas pela escassa percentagem dos seus adversários. Afinal oitenta por cento é a votação normal de um secretário-geral em eleições sem contestação séria. E esta candidatura teve, não só um, mas dois challengers de aparente peso. Os votos que obtiveram são decepcionantes.
De João Soares fica a imagem de um político que de manhã afirma, perante todas as câmaras de televisão disponíveis, que iria ganhar à segunda volta. Para à noite se saber que não passou de uns humilhantes três por cento. A partir de agora que credibilidade tem para falar de política, do país ou até se chove ou faz sol amanhã? Bem sabemos que a política se faz de fantasias, mas uma tão descomunal incapacidade de avaliar o real ultrapassa tudo.
Mas também Manuel Alegre. É certo que não teve o apoio do aparelho mas teve o apoio declarado, visível e activo de destacadas «personalidades» do PS. Mais até do que José Sócrates que se ficou pelos presidentes de concelhias que ninguém no país conhece. O mínimo que se pode dizer é que Alegre não conseguiu representar em votos o que muitos dos seus ilustres apoiantes representam na sociedade portuguesa.
Existe aliás um argumento que o mesmo repete depois da derrota que não pode deixar de estimular as pequenas células cinzentas, como diria Poirot. Afirma que foi a sua intervenção que levou tanto militante a votar. Mas se assim foi, e tendo em conta o resultado obtido, só pode ter sido por medo de que ele pudesse ganhar. Foi o pavor de ver Alegre à frente dos destinos do maior partido da oposição que levou tanta a gente a correr para as mesas de voto.
Com temor da verdadeira esquerda? Duvido. Nesta disputa Soares e Alegre representaram uma corrente histórica que joga com o protagonismo do passado contra a necessária renovação das ideias.
Sempre me pareceu aliás que o maior problema do PS reside no peso excessivo da sua história. Não é razoável que se ande sempre a arrastar os retratos de todos os secretários-gerais para todo o lado e que à mínima oportunidade se exibam fotografias amarelecidas, retratos da família socialista e outras coisas que não dizem nada, absolutamente nada, à maioria das pessoas.
Não é um problema de que padeça só o PS. No Partido Comunista é ainda pior. E o PSD continua às voltas com Sá Carneiro. Mas no PS o passado tem um papel determinante na nomenclatura. O PS devia criar um Museu com a sua história e começar a viver mais no tempo contemporâneo. Enquanto não o fizer as alternativas surgirão sempre do lado do regresso ao passado e não deixarão espaço para um novo pensamento político. Inovador e de esquerda.
Publicado por: vitapis às setembro 29, 2004 04:33 PM
incredulo em setembro 29, 2004 01:25 PM
Votei em Guterres na sua primeira eleição. Menos de 3 meses depois estava arrependida e dizia, a quem me queria ouvir, que Guterres, politicamente, era uma alforreca.
Provavelmente foi para não ouvir Guterres que Ulisses pediu para o amarrarem ao mastro do barco, não fosse ele acreditar nos cantos de sereia do político lusitano.
Publicado por: Joana às setembro 29, 2004 10:45 PM
Portanto o Justino será um Guterres em ponto pequeno!
Publicado por: Viegas às setembro 30, 2004 07:37 PM
Mesmo não estando totalmente de acordo, acho a sua análise das contradições do PS muito interessantye
Publicado por: Novais de Paula às outubro 1, 2004 01:01 PM
Acho que o seu post explica lucidamente, embora de forma sumária, como é natural, as causas das contradições dos socialistas.
Publicado por: Rui Sá às outubro 2, 2004 09:42 AM
O Gama e o Alegre não se entendem. O Alegre está com a arrogância de que foi ele que teve 80%.
Publicado por: Sa Chico às outubro 2, 2004 11:21 PM