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setembro 27, 2004

O Ministro Virtual

Já critiquei aqui, por mais de uma vez, o ex-ministro David Justino (*). Falava com grande fluência sobre os amanhãs que cantariam na educação, mas tinha, na prática, uma acção muito pouco consistente.

David Justino deu, há dias, uma entrevista à RR e RTP2 em que cometeu um erro grave: o ter faltado à promessa que, segundo ele, havia feito a si próprio – “levar até às ultimas consequências o meu silêncio”. Se tivesse cumprido essa promessa teria evitado uma prestação lamentável.

Uma entidade, pública ou privada, deve ser uma organização descentralizada onde cada nível hierárquico é responsável pelos serviços que gere: quer directamente, pelo nível hierárquico imediatamente inferior, quer indirectamente pelos restantes níveis hierárquicos tutelados pelo seu pelouro. A descentralização, implicando embora a responsabilização dos executantes directos, não inibe a responsabilização geral das chefias.

Ora o que é patente na entrevista é que o então ministro David Justino não sabia o que realmente se passava no seu ministério. Apenas sabia aquilo que lhe diziam. David Justino estava no ministério como se estivesse na caverna de Platão: só via imagens reflectidas. Há que reconhecer a lamentável e injusta posição em que David Justino esteve colocado durante 2 anos - sempre virado para a parede - e exprimirmos a nossa solidariedade pela punição que sofreu, mesmo reconhecendo que foi um óbvio caso de auto-punição e de masoquismo governativo.

David Justino assegura que “nunca falei com a Compta, nem nunca acompanhei o processo de adjudicação da programação do concurso de professores.” porquanto havia uma “competência delegada no secretário de Estado da Administração Educativa [Abílio Morgado] e na directora-geral dos Recursos Humanos da Educação [Joana Orvalho]”. Aliás o ex-ministro assegurou mesmo que nem sequer havia alguma vez lido o contrato da prestação de serviços adjudicada à Compta.

E isto porque David Justino “tinha informações, quer da directora-geral, quer do secretário de Estado da Administração Educativa, que os técnicos da empresa demonstravam competência no que estavam a fazer. O pecado original estava no interface entre quem concebe e sabe de concursos e entre quem sabe de programação e executa”.

Não, David Justino. O pecado original não foi esse, nem foi apenas um.

Comecemos pelo mais espantoso e original. A primeira coisa que qualquer gestor faz, em face do falhanço de uma dada prestação externa, é analisar o contrato que titula essa prestação para avaliar as obrigações dos dois outorgantes do contrato, as vulnerabilidades próprias e as do outro contraente e as possibilidades de se exigirem responsabilidades pelos falhanços. Mas David Justino nem sequer se dignou ler o contrato. David Justino apenas ouvia o que a sua “equipa” lhe contava e falava abundantemente à comunicação social sobre as excelências que se iriam abater sobre a educação. Nada o prendia à realidade. Flutuava algures no espaço virtual.

Continuemos pela resposta inconcebível à pergunta sobre se ele, após a constatação da imensidão dos erros detectados (36 mil reclamações), teria acompanhado o processo.

A sua resposta foi lapidar “Não, porque todo este processo é uma delegação de competências no secretário de Estado da Administração Educativa. Que desempenhou um trabalho excepcional.” E quando as entrevistadoras, sideradas, lhe perguntaram “Excepcional???” Justino respondeu com a candura de quem desconhece as pequenas misérias da assunção de responsabilidades: “Foi por isso que pedi uma auditoria e é por isso que acho que deve haver uma comissão de inquérito. Só assim, em vez de se estar a estabelecer suspeições de responsabilidade, podemos saber, de uma vez por todas, o que competia a cada um e que, eventualmente, não foi cumprido

Efectivamente, Justino não sabia nada do que um gestor tem obrigação de saber: quais as responsabilidades e o que competia a cada um. Precisava urgentemente de um inquérito, para que o relator lhe explicasse o que se passava no ministério.

Mas provavelmente Justino tem razão. Mesmo no Ministério da Educação, mesmo nessa instituição célebre pela incompetência que tem demonstrado e pelos erros que tem cometido ao longo de décadas na gestão da educação pública, tamanha enxurrada de erros era demais: foi excepcional! As entrevistadoras interpretaram a palavra “excepção” no sentido positivo; eu acabei de a interpretar pelo seu significado mais neutro e lato; Justino ... bem Justino, obviamente, não sabia o que dizia.

Justino fez ainda algo que deve pouco à dignidade: atribuir publicamente as culpas aos seus subordinados. É sabido que Abílio Morgado, secretário de Estado da Administração Educativa, foi o grande impulsionador deste projecto – mas não era o projecto que estava errado em si, foi a sua aplicação e foi a ausência de uma alternativa em caso de falha, que é obrigatória em situações destas; e aqui Abílio Morgado falhou claramente. Joana Orvalho reconheceu por escrito as suas responsabilidades, e ela era a responsável directa pela sua implementação. Mas um gestor não deve lavar a roupa suja na praça pública - são assuntos para serem resolvidos internamente, com ou sem inquéritos.

Mas isso não invalida a responsabilidade dos quadros do Ministério em todo este processo. E o coro de lamentações dos sindicatos logo que vieram a público as responsabilidades de Joana Orvalho é esclarecedor. Os sindicatos estão interessados em que continue esta incompetência e este laxismo no ministério. Atacam o ministro apenas por motivos políticos. E não querem que casos evidentes da incompetência e do laxismo no aparelho do Estado sejam discutidos na praça pública.

No fundo eles estão todos no mesmo barco. Os ministros vêm e vão; a administração pública permanece imutável: não muda, não se interessa pela mudança, e tem raiva a quem muda.


(*) Nota: ler o texto “Eles Governam (mal), eles Perdem” inserido em 16-Junho-2004 onde escrevi, a certa altura:
David Justino é um sedutor a comunicar, mas nada do seu discurso acaba por ter expressão prática. Esta nova reforma curricular, mais uma ..., vai ser mais um desastre. Por sua vez, os enganos na colocação de professores (esta última lista tinha “apenas” 14 mil erros) são uma trapalhada que não se vê como o ministério a vai resolver. Quando se muda um sistema, qualquer pessoa com experiência sabe que haverá uma fase em que os dois sistemas, o antigo e o novo, têm que coexistir. Seria suicidário não o fazer. As empresas fazem isso quando mudam os programas de gestão financeira e de pessoal. É incompetência absoluta dos serviços do ministério, e indirectamente do ministro, o não terem acautelado esta questão.

Publicado por Joana às setembro 27, 2004 10:42 PM

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Comentários

Poder
Quem o tem, tem ascendente
Poder
Quem o tem faz-se valente
Bem usado
Mal usado
O poder é prepotente

Assim
Diz o povo amiúde
Assim
Herói era toda a gente
Mais val'rico e com saúde
Do que pobre e doente

letra e música : José Mario Branco


cara Joana ,
peço desculpa, talvez não venha a propósito do seu post ( ou se calhar até vem ), mas Vc está a tornar isto muito cinzento.

Publicado por: zippiz às setembro 28, 2004 12:05 AM

Poeta, hem!

Publicado por: Joana às setembro 28, 2004 12:18 AM

O Justino sempre me pareceu um flop...
Neste momento desce ao ponto de bramir um papel escrito pela única pessoa com verticalidade naquele ministério... A SENHORA (as maiúsculas não são fruto de um teclado 'faralhado' que lhe solicitou a demissão que, a seu pedido, acedeu a trabalhar mais uns tempos naquele Ministério, merecia estar sossegada...
Por fim a divulgação que sinalizou os bons e os maus dentro do Ministério! -Uma perfeita anedota.
Não se faz...
Já o escrevi no meu blogue: o Justino tem a moral de um pilha-galinhas...

Um abraço,
Francisco Nunes

Publicado por: Planície Heróica às setembro 28, 2004 12:21 AM

Francisco Nunes
Também a mim. Isto é, nos dois primeiros meses fiquei na expectativa ... mas ele tinha aqueles modos do Guterres ... aquela sedução comunicacional que eu havia enjoado com o Guterres. Rapidamente me apercebi que era mesmo um flop.

Um abraço para si e obrigada pelas visitas!
Joana

Publicado por: Joana às setembro 28, 2004 12:51 AM

O Justino parece simpático e não há dúvida que quem executou as colocações foi o pessoal do ministério. Ele não podia mudar o ministério

Publicado por: Coruja às setembro 28, 2004 03:10 PM

Mas o ministro devia saber o que o ministério andava a fazer. Ele era pago para isso. Até a reaças da Joana reconhece isso

Publicado por: Cisco Kid às setembro 28, 2004 03:27 PM

Gostei, Joana. Tem a minha concordância

Publicado por: Arroyo às setembro 28, 2004 03:47 PM

Pois, o Justino não passava de um fala-barato.

Publicado por: Carrilho às setembro 28, 2004 04:58 PM

O Justino pode ser tudo o que dele agora se diz (agora que já não é ministro). Pode, até, ser muito mais...
Há, no entanto, um pequeno pormenor que não aparece aí nos comentários: o Justino (o fala barato, o incompetente, o virtual, o etc...) foi escolhido para ministro por um primeiro-ministro. O mesmo que escolheu o Isaltino, a Celeste, o Martins e o resto da troupe.
O processo das listas de professores é (para usar uma terminologia familiar a Joana) um epifenómeno.
Quando for possível fazer o balanço da acção governativa desta coligação, veremos quem vai figurar no top ten dos ministros virtuais e se há algum virtuoso.
Atirar para os ombros de uma directora-geral a responsabilidade do fracasso de uma operação que se arrastou ao longo de meses com falhanços sucessivos é patético.
Tentar lavar a imagem da coligação de direita, retirando-lhe a responsabilidade política que obviamente tem, é anedótico.
Para o tuning ser completo, só falta começar a cantar:

Lá vamos, cantando e rindo,
levados, levados sim...

Publicado por: (M)arca Amarela às setembro 28, 2004 08:12 PM

Daqui se podem tirar várias conclusões:
- Que, em política, o cretinismo não é exclusivo de um só quadrante.
- Que, neste regime, a função ministerial é supérflua e pode ser exercida por um qualquer idiota.
- Que, continuando assim, Portugal tem garantida a sua eterna posição na cauda da Europa e não pode aspirar a mais.

Publicado por: Senaqueribe às setembro 28, 2004 09:15 PM

Quem é que sabe quantos são os funcionários no Mistério da Deseducação ?

Publicado por: John Holmes às setembro 29, 2004 12:23 AM

Justino foi uma desgraça e a forma expedita como a actual ministra resolveu o assunto depois de ter verificado que o sistema que tinha sido adquirido não chegava a sítio nenhum é a machada final na sua reputação

Publicado por: Valente às outubro 2, 2004 12:08 PM

Quando Justino deu essa entrevista nunca lhe passou pela cabeça que a questão pudesse ser resolvida desta forma expedita. Se tivesse esperado mais uns dias nunca teria dado aquela entrevista e teria sido muito melhor para ele.
Há pressas que dão em azares

Publicado por: Valente às outubro 2, 2004 12:11 PM

AUTHOR: Absint
EMAIL: luba@does.it
IP: 64.136.164.50
URL:
DATE: 02/28/2005 08:45:06 AM

Publicado por: Absint às fevereiro 28, 2005 08:45 AM

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