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abril 11, 2005
O Apóstata Cravinho
O liberalismo económico tem um novo apoiante João Cravinho. Não o trato pelo título académico, porque ele nunca engenheirou. Começou como funcionário público e foi nesse cadinho de comportamentos inovadores que formou a sua mentalidade. Mas hoje fez, publicamente, a sua apostasia. E com o arrebatado fanatismo dos recém-conversos Cravinho não se ficou pelos nossos dias, irrompeu pela História Pátria numa impetuosa fúria revanchista, não deixando pedra sobre pedra dos nossos ícones mais caros.
A revolução liberal, cuja hagiografia havia constituído o enlevo dos profissionais da democracia em Portugal, é esconjurada liminarmente ela não criou um solo fértil para a irradiação do pensamento liberal. Esta frase mortífera liquidou a questão. Pois é ... a revolução liberal produziu uma nova classe, em substituição da anterior, ainda mais dependente do Estado ... pois se até o seu património era fruto da venda dos bens nacionais. De facto criou uma classe privilegiada dependente do Estado e toda uma sociedade urbana dependente de empregos públicos sustentados pelos impostos.
Pior ... o Rubicão havia sido atravessado, e nada deteve Cravinho na sua ânsia iconoclasta de ajustar contas com o estatismo gerado e acarinhado pela revolução liberal acusa-o de ter levado à ditadura. Na verdade concorreu para ela, mas Cravinho, se não estivesse possuído do furor apóstata, certamente reconheceria que o anti-clericalismo e as fraudes eleitorais gigantescas da 1ª República, que não permitiam alternativa eleitoral ao republicanismo laico pré-socialista de então, ajudaram em muito a criação de uma base social de apoio à instauração da Ditadura.
Depois do ajuste contas com o passado, Cravinho explica porque foi iluminado pela fé: a direita liberal ... continuaria espécie exótica adiada, não fossem os brutais choques externos que ameaçam fazer implodir o passado que foi sobrevivendo na sociedade portuguesa, cega aos riscos da nova concorrência global ... É neste contexto que a direita liberal vê a sua janela de oportunidade. Pensando que em breve se tornará evidente que só ela tem as respostas certas para dar futuro aos portugueses no mundo globalizado..
Mas Cravinho é um profissional da política. Formou o seu pensamento no percurso entre o aparelho de Estado e aparelho partidário. Ele tem uma reconhecida e fecunda experiência do que é mentir aos eleitores em campanha, como acto necessário para colher dividendos políticos: Mas o que é evidente para intelectuais e quadros cosmopolitas bem instalados na vida nem sempre é sufragado eleitoralmente pelos familiarizados e desesperados com os problemas da sobrevivência quotidiana. O que inviabiliza praticamente o combate a peito descoberto.
E é neste impasse que o recém-convertido põe a sua experiência de aparatchik à disposição dos neoliberais, menos versados na chicana política: fazer o takeover ideológico de um partido de Governo a partir de centros de poder capazes de fazer acontecer novas realidades no plano mediático e novos protagonistas no plano político. Esses centros terão de existir, pelo menos, no meio empresarial, na comunicação social e nas universidades e, claro está, dentro do próprio partido. Terá de haver também um partido de Governo em arrasadora crise de identidade susceptível de se deixar levar pela direita liberal na procura de novas soluções de fundo. No fundo sugere que se faça aquilo que já havia acusado Sócrates de pretender fazer, no último congresso do PS.
Embora esta conversão do Cravinho me tivesse obviamente emocionado, julgo que talvez seja desnecessário recorrer à chicana política para convencer o eleitorado. É certo que o Partido do Estado, como lhe chama Medina Carreira, tem 52% do eleitorado. Todavia 70% desse Partido é constituído por pensionistas, reformados, e subsidiados por diversos motivos, principalmente por estarem no desemprego. Ora essa gente sobrevive, na sua quase totalidade, com rendimentos miseráveis justamente porque o sector público, o Moloch estatal, devora a seiva vital do país ... sobeja uma ninharia. E os desempregados devem a sua situação à perda de competitividade das empresas, perda de competitividade para a qual o devorismo do sector Estado tem concorrido sobremaneira. Embora pertencentes ao Partido do Estado, há um notório conflito de interesses entre eles e o Moloch.
Por sua vez o sector público não é constituído exclusivamente por asilados. Entre os mais jovens e entre os mais qualificados há muita gente capaz que gostaria de ver o seu mérito recompensado, que olha com desgosto para o que vê à volta e que aspiraria a uma reforma desse sector que o modernizasse e tornasse eficiente. Os mais capazes não se sentem realizados profissionalmente nesse ambiente esclerosado.
É claro que para toda esta gente perceber de que lado está a saída do impasse em que estamos, será necessário haver um corpo coerente de doutrina, haver soluções claras para a reforma do sector público (porque senão continuará instalado o medo do desconhecido) e continuar a haver este resvalar lento, mas inexorável, para o abismo.
Bastam estas condições. Não é preciso que os neoliberais façam um takeover ideológico de um partido de Governo. Provavelmente o que irá acontecer é um partido de Governo fazer um takeover político à ideologia neoliberal. Por enquanto, os chicaneiros políticos dominam em ambos os partidos. Mas o país está confrontado com as duras realidades de hoje da economia real, sem os instrumentos de há 20 anos desvalorização cambial, taxa de juro, etc..
Sabe-se lá se não será o próprio Sócrates o primeiro a tentar esse takeover? ... agora, que tem o apoio inesperado de Cravinho!
Publicado por Joana às abril 11, 2005 09:16 PM
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Comentários
Confesso que, no plano do "combate intelectual", lê-se este escrito de Joana como quem saboreia gulosamente um rebuçado. É pena que as soluções sejam de facto muito dolorosas.
Publicado por: asdrubal às abril 11, 2005 10:49 PM
Soou-me mais a um "Cuidado, porque se não formos nós a pegar nisto, vão ser eles" Nisto = políticas liberais anti-estatizantes. No fundo penso que Cravinho está é interessado em manter o seu partido no poder, nem que seja à custa de alguma perda de identidade ideológica.
Publicado por: Miguel às abril 11, 2005 11:45 PM
Identidade ideológica? Qual identidade ideológica? O PS é menos socialista que o Partido Fascista Italiano de Mussolini, e está à direita do NSDAP... Limita-se a ser a ala centro-esquerda do Partido Situacionista, que inclui ainda o PSD, o CDS, o PCP e o BE... Voltámos à União Nacional (em pior) mas ainda não demos por isso porque as suas tendências aparecem sob siglas distintas...
Publicado por: Albatroz às abril 12, 2005 12:16 AM
Muito bem esgalhado, Joana
Publicado por: fbmatos às abril 12, 2005 01:33 AM
O Cravas, o responsável pelas SCUTS, com uma conversa daquelas. É preciso não ter vergonha
Publicado por: Rave às abril 12, 2005 01:34 AM
O Cravinho esteve ligado (e julgo que ainda esteja) ao delfim da Champalimaud antes do 25 de Abril (depois abandonou a Empresa de Cimentos de Leiria). Aquele negócio da Cidade Nova em Loures foi "descoberto" pelo Cravinho e desenvolvido por esse sujeito e outros.
Julgo que também estava associado a uma coisa em Albufeira com o mesmo sujeito.
Publicado por: anonimo às abril 12, 2005 02:23 AM
Quem abandonou a Empresa de Cimentos de Leiria foi o tal delfim da Champalimaud que era então Director.
A Cidade Nova em Loures é o exemplo mais desastroso do urbanismo suburbano.
Publicado por: anonimo às abril 12, 2005 02:25 AM
Esse Cravinho, quem não o conhecer, que o compre.
Publicado por: anonimo às abril 12, 2005 02:27 AM
Li o artigo de Cravinho, e não me parece que se possa dizer que ele se "converteu" ou que fez a sua "apostasia". Só o facto de ele falar de "DIREITA liberal", quando se identifica a si mesmo como de esquerda, significa que ele está a falar na terceira pessoa, como de uma realidade que não é a sua.
Eu, sendo um liberal de esquerda, não tenho muito medo da direita liberal quando ela se apresenta com as roupagens com que a Joana a veste; ou seja, quando se apresenta efetivamente liberal, e compreensiva dos problemas sociais que efetivamente existem, e da necessidade de a eles atentar. Mas arrepia-me a aliança que bom número de "liberais" de direita fazem por motivos de chicana política ou mesmo por vocação - eu suspeito bem que seja o último caso o verdadeiro - com a direita conservadora. Porque então só conservam o liberalismo económico - se é que o conservam, eu duvido - mas em tudo o resto aliam-se aos poderes fáticos existentes.
E isso é que já não engulo.
Publicado por: Luís Lavoura às abril 12, 2005 10:21 AM
Liberal de esquerda? Deve ser uma espécie recente. A esquerda que conheço é adepta do papel dominante do Estado, não só nas funções sociais como na vida económica
Publicado por: Hector às abril 12, 2005 11:27 AM
Tem razão, Hector. Mas olhe que os liberais de direita também são uma espécie recente...
Publicado por: Luís Lavoura às abril 12, 2005 11:36 AM
Não me parece que seja recente. Têm mais de 2 séculos.
Em Portugal é que tem estado pouco representada.
Publicado por: Hector às abril 12, 2005 11:48 AM
Se vamos para os antecedentes históricos, Hector, então os liberais de esquerda também os têm antigos: o anarquismo, que tem um século e meio de existência. E que não esteve nada mal representado em Portugal, tendo até tido bastante atividade.
Publicado por: Luís Lavoura às abril 12, 2005 12:02 PM
Que eu saiba os anarquistas eram libertários em política, mas anti-liberais em economia. Se é que eles se preocupavam com a ciência económica.
Não era Proudhon que escrevia que a propriedade era um roubo?
Publicado por: Hector às abril 12, 2005 12:22 PM
Luís Lavoura às abril 12, 2005 10:21 AM:
Limitei-me a ler o artigo de Cravinho e "activar" as suas incongruências.
Não me parece que os liberais sejam muito versados em chicana política. Os chicaneiros são os que parasitam o Estado (de direita ou de esquerda)
Essa sua ideia resulta da nossa cultura dominante estatista, que olha o liberalismo como pecado.
Publicado por: Joana às abril 12, 2005 02:09 PM
O que os anarquistas eram, era anti-colectivistas. Tanto lutavam contra o Moloch estatal como contra os Molochs mais pequenos - igrejas, partidos, empresas, etc.
Publicado por: Zé Luiz às abril 12, 2005 02:14 PM
Eram contra as pátrias, os exércitos, as igrejas, as polícias - porque não haveriam então de ser contra as empresas?
Publicado por: Zé Luiz às abril 12, 2005 02:20 PM
Não me parece que os anrquistas tivessem algo a ver com os neoliberais
Publicado por: Diana às abril 12, 2005 05:13 PM
Pois não, Diana. É que os neoliberais são de direita, os anarquistas são de esquerda. A diferença básica é que os liberais de direita acham que só o poder dos Estados é que está mal e oprime - o poder das empresas privadas é despiciendo e não oprime. Os anarquistas acham que todo o poder oprime e deve ser posto em causa - tanto o poder dos Estados, como o das igrejas, como o das empresas, como o dos exércitos.
A diferença é também que, enquanto muitos anarquistas morreram ou foram postos na prisão por lutarem pela liberdade, nenhum neoliberal alguma vez pôs a sua mão no fogo por ela.
Publicado por: Luís Lavoura às abril 12, 2005 05:57 PM
""Quando chegar o dia - e é a vós que cabe apressar a sua vinda - em que uma região inteira, em que grandes cidades, com os seus subúrbios se libertem do jugo dos seus governantes, a nossa missão é bem clara : todo o equipamento deve regressar à comunidade, todos os meios sociais em posse de indivíduos, devem ser restituídos aos seus legítimos proprietários isto é, a todos, para que cada um tenha direito à parte que lhe cabe no consumo, para que possa continuar a produção de tudo o que é necessário e útil, e para que a vida social, longe de ser interrompida, possa retomar com a máxima energia"
Não, não foi o Dr. Rosa que disse isto nem o Dr. Boaventura.
Foi Kropotkine citado por George Woodcock em O Anarquismo Editora Meridiano o homem e o tempo.
Publicado por: carlos alberto às abril 12, 2005 06:24 PM
O Cravinho não é um dos infiltrados do Oriente Lusitano no PS? Se sim, se o tipo alinha por essas bandas, não me espanta que alinhe pelo "centrão" que tomou conta do PS pós-Ferro. É caso para dizer "tudo para a Direita, e em força!".
Por outro lado, espantou-me ler que o Cravinho teve já um emprego na vida, porque pensava que ele sempre vivera às custas do PS e do Estado.
Quanto às SCUTs... Elas foram criadas com objectivos eleitorais sem ter em conta os custos a Médio prazo, nem quem os iria pagar... Uma daquelas decisões de "consenso"/"semsenso" do pior do guterrismo.
Publicado por: Rui Martins às abril 12, 2005 08:58 PM
De uma curiosidade:
Via na «RTP Memória» uma reportagem, em Setúbal e em 1995, acerca de uma fábrica de conservas de peixe que ia fechar, quando, comentando os factos, oiço o repórter dizer «que existem neste momento 58 mil desempregados registados nos Centros de Emprego».
Quere-se dizer, numa década, aquele número quase multiplicou por cem. Eloquente.
Publicado por: asdrubal às abril 12, 2005 09:58 PM
Se calhar era só no distrito de Setúbal, Asdrubal... De qualquer modo gostei muito do poste, como é hábito.
De qualquer modo, o problema com o «partido do estado» parece uma pescadinha de rabo na boca: nem quem empunha no momento as alavancas do poder do estado pode desmantelar as redes de clientelismo estatal sem arriscar a rápida erosão da sua base de apoio, nem quem depende do mesmo clientelismo pode apostar no desmantelar dos seus «direitos adquiridos» e «privilégios corporativos». Aliás este beco sem saída é um problema geral na Europa continental, que já vem do século 19, onde o arranque industrial se fez essencialmente à custa de apoios estatais.
Publicado por: Pedro Oliveira às abril 13, 2005 11:08 AM
Fica-se uns dias fora e perde-se mais um debate...
Associado a direita e esquerda estão os partidos, luta pelo lugares políticos, jogadas de poder, etc. Tudo isto não tem nada a ver com liberalismo, que se coloca no plano das ideias e, quanto muito, na tentativa de influenciar com essas ideias, e nada mais, os políticos, quer sejam de direita ou de esquerda.
Um político usar o termo "liberal" faz com que o conceito fique vazio de conteúdo. É uma palavra que deverá estar a subir nos índices de aceitação dos portugueses e daí esta pirueta cravinhense.
Há que notar que para políticos tipo cravinho não há em nada disto qualquer contradição, uma vez que a pioridade é o manobrar o sistema de poder, sacrificando no caminho o que for necessário.
Publicado por: Mário às abril 13, 2005 01:44 PM