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outubro 31, 2005

Estado (A)Social e Iliberal

O Governo pretende negar o subsídio de desemprego aos trabalhadores que rescindam o seu vínculo laboral por mútuo acordo com a as respectivas empresas. Com a actual legislação laboral, a única possibilidade de uma empresa redimensionar os seus efectivos era através da rescisão amigável. Penalizando os trabalhadores, o governo pôs mais um prego no caixão da nossa competitividade. Não há almoços grátis ... alguém terá que pagar a diferença. Em futuros acordos os trabalhadores a quem for proposta a rescisão amigável farão os seus cálculos tendo em atenção as novas disposições. Uma das partes (provavelmente a empresa) ou ambas terão que pagar o excesso.

Em teoria é justificável a medida de acabar com subsídios de desemprego quando houver uma rescisão amigável. Todavia, face ao nosso Código Laboral, uma rescisão amigável é, na quase totalidade dos casos, a forma que a empresa tem de reduzir os seus efectivos ou livrar-se de monos. Na verdade não é propriamente uma rescisão amigável – é o despedimento possível. O Governo, segundo parece, vai estabelecer limites de rescisões anuais, abaixo das quais continuam a aplicar-se os preceitos actuais. Todavia esses limites podem revelar-se muito baixos nas grandes empresas (o limite máximo será, segundo parece, 10 efectivos por ano). E será dramático em empresas (pequenas ou grandes) que tenham que fazer reestruturações profundas.

A perversão do Estado português é pôr os cidadãos, nomeadamente os do sector privado, a sustentarem os seus vícios. São os privados que têm que fazer a filantropia social que o nosso Estado Social não é capaz. Os senhorios fazem filantropia social a contra gosto, continuando a receber rendas ridiculamente baixas; os empresários têm que manter nos seus quadros efectivos que deixaram de lhes interessar porque cristalizaram ou foram avessos à requalificação; todos temos que pagar o gigantesco asilo público em que o sector público se transformou. O Governo não o reforma e somos nós que continuamos a pagar essa ciclópica obra de filantropia social.

Portugal não tem um Estado Social. Apenas tem um Estado Iliberal e predador. São os contribuintes, os senhorios, os empresários, etc., que fazem a filantropia social no nosso país. Em alguns casos o Estado faz o papel de mediador. Infelizmente é um mediador que desbarata a maior parte do dinheiro que lhe entregam.

Publicado por Joana às 06:55 PM | Comentários (98) | TrackBack

outubro 30, 2005

O Lado Certo da História

Um dos estereótipos mais queridos da esquerda é o de esta ser a portadora da virtude e da honestidade, como oposição à direita, que é a portadora do vício e do peculato. Esse estereótipo não se baseia em nada de consistente, resulta apenas da leitura subjectiva e maniqueísta que a esquerda faz das suas acções e da forma como julga as acções dos outros. É a herança do marxismo como utopia de uma sociedade perfeita e de uma vanguarda consciente (partidos e ou movimentos) que iria conduzir as massas à redenção. Se cabe a essa vanguarda a salvação e a redenção da humanidade, os seus actos são obviamente bons e virtuosos. Os que se opõem a essas ideias só podem ser celerados e corruptos.

O mesmo acontece com as virtudes democráticas. Sempre que tiveram oportunidade de enveredar pelo caminho da construção da utopia, aquelas vanguardas conscientes produziram regimes totalitários que massacraram impiedosamente as massas que pretendiam redimir, na impaciência de construírem o “homem novo”. Isso não invalida que continuem a ser os donos da democracia e que aqueles que se lhe opõem sejam, por convenção, anti-democráticos e estejam em permanente conspiração para liquidar a democracia.

Este é o argumento que a esquerda, aquela que tem no seu código genético o marxismo, irá reeditar nas próximas presidenciais. Aliás, já começaram os prolegómenos. O primeiro mote, lançado por lebres de serviço, foi o dos poderes presidenciais. Outros surgiram entretanto (como o dos "políticos profissionais", p.ex.) e outros se seguirão. Os factos não interessam. As causas devem prevalecer sobre os factos.

Por exemplo, Lula da Silva foi eleito como redentor da moral política brasileira. Lula e o PT eram os elementos impolutos que iam resgatar o Brasil. Duvidar dessa verdade absoluta seria uma heresia. Desde então muito se tem passado. Começando no assalto ao aparelho do Estado (aliás, a usurpação do aparelho do Estado pela esquerda sempre foi vista com benevolência, mesmo como coisa natural e legítima) e descambando em suspeitas de corrupção grave (a questão do mensalão), desvio de fundos e dinheiro corruptor transportando-se em cuecas de políticos, etc.. Agora surgiu a notícia de um alegado financiamento da campanha eleitoral do PT por Fidel Castro.

Nada disto põe em causa as virtudes morais e democráticas da esquerda. Recentemente, quando esteve no Brasil, Mário Soares declarou à Folha de S. Paulo: «Eu também tenho dito que o Brasil e o presidente Lula não mereciam isso que está a passar, essa doentia especulação acerca dos problemas da corrupção». Ou seja, para Mário Soares o mal não estava na corrupção em si, mas pela «doentia especulação» que dela era feita. As virtudes da esquerda foram estabelecidas por convenção e não sofrem menoscabo pelo empecilho dos factos. O que é doentio são estas irritantes e permanentes notícias sobre a corrupção.

Soares não sente que a sua virtude democrática fique diminuída quando infringe leis eleitorais que se supõem sejam o garante do funcionamento dessa mesma democracia. Só vê, ou diz que vê, o argueiro no olho do opositor. É o problema do relativismo ético da esquerda – amarra os factos no leito de Procusta das suas convicções até terem um “formato” adequado às suas causas, às suas opções políticas e ideológicas, ou os seus princípios virtuosos. Não vê qualquer óbice nisso, pois “sabe” que está do “lado certo da história”.

A perversidade está em que este relativismo ético utiliza os conceitos que levaram aos totalitarismos: a convicção absoluta da verdade de que se é portador; a de que a verdade é a sua verdade; a de que a se pode agir sem se estar espartilhado por concepções do Estado de Direito, porque se é o motor necessário do progresso histórico e social; a de que à direita apenas lhe resta a sarjeta da história e, portanto, tudo o que ela faça ou proponha é uma acção cavilosa e conspirativa que apenas visa comprometer o futuro da humanidade.

O relativismo ético não se circunscreveu à esquerda. Foi igualmente uma arma ideológica do totalitarismo de extrema-direita. Apenas com uma diferença: os nazis não o assumiam com o refinamento intelectual utilizado pela esquerda de inspiração marxista ou de utopias quejandas. Isso fez com que o relativismo ético nazi fosse enterrado com as cinzas do III Reich. E essa mesma diferença faz com que a esquerda se continue a assumir como detentora da bandeira da ética e das virtudes democráticas, quaisquer que sejam as circunstâncias, quaisquer que sejam acções que tenha praticado.

Este relativismo ético é sedutor. Desde sempre a humanidade sonhou com uma sociedade perfeita. Desde os primeiros filósofos que se têm delineado utopias. Enquanto a humanidade tem construído, pouco a pouco, uma sociedade mais rica e mais equitativa, diversos filósofos e políticos têm proposto utopias. Felizmente quase todas ficaram apenas em livro, pois as que foram levadas à prática não se concretizaram e saldaram-se em sangrentos massacres. Era um resultado esperado, pois construir uma sociedade não é construir um edifício. As pessoas não são tijolos, pois têm vontade própria e têm tendência a agir de acordo com as suas preferências. E partir um tijolo que não encaixa não é comparável a liquidar uma pessoa que não se insira no “sentir colectivo”.

E é por ser sedutor que deve ser combatido. O que ameaça a democracia é justamente o relativismo ético de quem se julga do “lado certo da história”.

Publicado por Joana às 10:48 PM | Comentários (277) | TrackBack

outubro 28, 2005

A Fase Ridícula do Projecto

Depois das notícias dos jornais de hoje fiquei tranquila. Não haverá OTA nem, num horizonte próximo, TGV. Teremos apenas uma ópera bufa de que as declarações vindas a lume hoje constituem o prólogo. Quando as coisas se tornam demasiado estúpidas deixam o campo do real e caem na alçada do ridículo, do entremez, da farsa. Passam da vida real para o palco da comédia. Os engenheiros cedem o passo aos cantores e os trolhas são substituídos pelo coro. O projecto dá lugar à pantomina.

Mário Lino tem alguma matreirice para a pequena questiúncula, é uma nulidade na inteligência estratégica; é um bom organizador “à vista”, não tem qualquer noção das repercussões a médio e longo prazo de uma decisão. Disseram-lhe que a OTA e o TGV fazem parte do programa do Governo e são uma promessa a cumprir, e ele está empolgado no assunto, indiferente a quaisquer outras considerações, incapaz de se questionar sobre a racionalidade dos projectos … tudo isso são matérias que pairam num espaço diverso do das vocações dele. Se lhe tivessem dito que a missão era pôr um homem em Júpiter em 2009, ele estaria com o mesmo empenho e discernimento a trabalhar no assunto e a enviar comunicados para os jornais, indiferente à risota geral do país.

Disseram-lhe que nem pensar em aeroportos na zona de Lisboa, porque isso poderia ser uma tentação para que a Portela continuasse em funcionamento, e a solução tornou-se evidente: A localização ideal do aeroporto para as companhias «low cost» é Beja. Para a matreirice “à vista” de Mário Lino, a solução é genial – Beja é uma cidade onde o custo de vida é baixo, pelo menos é mais baixo que em Lisboa. Queriam «low cost»? Aí o têm! Quem é o esperto?

Coube a Mário Lino a invenção do conceito que primeiro toma-se a decisão e depois, à medida que o empreendimento for avançando, avalia-se a sua viabilidade. Fazer um estudo de viabilidade exige um sentido estratégico, pelo menos para definir com racionalidade os cenários e os parâmetros a considerar. Quem não tem sentido estratégico não é capaz de definir cenários racionais. Logo não precisa de estudos de viabilidade. Logo, Mário Lino está certo: ele não precisa de estudos porque a viabilidade está na ordem inicial – fazer. Pediram-lhe para fazer … e ele está a fazer.

Claro que não está a fazer. Mário Lino está a falar. Ele, nos próximos anos, só tem dinheiro para falar. Se daqui a um ou dois anos Sócrates lhe disser: Mário, afinal o aeroporto não pode ser na OTA, é melhor Beja, então Mário Lino enviará um memo aos seus colaboradores a pedir que, nas diversas peças escritas e desenhadas sobre o assunto, se faça um “find&replace” substituindo OTA por Beja. Assunto resolvido; missão cumprida.

Por outro lado, com o formato actual do projecto, nenhum privado se interessará pela OTA. A menos que sejam pseudo-privados. A menos que invistam ali, para ter o merecido retorno algures, noutra área qualquer. Porque a OTA, no seu formato actual (e mesmo nos formatos que a minha vista alcança) não tem retorno para incentivar a participação de privados. Cabe a todos nós estarmos atentos para que não surjam negócios paralelos onde os contribuintes acabem por sustentar, indirectamente, este disparate.

Por enquanto podemos estar tranquilos. O projecto da OTA ainda não saiu da fase verbal. E está a enveredar pela via do ridículo. E o ridículo mata.

Publicado por Joana às 06:59 PM | Comentários (103) | TrackBack

outubro 27, 2005

Os Fantasmas de Hampton Court

Num castelo povoado de fantasmas, escolhido a propósito pela presidência inglesa, vai-se realizar a cimeira que consagra, pelo menos pelos tempos mais próximos, a incapacidade da Europa encontrar uma via que a faça sair da estagnação económica em que se encontra. Haverá fantasmas para todos os gostos – os que deambulam há séculos por aquelas paragens, e os mais recentes, que a Europa tem porfiadamente criado nas últimas décadas. Os primeiros entusiasmam os turistas; os segundos extasiam o pensamento decrépito da velha Europa. Os primeiros geram receitas; os segundos vão-nos levar à falência.

Tony Blair começou a sua presidência, há 4 meses, afirmando empolgado que a Europa teria que mudar ou morrer. Depois de observar e ajuizar os pacientes, Blair concluiu pelo velho aforismo que celebrizou o pior governante (depois de Guterres) que Portugal teve: Morrer … mas devagar. Os britânicos limitar-se-ão a identificar alguns temas que mostrem que a Europa não está em pane e que pode responder às necessidades dos cidadãos. Ou seja, a locomotiva europeia está aos soluços, praticamente parada, mas lá dentro estamos todos confortáveis, o champanhe corre e acendem-se charutos. Como as janelas estão embaciadas, não se sabe o que se passa lá fora.

Durão Barroso apresentou uma medida que tem tido enorme êxito mediático: a criação de um Fundo de Adaptação à Mundialização destinado a ajudar os assalariados vítimas de reestruturações. O êxito desta medida estava assegurado à partida e a sua proposição revela a clarividência do nosso ex-PM, já demonstrada em Junho de 2004. A Europa não quer tomar medidas no que respeita à redução do peso do Estado, mesmo quando lhe dizem que é a única forma de aumentar a competitividade e enfrentar a globalização. Para quem tem este vício gastador, que outra medida seria mais indicada do que a de despender mais dinheiro num Fundo de Adaptação à Mundialização? O problema está resolvido: combatemos a globalização gastando ainda mais dinheiros públicos.

Os Britânicos não perderam entretanto todo o seu afã inicial … ainda sobejaram réstias. David Blunkett afirmava há dias que há na Europa um mal entendido: muitos têm acreditado, há muito tempo, que o liberalismo destruía os empregos. Nós queremos mostrar que a política social depende do crescimento. Todavia esta declaração, para os ouvidos de Chirac, que já afirmou diversas vezes que o liberalismo é pior que o comunismo, é deitar água num cesto de vime. Nunca lhe conseguirá mostrar nada.

Há que reconhecer que vão ser definidas algumas prioridades, que têm interesse óbvio, no que toca à investigação e ao desenvolvimento tecnológico. É todavia duvidoso que essas prioridades tenham impacto significativo na economia europeia, não porque não sejam importantes, mas porque o próprio modelo de funcionamento europeu tratará de lhes atenuar o impacto. E, qualquer efeito que tenham, será a longo prazo.

E, como se esperava, a questão do cheque britânico versus subsídios da PAC continua por resolver …

Uma coisa que me impressionou foi a mediocridade das afirmações de José Sócrates. O nosso PM tinha adquirido um certo traquejo manuseando a cassete que desde o início do ano tem recitado aos portugueses. Mas sobre a Europa e os problemas europeus apenas balbuciou banalidades, mostrando uma grande insegurança. São problemas que claramente o transcendem. Os problemas de cá também o transcendem, mas consegue disfarçar. Em terra de cegos (ou que julga que sejam cegos) quem é amblíope é rei.

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outubro 26, 2005

Ranking das Escolas 2005

Foi divulgada a lista ordenada das escolas secundárias com base nas notas dos exames nacionais do 12º ano, referentes a 2005. Quando se lêem opiniões nos jornais, verifica-se que a maioria das pessoas, principalmente os pais, é a favor da sua divulgação e os professores estão contra. Não me parece que seja de tomar como amostra muito significativa as opiniões que os professores enviam para os jornais: normalmente os que se pronunciam, são os que estão contra. Eu acho importante que estes valores sejam divulgados publicamente. Mas é igualmente importante que as análises dos resultados sejam feitas com objectividade evitando considerar os números como um valor absoluto em si. É importante, por exemplo, cotejarem-se os números com o meio social onde a escola se insere, ver se o número de alunos que prestaram provas é significativo, analisar os valores referentes a vários anos, e não apenas ao ano em curso, etc.

O número de alunos que prestaram provas é relevante. Deixa-me indiferente saber que o Colégio Mira Rio teve a média mais alta, sabendo que apenas 5 alunas (20 provas) foram avaliadas. A comparação só tem significado se uma escola apresentar no mínimo 150 a 200 provas. É importante, como referi acima ter uma série anual dos resultados da escola, mas pode não ser possível extrair daí a conclusão sobre se essa escola está a melhorar ou a piorar. As descidas e subidas de determinadas escolas têm um significado muito relativo. Há turmas excepcionais que enviesam os resultados de um ano e que só se repetem alguns anos depois. Portanto, o facto de uma dada escola estar, num ano, em 10º lugar e, no outro ano, em 20º lugar, pode ter um significado muito relativo. Todavia tem significado o facto de uma escola estar sempre entre as melhores (por ex., as 20 ou 30 primeiras). O resto, depende da “colheita” do ano.

A questão da extracção social tem obviamente influência no aproveitamento médio dos alunos, mas não é determinante. Sucede mesmo, com alguma frequência, que são os mais desfavorecidos que mais se empenham e melhores resultados conseguem. Depende muito da forma como são educados em casa e pouco do nível do rendimento dos pais. O que sucede, algumas vezes, é que o baixo nível de rendimento dos pais está associado a comportamentos familiares pouco adequados a uma educação correcta.

Os maus resultados de muitas escolas do interior ou de zonas economicamente mais carenciadas devem-se sobretudo à má qualidade do corpo docente, normalmente flutuante, que aspira a transferir-se na primeira oportunidade, pouco empenhado, pouco assíduo, etc.. É claro que essa “má qualidade” docente tem a ver com a localização da escola, mas está nas mãos do ME corrigir esta situação. O ME deve assegurar a estabilidade do corpo docente. Não a estabilidade do “asilo”, mas a estabilidade da competência. Para tal a escola deve ter autonomia e responsabilidade. Mas para isso deve pôr-se um travão à “chamada” “gestão democrática” que tem sido uma das responsáveis pela degradação do ensino público nos últimos 30 anos. A escola, a nível administrativo e de gestão de recursos humanos, principalmente dos professores, tem que ter um "patrão" não eleito pelos seus pares, pois senão aquele pode tornar-se apenas o intérprete dos interesses corporativos dos professores dessa escola.

A mania que as condições sociais determinam o comportamento das pessoas é uma herança da liofilização do marxismo. Obviamente que têm alguma influência, mas as pessoas têm capacidade de as superar. Por exemplo, os meus avós paternos eram gente modesta e o meu pai formou-se porque teve sempre bolsas de estudo (e isenção de propinas, que naquela época eram elevadas) e obtinha rendimentos das explicações que dava. Sem isso não teria sido possível custear-lhe os estudos. Todavia era (e é) gente com elevado sentido do que é a vida familiar e das obrigações, direitos e deveres de cada um. Essa educação acabou por ter reflexo, indirecto, na educação dos netos. Apesar dos nossos pais serem pessoas abastadas, sempre tivemos apenas o mínimo indispensável para fazermos face àquilo que os nossos pais entendiam como o consumo diário. Nem mais um tostão. Isso causava-nos alguma perplexidade, quando víamos os nossos colegas meterem a mão ao bolso e tilintarem as moedas. Consumirem coisas que a nós estavam vedadas, porque só levávamos o dinheiro para o indispensável. Nem todos nós reagimos da mesma maneira. Nem todos nós adquirimos o mesmo sentido do valor do dinheiro e da falta de sentido do consumo supérfluo. Mas certamente estamos todos acima da média nesse capítulo.

A minha ex-escola tem, ainda que residualmente, alunos oriundos do Bairro da Boavista. Portanto não será das escolas mais “favorecidas” no que concerne à origem social dos alunos. O que a distingue é que tem um Director que, comparado com directores de outras escolas, deve estar muitos furos acima, e um núcleo duro do corpo docente competente, que sabe o que quer, que sabe que a escola se destina a servir os alunos e não os professores, e que acaba por servir de orientação e de enquadramento ao restante corpo docente. Talvez por isso tive a satisfação de verificar que continua no topo, apesar de pública, apesar de ter tido mais de 500 provas ... Este ano foi mesmo a primeira escola pública de Lisboa, no ranking das escolas.

Finalmente continua a verificar-se uma progressão do ensino privado, relativamente ao público. Isso não tem a ver com classes sociais. Em primeiro lugar não sei se o rendimento médio dos pais dos alunos das escolas públicas nas zonas centrais dos grandes centros urbanos é significativamente inferior (ou mesmo inferior) ao dos pais dos alunos das escolas privadas. Em segundo lugar, o ambiente familiar não depende do nível do rendimento, mas da formação cívica e cultural dos pais.

O que me parece, é que a divulgação do ranking das escolas, a partir das notas dos exames nacionais do 12º ano, tem incentivado as escolas privadas a melhorarem o seu desempenho com o intuito óbvio de aumentarem a sua procura (e eventualmente as propinas mensais), o que é menos visível com as escolas públicas. A diferença é que o ensino privado trabalha para o mercado e tem que apresentar resultados, enquanto o ensino público está dependente do brio profissional do corpo docente. As escolas públicas em que esse brio é prevalecente, apresentam bons resultados, talvez não tão bons como algumas privadas, mas temos que dar algum desconto porquanto a sua margem de manobra para escolher os alunos é menor. Se este processo de diferenciação dos resultados entre ensino público e privado se acentuar podemos correr o risco de ver o ensino público a degradar-se de forma cada vez mais rápida face ao privado.

Como ideia geral continuo convencida que, por enquanto, nas escolas mais centrais dos grandes centros urbanos, com corpo docente mais consolidado, a qualificação do corpo docente público (nomeadamente o que designei por núcleo duro) é superior, em média, ao privado. Em contrapartida, no ensino privado há mais apoio aos alunos que se atrasam nos estudos e necessitam recuperar. Também há mais apoio e diversidade a nível de actividades lúdicas e desportivas e na integração dos alunos no todo do corpo discente. Os alunos do ensino público estão mais entregues a si próprios, mas isso não constitui apenas desvantagens, pois torna-os mais responsáveis e capazes de autonomia de decisão.

Todavia esta situação pode mudar radicalmente. O “corpo docente mais consolidado” e os núcleos duros que sustentam os bons resultados de muitas escolas públicas, reformar-se-ão certamente durante os próximos 10 anos. Os mais jovens são de uma geração que já foi educada no laxismo e na ausência do sentido do dever e do brio profissional no exercício da função docente. Ora o brio profissional é a “mão invisível”, que substitui o mercado, no funcionamento das escolas públicas. Se não houver uma mudança profunda na política educativa, na parte relativa ao corpo docente e à organização das escolas, o futuro do ensino público pode ser catastrófico.

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outubro 25, 2005

A Tranquilidade de Não ter Blog

Medina Carreira é um homem tranquilo. Tem aquilo que me escasseia (talento) e não tem aquilo que o exporia (um blog). O que ele escreveu hoje no Público já o tenho escrito aqui por diversas vezes, em diversos tons, e tem gerado clamores de indignação. Nem são coisas hermeticamente técnicas. São factos e conceitos de senso comum. Não é preciso ser-se economista para os entender; basta ter senso e ter a mente liberta de preconceitos e de chavões; basta não ter o intelecto obliterado por opções partidárias; basta pensar pela própria cabeça. Nada mais.

O que Medina Carreira escreve, a certa altura, no Público de hoje, resume a nossa situação actual: «A crise económica e crise financeira do Estado, em especial, determinam a pouco referida crise da social-democracia/socialismo democrático. De facto, sem perspectivas favoráveis, no curto e no médio prazo, a economia portuguesa já não suporta, e não suportará, uma política redistributiva do rendimento e da riqueza; nem aproximará a taxa de ocupação da mão-de-obra do pleno emprego; nem assegurará, responsavelmente, o futuro de um Estado Social que pretenda garantir tudo a todos; nem um sindicalismo actuante porque, "contra" os privados, teme as falências e as "deslocalizações", e "contra" o Estado ataca verdadeiramente os contribuintes, que são as únicas vítimas do "Partido do Estado". Além da medíocre economia que temos, o Estado português, na zona euro, não pode ser intervencionista: sem moeda, já não tem política monetária, nem cambial próprias; não tem fronteiras nem alfândegas; não tem autonomia orçamental; e não pode controlar a circulação dos capitais. Neste contexto, as políticas e os objectivos da social-democracia/socialismo democrático, que a grande maioria dos portugueses prefere, caminham para o esgotamento».

Tudo isto tem sido aqui escrito, de uma ou outra maneira, mas muitos continuam a não querer (ou a fingir que não querem) acreditar.

O quadro que transcrevo no fim, igualmente retirado do mesmo artigo do Público, é elucidativo. Portugal tem o sistema fiscal mais iníquo da UE e aquele cujas receitas mais têm aumentado. O nosso aumento da Despesa Pública entre 1986 e 2001, não tem paralelo com os outros países da UE. Estamos à frente em tudo o que é nocivo e em penúltimo (agora em último, porque os números do PIB referem-se 2001) no que seria importante.

Com esta política de crescimento do sector público e da fiscalidade, degradámos a competitividade do sector privado, aumentámos o nosso défice com o exterior e chegámos ao novo milénio com a economia em declínio e, o que é mais grave, de uma forma sustentada. Se não invertermos drasticamente o caminho que as contas do Estado têm tomado, continuaremos neste projecto de empobrecimento colectivo sustentado por ilusões baseadas na ignorância, em não querer ver a realidade e em mitos ultrapassados.

Relativamente ao quadro em anexo fiz uma análise de regressão entre o PIB 2001 (Y) e o aumento da carga fiscal 1986-2001 (X). O resultado foi o seguinte:

(1) Y = 20,25 - 0,784 X
Sendo o coeficiente de correlação de -0,74.

Ou seja, o PIB 2001 é uma função decrescente da carga fiscal, com um coeficiente de correlação de 74%.

Com os números que possuía sobre a evolução do PIB ppc e que já foram transcritos mais que uma vez neste blog, fiz uma análise de regressão entre a variação do PIB (de 1986 a 2005) (Y) e o aumento da carga fiscal 1986-2001 (X). O resultado foi o seguinte:

(2) Y = 2,64 - 0,059 X
Sendo o coeficiente de correlação de -0,42.

Em ambos os casos o aumento da carga fiscal age negativamente, quer sobre o PIB, quer sobre o seu crescimento.

Finalmente pus a hipótese do valor do PIB influenciar a própria variação do PIB (os países mais pobres terem tendência a crescer mais, por efeito de convergência) e o resultado que obtive da regressão múltipla foi:

(3) VarPIB = 4,04 - 0,099 VarFiscal -0,051 PIB2001
Sendo o coeficiente de regressão múltipla de 0,49.

A variação do PIB é fortemente influenciada pela variação da carga fiscal. Ao introduzir a nova variável PIB 2001, o peso negativo do aumento fiscal na variação do PIB acentuou-se. Ou seja, na equação (2), parte do peso da variação das receitas fiscais continha o efeito do montante do PIB.

Não me parece que os valores dos coeficientes tenham uma importância relevante. O que tem significado é o facto do aumento da carga fiscal ter uma influência negativa no crescimento económico e os países mais ricos crescerem tendencialmente (e ceteris paribus) menos que os mais pobres. Isso aconteceu em todas as comparações.
PIB_DP_MC.jpg
Ou seja, Portugal tem que atacar o défice pelo lado da Despesa mas não apenas para reduzir o défice, porque é vital que se vá mais longe de forma a fazer diminuir o ónus fiscal. Portugal não tem apenas que reduzir a Despesa Pública, tem igualmente que reduzir as Receitas do Estado.

Mas o problema fiscal não se reduz às taxas. É mais lato. O nosso sistema fiscal é iníquo e arbitrário. Ele terá que ser muito simplificado e melhorado, do ponto de vista da sua eficiência na actividade económica.

Sem isso, nada feito. Por isso, o OE 2006 poderá ser o “orçamento possível” neste ano, mas também poderá ser apenas uma tentativa de iludir o caminho inexorável para o abismo. Dentro de alguns meses se saberá.

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outubro 24, 2005

Consenso Orçamental

Elogia-se o consenso alargado que se estabeleceu perante o OE 2006. Comentaristas e fazedores de opinião confluem na ideia que a necessidade de uma ruptura drástica com políticas passadas se instalou nas elites políticas, na Comunicação Social e no país. Apenas os sindicatos da função pública e, timidamente, os autarcas protestam contra o OE 2006, mas estão isolados. Quem os ler, concluirá que a classe política e o país, exceptuando algumas margens mais radicais, compreenderam finalmente a necessidade de uma cura de emagrecimento. Será assim?

A minha resposta é não. O que sucede é que o PS está confrontado com uma crise financeira profunda e com as metas impostas por Bruxelas. O PS não tem por onde recuar. Ele é Governo. Ele é o responsável, pelo país, perante Bruxelas. Não se sabe se o Governo está a fazer aquilo que gostaria de fazer. Sabe-se seguramente que está a tentar aplicar as prescrições de Bruxelas, porque não lhe resta outra alternativa.

E o consenso que se instalou resulta do facto do PS ser obrigado a defender um documento que consubstancia os “serviços mínimos” a que está obrigado perante Bruxelas, e do PSD e CDS/PP o defenderem, apesar das insuficiências, por convicção política.

Se o PS, em vez de estar no Governo, estivesse na oposição; se não coubesse ao PS fazer respeitar os compromissos internacionais; se o PS pudesse dar largas, sem restrições, ao que tem inscrito no seu código genético, será que teríamos qualquer consenso? Não teríamos o PS a fazer coro com as facções políticas marginais que se opõem agora ao OE 2006? Não assistiríamos às acções dos sindicatos da função pública e dos autarcas potenciadas pelo apoio do PS? A Comunicação Social não estaria a agitar o país e a pô-lo em estado de sítio? Não se instalaria a divisão e a cizânia entre as elites políticas?

Portugal está numa situação económica e financeira em que são necessárias reformas dramáticas, que irão bulir com muitos interesses particulares e que são incompreensíveis para a visão estatizante e igualitarista que se instalou entre nós. É necessário conter a Despesa Pública e aliviar o ónus que pesa sobre o sector privado – empresas e trabalhadores – de forma a torná-lo mais competitivo. Não é a política de ir buscar dinheiro onde ele existe, pois essa é uma política sem futuro, que conduz ao esgotamento da fonte. É a política de eliminar os gastos improdutivos. É a política de dinamização de criação de riqueza.

O que se está a constatar é que só um Governo PS, a contra gosto e encostado à parede pelo diktat de Bruxelas, pode realizar essa política, mesmo com insuficiências. O PS na oposição poderia ser um terrível obstáculo à política que está agora a implementar. Já o foi durante 3 anos. Porque não pensar que o seria em quaisquer circunstâncias, desde que na oposição?

Por isso há este consenso alargado. Por isso as elites políticas e a Comunicação Social estão de acordo. E volto a questionar: este consenso seria possível com o PS na oposição?

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Excessos de Pituitária

Marat era, politicamente, um facínora. Promotor dos massacres de Setembro de 1792, onde foram chacinadas mais de 1500 pessoas em Paris, e um dos principais impulsionadores da queda e execução dos Girondinos, Marat tem sido (juntamente com Robespierre e Saint-Just) o ídolo dos intelectuais totalitários que, periodicamente reescrevem a História, branqueando aqueles percursores de Estaline, Pol Pot e outros. Isto é mais que suficiente para atribuir a Marat o lugar que ele merece na História. Por isso discordo de um post de hoje do Blasfémias, na parte sobre Marat e a pituitária, por várias razões.

Marat não foi morto «numa das poucas vezes que terá tomado banho». Marat tinha uma doença de pele muito dolorosa, adquirida nos esgotos de Paris, no início da Revolução, quando andava fugido à justiça, cujo único lenitivo era estar imerso em água tépida. Escrevia sentado dentro da banheira e foi nessa situação que recebeu Carlota Corday, que o apunhalou como vingança da política sanguinária de Marat. Os contemporâneos são unânimes em considerar Marat fisicamente repelente (“hediondo”), mas se o seu odor corporal era inconveniente (não tenho dados sobre este assunto), não seria certamente por falta de banho, mas pela doença de pele.

Por outro lado, a questão dos deputados se sentarem à esquerda ou à direita, não tem a ver com questões de delicadeza de pituitárias. Começou com a Assembleia Constituinte (e não com a Convenção Nacional), em 1789, em que a facção que queria manter os poderes do rei se sentou à direita e a facção que queria o voto por cabeça e o rei sem direito de veto se sentou à esquerda. Os Girondinos sentaram-se à esquerda. Na Convenção Nacional, eleita 3 anos depois, os Girondinos sentaram-se à direita, no lugar oposto aos Montagnards, porque estavam em oposição irredutível à política dos radicais apoiados pelas secções populares de Paris e pela Comuna, cada vez mais extremistas, e cada vez mais distantes das aspirações da província. Foi pela chantagem permanente das secções da Comuna sobre a Convenção, periodicamente cercada pela populaça armada, que a Montanha, que disporia de cerca de 10% dos deputados, conseguiu levar avante a sua política de terror, que só acabou devido às divisões dentro da própria Montanha. Até ao Thermidor, o Centro (Marais) amplamente maioritário, votou aterrorizado tudo o que a Montanha e a Comuna de Paris exigiram.

Finalmente, a pituitária daquelas épocas não tinha os mesmos padrões de comportamento da actualidade. Estava habituada a cheiros fortes. Os banhos eram raros e a ausência de saneamento básico tornavam as povoações bastante pestilentas. Mesmo os corredores de Versalhes, nos recônditos menos iluminados, constituíam os locais predilectos onde a alta nobreza de França (de ambos os sexos) se aliviava das suas necessidades. E para além da alta nobreza, a nobreza em geral, clero e respectivos séquitos encontravam alívio naqueles extensos corredores. Por aqui se pode aquilatar a “endurance” daquelas pituitárias.

Marat foi mau ... muito mau ... mas exagerar só é contraproducente.

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outubro 23, 2005

Os Poderes do Presidente

Bizantinices eram os debates fúteis e furiosos a que se entregavam as elites e a população de Bizâncio, em vez de resolverem as tarefas urgentíssimas que tinham pela frente, entre elas a de conterem a ameaça turca. E continuaram esses debates estéreis enquanto os turcos já assediavam a cidade. A palavra bizantinice alargou entretanto o seu conteúdo semântico às discussões fúteis a que se entregam elites e povos quando, incapazes de resolverem o essencial, se deixam fascinar pelo supérfluo. Por exemplo, a questão dos poderes presidenciais, é uma bizantinice.

A actual constituição prevê um sistema híbrido, cuja delimitação nem sempre é rigorosa e que se tem prestado a interpretações e coabitações diversas. Basta lembrar o último mandato de Soares, que foi passado a criar embaraços a Cavaco Silva, ou as relações de Sampaio com Santana, que depois de lhe condicionar o elenco do executivo, o empossou com um discurso destabilizador, armadilhou-lhe o percurso governativo e levou-o à demissão na altura que julgou adequada. Conferir mais poderes ao presidente irá criar mais situações de conflitualidade, numa altura em que o país precisa de estabilidade.

Dar mais poderes implicaria o PR assumir tarefas governativas. É compreensível que, na crise em que o país está imerso e na falta de confiança que o povo tem na classe política, surjam tentações de apostar numa autoridade forte, com capacidade de decisão. Todavia, comprometer outro órgão de soberania nas tarefas da governação é banalizá-lo progressivamente.

O eleitorado tem tendência a privilegiar o curto prazo e em evitar soluções que prejudiquem os seus interesses mais imediatos. Neste entendimento, a aposta num maior presidencialismo não decorre de uma visão racional da vida política e democrática, mas de um messianismo que se revelaria estéril e contraproducente para a solução dos problemas nacionais. Estéril porque logo que o PR fosse implicado na tomada de decisões governativas, deixaria de ser o Messias e passaria à figura banal de ser mais um governante cuja imagem se degradaria quotidianamente nos painéis de sondagens.

O PR, actualmente, em matéria de decisões governamentais, é uma Vestal da política. Assim que se assumir como decisor governativo, perde a virgindade política. Sai do Templo de Vesta e cai na Rua do Benformoso.

A capacidade de intervenção do PR em matéria governativa deve fazer-se de forma indirecta, pela chamada “magistratura de influência”. Apenas isto. Mais do que isso seria criar dois órgãos com os mesmos poderes e igualmente legítimos, cuja coabitação se poderia revelar conflituosa.

O povo português tem que se convencer que escolher uma maioria, e portanto um governo, implica responsabilidades. E responsabilidades mútuas. Essa maioria deve resolver os problemas do país e o eleitorado deve ser responsabilizado pela decisão que tomou. O eleitorado vira-se para o messianismo como para uma varinha mágica. O eleitorado quer tomar uma decisão e acordar no dia seguinte com os problemas do país resolvidos, sem ter que passar pela via dolorosa das medidas que irão solucionar esses problemas.

O povo português tem que se convencer que terá que ser ele próprio a criar condições para resolver os seus próprios problemas. Nesse entendimento, nestas eleições, deverá escolher o PR que assegure que usará a sua magistratura para criar um clima de estabilidade e credibilidade nas instituições e que agirá no sentido de corroborar, ou de influenciar, se for caso disso, a tomada de decisões que sejam positivas para a saída da crise. Mas não deve esperar, nem pretender, mais que isso.

Não quero com isto afirmar que a questão do regime deva estar encerrada. De forma alguma. Mas a questão do regime, como outras que envolvam matérias constitucionais, ou simplesmente legais, devem ser dirimidas de cabeça fria, sem a pressão dos acontecimentos. A actual questão da possibilidade do aumento dos poderes presidenciais pôs-se mercê do clima de depressão política e social que o país atravessa. E esse clima não é propício a soluções constitucionais ou legais satisfatórias e coerentes.

Colocar agora esta questão, é uma bizantinice.

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outubro 21, 2005

Não me Resigno

“Não podemos resignar-nos a esta situação. Eu não me resigno”. É uma frase forte. É uma frase que se dirige certeira a um país deprimido, que perdeu a confiança nos dirigentes políticos, que perdeu a confiança nas suas instituições, que perdeu a confiança em si próprio. É uma frase que consubstancia tudo o que o país pode aspirar de momento: não se resignar. É uma frase enxuta, sem retóricas adicionais que a embelezassem literariamente mas lhe obscurecessem o vigor.

Muitos o acusarão de tentar protagonizar uma figura messiânica, um D. Sebastião surgindo do nevoeiro – mas não é isso que os portugueses procuram desesperadamente? Alguns acusá-lo-ão de ter ajudado à construção deste Moloch que nos esmaga actualmente – mas não foram essas medidas que lhe deram as maiorias absolutas como 1º Ministro? É acusado de não ter uma visão liberal da economia – é um facto; mas não foi no seu consulado onde se deram os passos mais significativos e decisivos na liberalização da economia portuguesa? É acusado de ser de direita e ter tomado medidas anti-populares – mas não foram essas medidas alegadamente anti-populares que lhe permitiram recolher votos em todos os quadrantes políticos? É acusado de se colocar numa postura supra-partidária – mas não há uma náusea generalizada no nosso país face à partidocracia? Aquilo de que é acusado é o que lhe dá força eleitoral.

Cavaco regressou, depois de uma travessia do deserto, em que a crise dos 3 últimos anos da sua governação foi esquecida e submersa pela enxurrada dos maiores disparates governativos que o país alguma vez havia assistido. Cavaco cometeu erros, mas quem arrastou o país para o abismo foi quem lhe sucedeu. A memória dos erros de Cavaco foi apagada pelos disparates dos sucessores. E regressou com a lição sabida: frases simples, enxutas, directas, sem floreados. Não precisa de grandes promessas, basta-lhe falar em estabilidade, confiança, credibilidade e mobilizar as energias nacionais. A diferença entre a banalidade e a consistência daquelas palavras não está nelas próprias, mas em quem as profere. Na situação actual do país, aquelas palavras, ditas por Cavaco, oferecem consistência, são eficazes. Resta saber se não se banalizarão. Tudo dependerá do faro político de Cavaco Silva.

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outubro 20, 2005

Banalidade e Destempero

Ou de Salamanca a Bruxelas passando pelo nosso sítio

O actual PR vai deixar uma herança trágica ao país. A sua década presidencial é o período do afundamento do país e do regime. E a sua marca é a banalização do discurso, a inconsequência das acções e o pesado impacto das omissões. Provavelmente satisfazia-o as sondagens que lhe davam sempre mais popularidade que a outros políticos. Foi um erro: os portugueses premeiam quem diz coisas de que gostam, mas que não tem qualquer responsabilidade de as pôr em prática, nem tem que tomar decisões. A pusilanimidade e a não-decisão são premiadas no nosso país: quer entre os políticos, quer entre os gestores públicos. São aqueles que não podem eximir-se a tomar decisões que são escrutinados pela comunicação e pela opinião pública.

Constitui um caso evidente de desconcerto e falta de percepção do que se passa na própria casa, dar azo a que Chavez (cujo regime dificilmente se pode vangloriar de ser um exemplo de Estado de direito) desse lições a Portugal sobre o que é um Estado de direito e deixasse subentendido que, em matéria de morosidade e eficiência, a justiça portuguesa tem muito que melhorar até se igualar à do 3º Mundo.

Ontem, em Bruxelas, acusou as instituições da UE de não serem capazes de ultrapassarem a “actual crise de confiança grave e insidiosa” que se instalou na Europa. O Presidente da República Portuguesa preside ao país onde a “actual crise de confiança grave e insidiosa” é seguramente a mais dramática. Durante a sua década, a justiça portuguesa afundou-se na ineficiência e perdeu completamente o respeito da sociedade; durante a sua década o ensino, que já não estava bem, afundou-se no desleixo, no laxismo e na má qualidade; durante a sua década o SNS continuou a perder qualidade e afundou-se num consumismo que o tornou um sorvedouro de recursos nacionais sem qualquer contrapartida. Durante a sua década o país ficou num terrível impasse financeiro e económico, de que levará muitos anos a sair, e isto se houver vontade colectiva para nos vermos livres de todo o lastro de irresponsabilidade, laxismo, privilégios “adquiridos” e disparates de todos os géneros decididos e conseguidos durante a última década.

Como é que o Presidente de uma república, no estado em que a nossa está, tem o desplante de produzir as declarações ontem proferidas em Bruxelas?

Simples. Basta atentar no facto de que durante 6 anos o PR assistiu impávido ao esbanjar da nossa riqueza e ao acumular de uma herança pesadamente negativa que teria que ser paga pelas gerações seguintes. É certo que a população vivia eufórica, com a queda abissal das taxas de juro e com as oportunidades imensas de consumo sustentadas por um endividamento acelerado. É certo que as SCUT’s eram um êxito – traziam receitas enormes para o erário público (IVA, IRC e IRS adicionais durante a construção) e não custavam nada a ninguém. O país realizou a Expo’98 e preparou-se para o Euro 2004. Só o céu era o limite. E no centro deste espectáculo, as arengas anestesiantes de Guterres.

A generalidade da população não tinha dados para se aperceber do abismo para onde Portugal deslizava, mas o PR tinha economistas a assessorá-lo, sabia-se o valor do défice ajustado pelo ciclo económico, e sabia-se que Portugal estava gastar demais e a acumular demasiadas responsabilidades financeiras para as gerações vindouras. E perante este caminhar para o abismo, nem uma palavra, nem um chamamento de atenção … nada … apenas banalidades.

Com o governo que se seguiu à demissão de Guterres, o PR resolveu ter um papel pontualmente interventor, no meio das banalidades usuais – produziu o estribilho «há vida para além do défice». Foi um mote para ser glosado por todos aqueles que queriam continuar a gastar à tripa forra, e um indicador incontornável que o PR (e provavelmente os seus assessores) não sabia, não queria saber, ou fingia que não sabia, o que se passava no país e o estado em que ele estava. Pedia investimento na educação, quando se sabia que Portugal tinha um dos mais caros sistemas de ensino da Europa e seguramente o pior. Procurava popularidade junto das corporações dos interesses instalados, em vez de zelar pelo bem do país.

A questão do Governo de Santana Lopes foi um episódio lamentável. Demorou tempo demais a decidir, criou todas as condições para a instabilidade governativa e levou-o à demissão sob pretextos grotescos: 1) “a composição do parlamento já não corresponde à vontade do eleitorado” (razão que levaria à dissolução de todos os governos europeus após as eleições europeias) e 2) «uma sucessão de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo e capacidade de enfrentar a crise que o país vive», uma afirmação paradoxal para um PR que tutelou os episódios ridículos em que o governo de Guterres esteve envolvido, com ministros a saírem e a fazerem declarações insultuosas, convocando mesmo conferências de imprensa para o efeito. A sorte do PR foi o PSL ter revelado uma reduzida estatura política e ter-se deixado enlear ingenuamente naquela óbvia armadilha política.

Durante este governo o PR tem assistido impávido à continuação do afundamento da moralidade política, com a apropriação irrestrita do aparelho de Estado pelo PS e pelos amigos de Sócrates. E o que era branco passou a ser preto. Afinal já «não há vida para além do défice». O que antes eram direitos adquiridos, agora são privilégios corporativos. O que antes eram trapalhadas, agora é … o silêncio. O PR mostrou, para além das banalidades do seu discurso, que não é um presidente de todos os portugueses, apenas um presidente dos interesses do PS. Serviu fielmente Guterres, enquanto este afundava o país, e serve agora Sócrates na tarefa de tentar (esperemos …) apanhar os cacos a que ficou reduzido o país.

E é este Presidente que clama em Bruxelas contra o «crescimento insuficiente da zona euro» e contra o «nível intolerável do desemprego». Será que o PR julga que em Bruxelas se desconhece o que se passou e passa em Portugal? Ou pior, será que o PR desconhece o que se passou aqui, nesta década em que ele foi Presidente? Será que quando diz estas coisas não sente qualquer peso na consciência, nem se insinuam dúvidas no seu cérebro?

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outubro 19, 2005

Fragilidades do OE 2006

A previsão de 1,1% de aumento do PIB em 2006, que condiciona todos os restantes rácios relativos à Despesa Pública e às Receitas do Estado, baseia-se por sua vez nas previsões sobre a variação das exportações (+ 5,7%) e das importações (+ 4,2%). Ora em 2005 a variação das exportações foi de + 1,2% e a das importações de + 2,1%. A previsão relativa ao aumento das importações (apesar da previsão sobre a diminuição do consumo privado e público) baseia-se na retoma do investimento. Estas previsões são muito frágeis e podem comprometer o valor final da Despesa Pública e do défice em termos de percentagem do PIB.

A principal fragilidade é a perda continuada de competitividade da economia portuguesa, como se pode observar no gráfico em anexo. Esta perda relativa de produtividade tem sido certamente menor nos sectores transaccionáveis, pois de outra forma as exportações teriam caído a pique, e terá sido maior nos sectores fechados, mormente no sector público, cujos aumentos da massa salarial foram muito superiores ao aumento da respectiva produtividade.
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A reduzida contenção da despesa em 2006 não parece ser suficiente para contrariar a tendência desenhada naquele gráfico. Se a nossa produtividade continuar a divergir da UE (e da Espanha), dificilmente as exportações crescerão a um ritmo superior ao deste ano. Não haverá igualmente muitos incentivos ao investimento privado. Assim sendo, e face às restrições do consumo privado e público, as importações poderão igualmente crescer a um ritmo menor. As expectativas do Governo são diferentes, mas as razões que fundamentam essas expectativas não são explicitadas. Eu não vejo alterações no ambiente económico que permitam essa expansão das exportações ao ritmo indicado, mas não possuo os dados à disposição do Governo.

Portanto desenha-se uma forte incerteza sobre a variação do PIB. Tudo depende do comportamento do sector exportador e do investimento privado. E esse comportamento depende da evolução da competitividade da nossa economia, embora também possa ser influenciado, em menor grau, pela evolução da economia europeia (*). A base de cálculo dos principais indicadores macroeconómicos é o PIB previsto para 2006, ou seja, a previsão de um aumento do PIB de 1,1%. Mas é sobretudo a previsão de um aumento de 5,7% nas exportações.

Se essa previsão não se realizar, as previsões sobre a Despesa e sobre o Défice, em termos de percentagem do PIB, poderão ser postas em causa, com consequências não só em 2006, como nos anos seguintes.

Nota 1: Os quadros foram retirados da proposta do OE 2006

Nota (*): Com a globalização e a diminuição da nossa competitividade, não é seguro que uma eventual retoma europeia tenha os mesmo efeitos sobre a nossa economia que teve anos atrás. O nosso sector exportador de produtos mais tradicionais terá uma concorrência forte dos produtores asiáticos, o que era quase inexistente há alguns anos.
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outubro 18, 2005

Benefício ou Prejuízo da Dúvida

Os comentários de hoje sobre a proposta do OE 2006 dividem-se em dois campos. Os que acentuam que o combate ao défice não foi feito pelo lado da despesa mas, maioritariamente, pelo lado do aumento das receitas, e os que o elogiam, dizendo que é honesto e que aponta para o caminho correcto, mas que não é possível esquecer que este OE é apenas o início desse caminho. No fundo dizem ambos o mesmo. A Despesa Pública tem uma grande rigidez e a sua redução exige uma série de medidas estruturais no que concerne à organização e ao funcionamento do Sector Público. Isso não se faz de um dia para o outro. Portanto, mesmo que caminhemos no sentido correcto, numa primeira fase dificilmente poderemos abdicar do aumento das receitas, a menos que se tivesse previamente feito um trabalho de "casa" mais completo, o que parece que não foi o caso.

Na prática, este orçamento reflecte algum esforço no que respeita aos gastos públicos. Mas esse esforço é sobretudo de contenção e não de redução da despesa. Sendo assim, este OE pode ser uma de duas coisas: 1) um embuste que adiará mais um ano o problema, esperando um milagre económico ou que o país engula outro embuste no OE 2007; 2) o início de uma acção séria de reestruturação do sector público e da eliminação da burocracia estatal, cujos efeitos se irão sentir progressivamente e de forma sustentada.

O Governo tem todas as condições exógenas para enveredar pela 2ª hipótese. Os sindicatos estão fragilizados, reduzidos a apoiarem os segmentos mais privilegiados do funcionalismo público e cada vez mais isolados do resto da população activa. Há uma compreensão da maioria da população para as medidas de austeridade, mas se elas incidirem na reforma do Estado, na sua organização e desburocratização e não em aumentos de impostos e de outros ónus sobre famílias e empresas.

O próprio Governo, no preâmbulo à proposta do OE, defende teses que foram aqui defendidas:

Este Governo optou, desde cedo, por uma consolidação orçamental estrutural, isto é, baseada fundamentalmente na racionalização da despesa e na eficiência e equidade da recolha de receitas, em detrimento da adopção de medidas extraordinárias que, por definição, não asseguram um efeito sustentado ao longo do tempo, ou em medidas demasiado dependentes das fases favoráveis do ciclo económico. Um sector público mais racionalizado trará poupança de recursos e contribuirá decisivamente para que se reforcem as condições de sã concorrência e de igualdade de oportunidades para que os agentes económicos em Portugal possam exercer as suas actividades de forma responsável e criadora de riqueza.
Deste modo, o país beneficia de crescimento económico duradouro baseado na iniciativa dos cidadãos. Acresce ainda que só um sector público eficiente será capaz de garantir que os acréscimos sustentados de riqueza possam ser redistribuídos de forma socialmente mais justa sem que, nesse processo de redistribuição através de políticas públicas, se desperdice parte dessa riqueza por ineficiência da administração ou por desincentivo da iniciativa privada.

Não escrevi isto diversas vezes neste blogue? E este parágrafo?:


“Perante a actual situação económica e social, é decisivo que Portugal retome a rota do crescimento e do emprego. É principalmente ao sector privado que compete identificar as oportunidades no mercado, tomar a iniciativa, lançar os projectos, inovar, modernizar, melhorar a organização e a gestão. Ao Estado compete contribuir para a criação de um clima de maior confiança. Para tal, deve diminuir o seu peso em áreas que não justifiquem a sua presença ou influência, reduzir a burocracia, simplificar e remover obstáculos desnecessários. Nesse sentido, propõem-se medidas de desburocratização e simplificação administrativa”.

A estratégia de consolidação orçamental poderia ter sido subscrita por mim:

i) A reforma da Administração Pública;
ii) A promoção de condições de sustentabilidade a longo prazo da Segurança
Social;
iii) A melhoria da qualidade da despesa pública corrente e de investimento;
iv) A simplificação e moralização do sistema fiscal;
v) A redução do peso do Estado na economia.

Também estou de acordo que “Esta estratégia de consolidação orçamental assenta fundamentalmente em medidas que implicam uma redução permanente da despesa pública. O desequilíbrio estrutural das finanças públicas não pode ser corrigido com medidas de carácter temporário. A verdadeira contenção da despesa só se consegue com a implementação de medidas estruturais. As reformas já iniciadas inscrevem-se nesta estratégia. Elas são uma urgência para assegurar o futuro bem estar dos portugueses e são, no presente, o sinal inequívoco do empenhamento do Governo em garantir a sanidade das finanças públicas e da situação financeira do país. Elimina-se assim a dúvida corrosiva instalada na mente dos decisores económicos nacionais e estrangeiros, que, sendo geradora de incerteza e de risco, é inibidora das decisões dos consumidores e investidores”.

E, aparentemente, o Governo abandonou o keynesianismo (se é que Mário Lino sabe o que isso é) e aposta numa abordagem mais neoclássica: “A literatura económica mostra que as consolidações orçamentais baseadas na redução da despesa são em geral mais bem sucedidas do que as assentes em aumentos de impostos. Por outro lado, uma política de contenção e de racionalização da despesa pública pode não apenas aumentar o potencial de crescimento económico a médio e longo prazo (por efeitos sobre a oferta), mas também estimular o nível de actividade no curto prazo (por efeitos sobre a procura). Este estímulo, que pode ser suficientemente forte para se sobrepor aos efeitos keynesianos convencionais, está intimamente ligado à confiança dos agentes económicos e, como tal, à credibilidade da política orçamental. O investimento privado poderá ser particularmente estimulado por uma estratégia credível de redução do défice orçamental” Não é surpreendente ler isto escrito por um Governo socialista?

Escrever textos como estes é fácil. Eu tenho-os escritos, assim como analistas diversos e vários blogues. Passar à prática é que é complicado. Vejamos o que acontecerá em 2006. Pelo andar da carruagem se verá se vamos no caminho certo, se na direcção do abismo. As intenções, escritas, são boas, mas de boas intenções ...

Publicado por Joana às 06:52 PM | Comentários (111) | TrackBack

A Vertigem da Receita

Antes da entrega do OE 2006, o Governo prometeu que o a contenção se faria do lado da despesa. Prometeu que não iria aumentar os impostos. Já havia prometido que não iria recorrer a receitas extraordinárias.

Vendo as contas verifica-se que a despesa cai, em termos do PIB (base 1995), de 49,3% para 48,8%, uma descida insignificante face às necessidades de diminuição do défice. Como solucionar a questão? Simples – as receitas passaram de 43% do PIB para 44%. Esse aumento é conseguido por receitas extraordinárias: privatizações de partes do capital da Galp e da REN. O Governo não resistiu igualmente à tentação de aumentar o IRS, introduzindo um novo escalão.

A receita fiscal passa de 36,6% para 37,5% do PIB. O Governo fala de melhoria do combate à fraude e evasão fiscal. Não nos iludamos. A fraude e evasão fiscal resultam da complexidade, ineficiência e injustiça do sistema. Se o nosso sistema fiscal for simplificado, a fraude e evasão fiscal diminuem. Mas simplificações é uma coisa que os sucessivos Governos têm preterido. Motivo? Meter a mão no bolso dos distraídos. Apanham alguns, mas as fugas a que dão ensejo permitem que o que escapa seja muito superior ao que metem no bolso por ignorância dos contribuintes.

Todos os economistas, como ainda recentemente 2 laureados com o Nobel da Economia, têm afirmado que Portugal tem que conter drasticamente a despesa e aliviar a carga fiscal, para melhorar a competitividade internacional. Não vejo uma estratégia nesse sentido. Vejo medidas avulsas. E vejo expectativas que não sei se se manterão: a estimativa da ligeira subida do desemprego para 7,7% parece-me optimista; a previsão para o crescimento do PIB de 1,1% talvez não se confirme e a previsão de 2,3% para a inflação é capaz de ser insuficiente, por vários motivos, entre os quais a possibilidade do aumento das taxas de juro.

A questão do desemprego é complexa. O aumento do desemprego no sector privado é grave para a economia do país e para a sustentabilidade do próprio Estado. Todavia, nos países em que houve estratégias de contenção com o objectivo de melhorar a competitividade da economia, houve aumentos muito significativos do desemprego enquanto durou o “processo de cura”. Simplesmente era desemprego por emagrecimento do sector público, e esse desemprego, com a retoma económica resultante da diminuição da despesa e dos ónus fiscais, é progressivamente absorvido pelo sector privado. O “nosso” desemprego não. Acontece no sector privado e torna-se um fardo mais pesado para a economia e gerador de maior desemprego no futuro.

Há um sinal positivo, não no OE, mas em declarações governamentais e, eventualmente, implícito em algumas rubricas da despesa. Fala-se em auditorias ao funcionamento dos serviços e em premiar o mérito, e não a antiguidade, nos aumentos dos vencimentos do funcionalismo público. Se isto for (bem) feito e, das auditorias, se extraírem as conclusões adequadas, teremos uma medida estratégica importante. Não gostaria de pôr em dúvida que tal venha a acontecer, mas só acredito, verdadeiramente, quando acontecer mesmo.

Quanto às privatizações, não vejo nada contra, antes pelo contrário. O Governo deve concentrar-se naquilo que é o seu “core business” e deixar o sector empresarial para quem o sabe gerir melhor. Não me parece é que essas receitas devessem maquilhar a diminuição do défice. São receitas extraordinárias e as receitas extraordinárias têm um problema – não se repetem. Na realidade o Governo não promete reduzir o défice de 6,2% para 4,8%, mas sim de 6,2% para 5,9%, porquanto as privatizações concorrem com 1,1% do PIB. Ou seja, no próximo ano terá que partir dos 5,9% como referência para a próxima redução e não dos 4,8%. No OE 2007 o Governo estará praticamente no mesmo ponto de partida ...

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outubro 16, 2005

Pobreza e Desigualdade

Ciclicamente organizações alegadamente preocupadas com o bem estar das classes mais desfavorecidas difundem estatísticas onde Portugal aparece como o país da União Europeia onde há mais desigualdade entre ricos e pobres. Incidentalmente também é o país mais pobre. O que o pensamento unidimensional daquelas organizações não descortina é que há uma correlação forte entre pobreza e desigualdade, e que a desigualdade deriva da pobreza da sociedade e não o contrário. Por isso quando clamam pelo combate à desigualdade para diminuir a pobreza, estão apenas a propor aumentar a pobreza geral da sociedade.

Quando comparamos 2 países com graus de riqueza diferentes, verificamos que quanto mais qualificadas são as pessoas, menor é a diferença remuneratória, entre esses países, para os mesmos níveis de qualificação. Percebe-se facilmente. As pessoas mais qualificadas (quer academicamente, quer profissionalmente, quer pela sua capacidade empresarial) estão num mercado mais aberto, mais global e mais transparente. Se não se sentem bem remuneradas no seu país, facilmente arranjam emprego noutro. E quanto mais facilidade tiverem em o fazer, mais próximo estará a sua remuneração, no país de origem, da remuneração no país mais rico, para uma qualificação equivalente.

Não é possível contrariar esta tendência. Num país pobre, tentar aproximar os rendimentos mais elevados da média nacional, baixando-os, é incentivar a “fuga dos cérebros”, desqualificar o país e concorrer para que ele empobreça mais. A menos que aquela medida seja tomada em conjugação com o fecho das fronteiras, transformando o país num campo de concentração. Mas as experiências que houve neste sentido só conduziram a péssimos resultados.

Portanto a desigualdade combate-se pelo enriquecimento geral do país. Quanto mais rico for o país, menor será a amplitude dos rendimentos, porquanto terá menor amplitude o fenómeno do alinhamento das remunerações dos quadros superiores, pelas remunerações dos países ricos e a tentação da “fuga dos cérebros”.

Um outro caso é o das desigualdades internas nos países mais ricos, que têm aumentado bastante nas últimas décadas. Esse facto tem a ver, principalmente, com o extraordinário desenvolvimento tecnológico nos últimos tempos, principalmente com a revolução informática, electrónica e nas comunicações. As novas tecnologias exigem muita competência, mas também uma mentalidade mais aberta, não aversão ao risco, requalificação contínua e aposta na mobilidade de trabalho como factor de melhoria da qualificação. Houve uma revolução no mercado de trabalho, principalmente nos países mais ricos. Hoje em dia, as empresas têm dificuldade em verem-se livres dos trabalhadores pouco qualificados e avessos ao risco e, em contrapartida, têm uma enorme dificuldade em conservarem, entre os seus efectivos, os quadros mais qualificados e activos, frequentemente assediados pelas empresas concorrentes.

Portanto, na nossa economia globalizada, mesmo entre os países mais ricos, os mais competentes e habilitados vêem os seus rendimentos alinharem-se pelos níveis idênticos de competência dos outros países ricos, enquanto as baixas qualificações se tendem a alinhar pelos níveis idênticos dos países que concorrem nessas gamas de produtos. Por conseguinte a tendência é o aumento da desigualdade. Essa tendência só poderá ser combatida pelo aumento geral da qualificação e pelo abandono dos sectores em que a concorrência se faz pela degradação dos preços.

Ou seja, em qualquer dos casos, apenas o aumento da qualificação da população activa e o aumento da riqueza do país permitem fazer diminuir as desigualdades de rendimentos. Diminuir as desigualdades pela redistribuição acarreta sempre uma perda de eficiência da economia (cf A. Okun, Equality and Efficiency: The Big Tradeoff), perda que aumenta, mais que proporcionalmente, com os montantes da redistribuição.
Lorenz.jpg
Adenda: Ao lado encontra-se a curva de Lorenz relativa à distribuição de rendimento nos fins da década de 90 (retirada do Samuelson). A bissectriz é o lugar geométrico da absoluta igualdade de todos os rendimentos.
De notar que a Suécia, cuja curva mais se aproxima da perfeita igualdade, era o país mais rico da Europa em 1970 e em 2004 era o 12º (atrás vinham a França -14º - a Espanha - 15º e Portugal 19º)


Sobre os efeitos perversos do excesso de impostos (para alimentar o peso do Estado) e das transferências sociais excessivas para combaterem, ilusoriamente, a desigualdade, ler neste blog:

Impostos e nível de Emprego
A Dimensão do Estado
Sísifo e o Estado 1
Sísifo e o Estado 2
Sísifo e o Estado 3
Estado e Desenvolvimento 1
Estado e Desenvolvimento 2

Publicado por Joana às 10:12 PM | Comentários (212) | TrackBack

Cantinho do Pinter

Tinha que ser. Em face do alarido na blogosfera eu teria que me pronunciar sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao Harold Pinter. Infelizmente nunca vi (nem li) nada dele. Mas julgo que isso não constitui obstáculo. Se em Portugal apenas nos pronunciássemos sobre aquilo que soubéssemos, julgar-se-ia viver em terra de mudos. Vi a Amante do Tenente Francês e o Julgamento, cujos argumentos são dele, que achei muito bons, mas cujo âmbito pertence mais a Hollywood que a Estocolmo, até porque foram feitos sobre textos de outros. Segundo dizem os seus críticos, poucos como ele souberam criar o clima de vazio, náusea, mesquinhez, inveja e angústia nas relações dentro da família e grupos sociais da nossa época. Isso é patente naqueles dois filmes. Pinter tem-se notabilizado pelas imprecações anti-Bush e anti-Blair. Mas Saramago, a Elfriede, Prado Coelho e Fernando Rosas também, e estes dois últimos ainda não foram galardoados com aquela distinção. E temos que nos regozijar com uma coisa: A Academia Sueca conseguiu um notável progresso sobre a decisão do ano passado. Todavia, receio que isto não seja um elogio a Pinter ... pior que a Elfriede era impossível.

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outubro 14, 2005

As Bodas Fiscais de Caná

Ou o Milagre da Multiplicação dos Euros

Era uma vez uma empresa em regime simplificado, cuja sede social, inactiva, se situa bastante longe de Lisboa. As receitas dessa empresa (umas rendas de uns imóveis degradados) são inferiores ao rendimento colectável mínimo fixado pelo Fisco para aquele regime. Ou seja, a empresa paga impostos um pouco superiores aos que pagaria se estivesse no regime geral. Em contrapartida o regime simplificado assegura-lhe uma relação tranquila com o Fisco. Isto era o que Pina Moura dizia. Vejamos a realidade.

Num dos pagamentos por conta referente ao exercício de 2002, a empresa em questão cometeu a imprudência de pagar no mês anterior ao que é prescrito (pagou em Junho em vez de Julho). Quando recebeu a nota de liquidação relativa àquele exercício, verificou que não havia sido considerado um dos pagamentos por conta. Por isso perdeu direito a um reembolso que tinha a haver.

O gerente da empresa perdeu um dia da semana para se deslocar à localidade onde era a Repartição de Finanças e após várias idas e voltas entre a Repartição e a Direcção de Finanças, concluíram que, como o pagamento havia sido efectuado em Junho, tinha sido tomado pelo Fisco como “pagamento especial por conta” e não como “pagamento por conta” (na altura não havia distinção nas guias de pagamento), não tendo sido incluído na nota de liquidação. É estranho que o Fisco receba dinheiro de uma empresa e não reconheça isso nas notas de liquidação. Nem que fosse como doação! Em qualquer contabilidade de empresa há a regra das partidas dobradas. Se entra dinheiro com suporte documental há um débito e um crédito. O Fisco ignora isso. Entrou … é meu! E ninguém tem nada com isso!

O gerente fez uma reclamação, o pessoal com quem falou foi muito simpático, meses depois veio o deferimento e, na nota de liquidação de 2003, o assunto foi regularizado. Foi? Isso era o que o nosso ingénuo gerente pensava.

Este ano começou a receber notas de liquidação adicionais e notas de discriminação de juros de mora que foram tomando proporções assustadoras. Aquele pagamento “antes do tempo” era cerca de 200€ e, de acordo com as últimas notas, o valor em dívida já ia a caminho dos mil euros! À medida que iam surgindo as notas de liquidação o nosso pequeno empresário ia enviando cartas registadas, com aviso de recepção, primeiro para a Repartição de Finanças e depois para o Departamento de Cobranças em Lisboa. No site das Finanças na net, onde já havia referência à dívida no contencioso, o nosso gerente enviava mails, primeiro em tom cordato e depois engrossando a voz e referindo o Estado de direito, a responsabilidade dos agentes administrativos pelos actos que praticam, etc., etc.. Debalde.

Até que há semanas teve que ir à terra em dia útil, passou pelas finanças e, em pouco tempo, descobriu-se o seguinte:

1 – O valor de 200€ continuava na base de dados, pretensamente em dívida, mas a Repartição de Finanças não podia mexer na base de dados, pois competia a outros serviços. Mas o assunto estava resolvido. Estaria?

2 – Descobriu-se que as liquidações adicionais resultavam do facto do Fisco, quando refez a nota de liquidação de 2002, se ter enganado na taxa de IRC que era aplicável àquele regime, aplicando a taxa geral, o que subiu bastante o imposto (e a derrama). Como os factos se reportavam a 2002, toca a aplicar custas, juros de mora, etc.. O valor em dívida já se aproximava dos 1.000€. Aparentemente os funcionários da Repartição ficaram de volta do computador a emendar aquilo e garantiram que o assunto estava esclarecido.

3 – Quanto às cartas registadas com aviso de recepção e perante o sorriso cúmplice do funcionário, o nosso “empresário” concluiu que, após assinar o registo, as cartas são arquivadas no ecoponto mais próximo.

Dada a simpatia com que foi acolhido, o nosso “empresário” está convencido, não sei se ingenuamente, que o assunto está resolvido. O tempo o dirá. O rolo compressor do Fisco é difícil de ser sustido porque é cego, surdo, pesado e só caminha numa direcção.

Resumindo, temos uma situação em que sucessivos enganos do Fisco criaram uma dívida fictícia de perto de 200€ e ampliaram-na para perto de 1.000€. Em todo este processo, sempre que instados pessoalmente, os funcionários revelaram uma simpatia extrema. Deferiram as reclamações. Tudo perfeito. Todavia, em paralelo, a máquina fiscal foi criando um monstro.

Objectivamente, olhando apenas às comunicações escritas, poderíamos concluir que estávamos perante uma tentativa de extorsão, contumaz e eventualmente dolosa. Falando com os funcionários, trata-se apenas de erros infelizes que eles assumem, embora não sejam directamente responsáveis por eles, e que prometem resolver.

Presumo, pelo que tenho visto, que uma parte não despicienda dos muitos milhões que o Fisco anuncia diariamente nos órgãos de comunicação, se baseia em erros, omissões, desleixos, arquivamento precipitado de cartas registadas nos ecopontos mais próximos, etc.. Neste entendimento, certamente que alguns (ou muitos) daqueles milhões só existem no ciberespaço, sem qualquer suporte real e desaparecerão à medida que os contribuintes fizerem as reclamações e lhes for dado provimento.

Mas entretanto gastou-se muito tempo e perderam-se muitas energias a notificar, reclamar, deferir, renotificar, notificar (porque se errou ao digitar), reclamar, deferir, re-renotificar, notificar (porque se voltou a errar ao digitar), etc., etc..

Os agentes administrativos são, ao que julgo, responsáveis pelos actos administrativos que praticam, quer por acção, quer por omissão. Os contribuintes serão as primeiras vítimas desta situação. Mas os agentes administrativos poderão ser as próximas, quando alguns contribuintes, com apoios jurídicos mais sólidos, começarem a ficar exasperados.

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outubro 13, 2005

Prescrever Morfina ao Estado Terminal

Os próceres dos partidos políticos com assento na AR mostraram ontem uma enorme preocupação pelas candidaturas independentes e “pela emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito”, pois que “constituem um factor de desconfiança nas instituições”. Os partidos com assento na AR não mostraram preocupações pela situação de descrédito a que chegaram os políticos, a Justiça e as instituições. A sua preocupação é que as candidaturas independentes possam avivar essa situação de descrédito. Os próceres políticos devem ter desistido de curar as maleitas do Estado. Limitam-se a prescrever morfina para iludir o sofrimento.

As intervenções de ontem na AR mostraram duas tentações que se complementam. Uma, é a de tentar assegurar aos partidos o monopólio de intervenção política. Essa tentativa é feita em nome dos imortais princípios de evitar a “emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito” e a “desconfiança nas instituições”. Outra é “aprimorar o regime de inelegibilidades e impedimentos” para “devolver a credibilidade à acção política”, impedindo o aparecimento de candidatos que “não cumprem as suas obrigações com a justiça”.

A primeira tentação filia-se na hipocrisia da classe política e no seu receio de perder o monopólio dos empregos políticos que todos usufruem, sem excepção, embora num grau que depende dos lugares que ocupam no poder central e autárquico. Perca de monopólio que iria acarretar a prazo uma perda de influência política e um eventual reordenamento do espectro partidário. E os “insiders” querem, a todo o custo evitar que tal possa ocorrer.

A segunda tentação pode revelar-se perversa porque conduz à instrumentalização da justiça com objectivos políticos. Os ziguezagues do processo Casa Pia, provocados pela interferência da classe política, é o caso mais recente. Mas existem numerosos exemplos, nas últimas décadas, em que processos judiciais foram utilizados como armas de arremesso político. Por outro lado, pessoas podem ser constituídas arguidas nas vésperas de actos eleitorais, por denúncias não fundamentadas, falsas, ou interpretadas cavilosamente por agentes judiciais, denúncias que depois não têm sequência, mas que numa primeira fase podem impedir essas pessoas de se candidatarem.

E a perfídia desta tentação de instrumentalização política através da justiça é que ela se refere apenas aos candidatos independentes. Os candidatos do sistema estão fora desta fúria justicialista. Por exemplo, a candidata PSD por Leiria e a candidata BE por Salvaterra estavam constituídas arguidas, mas ninguém se ralou com isso, tirando uma intervenção apenas destinada, infrutiferamente, a meter na ordem a obsessão predicante do BE. A “crise profunda de valores” resulta apenas de candidatos independentes a contas com a justiça. São estes que têm que ser impedidos de concorrer para “devolver a credibilidade à acção política”. Os candidatos partidários constituídos arguidos não provocam qualquer “crise profunda de valores”, nem falta de “credibilidade da acção política”.

Publicado por Joana às 06:53 PM | Comentários (131) | TrackBack

outubro 12, 2005

E agora, Sócrates?

O recuo autárquico do PS face à sua derrota humilhante de 2001 e o desmoronar das expectativas criadas pelos resultados das legislativas têm sido interpretados em numerosos quadrantes, com especial ênfase entre os comunistas, que apostaram forte no voto de protesto, como a rejeição eleitoral da política do Governo de Sócrates. Este raciocínio linear é um erro e a sua aceitação como bom seria perversa e poderia revelar-se calamitosa para o futuro do país. Pelo menos mais calamitosa que a continuação da actual política.

Em primeiro lugar, e como já referi aqui várias vezes, estas eleições eram para as autarquias e as derrotas foram, essencialmente, dos candidatos escolhidos ou que se escolheram. Isto é evidente em muitos casos, com especial relevo para MM Carrilho, João Soares, Rui Barreiro (Santarém) e outros. No caso dos dois primeiros constituiu mesmo uma vitória “interna” de Sócrates sobre dois potenciais adversários que caminham irreversivelmente para a liquidação política.

O grande derrotado do PS foi Jorge Coelho. Ele era o coordenador autárquico e das escolhas dos candidatos e foi ele o responsável pelas expectativas delirantes criadas nas hostes socialistas e amplificadas pela comunicação social. Mas a derrota de Jorge Coelho, ao fragilizá-lo, também é positiva para Sócrates, na correlação de forças dentro do PS. No Governo houve uma derrotada – a Ministra da Cultura, cuja empáfia antipática e obtusa deve ter trazido muitos dividendos a Rui Rio (para além da própria fragilidade de Assis).

Em segundo lugar uma legislatura é para durar quatro anos. Um Governo, nomeadamente quando tem que tomar medidas duras por via da situação financeira e económica em que o país se encontra, não pode ser despedido ao fim de 6 meses, porque as pessoas não estão a gostar do incómodo que essas medidas causam. O Governo tem que ser julgado pelas medidas que toma e pelo resultado dessas medidas. Para isso é necessário tempo.

A política de Sócrates, até à data, tem-se pautado pelo ataque às mordomias e às situações de privilégio de sectores da função pública, ataque que tem em comum a exasperação dos sectores atingidos, o concitar o apoio generalizado do resto do corpo social e ter efeitos diminutos sobre a Despesa Pública e sobre o funcionamento do sector público. Ou seja, tem havido muita pirotecnia, mas pouca substância. A queda de popularidade do Governo não é por tomar medidas difíceis. É por tomar medidas insuficientes e ter um comportamento desastrado quer na implementação das medidas, quer na sua ânsia de distribuir sinecuras por amigos, compadres e clientela política. Um Governo que gere uma situação de crise tem que dar um exemplo de contenção. Infelizmente não é isso que tem acontecido.

Os problemas da Justiça são gravíssimos, mas não têm a ver com a questão das férias judiciais, embora essa ideia tenha sido transmitida, de forma subliminar, à opinião pública. Muitos dos problemas nem sequer têm a ver com o próprio (péssimo) funcionamento da Justiça, pois resultam de legislação complexa e contraditória e de procedimentos legais que só servem para dilação dos prazos. Ou seja, o Governo tem que agir sobre o funcionamento daquele sector e sobre o edifício legal.

Na questão do ensino, a obrigatoriedade da permanência dos professores na escola, a exemplo do que sucede nos outros países, é uma medida justa mas que se for aplicada de forma atrabiliária arrisca-se a tornar-se letra morta. A maioria das escolas não tem, de momento, condições logísticas que permitam que os professores permaneçam na escola a exercer uma actividade útil. Não é fácil passar de imediato de 22 horas (sem falar dos professores com redução de horário) para as 35 horas. Também bole com os compromissos pessoais e familiares dos professores. Muitos tinham a sua vida organizada em face de um determinado horário e, de um momento para o outro, tudo é alterado. Parecia-me preferível que esta alteração fosse faseada em dois anos, de forma a permitir que escolas e professores se adequassem à nova situação. Provavelmente é isso (ou muito pior) que vai acontecer na prática. Todavia, os problemas do ensino não se resolvem apenas com estas medidas. Nós temos dois problemas: um ensino que é o pior da Europa e um ensino que é um dos mais caros da Europa.

Não se conhece a política de contenção de despesa no sector da saúde (se é que ela existe), um dos maiores sorvedouros de dinheiro do Sector Público. Portugal tem um sector de saúde completamente ineficiente, de que uma parte importante da população não se serve, dada a sua má qualidade (com algumas, poucas, honrosas excepções), mas que consome uma parte substancial da riqueza pública. O Governo está emparedado entre o ícone ideológico da estatização da Saúde e a realidade prática de um sistema em roda livre, ineficiente e financeiramente descontrolado. O Ministro da Saúde, que na oposição era um comunicador nato, eclipsou-se entretanto.

Os dados que existem sobre a evolução da despesa pública e das nossas contas com o exterior são assustadores. Felizmente que, ultimamente, não têm vindo dados a lume – o Governo não deve ter querido preocupar os portugueses enquanto estes estavam empenhados na campanha e pré-campanha para as autarquias. Cada coisa de sua vez. Mas agora vão ser disponibilizados dados mais recentes, porquanto o OE 2006 é apresentado na próxima 6ª feira. Pelos dados existentes, a nossa conta com o exterior (corrente e de capital) entre Janeiro e Julho agravou-se, face ao ano anterior, 52% (-4 343 milhões de euros para -6 619 milhões de euros) e tudo indica que se tenha continuado a agravar. Segundo a DGO, o défice da Administração Central até Agosto teria aumentado 24,6%. Como o défice da Administração Local deve ter aumentado, por influência da fúria “obreirista” das vésperas eleitorais, é de esperar o pior no que respeita à evolução da Despesa Pública.

Portugal não pode dar-se ao luxo de aumentar os impostos. Os países da Europa do “nosso campeonato” têm uma carga fiscal menor que a nossa. A Espanha é um deles. Apesar disso, o governo espanhol já anunciou que vai reduzir os impostos para as empresas e para os contribuintes individuais no Orçamento de 2006. Os países do Leste da Europa enveredaram por sistemas simplificados de impostos, como a flat-tax, por exemplo, que lhes está a permitir acelerar a competitividade, enquanto nós estagnamos.

Portanto nós temos que reduzir a Despesa Pública. Todavia essa redução é um problema complexo. Há a administração central, mas também há a administração local e regional. O emagrecimento da administração central (em paralelo com a sua requalificação) é urgente, mas não é possível esquecer a administração local cuja necessidade de emagrecimento é porventura maior. Essa tarefa incumbe às autarquias, mas elas não estão dispostas a fazê-lo, a menos que sejam obrigadas a isso através do corte do financiamento central.

Outra vertente é a das compras e fornecimentos de terceiros. Têm que se estabelecer procedimentos que assegurem que as aquisições são mesmo necessárias, são aquelas e se fazem ao melhor preço. Esses procedimentos só são viáveis com uma administração requalificada e eficiente. Outra vertente a rever é a política de outorga de subsídios. O país gasta generosamente o dinheiro dos contribuintes para subsidiar artistas que produzem espectáculos para se verem entre si. Quem é juiz sobre se os espectáculos têm qualidade e/ou interesse é o público e não o Estado. Mesmo que se ache que o público possa não ser um bom juiz, o Estado será certamente pior, pois não resiste ao compadrio sob diversas formas.

O Governo tem muito que trabalhar se quiser equilibrar as contas públicas e criar as condições para melhorar a competitividade do sector privado. Essas condições criam-se com um sistema fiscal de melhor qualidade e menos oneroso, mas também com menor intervenção do Estado. O Estado tem que alienar algumas empresas públicas que ainda detém e imiscuir-se menos na actividade económica. Tem que regular a actividade no sentido de impedir estratégias anti-concorrenciais, mas não deve assumir o papel de “segurador” dos agentes económicos. Esse papel perverte as mentalidades empresariais, distorce a concorrência e prejudica a economia globalmente.

A ideia que este Executivo dá, ao fim de quase 8 meses de governação é que não tem uma estratégia definida, não tem uma ideia do que pretende para o país, e vive à mercê da evolução das contas das Finanças Públicas, retocando o défice com medidas avulsas, com muita pirotecnia mas sem grande substância. É este estilo que tem que ser invertido, sob pena do Governo continuar, até ao fim da legislatura, a tomar medidas impopulares, sem resultados visíveis e com o país em empobrecimento contínuo.

Publicado por Joana às 11:26 PM | Comentários (131) | TrackBack

outubro 11, 2005

Curiosidades Lisboetas

Houve em Lisboa um fenómeno interessante: A votação em Carmona Rodrigues foi muito superior à do PSD para a Assembleia Municipal e para as Assembleias de Freguesia. Tomando a votação para a AM como a votação mais “partidarizada”, numerosos votantes do PS (2.767), do PC (4.315), do BE (4.092), do PP (977) e do MRPP (924), votaram em Carmona Rodrigues para a Presidência da CML. Um em cada 8 votantes do PC e um em cada 6 votantes do BE votou Carmona. Este fenómeno é curioso pelas explicações que permite aduzir como causas, como pelo significado que tem. A diferença entre a votação para a Câmara e para as Assembleias de Freguesia ainda é mais significativa, mas aí há elementos locais que podem explicar o fenómeno. Em qualquer dos casos, em cada 3 votantes comunistas nas Assembleias de Freguesia, um votou Carmona Rodrigues!

Uma explicação linear seria considerar que os lisboetas foram seduzidos pela imagem de competência e pelo carisma de Carmona Rodrigues. Não me parece suficiente esta explicação. Carmona Rodrigues é tecnicamente competente, mas não sei se essa imagem foi muito evidente, nomeadamente se se tiver em conta a gestão autárquica anterior. Também não tem carisma político. A explicação mais lógica parece-me ser a de que o eleitorado lisboeta se mobilizou para barrar o caminho a MM Carrilho. MM Carrilho provoca um efeito de “pele de galinha” nos circunstantes. Ou mesmo urticária em algumas epidermes mais sensíveis. A capacidade de auto-dissuasão eleitoral daquele filósofo é aniquiladora.

Um dado muito curioso foi o facto de um em cada 6 votantes do BE ter votado em Carmona, em vez de ter votado no empata-obras, o advogado fracturante que é a “besta negra” de todas as entidades que pretendem lançar obras importantes (as que não são vultuosas não têm importância mediática e não são contestadas). Mesmo que se admita que parte do desvio dos votos fosse para evitar a eleição de Carrilho, é interessante verificar que uma parcela apreciável do eleitorado do BE não se deixou seduzir pelo fundamentalismo ambiental de Sá Fernandes. Isto apesar de Sá Fernandes ter considerado, em afirmações públicas, Carmona «pior» que Santana.

Finalmente, estas transferências de votos, pela sua escala, indiciam que os partidos são, cada vez menos, os “donos dos votos". O eleitorado lisboeta (como noutras autarquias) mostrou que quando vota, as suas convicções pessoais têm prevalência sobre as suas opções políticas. O anátema de mudar o voto da esquerda para a direita, ou vice-versa, já não colhe. Aliás, esquerda e direita têm-se progressivamente esvaziado de conteúdo. Arriscam-se a voltar a ter apenas um significado geométrico.

Adenda: Em Sintra houve uma situação com bastantes semelhanças, embora não tão evidente. Um em cada 5 votantes do PC e um em cada 4 votantes do BE votou em Fernando Seara. A votação do PS para a AM e para a Câmara foi praticamente igual. Portanto, também em Sintra o eleitorado do PC e do BE deu o seu voto útil a Fernando Seara, para evitar a eleição de João Soares. Este comportamento eleitoral deveria fazer reflectir aqueles que se comprazem em aritméticas eleitorais quando propõem alianças eleitorais ou entregar os seus votos a outrem. Os eleitores não são elementos inertes do conjunto dos números inteiros.

Em eleições, 5+5 podem ser 8, ou 12, ou sabe-se lá quanto. Raramente são 10.

Adenda 2: Em Oeiras sucedeu um fenómeno muito curioso. A luta renhida foi para a Presidência da Câmara, entre Isaltino e Teresa Zambujo e todos os outros partidos carrearam votos para essa disputa. Se considerarmos como o “eleitorado autárquico de ontem” os votantes para a Assembleia Municipal, o PS (2.899 – 19% do total), o PC (1.304 – 18%), o BE (1.659 – 31%) e o PP (635 – 37%) votaram ou no Isaltino (+ 2.661) ou na Teresa Zambujo (+ 3.383), ou seja, houve mais transferências de voto para o PSD que para o Isaltino, embora a diferença entre elas não fosse grande. PS, PC, BE e PP associaram-se, parcialmente, àquela refrega.

De notar que 31% dos votantes do BE (na AM) votaram, para a Câmara, quer no Isaltino, quer no PSD. No caso do PS ou PC foi perto de 20%, o que é muito significativo.

Publicado por Joana às 05:59 PM | Comentários (141) | TrackBack

outubro 10, 2005

Vitórias e Derrotas para todos os gostos

Objectivamente os resultados das eleições de ontem trouxeram poucas alterações quando comparados com os resultados de 2001. É certo que o PS teve um pequeno saldo negativo na transferência de câmaras entre ele e a CDU e um saldo negativo ainda menor, na sua conta-corrente com o PSD. É certo que o PP perdeu 2 câmaras, mas eram resultados esperados. Quanto ao BE continuou a ser aquilo que era expectável: um partido com fraca implantação autárquica. Todavia soaram fanfarras pela noite dentro; sedes de campanha tornaram-se velórios lúgubres; líderes tentaram eclipsar-se da comunicação social, etc.. Houve de facto vitórias retumbantes e derrotas calamitosas mas face às expectativas que cada um criou para estas eleições. Objectivamente ficou quase tudo na mesma.

A conta-corrente entre o PS e a CDU explica-se facilmente. Após uma gestão cinzenta e sem ideias estratégicas da CDU, o eleitorado aposta no PS que responde com o caos organizativo e uma gestão com fumos de corrupção. Numa eleição seguinte (não necessariamente a seguinte) o eleitorado volta a apostar na CDU e o ciclo prossegue. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Barreiro. Em Setúbal, Mata Cáceres deve ter alienado as possibilidades do PS nas próximas décadas, com a gestão ruinosa que fez. O PS perdeu as eleições em 2001 e passou agora para 3ª força (a própria CDU perdeu a maioria absoluta). V. R. de Santo António tem sido a alternância entre a incompetência e a corrupção. É dos exemplos mais calamitosos de má gestão autárquica. Desta vez o eleitorado de VRSA, farto daquela alternância inútil, resolveu apostar numa alternativa diferente. Veremos se tem melhor sorte.

Em Lisboa, não foi Carmona quem ganhou, mas Carrilho que teve uma derrota estrondosa. Carmona Rodrigues tem o perfil típico do não-político: tímido, de poucas falas, sem dom de palavra. Tecnicamente muito competente, mas sem experiência de gestão. Além disso, Carmona Rodrigues não tinha obra a apresentar – a gestão de PSL foi errática e muito perturbada pelo facto de estar em minoria na Assembleia Municipal, o que se tornou um obstáculo incontornável. Valeu a Carmona Rodrigues a antipatia de Carrilho e o efeito “pele de galinha” que provoca por onde passa.

A vitória de Rui Rio foi retumbante face às expectativas alimentadas pela comunicação social. A dinâmica da vitória (virtual) de Assis teve o zénite na 6ª feira, quando Pinto da Costa o apoiou publicamente. Nem PS nem Pinto da Costa aprendem com a experiência. Sempre que Pinto da Costa aposta num “cavalo” político, este perde. Coube igualmente a Rui Rio o discurso de vitória mais bem conseguido da noite. Rui Rio confirmou-se como um líder político nacional.

Em Sintra, Fernando Seara contrariou, sem margem para dúvidas, as expectativas igualmente criadas pela comunicação social. Como pessoa, Fernando Seara é um sujeito diferente do que aparenta na TV. É duro, obstinado, seguro de si e muito determinado. Ganhou com maioria absoluta na CM e na AM. Teve pela frente um João Soares, muito apoiado pelo PS e pelo clã do papá, mas que se tem revelado um perdedor nato.

Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. Tornou-se a morada de muitos dos proprietários das grandes casas agrícolas da região e de uma elite que lhes procurou copiar o estilo de vida sem ter posses para tal. Criou-se uma camada social proeminente, extremamente fechada, mesquinha, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Santarém cristalizou há muitas décadas. Como corolário disso só tem eleito autarcas incompetentes. Surpreendentemente, os escalabitanos apostaram numa mudança. Estou curiosa em ver se será Moita Flores que transfigura Santarém, ou se é Santarém quem inutiliza Moita Flores.

Os “candidatos bandidos” ganharam nos municípios em que tinham obra. Os munícipes votaram na obra e foram imunes às questões de uma justiça que perdeu credibilidade e aos apelos dos políticos nacionais, cujas imagens estão muito desgastadas. Avelino perdeu apenas porque cometeu o erro de concorrer noutro município. Os fundamentos destas vitórias deveriam ser cuidadosamente estudados, em vez de se soltarem imprecações estéreis contra os vencedores. O discurso de Fátima Felgueiras foi outro dos pontos altos da noite de ontem, pelas razões que indiquei no post anterior. Que ninguém tenha dúvidas que foi um discurso muito forte e com grande poder de penetração. Só há duas alternativas: ou amordaçá-la ou eliminar os factores que dão impacto àquelas palavras. A primeira alternativa, sugerida por JPP, não me parece saudável para a democracia e criaria um mártir do regime. Tentar denegrir os “candidatos bandidos”, como o tem feito a comunicação social, é contraproducente, como se viu. Aumenta e mobiliza a sua base de apoio e torna-a mais determinada. Estamos perante uma questão de regime e é como questão de regime que terá que ser resolvida.

A questão dos “candidatos bandidos” introduz o facto do BE ser um dos grandes derrotados nas eleições de ontem, não face ao que seria exigível, mas face às expectativas que o BE imaginou. O BE está a transformar-se no sapo de Esopo.

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outubro 09, 2005

Duas Reflexões

Numa abordagem rápida e sumária, julgo que estas eleições vieram provar duas coisas. Uma, a progressiva municipalização do voto. Ou seja, a influência da política nacional está a diminuir progressivamente nas escolhas políticas locais. Isso foi visível mesmo em municípios em que anteriormente o voto político era forte, como o de Lisboa.
A segunda coisa que se provou é que o regime está doente. Fátima Felgueiras falou com palavras poderosas e vibrantes. Ela já não se dirige apenas a Felgueiras. Dirigiu-se ao país. E o que ela disse deve ter calado fundo em muita gente. Quando alguém com os problemas com a justiça que FF tem, se sente com poder para fazer aquele discurso e ter adesão às suas palavras, é porque algo está muito mal.
JPP, com o seu comentário inepto e pseudo-moralista confundiu a doença com os sintomas. Indignou-se contra os sintomas e ignorou a doença. O discurso de FF constitui um sério aviso à classe política e a todos os portugueses. Não para extrair as consequências que ela porventura pretenda. Não para a calar, como gostaria o intelectual auto-iluminado JPP. Mas para nos apercebermos qual o ovo que cria a serpente e que seiva alimenta a pestilência que corrói o corpo enfermo da nossa democracia.

Publicado por Joana às 11:20 PM | Comentários (67) | TrackBack

outubro 08, 2005

Louçã, Estátua de Sal?

Quando alguém se decide lançar nas lides políticas tem que escolher um modelo, um papel para protagonizar. E escolhe-o ponderando diversos factores, quer pessoais quer das circunstâncias que o rodeiam.

Foi isso que fez Louçã. Com o seu espírito buliçoso e ambicioso, quando encetou a sua carreira decidiu protagonizar uma originalidade forte. Olhou à volta e que viu? Um povo descrente de si mesmo, queixando-se de tudo e de todos, mas incapaz de tentar remediar fosse o que fosse, mais dado à inveja que à ambição. Viu clientelas fidelizadas a partidos políticos mais por hábito que por opção racional. Clientelas que votavam em partidos, mas que desprezavam os políticos. Na essência o mesmo problema com que se confrontaram Hitler e, mais tarde, Paulo Portas.

Louçã imediatamente compreendeu que perante esse espectro eleitoral e político, o seu papel teria que ser idêntico: assanhar-se contra os políticos em objurgatórias escorrendo fel, fulminando os corruptos e protagonizando o papel do anjo exterminador, o Alfa e Ómega das virtudes políticas, que haveria de fazer cair a Babilónia que dera a beber às gentes o veneno da sua prostituição.

Todavia Louçã não se apercebeu de uma diferença. Os anjos vingadores cujas trombetas clamavam pela destruição da Babilónia prostituída não tinha densidade material. Sem matéria não há vícios. Louçã e a equipa que arrebanhou com as suas prédicas são realidades materiais. São de carne e osso. E todos sabemos como a carne é fraca. A tentação espreita ao virar da esquina, no trocar de um olhar, duas mãos que se encontram, cheques ao portador que passam imprudentes sob os nossos olhos, eu sei lá ... Satanás é tão hábil ...

Mas os frades predicantes contam sempre com a protecção do Senhor. Foi assim que Louçã criou a figura do Candidato-bandido. Foi genial. Era a 4ª versão de cow-boy, depois do cow-boy mosqueteiro, que fez as delícias dos nossos avós, do cow-boy em depressão psicológica, que mobilizou os nossos pais para a causa dos índios e do cow-boy spaghetti que liquidou cinematograficamente todos os cow-boys anteriores.

E com que ferocidade Louçã percorreu o país agitando a figura do Candidato-bandido. Foi tema de todos os seus discursos, dos seus gritos, dos seus apartes, das suas glosas, dos seus suspiros. Os outros partidos tinham Candidatos-bandidos! O país tinha que se erguer contra os Candidatos-bandidos. O Candidato-bandido era a grande descoberta eleitoral do BE. O Candidato-bandido era o paradigma do esterquilínio autárquico onde chafurdavam os outros partidos.

Veio a lume ontem que, algures, na lezíria ribatejana, a única presidência autárquica do BE era também uma Candidata-bandida. Ao que parece, a Candidata-bandida procurara incriminar os seus adversários do PS (que entretanto haviam sido presos), com a ajuda de um agente da GNR, favorecendo em troca a entrada do filho deste na câmara. A Candidata-bandida e o agente da GNR foram constituídos arguidos.

Confrontado com esta situação, Louçã nem pestanejou. Nós somos os bons, os outros é que são os bandidos. É assim que está no argumento e não é boa política desviarmo-nos do argumento a meio da rodagem. Os bandidos são os 3 autarcas PS anteriormente incriminados com provas, segundo se lê, forjadas pelo agente da GNR e pela candidata-anjo.

Quando alguém escolhe como táctica política meter esterco no ventilador da comunicação social, nunca deve dar como adquirido que não seja um dos atingidos pela esterco que ventilou. E quanto mais verrinosas e desbocadas são as prédicas e as excomunhões mais o opróbrio cai sobre quem as produz. A corrupção da virtude vingadora torna-se hipocrisia abjecta.

Louçã parece ter escolhido como opção a fuga para a frente. Talvez receie que se olhar para trás fique transformado numa estátua de sal. Talvez conte com a habitual benevolência da comunicação social. Na realidade os bloquistas surgem na comunicação social mais como comentadores do que como políticos, e nem outra coisa seria de esperar, tendo em conta a lama que têm lançado sobre os políticos.

Todavia, a Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos (a única presidência de câmara do BE) não pode passar por analista política – ela é uma política. E este é um dado que Louçã não conseguirá ignorar, por muito que olhe noutra direcção. O primeiro (e até agora único) bloquista a exercer um cargo de direcção política, foi constituído arguido.

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outubro 07, 2005

A Ética Republicana

Tem-se falado ultimamente, e com insistência, na ética republicana. O PR, o mais prolixo produtor de banalidades do país, caracterizou-a, há dias. Confesso a minha ignorância – não sei o que é a ética republicana. Sei o que é Ética, quer do ponto de vista filosófico, quer do ponto de vista profissional (a deontologia, que sistematiza os deveres que um profissional deve respeitar no exercício da sua actividade). Também sei o que é uma república, embora tendo uma ideia nebulosa sobre a sua caracterização exacta, sabendo as formas que as repúblicas têm revestido no tempo (desde a Antiguidade Clássica) e no espaço (desde a Europa à África, passando pela América Latina e Ásia). Só não atino com o que seja a ética republicana.

Sampaio declarou que A ética republicana exige competência, devoção ao serviço público, transparência, disponibilidade para abandonar o cargo exercido a outros melhores, nos termos da lei. A ética republicana exige que o funcionário sirva a República e proíbe-o de se servir da República para promover os seus fins pessoais ou os de um determinado grupo. Todavia se ele retirasse a palavra “republicana” aquela sentença estava correcta. E se substituísse República por Estado, era uma afirmação universal. A ética da acção política exige aquilo que o PR afirmou. Estou plenamente de acordo.

Então porquê a inserção de “republicana”?

A resposta é simples. Entre os ícones que povoam o relicário mental de Sampaio (bem como do clã Soares e de outros herdeiros do jacobinismo político) resplandecem os egrégios vultos da 1ª República. Mas eu, contrariamente aos próceres socialistas, quando olho para aquelas figuras, apenas detecto ética no grupo Seara Nova e em mais meia dúzia de individualidades como Carlos da Maia, Cândido dos Reis … talvez um José Relvas, um Machado Santos ou um Teixeira Gomes. Havia alguns líderes republicanos probos e desinteressados, mas muitos eram de ética mais que duvidosa, cada vez mais duvidosa à medida que se subia no protagonismo político, e o mais evidente de todos, António Maria da Silva, era um perfeito gangster político.

É ética republicana reduzir, após o triunfo da república, o corpo eleitoral a metade do existente nos fins da monarquia, com receio das opiniões dos cavadores de enxada e dos analfabetos? É ética republicana dissolver os partidos existentes, após o triunfo da revolução (excepto o republicano)? É ética republicana pôr “cientistas” republicanos a medirem os crânios de padres jesuítas, para confirmar, “cientificamente” que eram degenerados e publicar fotografias dessas investigações nas revistas da época? É ética republicana Afonso Costa, quando ministro da Justiça, em 1911, ter provido nos melhores lugares o seu irmão, os seus dois cunhados, o seu sócio do cartório, o seu procurador, um amigo íntimo desde os tempos da juventude, etc.? É ética republicana organizar a carnificina da Noite Sangrenta e assassinar o 1º Ministro e destacadas figuras ligadas à implantação da república? É ética republicana criar um regime tutelado pelos arruaceiros, bombistas e rufias dos cafés e tabernas de Lisboa como elementos catalizadores do debate político? É ética republicana ter criado a Guarda Nacional Republicana, bem municiada de artilharia e armamento pesado, concentrada na zona de Lisboa e cujos efectivos passaram de 4575 homens em 1919 para 14 341 em 1921 (*), chefiados por oficiais «de confiança», com vencimentos superiores aos do exército, afim de ser a Guarda Pretoriana do regime? É ética republicana ser a própria república a criar uma Guarda Pretoriana, que na Roma antiga apenas foi criada após a queda da república? É ética republicana a corrupção e o caciquismo eleitorais do Partido Democrático?

Ou seja, ética republicana carece de significado, porque exigiria a definição prévia que tipo de república se tem em mente. Se se tiver em mente o modelo da 1ª República, não há apenas a ausência de significado, é uma contradição nos termos.

Sampaio não explicitou a que modelo de república se referia. Não foi certamente ao da 2ª República, porquanto um regime autoritário dificilmente pode ser um exemplo de virtudes e de ética. Certamente que, no estado do actual regime, Sampaio não se está a referir à 3ª República, de que ele se deve ter tornado um dos principais coveiros. Igualmente nada indica que se esteja a referir a um modelo abstracto, utópico e intemporal.

Assim sendo, tudo leva a supor que o modelo de república que Sampaio tem em mente, quando adjectiva daquela forma a ética, é o da 1ª República. E provavelmente está a contrapor esse arquétipo imaculado e paradigmático, às misérias da actual república a que ele preside.

Se é isso, está a dar um péssimo exemplo do que entende por ética, não certamente por malevolência, mas apenas porque vive de mitos. A ética republicana é um mito do relicário ideológico do jacobinismo: por muitos desmandos que pratique é, por convenção, o estado perfeito de governação.


(*) Na sequência da Noite Sangrenta de 19-10-1921, do horror público que provocou e da derrota posterior dos golpistas, a GNR foi desmantelada e muito reduzida nos seus efectivos e equipamento, tornando-se numa força de polícia rural.

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outubro 06, 2005

Dois Anos

Faz hoje dois anos que este blogue começou. Iniciado como uma brincadeira, foi ganhando autonomia e um espaço próprio de debate.
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Não é fácil manter um blogue. Nunca fui vítima do fetiche do blogue, mas interrogo-me frequentemente se sou eu que giro o blogue, ou se é ele que me gere a mim. Frequentemente, e já me queixei aqui diversas vezes, sou acometida da síndrome do Bey de Tunis ... e tenho que me desenvencilhar à pressa enquanto as «botas do empregado da tipografia rangem no patamar da escada».
Julgo que com altos e baixos, cumpri a missão que me impus. Julgo que consegui alguma qualidade, que tenho deixado clara a minha independência e coerência, dentro obviamente da minha mundividência e dos conceitos e ideias que tenho sobre as questões económicas, políticas e sociais. Ser-se independente não é ser-se cinzento, nem é tentar agradar a gregos e troianos.

Tenho continuado a procurar uma intervenção diversificada, não só na escolha dos temas, mas também na abordagem, quer mais sisuda, quer mais brejeira, mas sempre com seriedade.

Tenho deixado totalmente aberta a inserção de comentários. Há, uma vez por outra, alguns abusos, mas a liberdade de inserção de comentários tem-se revelado um bem mais precioso que os poucos abusos que têm ocorrido. Já “rasurei”, uma ou outra vez, alguns palavrões mais obscenos, mas nunca apaguei qualquer comentário.

Termino com uma citação de Raul Proença:

Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a crítica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal do espírito combativo. Que importa que eles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideias e para a fortificação dos meus motivos de viver; eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo .

Dedico este parágrafo àqueles que discordam frontalmente do que escrevo (os inimigos), quer o escrevam aqui, quer apenas o pensem. E aqueles que apenas o pensem, que não se acanhem – escrevam-no.

Alguns ficarão admirados por ter citado um seareiro. Os seareiros de 1921-6 tinham uma qualidade que prezo – eram independentes e pensavam pela própria cabeça. Poderão ter dito e feito muita asneira, mas nunca como resultado de terem sido colonizados mentalmente por outros. E isso é notável num país cuja cultura e as ideias são importadas pelo “paquete do Havre”.

E agora vou soprar as velinhas.

Publicado por Joana às 09:08 AM | Comentários (88) | TrackBack

outubro 05, 2005

A Frase Estúpida do Dia

“No clima neoliberal que tem inspirado as políticas de défice zero” é a frase que inicia um artigo de opinião de Luís Fernandes (que se intitula professor universitário) no Público. Calculo que LF seja coerente e não aplique o neoliberalismo na gestão da sua economia doméstica. Se assim for, dou como provável que o merceeiro da esquina, o homem do talho, a pastelaria em frente tenham um gigantesco rol de calotes que LF, em obediência aos seus princípios ideológicos, teria pregado a torto e a direito. E se essa coerência ideológica for inexorável, o seu gestor de conta estará porventura, neste momento, à beira de uma crise de nervos – é que o homem, além de ser insolvente, tem uma poderosa e incontornável teoria justificativa que o coloca a salvo de qualquer hipótese de quitação: cada vez que tal se prefigure, há o risco que se exalte e solte a temível catilinária: Seu neoliberal relapso e empedernido!

Publicado por Joana às 02:23 PM | Comentários (55) | TrackBack

5 de Outubro

Hoje a república faz 95 anos. A história não tem um julgamento consensual sobre a 1ª República. O regime caiu em 1926, na lama mais abjecta, odiado por quase toda a sociedade. Todavia, a luta ideológica contra a ditadura salazarista levou à falsificação da história, na tentativa de branquear aquele regime cuja pretensa ética (??) e democracia (??) serviriam de contraponto ao regime salazarista. O actual distanciamento permite uma visão mais equilibrada dos acontecimentos. Quem estiver interessado pode ler os meus posts:
5 de Outubro – As Origens
5 de Outubro – O Ultimato
5 de Outubro de 1910
5 de Outubro – Monarquia sem monárquicos

Publicado por Joana às 12:56 PM | Comentários (56) | TrackBack

outubro 04, 2005

O Sector Público foi privatizado

Nestes últimos anos temos assistido a discussões acérrimas, mesmo sanguinárias, sobre o papel do sector público e sobre a necessidade do Estado alijar dos seus ombros a responsabilidade relativa a um conjunto de actividades e serviços para os quais se tem revelado de uma enorme ineficiência. Afinal era uma discussão inútil, baseada em falsas premissas. Peço desculpa pelo tempo e pelas reservas anímicas despendidas neste blog, terçando furiosamente armas sobre aquela matéria. Alguns de nós já havíamos apercebido, ainda que confusamente, que falhava algo nos conceitos em debate. Hoje tornou-se oficial: O sector público português está privatizado há alguns anos. E quem o oficializou é uma testemunha credível visto ter sido, in illo tempore, um dos principais impulsionadores da “captura do Estado” por parte de “corporações profissionais”.

A privatização foi de tal forma profunda que pouco sobrou. Mesmo as forças armadas, antigo orgulho da Nação, esteio das nossas virtudes, sustento da nossa soberania, estão privatizadas. Pertencem às Associações dos Oficiais e Sargentos das Forças Armadas. A Educação, uma das mais nobres missões de que o Estado se investira desde o triunfo liberal, no meritório propósito de ilustrar e qualificar o nosso povo, está privatizada. Já se notara, desde há muitos anos, que havia fortes indícios que algo mudara. Agora é oficial: A Educação pertence aos Sindicatos de Professores, Auxiliares de Educação, etc..

Há dúvidas sobre o principal accionista do SNS. Uns inclinam-se para os sindicatos dos médicos, mas a maioria aposta no sindicato dos enfermeiros. Inclusivamente um órgão de soberania foi privatizado, o que traduz o pensamento neoliberal levado às últimas e imprevistas consequências e uma inovação que não deixará indiferentes as sumidades teóricas da economia, ciências políticas e sociologia: O poder judicial e a magistratura pública pertencem às respectivas associações.

O que há de inovador nesta apropriação do Estado pelas corporações profissionais, é que essas OPAs (operações políticas de apropriação) não necessitaram de qualquer dispêndio de capitais nem de uma operação bolsista. A única bolsa que tem sido activada é a bolsa do contribuinte. As corporações profissionais não despenderam 1 cêntimo na apropriação do usufruto daqueles activos públicos.

Vital Moreira refere erroneamente esta situação como “Feudalismo de Estado”. Várias razões militam contra esta tese inconsistente. Em primeiro lugar estas OPAs começaram a ser lançadas em plena época da construção do Socialismo e de uma sociedade sem classes. É preciso estar muito esquecido da teoria marxista e do Materialismo Histórico para colocar o Feudalismo de Estado como etapa posterior à via socialista. Em segundo lugar o Feudalismo implicava que a concessão do feudo se fizesse mediante uma investidura. Não houve qualquer investidura no caso vertente. As OPAs têm sido realizadas, lote após lote, no secretismo negocial dos gabinetes, entre Governos e Corporações. Em terceiro lugar a concessão do feudo implicava fidelidade e obrigações – os senhores feudais honravam os seus compromissos para com o seu suserano e punham à sua disposição os seus homens de armas sempre que havia necessidade de defender a Coroa (designação que o Estado tinha naquelas épocas distantes). É certo que, às vezes, um ou outro senhor faltava aos seus compromissos ou traia o seu suserano, mas sempre houve ovelhas negras em qualquer rebanho. Ora, no caso actual, as corporações profissionais apropriaram-se do Estado, são sustentadas pelos contribuintes e derrogaram o dever de vassalagem perante o suserano. Não prestam qualquer serviço de hoste e fossado: nós é que fossamos para as sustentar.

Como tem sucedido no caso de algumas privatizações que conduziram a empresas majestáticas, não existe mercado. É uma situação pior que num monopólio. Num monopólio o comportamento dos consumidores influencia o estabelecimento dos preços. No caso destas corporações detentoras do usufruto dos activos públicos, os preços são fixados discricionariamente através dos OE. O contribuinte paga, independentemente do serviço que lhe prestam. Paga mesmo que não lhe prestem qualquer serviço.

Publicado por Joana às 07:45 PM | Comentários (66) | TrackBack

outubro 03, 2005

Promoção pelo Erro

Sobrevêm êxitos ou são criadas reputações das formas mais inexplicáveis. Uma das promoções de referência foi a de Eróstrato, um personagem obscuro que, pretendendo tornar-se imortal por uma acção memorável, incendiou o templo de Diana, em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo. Brutus não se tornou célebre por estar no meio da chusma de conspiradores que assassinaram César (alguém se lembra deles?), mas sim por apunhalá-lo sendo um seu protegido. Colombo descobriu a América porque cometeu um erro monumental ao calcular o diâmetro da Terra. A Compta acumulava prejuízos, e desde que falhou rotundamente na aplicação informática para a colocação de professores, vai de vento em popa, tendo resultados líquidos consolidados de 8,7 mil euros no primeiro semestre deste ano, contra prejuízos de 1,1 milhões de euros no período homólogo do ano passado.

A promoção pelo erro é especialmente evidente no nosso país. Saldanha decidiu-se fazer uma revolução para acabar com o Cabralismo. Saiu sozinho e confiante de Lisboa e fez a tournée dos quartéis. Foi corrido de todos os que quis aliciar. A sua última esperança, o Porto, não o apoiou. Desgostoso e sem outra opção, tomou o vapor e fugiu para a Galiza. Quando chegou, comprou o jornal e leu que a revolução estalara no Porto e alastrava ao resto do país. Era a Regeneração – Saldanha comprou imediatamente o bilhete de regresso. A implantação da república foi uma série de equívocos. Enganaram-se em Loures, onde a proclamaram a 4; enganou-se Cândido dos Reis que se suicidou na madrugada de 5, porque julgava que a revolta tinha sido jugulada, enganaram-se os monárquicos, que julgavam que os republicanos tinham algum apoio militar, etc..

Mais recentemente assistiu-se a um político absolutamente falho de carisma, em quem ninguém apostava, chegar a primeiro ministro apenas porque estava no sítio certo na hora errada, aquela em que Guterres se equivocou e se demitiu por ter perdido as eleições autárquicas. Aparentemente confundiu o país com uma autarquia. Santana Lopes também estava no sítio certo na hora errada, aquela em que Durão Barroso, sem saber o que fazer ao país, resolveu que a UE era um sítio mais discreto para as suas dificuldades políticas. Sócrates, um político com chavões no lugar das ideias, chegou a 1º Ministro igualmente porque estava no sítio certo na hora errada, aquela em que o PR mandou às urtigas os hábitos constitucionais e dissolveu a AR porque não gostava das T-Shirts do PSL. E pelo andar da carruagem sabe-se lá o que pode calhar a Marques Mendes ... Tamanha série de equívocos, em tão pouco tempo, ainda não se tinha visto em nenhum país.

Mas a reviravolta da Compta é notável. Era disto que a empresa precisava – de um falhanço rotundo, demonstrando total incompetência, com notoriedade pública e à escala nacional. Não um erro que se comete num gabinete fechado, sem audiência nem reconhecimento público. E conseguiu-o – foram 36.000 erros numa simples saída! E galvanizada, ela e o mercado, por aquele falhanço monumental, passou de prejuízos sucessivos para a satisfação de apresentar lucros neste 1º semestre. As suas acções passaram de um mínimo de 1,15 euros para o valor actual de 1,59 euros.

Todavia não me parece que a situação já esteja consolidada. As margens de lucro ainda são frágeis (uns escassos 8,7 mil euros). Qualquer manobra menos reflectida pode deitar tudo a perder. Recomendo pois que a Compta tente a adjudicação de um bom contrato público, um contrato com grande notoriedade e cujo falhanço leve as TV’s a falarem do facto semanas a fio, no horário nobre. E depois, que se empenhe a fundo, com determinação, em ajavardar a aplicação informática até os seus bugs serem insolúveis. Finalmente, implementá-la, eliminando cuidadosamente a outra metodologia usada até então pela entidade adjudicante, pois o desastre tem que ser perfeito e irreversível.

Depois sentem-se, liguem as TêVês e esperem. A glória aproxima-se e lucros fabulosos não tardarão a derramar-se pelos balanços da empresa.

Publicado por Joana às 10:40 PM | Comentários (88) | TrackBack

outubro 02, 2005

Populismo Filosófico

Ou o Cão Social Grátis para Idosos

Nos nossos meios de comunicação os labéus que pesam sobre os políticos baseiam-se naquilo que os jornalistas pensam deles, ou que nos querem fazer pensar, e não no que realmente eles são, pelo menos em termos relativos, quando comparados uns com os outros. Fátima Felgueiras e Avelino Torres, por exemplo, são obviamente populistas. Todavia a nenhum deles passaria pela cabeça fazer tantas e tão inovadoras promessas como o professor universitário MM Carrilho. A carreira docente dá-lhe um perfume mais suave e charmoso que o longínquo cheiro às estrebarias dos quartéis por onde o Major Valentim fez o seu tirocínio.

MM Carrilho ainda não conseguiu atingir os píncaros merecidos de populista, apesar do trabalho insano que tem desenvolvido na perseguição daquele desiderato, desde o seu mediático casamento com a Barbie Guimarães. Os jornalistas são muito injustos. Provavelmente foi o respeito reverencial pela docência universitária que pesa, de forma insustentável, sobre a iliteracia jornalística; ou talvez o facto de MM Carrilho estar matriculado num partido de esquerda, pois todos sabemos que o populismo é uma pecha da direita ou de pseudo-esquerdas rurais, como a Fatinha.

Foi uma total imprevidência Santana Lopes não se ter munido de uma docência universitária (há universidades lá fora que conferem diplomas fáceis, credíveis e rápidos) antes de se abalançar a uma política mais evidente. Uma pesquisa rápida na net ter-lhe-ia evitado passar por populista rasca e desprezado pela comunicação social e pelo PR.

A enxurrada de promessas com que Carrilho nos encandeia a cada cruzamento é obsessiva: Táxis sociais grátis para idosos; alargar os passeios da cidade; videovigilância em áreas inseguras; reduzir para metade os carros que entram em Lisboa; criar oito novas praças na cidade (o equivalente às 8 rotundas com que qualquer autarca rural sonha); saúde e segurança nas escolas; criação de centros de acolhimento de animais; estacionamento para os residentes; um jardim em cada bairro; fazer mais passadeiras; aumentar o tempo de atravessamento, etc., etc.

O seu cérebro privilegiado está numa irrequietude constante. A sua capacidade imaginativa é transbordante. Visitou o Canil municipal e imediatamente surgiu mais uma ideia: cão social grátis para idosos! E outras, que resultam da combinação linear das ideias que jorram permanentemente do seu cérebro, já devem estar na calha: Um cão em cada jardim; Um canil pedagógico em cada escola; Um cão em cada passeio; Um jardim em cada canil; estacionamentos para canídeos, etc., etc.

Sabe-se que existem numerosos prédios devolutos e degradados em Lisboa, muitos dos quais de propriedade municipal. Qualquer reputado filósofo aristotélico sabe igualmente que a natureza tem horror ao vazio. A pertinente conjugação do facto lisboeta e do conceito aristotélico permitiu a ideia fecundíssima de “criar cerca de 8.500 empregos e um volume de negócios de 100 milhões de euros”. É prova da nossa falta de genialidade, ninguém ainda se ter lembrado disso. Basta disponibilizar aqueles espaços até agora esquecidos e desprezados, para surgirem “500 empresas ligadas à criatividade” ocupando filosoficamente o vazio espacial e gerando por simples impulsos cerebrais carrilhistas «8.500 empregos e um volume de negócios de 100 milhões de euros em quatro anos». É a união do espaço vazio e do horror atávico da Natureza por esse vácuo. Tão simples e tão genial. E obviamente que terão que ser “empresas ligadas à criatividade”. Ocupam o espaço e ficam à espera que ocorra alguma ideia criativa.

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