« agosto 2005 | Entrada | outubro 2005 »

setembro 29, 2005

O Essencial e o Acessório

O Fórum Económico Mundial divulgou o ranking de competitividade para 2005, onde Portugal ocupa um honroso 22º lugar, entre 117 países. Inclusivamente, apesar da crise em que vivemos e da perda de competitividade que tem havido, subiu 2 lugares no ranking entre 2004 e 2005. Notável. Portanto o nosso país tornou-se atraente para o investimento estrangeiro. Assim se um investidor privilegiar os baixos “custos do terrorismo” (1º lugar), “liberdade de imprensa” (4º), “acesso aos telemóveis” (9º), baixa influência do “crime organizado” (7%) e “independência dos tribunais” (15%), estamos garantidos. Porém se se incomodar com a “expectativa de uma recessão” (103º), “qualidade de ensino da matemática e ciências” (81º !!), “excesso de burocracia” (77º), “centralização excessiva das decisões económicas (70º) ”, com a falta de “estabilidade macroeconómica” (64º), baixa “formação profissional” (59º) e “escassez de cientistas e engenheiros” (49º) então a nossa atractividade será muito menor.

Naquele pacote estão incluídos 22 países africanos, 20 países latino-americanos e diversos países do Médio Oriente e da Ásia (entre eles Timor-Leste – 108º). Ou seja, em matéria de qualidade de ensino, expectativas económicas e burocracia estamos atrás de diversos países do 3º Mundo. Mas tenhamos esperança: talvez os investidores queiram investir cá sugestionados pela nossa imoderada atracção pelos telemóveis e por a comunicação social escrever e dizer tudo o que lhe vem à cabeça. Mas se não investirem, pelo menos vêm cá passar as férias, porquanto se trata de um país cuja existência os terroristas ignoram.

As análises multicritérios baseadas em scores têm um valor subjectivo, porquanto dependem das ponderações atribuídas aos diversos critérios. Esperemos que os empresários estrangeiros, nossos potenciais investidores, ponderem aquelas classificações da mesma maneira que o Fórum Económico Mundial.

Publicado por Joana às 07:53 PM | Comentários (142) | TrackBack

Catástrofes e Irracionalismos

As grandes calamidades naturais, talvez pela sua dimensão desproporcionada à escala humana, agudizam as crises de irracionalismo. Buscam-se racionalizações baratas que justifiquem um fenómeno da Natureza. Buscam-se causas de índole ideológico-políticas pretensamente racionalizadas com chavões que não passam de hipóteses que continuam em debate na comunidade científica e cujo poder explicativo ou é contestado ou não lhe é dado a universalidade que pretende ter. Mas enquanto a comunidade científica prossegue as suas investigações, sempre pronta a submeter-se aos factos, sempre consciente de que mesmo a suas hipóteses mais ousadas nunca serão mais do que um patamar para as que vierem a seguir, há certezas inabaláveis entre os jornalistas de causas, os fundamentalistas do ambiente e os políticos émulos de Savonarola. A sentença de Mário Soares sobre o Katrina quem semeia ventos, colhe tempestades insere-se neste paradigma do misticismo em roupagens de racionalismo barato.

No fundo, Mário Soares não se afasta muito das teses do pregador Gabriel Malagrida que escreveu e pregava que o terramoto de 1755 era uma punição divina por Portugal ter abandonado a verdadeira religião, ou das teses de Cavaleiro de Oliveira que escreveu que o terramoto havia sido uma punição por Portugal seguir uma religião errónea e uma manifestação da cólera divina diante dos absurdos excessos da Inquisição. É um espelho da sociedade portuguesa da época um frade tonto e néscio se ter tornado o pregador predilecto da alta nobreza, e um filósofo medíocre e diplomata corrupto, completamente desprovido de ética, se ter tornado num dos expoentes do iluminismo português. Isto para não falar de Soares, antes do julgamento que a História lhe fará.

Tal como está a acontecer agora com o Katrina, o terramoto de Lisboa tornou-se o centro de acerbas disputas metafísico-ontológicas de então. Nos reinos e principados alemães (protestantes) e do norte da Europa, não havia uma réstia de dúvidas: A providência havia castigado Lisboa pela sua idolatria, por ter acumulado riquezas imensas e pecaminosas através da intolerância e da perseguição religiosa, no Reino e nos domínios do Ultramar. Lisboa era a nova Sodoma e Gomorra punida por Deus.

No caso do Katrina, os habitantes de Nova Orleães estão a expiar os malefícios do imperialismo americano, que dois anos antes havia invadido o Iraque; em 1755, os lisboetas expiaram o imperialismo político-religioso das potências católicas idólatras, porquanto em 1753 havia começado a campanha militar contra as Missões jesuítas dos Índios no Paraguai, que ainda durava e que era muito mal vista pelos iluministas da época.

Voltaire e Rousseau debateram o papel da providência divina e do fatalismo das coisas, Voltaire acentuando o fatalismo e Rousseau as causas naturais, perguntando que “culpa tinha a Providência Divina se os lisboetas decidiram ao longo dos tempos construir vinte mil casas, algumas de seis ou sete andares, e arranjarem-se assim todos amontoados na margem do rio Tejo?” Perguntas que muitos colocam actualmente sobre Nova Orleães, mas apenas com uma diferença: Rousseau acusou a pouca previsão dos lisboetas (naquela época o Estado ainda não era omnipresente), enquanto agora se acusam as autoridades americanas, nomeadamente aquelas que não têm nada a ver com o planeamento urbano, como as federais.

Até Kant, ainda jovem, publicou 3 folhetos sobre o tema, embora apenas preocupado em encontrar explicações naturais para o fenómeno. Era dos poucos verdadeiros racionalistas da época. As causalidades historicistas e oraculares não lhe diziam nada.

Os ingleses, mais pragmáticos e pouco dados a especulações místicas, passaram ao lado desse debate, quase sempre mesquinho. Assim que souberam do cataclismo, Governo e o Parlamento decidiram enviar imediatamente para Portugal, sem esperar por qualquer pedido de auxílio, 300 mil cruzados (moeda portuguesa), 200 mil patacas espanholas, 6 mil barris de carne, 4 mil de manteiga, 1.200 sacas de arroz, 10 mil quintais de farinha, 3.333 moios de trigo etc., e ferramentas para desentulhar as ruas (picaretas, enxadas, etc.). As únicas coisas que criticaram, e com toda a razão, foram a demora (o auxílio demorou poucos dias a reunir e a aportar a Lisboa e consumiu-se cerca de dois anos na sua distribuição, o que provocou a deterioração de muitos bens), a corrupção das autoridades e o descaminho de parte desse auxílio. Descaminho que teve uma excepção: O Marquês de Valença, cujo palácio e bens tinham ficado completamente destruídos, recusou o subsídio de 18 mil cruzados que o Secretário (o futuro Marquês de Pombal) lhe atribuíra, alegando que haveria outros mais necessitados que ele a quem ainda restavam rendas com que poderia subsistir.

Houve espectaculares avanços científicos dos últimos 250 anos. No conhecimento e nas metodologias. A ciência moderna deveria impor ao nosso intelecto a disciplina das comprovações práticas. É assim que ela avança. Todavia, na sua verbosidade mística, os jornalistas de causas e os políticos “fracturantes” são livres de afirmar o que quer que seja, porque não precisam de recear qualquer comprovação. Estão acima dela. As suas verdades são absolutas.

Por isso não há diferenças significativas entre os juízos sobre o Katrina e sobre o terramoto de Lisboa. Desde que apareceu o feiticeiro tribal, o pensamento místico não evoluiu qualitativamente.

Publicado por Joana às 12:05 AM | Comentários (103) | TrackBack

setembro 28, 2005

A Vertigem de Matar a Galinha

Não é só cá. É uma pandemia europeia. A Europa criou monstros que só consegue sustentar saqueando os seus cidadãos. Esta ânsia pelo saque leva-a a ficar insatisfeita com a quantidade de ovos de ouro que as galinhas põem, a agarrar em facalhões e a correr atrás das galinhas, num desvario insofrido, para as esventrar e ir à própria fonte de produção do ovo. Com esse objectivo produziu uma directiva da poupança que entrou em vigor em 1 de Julho passado. O resultado foi que as remessas dos emigrantes portugueses residentes na União Europeia caíram 17%, em termos homólogos, no passado mês de Julho. Os seus bancos tê-los-ão aconselhado a depositar as suas poupanças em locais mais seguros e fora do alcance dos estripadores de galinhas. A maioria desses bancos é portuguesa. Não é uma questão de patriotismo: se não fossem eles a fazê-lo, outros bancos o fariam.

Publicado por Joana às 06:45 PM | Comentários (55) | TrackBack

setembro 27, 2005

Escolhas Simples

Não há escolhas múltiplas na política portuguesa: Socialistas e conservadores revelam-se estatizantes convictos, na oposição, e liberais à força e envergonhados, no Governo. Há diferenças: entre os socialistas o liberalismo é diabolizado, sempre, enquanto o socialismo é metido na gaveta durante a governação; entre os conservadores o liberalismo faz parte do seu inventário (pelo menos em algumas áreas), mas está prudentemente fechado na gaveta, com receio de causar alarido público. Marques Mendes está a fazer uma campanha eleitoral clamando por investimento público e exigindo saber, antes das eleições autárquicas, os números do OE2006, para criticar os eventuais cortes na despesa pública. Marques Mendes meteu o liberalismo na gaveta, se é que alguma vez o tirou de lá.

As próximas eleições destinam-se às autarquias. É evidente que o OE2006 condicionará a despesa autárquica, mas esse condicionamento não será afectado (ou pelo menos não o deveria ser) pelo resultado das eleições, porquanto estas não irão afectar a composição da AR. O Governo actual sabe que terá de fazer um OE de contenção e todos os que desejam o melhor para o país esperam que essa contenção se faça unicamente do lado da despesa. Tentar que haja interacção entre os resultados das autárquicas e o OE2006 é uma forma perversa de encarar a democracia. Sou favorável a que se cumpram as legislaturas. Sempre fui. Esse cumprimento implica que os resultados das outras eleições – autárquicas, europeias e presidenciais – não condicionem, nem sejam usados para condicionar a política do governo. Aliás, sobre esta matéria, Marques Mendes não pode mudar de parecer, consoante está no Governo ou na oposição.

Este Governo tem gerido uma política de eliminação de alguns privilégios com incidência na despesa, temperando-a com demagogia. O caso mais típico foi o da redução das férias judiciais, criando na opinião pública a ilusão que eram as férias judiciais as responsáveis pelos atrasos dos processos, quando a questão da reforma da justiça em Portugal passa, em primeiro lugar, pela acção governamental na reforma dos procedimentos judiciais e, em segundo lugar, pela reforma da organização judicial, também da responsabilidade do Governo em conjunto com todo o pessoal da justiça.

Todavia, esse tempo está-se a esgotar. O Governo tem, obrigatoriamente, que passar a acções mais enérgicas e profundas de reestruturação do sector público. O Governo tem que diminuir a despesa pública, mas não pode fazer cortes às cegas. Os cortes terão que ser feitos em simultâneo com a reestruturação dos procedimentos e orgânicas internas. Sem isso, os únicos cortes que o Governo pode fazer é o congelamento dos salários e do investimento público. Simplesmente mesmo estas medidas têm limites. Não há organização que consiga funcionar, tendo os seus efectivos os salários congelados, independentemente do mérito de cada um. E há um investimento mínimo para a conservação da operacionalidade dos activos públicos.

Ou seja, deve ser dado ao Governo um prazo de 4 anos para ser julgado pela sua política (a menos que se tenha caído numa situação de ingovernabilidade evidente). Em contrapartida a oposição deve usar esse período para construir alternativas credíveis e viáveis que serão também objecto de julgamento no fim da legislatura. Neste entendimento, não me parece que Marques Mendes esteja a construir uma alternativa credível, ao ter contestado, e bem, durante a discussão do OE Rectificativo, que o principal esforço fosse do lado das receitas (aumento dos impostos) e não do lado da despesa, e agora, poucos meses volvidos, vir clamar pelo aumento da despesa pública, porque julga que isso lhe poderá trazer dividendos eleitorais, certamente efémeros.

Nem pode agora reclamar investimento público e, daqui a 3 semanas, debater o OE2006 exigindo a contenção da despesa. Um político credível não deve ter uma política nos dias pares e outra nos dias ímpares. O PS pode, na oposição, exigir mais despesa. Faz parte da lógica socialista malbaratar o dinheiro dos contribuintes. Não julgo prudente que Marques Mendes tente pescar nas águas ideológicas socialistas e faça, na oposição, o que o PS andou a fazer enquanto lá esteve. Não ganha nada com isso e só se descredibiliza.

Publicado por Joana às 07:51 PM | Comentários (101) | TrackBack

setembro 26, 2005

Mentira Compulsiva

O Eurostat não validou as contas públicas portuguesas relativas a 2004 por ter dúvidas quanto à classificação como receita de um dividendo pago pela Empresa de Desenvolvimento Mineiro e por querer clarificar as «injecções» de capitais nos hospitais entre 2001 e 2004. Sócrates disse que não queria “comentar” a não validação das contas, mas “lembrou” que não são da responsabilidade do seu Governo. Todavia o que o Eurostat não validou foi o reporte de Junho já enviado por este Governo e, segundo o Ministério das Finanças, foram as autoridades nacionais que detectaram o erro, informaram o Eurostat e vão rectificar no reporte de Fevereiro. Ou seja, o dividendo da EDM foi classificado erradamente pelo anterior Governo, mas foi validado (e denunciado ao Eurostat) por este Governo. Foi desnecessário, e muito pouco apropriado, o lembrete de Sócrates. Se não o tivesse feito, teria agido como um estadista e escusaria de ouvir que o reporte era da autoria do seu Governo.

Eu ainda não percebi se Sócrates é um mentiroso compulsivo ou simplesmente um cândido optimista que toma os seus desejos por realidades e que vive numa irrequietude empolgada tentando criar expectativas fabulosas, mas sem sustentabilidade prática. Até à data só tem dito mentiras e criado falsas expectativas.

Prometeu não aumentar os impostos e aumentou o IVA, o ISP, o Imposto sobre o Tabaco, etc.. Prometeu criar 150 mil empregos e o desemprego continua a aumentar, embora se tenha tentado iludir esse aumento escamoteando o efeito da sazonalidade no 2º trimestre. Prometeu reformar a administração pública, mas até agora as únicas reformas apresentadas referem-se à harmonização das idades das reformas, que sendo justas e necessárias, como medida de equidade social, têm pouco impacto na despesa pública e, adicionalmente, tornam-se um obstáculo ao rejuvenescimento da função pública a curto e médio prazo. Prometeu moralizar a vida pública e o país nunca havia assistido a uma tamanha distribuição de sinecuras por amigos e correligionários.

A única promessa que continua a manter, teimosamente, é a dos projectos do Aeroporto da Ota e do TGV. Mas julgo que a mantém porque são projectos a longo prazo, promessas para serem cumpridas daqui a muitos anos, talvez lá para as calendas gregas.

À medida que a situação se degrada, enquanto outros políticos, mais terra-a-terra, se preocupariam em encontrar soluções urgentes que estancassem a crise, a mente privilegiada de Sócrates rasga-nos o futuro com as “Novas Oportunidades”. Está tudo resolvido. Prometeu “alargar substancialmente a oferta de cursos técnicos e profissionais ao nível do 12º ano, corrigindo de vez aquilo que foi um erro histórico do nosso sistema de ensino”. Assim, “Em 2010, atingiremos as 145 mil vagas e um total de 650 mil jovens abrangidos por estes cursos. Em apenas cinco anos faremos com que as vias técnicas e profissionalizantes representem metade da oferta de nível secundário, tal como é norma em todos os países da OCDE”. 650 mil jovens! É empolgante!

Actualmente, a única escola profissional pública é a Marquês de Pombal. O restante ensino profissional é privado e se, inicialmente, foi subsidiado pelo Prodec, agora não recebe praticamente subsídios e vive das propinas e das parcerias com empresas privadas. Funcionam de tal forma bem que algumas escolas se dão ao luxo de recusar candidatos, apesar destes representarem uma fonte de receita. Quanto ao ensino técnico-profissional público, que nunca funcionou bem, acabou e foi substituído pelos cursos tecnológicos.

Os cursos tecnológicos foram um flop. Os nossos elitistas ainda não perceberam que uma via profissionalizante deve ser ... profissionalizante. Manter o mesmo ensino clássico e adicionar-lhe matérias tecnológicas, mas ensinadas numa perspectiva teórica é complicar um curso que se destinava justamente a alunos com mais dificuldades na área das ciências abstractas e mais vocacionados para matérias práticas. O sistema educação formação, actualmente em vigor, funciona muito mal e é inexistente em muitas escolas.

E é nesta situação que Sócrates promete que “em 2010, atingiremos as 145 mil vagas e um total de 650 mil jovens abrangidos por estes cursos”. 2010 é daqui a quatro anos e meio. Não é apenas uma questão de instalações e equipamentos. É também uma questão de pessoal docente. Pessoal docente para o ensino clássico é fácil arranjar – as Universidades debitam anualmente quantidades enormes daquele bem. Mas pessoal docente habilitado para o ensino profissional é muito difícil de encontrar. As experiências anteriores, que foram muito limitadas, obrigaram à formação específica de docentes. Pelos rácios actuais, a 650 mil alunos correspondem mais de 60 mil docentes habilitados para aquele tipo de ensino. Alguém avaliou a dimensão desta proposta? Alguém acreditou nela?

O que Sócrates tem feito, desde que assumiu as rédeas do Governo, foi criar expectativas – em vez de tomar medidas concretas, agora, cria expectativas fantásticas, futuras. Sócrates é um político iluminado. Despreza as pequenas misérias do quotidiano. Só vê, projectado num futuro empolgante, um país totalmente novo. Ninguém sabe se existe, nem como lá chegar. Mas isso são minudências que não abalam a fé de Sócrates.

Portugal novo vai sair do cérebro de Sócrates, como Palas Atena nasceu da cabeça de Zeus, já completamente armada e coberta com o elmo do Saber. Vai ser a “Maravilha fatal da nossa idade”. Espera-se que não tenha o mesmo destino.

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (111) | TrackBack

setembro 25, 2005

Deitar dinheiro à rua

Comprei o Público, hoje, única e exclusivamente por causa de um dossiê “O que têm a Finlândia e a Irlanda, que Portugal não tem?”. Há estudos que se baseiam em estatísticas ou em estudos quantitativos realizados por outros. Este baseou-se nas opiniões de outros. Inclusivamente no gráfico do PIB ppc per capita, a curva relativa à Finlândia aparece com o nome da Irlanda e vice-versa. Um erro grosseiro que salta imediatamente à vista, pois é sabida a enorme queda do PIB finlandês a seguir à implosão da URSS. Obviamente que têm interesse as opiniões de diversas pessoas, entre elas a de Medina Carreira. Mas são opiniões apresentadas de uma forma pouco estruturada e sem suportes estatísticos adequados.

Há um ponto interessante. Segundo o dossiê, as diferenças de desenvolvimento resultam de apostas em estratégias diferentes. Portugal apostou nas infra-estruturas públicas, enquanto a Finlândia e a Irlanda, para além da aposta na captação de investimento directo estrangeiro orientado para as novas tecnologias, apostaram na qualificação e educação (no caso da Irlanda a aposta incidia ainda nos regimes fiscais e laborais favoráveis). Todavia a diferença das despesas em Educação não corresponde a essa alegada diferenciação de apostas (Portugal = 5,8% do PIB em 2000, Finlândia = 5,9% e Irlanda = 4,4%), nem é explicada essa incongruência. Afinal Portugal até teria investido em Educação tanto quanto a Finlândia e bastante mais que a Irlanda. Simplesmente deitou dinheiro à rua. Como eu, hoje.

Publicado por Joana às 10:08 PM | Comentários (86) | TrackBack

Apocalipse Now

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse já não são a Peste, a Guerra, a Fome e a Morte. A partir da última semana passaram a ser Fátima Felgueiras, Avelino, Isaltino e Valentim. Eleitores que se precatem, pois se caírem na tentação de votar neles, desencadearão a fúria do Apocalipse. Todavia uma imensidão separa os furiosos politólogos de agora, do “Águia de Patmos” de antanho. A fúria do apocalipse destinava-se a varrer da face da Terra a “Babilónia prostituída”. Quem agora esconjura os 4 Cavaleiros do Apocalipse não percebeu que eles não são (nem serão) a causa da “Babilónia prostituída”, mas o seu efeito. Nunca a prostituirão mais do que ela se encontra actualmente. Esta fúria apocalíptica da comunicação social e dos políticos não passa de hipocrisia.

Quer políticos, quer agentes da justiça, estão desprestigiados junto do eleitorado. Para um eleitor genérico, as figuras de Avelino e dos outros poderão estar mais desprestigiadas que a média dos políticos, mas para os eleitores aos quais eles se dirigem, não o estão. Em contrapartida têm obra feita, mesmo que essa obra possa ser, em alguns casos, mais ilusória que real. Para os eleitores a que se dirigem não representam nada de pior quando comparados com os políticos “centrais”. Bem pelo contrário, estão mais próximos, souberam granjear relações de confiança e as acusações de que são alvo são frequentemente tomadas por mentiras postas a correr pelos políticos distantes por mesquinhez ou inveja, com o apoio de uma justiça facciosa e que só funciona quando quer. Ou mesmo que essas acusações sejam consideradas como tendo algum fundamento de verdade, resultam de acções tomadas em defesa da terra, enquanto os políticos distantes são vistos como igualmente corruptos e, pior que isso, incapazes e deinteressados das questões locais.

Sempre houve corrupção nas Câmaras. Corrupção directamente proporcional à importância do urbanismo e das obras. Era uma corrupção generalizada e ao nível dos serviços. A emergência do “Poder local democrático” traduziu-se na camuflagem dessa situação em nome desse ícone sagrado. O poder autárquico foi, durante muitos anos, a jóia da Coroa da Revolução de Abril. Eram visíveis as ineficiências das Câmaras e os desperdícios de fundos públicos a que deram origem. Mas eram ícones e é blasfémia duvidar das excelências das coisas sagradas. Foram décadas em que a comunicação social se preocupava apenas em denegrir a imagem dos políticos “centrais”. Os políticos locais foram preservados em nome do “Poder local democrático”. Os serviços, esses, continuaram a agir com o despudor com que sempre haviam feito.

Subitamente as coisas mudaram. As empresas municipais, que estavam sendo criadas para agilizar processos em áreas onde os municípios tinham dificuldade em agir com rapidez, tornaram-se afinal entidades para prover empregos políticos ou mesmo para bombear fluxos financeiros para fora dos circuitos normais. Empresas Multimunicipais, criadas para acabar com o escândalo dos desperdícios camarários em investimentos em ETARs, ETAs, etc., que depois ficavam inactivas por incompetência dos serviços, tornaram-se centros de negócios que conseguiam lucros adicionais que enchiam os bolsos dos partidos. Era notável a unanimidade e o consenso com que os partidos partilhavam desses bónus, por muito irreconciliáveis que fossem as suas diferenças políticas.

Ou seja, entidades criadas quer para contornar uma estrutura legal burocrática e anquilosante, ou para melhorar a eficiência dos serviços prestados a nível local, tornaram-se, em muitos casos, centros de empregos políticos ou bolsas de financiamento partidário ou pessoal. E isso começou a trazer-lhes notoriedade pública. E os políticos locais caíram sob a lupa da comunicação social e da justiça. Mas apenas os políticos, porquanto os serviços continuam a agir, imperturbavelmente, como sempre fizeram.

Esse efeito causou um terrível tumulto. Descobriu-se agora que foi um tumulto apenas ao nível da comunicação social. A comunicação social andou estes meses a terçar armas contra monstros que ameaçavam tragar a democracia, perante o olhar irónico e algo indiferente dos portugueses. O Isaltino tinha uma conta na Suiça? Um riso escarninho ... e os outros? E as reformas chorudas de cargos semi-políticos, políticos e políticos e semi?

O Público, na edição de 6ª feira passada, conta a história de uma indemnização de 12 milhões de euros à Eurominas em que estiveram envolvidas figuras gradas do PS, como Alberto Costa, José Lamego, Vitalino Canas, José Junqueiro, Narciso Miranda e ... António Vitorino, que agiram, ao longo de todo o processo, quer como representantes do Estado quer como representantes da Eurominas, consoante os avatares eleitorais. Foi uma história em que ninguém mais pegou, apesar de envolver um actual ministro e um permanente candidato a qualquer cargo político importante no país ou no estrangeiro.

Tratava-se de um caso complexo, incapaz de ser reduzido a uma frase estentórica jorrada pela boca da MM Guedes e comentada com o sangue a escorrer pelas comissuras dos lábios de MS Tavares. Ao nível mental em que o país se encontra, já só têm interesse cenas boçais, de faca e de alguidar. Tudo o que extravase a boçalidade, o mediatismo circense e o voyeurismo não serve as audiências.

Nós temos o país que criámos ao longo destes anos. Queixamo-nos dos autarcas. Mas se nós os divinizámos durante décadas como uma das conquistas mais sólidas do 25 de Abril? Os políticos queixam-se dos interesses corporativos que agora impedem as reformas. Mas se foram eles que os criaram e os alimentaram para obterem os seus votos? Queixamo-nos da partidocracia. Então não nos tem sido repetido, desde há mais de 30 anos, que os partidos são a base da democracia? E não temos que acreditar nisso, sob o opróbrio de se ser salazarista, no caso de alguma dúvida sobre aquele conceito minar as nossas mentes? Queixamo-nos do laxismo da nossa sociedade. Mas não fomos nós que aprovámos e aplaudimos esse laxismo nas escolas que nos têm educado no último terço de século? Queixamo-nos dos políticos que nos têm governado. Acaso temos feito por merecer melhor?

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse não vão modificar as coisas na “Babilónia prostituída”. E se modificarem será, mau grado eles e os seus detractores, no sentido de uma menor hipocrisia e de uma maior clarificação da coisa pública.

Se desbabilonizarmos e desprostituírmos secaremos a seiva que nutre aqueles cavaleiros e outros que se prefigurem no horizonte político. Esse é que deveria constituir o nosso objectivo, e não invectivas inúteis e farisaicas.

Publicado por Joana às 05:56 PM | Comentários (44) | TrackBack

setembro 23, 2005

Teoria e Prática

O secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna, José Magalhães, avisou hoje que "Qualquer apelo à violação da Constituição por parte de membros de uma força de segurança coloca-os fora da lei, com todas as consequências jurídicas e práticas". José Magalhães é licenciado em Direito pela FDL e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É pois uma opinião reputada. Assim sendo, constatámos de fonte fidedigna algo que já sabíamos: as consequências jurídicas não são práticas. Não passam de jurisprudência avulsa que, após encadernação meia-inglesa em pele escura com titulos e ferros a ouro na lombada, passa a decorar os escritórios dos advogados e juízes. Por isso o licenciado e mestre José Magalhães ameaçou, doutamente, prudentemente, que também haveria consequências práticas.

Publicado por Joana às 09:07 AM | Comentários (172) | TrackBack

setembro 22, 2005

Embrulho Surpresa

Quando o politicamente correcto e o desprezo do Estado pelas preferências dos cidadãos se unem, a mistura é mortífera. A um casal que pretenda adoptar uma criança é-lhe oferecido o mesmo painel de opções que a um miúdo que faz um furo ou adquire uma bola hermética – fica com o que lhe calhou em sorte. O casal não pode escolher a raça do filho que pretende educar. Também não pode ter acesso às análises e a outros meios de diagnóstico, se porventura os houver, sobre a situação da criança do ponto de vista da sua saúde, patologias existentes e respectiva gravidade. Para evitar dicas “por fora”, esses elementos nem sequer constam da base de dados.

Adoptar e educar uma criança é um assunto sério. Não é um furo que se faz e que depois, contrariado com o que coube em sorte, se deita fora o que saiu e se faz outro furo. Esta atitude das autoridades representa um desprezo pelas preferências dos cidadãos e uma capitulação absurda perante o politicamente correcto. Os principais prejudicados serão as crianças adoptadas, os pais adoptivos, se não concordarem com a “surpresa” que veio no embrulho que lhe saiu na rifa e aqueles que queriam adoptar uma criança, mas desistem face a estas circunstâncias pouco aliciantes.

Aliás, as crianças à espera de adopção são sempre as mais prejudicadas. São prejudicadas pelos prazos absurdos que a burocracia impõe aos processos de adopção (há 15.455 menores em instituições ou em famílias de acolhimento e os portugueses continuam a esperar uma média de seis anos para adoptar uma criança) e são prejudicadas pela diminuição da procura, fruto do receio de lhe sair em sorte uma criança com características não desejadas: patologias que se podem tornar num futuro calvário, etnia diferente da dos pais adoptivos, eventualmente não desejada, etc.. Os dados da Segurança Social são claros sobre a procura para adopção: há 135 candidaturas sem estudo iniciado, 11 formalizadas em 2003, 80 em 2004 e 44 em 2004.

Como tudo o que toca ao politicamente correcto ou ao papel do Estado em impor preferências aos cidadãos, é preferível varrer para debaixo do tapete os falhanços dessas perversões ideológicas. É onde estão mais de 15 mil crianças. É a cultura do depósito.

Publicado por Joana às 01:15 PM | Comentários (78) | TrackBack

Justiça das Bananas

Comentadores televisivos estão abespinhados com a falta de ética de Fátima Felgueiras que esteve dois anos e meio fugida à justiça e agora regressa com pompa e circunstância. Eu estou abespinhada pelo facto de alguém poder ter estado dois anos e meio em prisão preventiva e afinal a medida de coacção ser agora substituída pela impossibilidade de se ausentar do país. Fátima Felgueiras é apenas uma cidadã. Se praticou delitos, presume-se que a lei a punirá por isso. Uma justiça que funciona assim, é a justiça de uma República das Bananas. Ninguém a responsabilizará pelos dislates. Pelo contrário, somos nós todos que estamos à mercê do seu arbítrio.

Eu não tenho medo de Fátima Felgueiras; tenho, sim, medo desta justiça. Não tenho vergonha de Fátima Felgueiras (se foi corrupta, outros o foram, e são, noutros países); tenho, sim, vergonha desta justiça terceiro-mundista; não estou abespinhada com Fátima Felgueiras – limitou-se a pôr-se a salvo da justiça, o que faz parte do instinto humano de sobrevivência; estou, sim, abespinhada com a justiça portuguesa, com a sua incompetência e com a sua arbitrariedade. Quando vejo políticos na TV indignados com a falta de ética de Fátima Felgueiras, penso que fariam melhor se criticassem o funcionamento da justiça e lançassem ideias para a sua reforma total. O problema da justiça portuguesa tem uma dimensão incomensuravelmente mais grave que o de Fátima Felgueiras.

Mas a “Justiça das Bananas” não se esgota neste caso. No julgamento da Casa Pia, os advogados dos arguidos devem andar a rebolar-se de gozo pelo facto das testemunhas incriminarem os arguidos presentes a julgamento e igualmente Paulo Pedroso, que aguarda há dois anos que o Tribunal da Relação decida sobre se vai ou não a julgamento. O Tribunal da Relação está numa terrível indecisão. Se dá provimento à não inclusão de Paulo Pedroso no despacho de pronúncia que acusou os restantes arguidos, está a dar armas poderosíssimas à defesa – deve haver um lamentável equívoco: então os meus constituintes estão aqui a serem julgados, enquanto um outro, que segundo as testemunhas praticou os mesmos crimes não foi pronunciado? Se um testemunho não faz fé num caso, como o poderá fazer nos outros? Isto é uma cabala e os meus constituintes são umas vítimas de um terrível erro judiciário, pelo qual pagaram vários anos de perda de liberdade. Se não dá, vai destruir muitas amizades ...

Receio bem que, dentro de alguns anos, estejamos a pagar milhões de euros de indemnizações às vítimas do processo da Casa Pia. Não aos miúdos ... aos actuais arguidos.

Publicado por Joana às 12:10 AM | Comentários (61) | TrackBack

setembro 21, 2005

A Aberração do Amor

Hoje vou abordar um tema completamente diferente. Quis o acaso que passasse os olhos por este post e achei que o que lá estava escrito merecia alguma reflexão, não porque tivesse qualquer consistência científica (os links lá indicados não me conduziram a nada) mas porque corresponde a opiniões correntes em alguns círculos. O absurdo da questão talvez nem decorra das preferências sexuais desses círculos, mas mais das mentalidades de quem produz tais afirmações, embora as primeiras possam, eventualmente, influenciar as segundas.

Resumindo, a conclusão era que “Os resultados sugerem que mulheres em relações estáveis são atraídas pelo odor corporal de homens dominantes unicamente durante o período de ovulação. O estudo implicaria assim que as mulheres estariam biologicamente programadas para adoptar estratégias de acasalamento misto, tendo filhos de machos dominantes portadores de óptimos genes, mas estabelecendo relações duradouras com maridos fiéis e bons pais de família, prontos a investir na educação das crianças

Esta conclusão baseia-se numa visão completamente distorcida do que deve ser um casal ou uma família. Baseia-se na separação de duas coisas que são inseparáveis: a união conjugal e o desejo físico. Baseia-se na ignorância daquilo que nos separa dos animais não racionais – funcionarmos racionalmente e não apenas por instinto. Não funcionamos pelo cio. A nossa principal zona erógena é o cérebro. E só os desajeitados não percebem isso.

A paixão é a atracção física intensa, adicionada a um conjunto de qualidades que o desejo faz o(a) apaixonado(a) atribuir ao objecto da sua paixão. Mas a paixão é chama que se extingue. A banalização da relação física acaba invariavelmente na eliminação daquelas qualidades apostas, a maioria delas mais fruto da ilusão que reais. Acaba a paixão, acabam as qualidades do objecto da paixão e, frequentemente, fica a dúvida sobre como teria sido possível ter havido aquela paixão. O matrimónio deve basear-se no amor. Amor é o desejo, mas também é o respeito mútuo, a educação e a amizade ... sobretudo a amizade.

É possível que um matrimónio se mantenha, na ausência do desejo, quando este se extingue, mas é um matrimónio árido, vazio, que, por muita educação e respeito mútuo que os cônjuges tenham, acaba por se reflectir no ambiente familiar e na educação dos filhos. As crianças têm uma enorme sensibilidade para se aperceberem destas “falhas”.

Ter como sucedâneo uma relação extra-conjugal não é solução. É possível um ou ambos os cônjuges manterem em simultâneo a sua célula familiar e relações extra-conjugais paralelas e duradouras. Mas essa célula familiar só existe, enquanto existir, contratualmente. Como família é o vazio, é a aridez. Não há bons pais de família, ou boas mães de família, nestas circunstâncias, por muito boa vontade e verniz que cada um tenha. Não é sustentável um cônjuge fiel e bom pai (ou mãe) de família, pronto a investir na educação das crianças, enquanto o outro desfruta o duplo prazer do sexo e do “pecado”. Mas também não é sustentável para o cônjuge do acasalamento misto, visto ele próprio não ser capaz de manter essa situação de forma duradoura, mesmo variando de parceiros. O que "ganhou" num prazer efémero, perderá sempre no esvaziamento da sua família, de si próprio e do seu sentido da sua vida.

Não quero dizer que uma relação extra-conjugal não possa acontecer ou seja diabolizada. As pessoas, às vezes, estão mais vulneráveis ou carentes, quer psicologicamente, quer fisicamente. O desejo sexual nem sempre é fácil de controlar (como se diz ... a ocasião faz o ladrão). Inclusivamente poderá constituir uma terapia sexual numa fase de menor interesse físico e basear-se mesmo numa opção aceite mutuamente. Portanto, tal poderá ocorrer, mas como uma excepção, uma casualidade, talvez até uma terapia, nunca uma regra, nunca o sucedâneo a um matrimónio onde o desejo físico se extinguiu ou se considera despiciendo.

O acasalamento não é o matrimónio. Será vulgar durante a adolescência dos humanos, enquanto não sentimos a necessidade de procurar uma relação duradoura e estável, baseada no amor, respeito, afecto e, obviamente, no desejo físico. O acasalamento poderá fazer parte da nossa aprendizagem para atingir a idade adulta. Não pode servir de ersatz a um matrimónio.

Um matrimónio nessa situação leva à falta de respeito mútuo, uma das bases principais de um sólido ambiente familiar, onde os filhos encontrem a educação que necessitam, que merecem e que temos obrigação de lhes dar. Leva à degradação da amizade. É um matrimónio sem amor. Não é uma célula familiar. É uma célula contratual. É uma aberração.

Publicado por Joana às 07:18 PM | Comentários (121) | TrackBack

setembro 20, 2005

Partido Schröder

Há um equívoco que percorre os analistas políticos portugueses desde os socialistas até aos conservadores, passando por liberais, neo-cons, paleo-cons, etc., que é Schröder ser do SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). Funesto engano. Schröder é do SPD (Schröder Partei Deutschlands). Schröder não tem uma ideologia coerente nem uma política própria. Schröder apenas tem Schröder – uma férrea determinação em vencer e uma sugestiva e insinuante imagem telegénica de vendedor de pasta dentífrica.

Schröder não concorre em eleições partidárias. Apresenta-se em plebiscito. Não é um partido – é ele. O partido é apenas uma das alavancas para ele conquistar o poder. Schröder precisa do partido como de uma empresa de Manpower. Schröder derrotou Kohl em 1998 com um programa socialista. Conduziu a Alemanha à estagnação económica. Perante a falência da sua política económica resolveu, nas eleições de 2002, jogar a carta do anti-americanismo e dramatizar a questão iraquiana. Schröder deve ralar-se tanto com os iraquianos como com os pinguins da Antártida. Todavia precisava dessa carta para lançar uma espessa nuvem de fumo sobre a crise económica e levar de vencida um desastrado Stoiber.

Face ao aprofundamento do insucesso económico, Schröder resolveu apostar numa política de liberalização da economia e na liquidação de algumas das mais evidentes vacas sagradas do Estado providência. Resolveu avançar com os projectos da Agenda 2010 e da legislação Hartz IV. Os cortes substanciais nos subsídios de desemprego alienaram-lhe as simpatias do Leste (com 20,4% de desemprego) e desencadearam as manifs das segundas feiras. Essa política colidia com a ideologia do SPD. Não interessava: quem era insubstituível era Schröder, não a ideologia. Substitui-lo seria como tentar produzir uma Matrix Reloaded sem Keanu Reeves. O argumento é despiciendo e ninguém o percebe – quem é fundamental é o Keanu Reeves.

Os primeiros recalcitrantes saíram, com Oslar Lafontaine à cabeça. Poderia haver preocupações dentro do SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). O SPD (Schröder Partei Deutschlands) permaneceu imperturbável.

O continuidade da estagnação alemã levou Schröder a aprofundar a sua política de aplicação de algumas receitas liberais. Um frémito de horror percorria o SPD. Para além da contestação sindical, dos trânsfugas de Lafontaine, das manifs dos Ossies, Schröder tinha agora a contestação interna. A somar a isso, as sucessivas derrotas nas eleições regionais, para a CDU, tinham tornado o Bundesrat (uma espécie de Senado) num órgão de larga e sólida maioria conservadora.

Perante esta situação, Schröder resolveu jogar o seu trunfo principal – o plebiscito à sua figura. Conseguiu que fossem convocadas eleições antecipadas para o Bundestag.

Durante a campanha eleitoral, Schröder não defendeu o seu programa. Nem era conveniente, pois tirando alguns pormenores e a flat-tax, o programa que estava a aplicar tinha muitas semelhanças com aquele que a CDU se propunha fazer. O eleitorado correria o risco de ficar perplexo. Schröder apenas atacou. Atacou sempre. A CDU ia destruir o Estado providência (cuja demolição já começara com ele próprio). Instilou o pavor da mudança (mudança que ele já encetara). Lançou cartazes em que apareciam caixões de soldados americanos com a legenda “Sie hätte Soldaten geschickt” (ela teria enviado soldados), agitando medos antigos. Prometeu 1.500 “empregos por dia” (como estas promessas colhem sempre?!). Usou e abusou da sua telegenia e da inexperiência e inabilidade políticas da sua principal adversária. Não houve argumentos, truques, ilusionismo político a que ele não recorresse. Mostrou uma férrea determinação em vencer.

E quase o conseguiu!

Agora aparece intitulando-se o vencedor das eleições e promovendo contactos para formar governo. Argumenta que a CDU/CSU são dois partidos distintos. Embora salvaguardadas as devidas proporções entre a Baviera e a Madeira, seria o mesmo que excluir os deputados do PSD-Madeira da bancada do PSD, para efeitos de determinar o partido com mais assentos.

Schröder sabe que a sua pretensão em ser o vencedor das eleições não tem qualquer acolhimento entre constitucionalistas e na classe política em geral. Ele apenas pretende manter a pressão para ver o que consegue obter. Schröder é um jogador. Está na política como a uma mesa de póquer. Com a mesma coerência ideológica. Continua a aumentar a parada apenas para ver se algum adversário passa.

Não sei que futuro político terá Schröder. As próximas semanas serão decisivas para o seu futuro imediato. Todavia, se a partida de póquer em que está empenhado o levar à derrota, auguro uma difícil travessia no deserto para o SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). Schröder está para o SPD como Cavaco esteve para o PSD: é um eucalipto que secou tudo à volta. Quando cair, se cair, vai deixar o SPD órfão.

Todavia, mesmo que perca agora, Schröder é demasiado tenaz e sequioso da ribalta para não regressar no momento que achar mais conveniente aos seus propósitos. É hábil, audaz, telegénico e completamente destituído de escrúpulos ideológicos.

Publicado por Joana às 07:13 PM | Comentários (113) | TrackBack

Assimetrias Regionais

As contas regionais do INE referentes a 2003 mostram um país com profundas assimetrias. Mas são assimetrias já conhecidas e que permanecem há décadas apesar das contribuições líquidas entre as regiões mais ricas e as outras. Há apenas uma região que “fugiu” a essa assimetria homotética e tem crescido a um ritmo muito superior à média nacional, tornando-se, de uma das regiões mais atrasadas do país, na segunda região mais rica, atrás de Lisboa: a Madeira. Alguns sugeriram que essas assimetrias teriam que ver com a existência de poder político em Lisboa (e na Madeira). Curiosamente algumas dessas sugestões provieram de áreas que consideram despiciendo, ou mesmo prejudicial, o papel do Estado.

Há um ponto, todavia, que justifica parte do enviesamento de Lisboa: um peso maior da administração central. É certo que o funcionalismo público está distribuído com alguma equidade pelo país (professores, pessoal da saúde, efectivos da segurança, pessoal autárquico, etc.). Todavia os ministérios e diversos institutos públicos estão sedeados em Lisboa. Ora como se sabe, o sector público é, excepto nos escalões mais elevados, melhor remunerado que o sector privado, para a mesma qualificação. Essa remuneração adicional pode justificar uma parte, provavelmente pequena, das assimetrias (Ver adiante quadro com PIB per capita e Produtividade para as Nuts III em 2003).

Há diversos factores que podem igualmente ser explicativos. Um deles é o facto da indústria de mão-de-obra intensiva e de baixa qualificação se ter implantado preferencialmente no norte do país. Esta situação tornou mais frágil o tecido industrial daquela zona e mais sensível às flutuações dos mercados internacionais. Esta é uma situação que dura há décadas. Estima-se que o nível de remunerações dos sectores exportadores de baixo valor acrescentado tenha subido menos que a média nacional, para manter a competitividade internacional.

Entretanto, a abertura dos mercados mundiais e o aparecimento dos novos gigantes asiáticos estão a degradar os rendimentos daquelas populações. Tem havido numerosos despedimentos e as estatísticas mostram que, quando se arranja um novo emprego, a média da remuneração é cerca de 10% inferior. Este factor poderia adicionar-se ao anterior. Para experimentar esta hipótese construí um quadro que apresento abaixo, onde calculei as variações anuais de diversos parâmetros entre 1995-2003, 1999-2003 e 2001-2203, justamente para ter em conta crescimentos diferenciados naqueles períodos. Verifica-se que, por exemplo, a diferença entre o crescimento de Lisboa e do Norte se vai atenuando à medida que o período é mais próximo. Ora esta constatação contraria a hipótese formulada. Em contrapartida, essa aproximação poderia ter a ver com o congelamento dos salários da função pública. Todavia, se se observar as variações das outras Nuts II, essa conclusão não parece tão evidente. Não é pois possível tirar conclusões sobre o efeito da crise dos têxteis e do calçado. Contudo 2003 ainda não é um ano significativo no que respeita aos efeitos dessa crise nas contas regionais. As estatísticas de 2004 e 2005 talvez possam permitir conclusões mais consistentes.

Outra explicação terá a ver com a mentalidade das populações. O desenvolvimento do capitalismo operou-se com lutas laborais, sociais e políticas, que atingiram grande intensidade. Essas lutas constituíram um ensinamento para todos, quer do ponto de vista teórico, quer prático. Foram escolas onde se forjaram sociedades mais adultas e com espírito cívico e de cidadania mais desenvolvidos. A sociedade minifundiária e mais tradicionalista da metade norte do país permaneceu arredada dessas pugnas, mais que a metade sul e, principalmente, Lisboa. Essa diferença de mentalidades é importante na forma e estilo de abordagem e de condução dos negócios e no profissionalismo dos trabalhadores.

Vou citar 2 exemplos:

1 – Tenho, por experiências pessoais, verificado que os autarcas do sul têm, em geral, um espírito de solidariedade maior que os do norte e são capazes de terem uma visão mais equilibrada dos interesses mútuos das diversas autarquias empenhadas num dado projecto. Os autarcas do norte mostram-se muito unidos a exigirem as comparticipações e financiamentos, mas logo que os obtêm, surge frequentemente a intriga, com cada um a puxar para seu lado e as coisas emperram e protelam-se desnecessariamente.

2 – Estive há uns 3 anos a almoçar com um sujeito que tratou da liquidação de uma empresa mineira de Aljustrel e de outra na Urgeiriça. Foram processos longos e morosos. Segundo ele, as negociações com os sindicatos em Aljustrel eram terríveis, levavam a discussões acaloradas e prolongadas mas, quando chegavam a um acordo, ele era cumprido por todos. O assunto estava encerrado e passava-se adiante. Na Urgeiriça o acordo era facílimo de obter, mas quando se chegava ao seu cumprimento, cada pessoa era um caso. Ninguém estava de acordo com “o acordo”, porque o seu caso era especial. Depois do acordo é que negociação se tornava num inferno insolúvel.

Estes exemplos valem o que valem. Por outro lado, o próprio desenvolvimento social e a educação tende a modificar lentamente essas mentalidades. Acredito todavia que parte do atraso de zonas como o Tâmega, Beira Interior, Alto Trás-os-Montes pode ter esta explicação como causa.

O extraordinário progresso da Madeira terá algo a ver com a autonomia, mas não só. Os Açores tiveram essa autonomia e só há pouco tempo se começaram a desenvolver com algum vigor. Na Madeira houve claramente um projecto que apostou no desenvolvimento das suas vantagens comparativas e que concitou a adesão da sociedade civil. O Algarve, que tem vantagens semelhantes às da Madeira, não as soube aproveitar tão bem, embora se possa queixar de ser, juntamente com Lisboa, o único contribuinte líquido inter-regiões. Se houvesse lá um AJ Jardim talvez não o fosse ...

É incontestável que a excessiva centralização da decisão em Portugal tem servido para emperrar o desenvolvimento. A questão é que emperra o desenvolvimento de “todo” o país, e não apenas das zonas periféricas. A burocracia cria tantos problemas a quem mora nas traseiras do Terreiro do Paço, como a um agente económico de Vinhais. Por outro lado, se exceptuarmos parte do litoral do país, há uma escassez gravíssima de massa crítica. Não é possível estabelecer indústrias minimamente qualificadas em quase todo o país, por falta dessa massa crítica. Não há gente qualificada ou, quando a há, é em quantidade muito insuficiente. O complexo de Sines, por exemplo, quando precisa de gente qualificada, tem que a importar de Lisboa ou de outras partes do país. Portanto, se exceptuarmos alguns pólos urbanos do litoral, a centralização é má, mas a descentralização é, actualmente, impossível. O interior do país entrou numa espiral de subdesenvolvimento que terá que ser combatida. Uma descentralização só poderá ser feita promovendo simultaneamente a criação de pólos urbanos com massa crítica adequada.

Aliás, se observarmos o quadro das NUTs 3, verifica-se que as profundas assimetrias se mantêm dentro das NUTs 2. Há uma diferença abissal entre o Grande Porto e o Tâmega. Provavelmente, dentro do Grande Porto existirá igualmente uma forte assimetria entre a cidade do Porto e os concelhos mais periféricos. A região Norte é a mais pobre, mas o Grande Porto está ao nível do Algarve e do Alentejo Litoral (região atípica, de baixa densidade populacional, onde o complexo de Sines e o turismo têm um peso importante).

Estas assimetrias são difíceis de corrigir, mesmo em países bastante descentralizados e com um forte poder regional. Há a experiência dos milhões recebidos pela ex-RDA e dos resultados pouco convincentes da aplicação desses fundos. A Alemanha saiu da 2ª Grande Guerra arrasada. O seu único capital eram os alemães, o seu know-how, a sua disciplina e o seu profissionalismo. Em menos de 20 anos tornaram-se na primeira potência económica da Europa. A mentalidade de dependência do Estado instilada durante mais de 4 décadas aos cidadãos da RDA foi muito mais destrutiva que as bombas dos Aliados. Passaram-se 15 anos e continua a não conseguir ultrapassar o atraso.


Tivemos igualmente a experiência recente, nos EUA, das assimetrias que o Katrina trouxe para a ribalta, entre Estados como a Louisiana ou o Mississipi e os Estados da costa Leste, Grandes Lagos ou costa do Pacífico. Vimos a diferença de reacção perante uma catástrofe, de habitantes de Nova Iorque e de Nova Orleães.

As assimetrias não têm apenas a ver com investimentos. Têm também a ver com mentalidades, grau de instrução e de cidadania. Apesar da sua escassez, mobilizar fundos é o mais fácil. Usá-los bem, é que é complicado.

PIBregionalpercapita.jpg

ContasReg_Varia.jpg

Nota: PPC = Paridade de Poder de Compra. Quando os valores são negativos, significa que se está num processo de divergência com a média comunitária (UE15 e UE25)

Publicado por Joana às 12:01 AM | Comentários (123) | TrackBack

setembro 19, 2005

Europa Sínica

Paira um espectro sobre a velha Europa. O espectro da concorrência chinesa e do modelo (a)social chinês. É um temor razoável. Para o combater a Europa tem que aumentar a sua competitividade e adequar o seu modelo social para sustentar essa competitividade. Mas a Europa também tem medo dessa mudança.
Terá todavia que a fazer e quanto mais tarde a fizer, mais o modelo necessário para sustentar essa competitividade se aproximará do modelo chinês, pois os protelamentos das reformas têm custos elevados.
No limite, e a longo prazo (em Portugal o prazo poderá ser muito mais curto), a Europa arrisca-se a tornar-se numa China envelhecida.

Publicado por Joana às 10:10 AM | Comentários (163) | TrackBack

A Portugalização da Alemanha

O inesperado aconteceu. Em vez de sermos nós a aprender com a Alemanha, sucedeu serem os disciplinados germânicos a aprender connosco. A nossa capacidade de aculturação dos alienígenas é notável. Em primeiro lugar, nas eleições alemães, ganharam todos. Cinco partidos clamam vitória. A CDU/CSU clama vitória, porque teve mais votos e mais lugares no Bundestag (embora a Forsa, uma empresa de sondagens, tivesse, há instantes, previsto o mesmo número de lugares, 222, para a CDU e para o SPD). O SPD clama vitória, apesar de ter perdido 4,5% dos votos e cerca de 30 lugares, porque após o descalabro dos últimos meses, conseguiu recuperar cerca de 10% dos votos que as sondagens lhe atribuíam. O FDP (liberais) clama vitória pois terá cerca de 10% (mais cerca de 3% do que obtivera em 2002), muito acima do que previam as recentes sondagens, tornando-se no 3º partido alemão. O Linkspartei/PDS subiu 4% na votação (agora terá 8,7%), mas como passou a fasquia fatídica dos 5%, terá cerca de 50 assentos, contra os 2 que detinha. Os Verdes clamam vitória, porque desceram menos do que se previa (cerca de 8%, contra 8,6%). Ganharam todos. Aparentemente, apenas a Alemanha perdeu.

Na verdade, CDU, SPD, FDP, Grüne e L/PSD tornaram-se peças de legos que são manejadas por analistas políticos para tentarem construir conjuntos viáveis. A grande coligação (CDU e SPD) é rejeitada. Aliás parte da subida do FDP é atribuída ao deslocamento de votos da CDU para FDP para impedir essa coligação. CDU-FDP ou SPD-Grüne não têm a maioria. A coligação “semáforo” (SPD vermelho, Verdes e FDP amarelo) parece fora de questão, pelo menos de momento, pelas declarações do líder do FDP. A coligação SPD, Grüne e L/PSD seria o dobre a finados da economia alemã. Se as empresas alemãs estão contra a actual coligação e têm ameaçado com deslocalizações, a entrada do L/PSD seria um desastre económico. Ou seja, no futuro próximo, a Alemanha está ingovernável. As ligeiras melhorias que a economia tinha tido nos últimos meses, fruto das expectativas que os empresários tinham sobre os resultados destas eleições, vão regredir quase de certeza.

O segundo passo da portugalização da Alemanha, foi que os alemães votaram no medo da mudança. A política de Schröder tinha levado a Alemanha à estagnação e o desemprego ao número fatídico de 5 milhões. Schröder estava pelas ruas da amargura. Todavia Schröder pode não ser um político fiável do ponto de vista da verticalidade política, mas é um político astuto. Quando conduziu a Alemanha para novas eleições numa situação de completa desvantagem, apostou no medo da mudança e sabia que colheria fartos dividendos dessa aposta. Toda a sua campanha foi instilar o medo das reformas que a CDU e o FDP previam fazer para dinamizar a economia e do seu efeito no Estado providência. E conseguiu. A vitória de Schröder sobre as sondagens de há dois meses, foi a vitória da manutenção do statu quo. Foi a vitória do medo.

Por enquanto o statu quo ainda não é suficientemente mau, para os alemães votarem na mudança. Mutatis mutandis, é o que acontece em Portugal. Resta à Alemanha, como a Portugal, como à Itália, etc., que o statu quo seja mesmo calamitoso, para a opção da mudança se torne inevitável.

Publicado por Joana às 12:10 AM | Comentários (90) | TrackBack

setembro 18, 2005

Desastre Escolar

Sempre que as estatísticas internacionais, ou quaisquer outros dados, apontam para a situação calamitosa de um qualquer sector público, os representantes dos profissionais desse sector afiançam que tal se deve à escassez de verbas e prometem que logo que o seu sector receba mais dinheiro a sua eficiência subirá para aos píncaros. Isto sucede há mais de 3 décadas. Agora, os números da OCDE cometeram a desfeita de mostrarem que, no sector da educação, a situação é calamitosa na qualidade do ensino, no seu custo, no tempo que os docentes passam na escola, nos anos de escolaridade dos alunos e no seu aproveitamento. Não há por onde encontrar saída … gasta-se em demasia, trabalha-se pouco e os resultados são catastróficos.

Um aluno do secundário custa aos contribuintes cerca de 6.000 euros por ano. Admitindo 12 prestações anuais (inscrição e 11 mensalidades), cada aluno custa 500 euros por mês. Mais que o ensino privado (que, num colégio de bom nível, orça pelos 350€/mês). O estudo diz que o salário médio de um professor do 3º ciclo, com 15 anos de experiência, é de 28.000€/ano.Um professor, no topo da carreira (10º escalão), ganha mais de 40.000€/ano (2.856,54€/mês, mais subsídio de refeição de 3,83€/dia útil). Estes valores colocam os professores portugueses perto da média da OCDE, mas perto do topo, em termos de percentagem do PIB. Se os trabalhadores do sector privado ganhassem nesta proporção, há muito tempo que já não haveria empresas em Portugal, excepto algumas “ilhotas” de alta competitividade e com sede social fora do país, para não estarem a sustentar este aparelho do Estado monstruoso e ineficiente.

Em educação, e em termos de percentagem do PIB, Portugal está no topo dos países da OCDE. Em termos de resultados estamos na cauda, a par do México e da Turquia. Citando um exemplo vindo a lume no Público, «Em termos de despesa acumulada por aluno durante a sua formação dos seis aos 15 anos, Portugal gasta 14 mil dólares por ano a mais do que a Coreia do Sul. No entanto, os alunos deste país asiático apresentaram em 2005 os melhores resultados a Matemática nestes testes internacionais e os portugueses tiveram o pior desempenho entre 26 participantes.».

Os professores portugueses passam na escola 70% do tempo da média da OCDE. O rácio alunos/professores é 20% maior no ensino privado que no público. Segundo a FENPROF, a partir daquele patamar mágico de 70%, a permanência dos professores portugueses na escola traduzir-se-ia na degradação do ensino. Os docentes portugueses são como as especialidades farmacêuticas que só se podem tomar em dose moderada. Infelizmente neste caso, se em excesso prejudica, em dose moderada tem efeito despiciendo.

A questão da permanência dos professores nas escolas e o cumprimento das 35 horas semanais é o que mais irrita, presentemente, o corpo docente. Há um ponto em que têm razão: as escolas não estão actualmente preparadas, do ponto de vista logístico, para a permanência dos professores durante o horário completo. Não têm espaços nem estão organizadas para o efeito. Não existe em Portugal o hábito do trabalho docente na escola, ao contrário dos países mais desenvolvidos da Europa. Tem que ser um processo a implementar de forma faseada, para não o tornar numa medida descontrolada e contraproducente. No resto não têm razão. Os professores utilizam o tempo adicional disponível quer em apoio familiar, quer em dar explicações. Em algumas disciplinas, as explicações são mesmo uma importante fonte de rendimento


Estes resultados são o desfecho de décadas de total incompetência dos poderes públicos e das exigências desproporcionadas das corporações do sector. Há décadas que se discute que a educação está mal. E sempre que nos debruçávamos sobre esse problema, os profissionais da educação pública asseguravam que era necessário mais dinheiro. E todos repetiam «É preciso investirmos na educação». A imbecilidade daqueles que repetiram este refrão até à exaustão foi partilhada por ministros, supremos magistrados da nação, políticos da oposição, etc. Apenas nestes últimos meses, após as veementes denúncias públicas, por parte dos “politicamente incorrectos”, do descalabro educativo que pôs a nu que Portugal é, depois da Finlândia, o país da UE que despende mais na educação em termos do PIB, mais 50% em Educação que a média europeia, e tem o mais baixo nível de educação da UE, é que os responsáveis políticos mostraram mais comedimento e Sampaio, por exemplo, desistiu de repetir o refrão que é necessário investir na educação.

A situação é de tal forma grave que não vejo que tenha solução no quadro actual. As reformas teriam que ser tão radicais, que não seriam aplicáveis face à resistência dos visados. O ensino público tem mais de 215 mil efectivos (154.883 docentes e 60.650 não docentes). Reformar este monstro criado pela incompetência, eleitoralismo e compadrio dos nossos políticos exigiria uma completa ruptura do sistema.

AlunProf.jpg

Se o rácio aluno/professor no privado é maior, o que é uma situação normal, este está mais bem equipado. Na relação entre alunos e nº de PC’s e ligação à net, verifica-se que o ensino privado está melhor equipado em todos os graus (não há números do público para os jardins de infância), com especial relevo no ensino secundário e profissional.

AlunosPCNet.jpg

Publicado por Joana às 10:42 PM | Comentários (35) | TrackBack

setembro 16, 2005

Previsões? No fim do Jogo

As eleições do próximo domingo na Alemanha são aguardadas com muito interesse. Há várias questões em jogo, quer dentro da Alemanha, quer a nível europeu. Há meses, a vantagem nas sondagens da líder da CDU, Angela Merkel, parecia sugerir que a vitória da coligação CDU/CSU+FDP estava assegurada. As sondagens destas 2 últimas semanas mostram que a coligação CDU/CSU+FDP anda pelos 48,5% a 49%, o que se pode revelar insuficiente para formar governo. O que mudou na economia alemã e nas propostas dos políticos nestas semanas? Nada. Ora é isso que é surpreendente.

O que tem feito Gerhard Schröder, um mestre na arte de utilizar os média? Instilar o medo à mudança. Gerhard Schröder não apresenta nada de novo, para além da continuação da sua actual política, aliás muito mais liberal que a dos seus correligionários portugueses. Pior, Gerhard Schröder sabe que nunca a poderá aplicar, pois se o SPD chegar ao governo será, ou com a grande coligação com a CDU/CSU, ou com a coligação inviável com os Verdes e a Linke-PDS. Ora estes últimos estão totalmente em desacordo com as recentes reformas de Gerhard Schröder. Gerhard Schröder apenas pretende manter-se, e ao SPD, à tona de água. O seu discurso é instilar medo ao eleitorado alemão sobre o desmantelamento do Estado providência (que, aliás, já levou uma profunda machadada pelas leis Hartz do próprio Schröder), sobre a Flat-tax de Paul Kirchhof, sobre tudo o que cheire a mudança.

Curiosamente, as medidas preconizadas por Paul Kirchhof também assustam os barões do CDU/CSU. A simplificação do sistema fiscal alemão, considerado o mais complexo do mundo, com um imposto sobre o rendimento à taxa única e supressão, em troca, da miríade de nichos fiscais, deduções, subvenções e outros benefícios, não agrada a muitos políticos da CDU/CSU.

Portanto, não houve mudanças na economia alemã, Gerhard Schröder não fez propostas diferentes, tudo como dantes ... O que mudou foi a aproximação da data da escolha e o receio do eleitorado alemão por essa mesma escolha, por trocar o que é certo, e do qual não gosta, pelo que é incerto e sobre o qual tem medo. O que mudou foi o eleitorado estar confrontado com a hora da escolha. O que antes estava no domínio das hipóteses, hoje está a dois dias de poder ser uma realidade.

Para os empresários, a possibilidade de uma coligação CDU/CSU+SDP é um pesadelo. Seria a castração de quaisquer veleidades de reformas. Para os sindicatos a coligação CDU/CSU+FDP é o pesadelo a exorcizar. Mas também não se revêem no radicalismo da Linke-PDS que pode levar à aceleração das deslocalizações das empresas para fora da Alemanha. Aliás, a Linke-PDS está ligada à clivagem das duas Alemanhas. Segundo as sondagens, a coligação CDU/CSU+FDP tem 35% na parte oriental (Linke-PDS tem 26%) contra 53% na parte ocidental (Linke-PDS tem 7%). A ex-RDA pode não chegar para ganhar eleições, mas pode servir para as perder.

Para a Europa, a derrota de Schröder levaria à mudança de correlação de forças e ao isolamento da França de Chirac. Se a coligação CDU/CSU+FDP chegar ao poder, Sakorzy terá o caminho facilitado para poder ser o próximo presidente da França. Do ponto de vista da evolução da economia europeia, este seria o cenário mais favorável. Mas é um cenário que implica mudanças e as pessoas preferem, por vezes, um cenário previsível de empobrecimento tranquilo temperado com promessas ilusórias que “agora é que é a valer”, a um cenário de ruptura cujos contornos não conhecem bem e ao qual os que se lhe opõem se encarregam de instilar um temor obscuro, de contornos propositadamente indefinidos. É fácil meter medo à mudança e à alteração dos hábitos. Tem sido, desde que há a democracia representativa, a especialidade das forças conservadoras.

Publicado por Joana às 07:56 PM | Comentários (205) | TrackBack

Alocação de Recursos

Pela Mão Visível

As coisas no Restaurante Pobieda, em Leninegrado (hoje, de novo, Sampetersburgo), não iam nada bem. Não que os salários não fossem integralmente pagos pelo Estado benfazejo. O problema era a desolação das mesas e escaparates vazios e a ausência inexplicável de clientes. A batalha da produção estava em risco. No quadro preto onde eram registados os êxitos do socialismo vitorioso, nem a inscrição das doses servidas aos empregados, e às suas numerosas famílias, como refeições servidas aos relutantes clientes conseguia disfarçar a situação.

O colectivo do restaurante reuniu-se para examinar a situação calamitosa e decidiu, por unanimidade e aclamação, enviar o camarada Serguei ao Ocidente para recolher ideias que revitalizassem o Pobieda.

Após uma digressão que se prolongou, inexplicavelmente, por muitos meses, Serguei regressou cheio de ideias: «A questão não é a qualidade da comida nem a lentidão do serviço. Há restaurantes no Ocidente que têm, quanto a estes aspectos, o mesmo padrão que o nosso, mas têm uma oferta suplementar: luzes feéricas na fachada, decoração deslumbrante, em tons de vermelho quente, música frenética e dançarinas cuja exuberância entusiasma os clientes. Estão cheios!». O colectivo, entusiasmado, aprovou a ideia por unanimidade e aclamação. As camaradas Elena e Irina foram nomeadas dançarinas e procedeu-se à remodelação.

A primeira semana foi sensacional. Todas as expectativas foram excedidas. Mas a partir daí a clientela começou progressivamente a desertar e, dois meses depois, o sapateado das camaradas Elena e Irina ecoava numa sala consternadamente vazia.

O colectivo reuniu-se de emergência e decidiu, por unanimidade e aclamação, enviar desta vez o camarada Alexei em inspecção por terras do Ocidente em busca de novas ideias.

Quando Alexei regressou estava eufórico. Trazia a solução. As camaradas Elena e Irina apareceriam vestidas apenas com curtos negligés e calçadas com sapatos de saltos vertiginosamente altos, e fariam strip-tease enquanto dançassem, as luzes seriam mais íntimas e sensuais, varrendo os corpos das camaradas com uma lentidão estudada, para levar ao paroxismo a libido dos clientes. O projecto era aliciante e o colectivo, arrebatado, aprovou a ideia por unanimidade e aclamação. Como o presidente (e principalmente a sua esposa) era amigo íntimo do camarada Vice-ministro da Cultura, não foi difícil obter, com rapidez, as 12.327 autorizações necessárias.

Os primeiros dias foram de enchentes. Havia filas à porta. Gerou-se espontaneamente um mercado negro para venda de lugares, na fila de acesso, mais próximos da porta. Foi sol de pouca dura. Um mês depois, tinham acabado as filas de espera, os clientes tinham desaparecido e o mercado de senhas de acesso tinha entrado em colapso.

O colectivo estava desolado e convocou uma reunião urgente. Todos se entreolharam cabisbaixos. Grigori, o mais novo e inexperiente, balbuciou:

- Vocês acham que as camaradas Elena e Irina ... ?

Um frémito de indignação percorreu o colectivo. O decano dos presentes, homem sábio e avisado, fez-se eco do pensamento do colectivo:

- Pois quê? Duas camaradas com 40 anos de Partido?


Foi assim decidido, por unanimidade e aclamação, pôr mais dois varões na placa giratória do palco, porque as camaradas Elena e Irina ostentavam na pele dezenas de hematomas provocados pelos tropeções e quedas constantes.

Publicado por Joana às 03:35 PM | Comentários (39) | TrackBack

setembro 15, 2005

Os intelectuais e o socialismo

Hoje resolvi dar-me férias, mas não a vocês. O texto que se segue, e com o qual eu concordo em absoluto, contém muitos conceitos que eu já desenvolvi aqui, mas sem o talento e o conhecimento de causa de quem viveu estes assuntos por dentro. Critiquem-no como se fosse eu que o tivesse escrito, porque me revejo inteiramente nele. E é exactamente por isso que, contra o que é usual neste blog, eu o transcrevo na íntegra:

Os intelectuais e o socialismo: Visto de um País Post-Comunista situado numa Europa Predominantemente Post-Democrática.

1. Parto do princípio que esta audiência conhece o levemente provocativo (porque generalizador sem piedade) mas muito poderoso e importante artigo com 56 anos de idade “ Os Intelectuais e o Socialismo “. Esta audiência também sabe certamente que o referido artigo foi escrito por F. von Hayek, e que foi publicado na confusa era pró-socialista que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, quando a crença nos benefícios da engenharia social e planeamento económico, e a descrença na liberdade do mercado estavam no seu apogeu.

Penso que muitos de nós se lembrarão da definição que Hayek fez de um intelectual (hoje em dia diríamos até intelectual público), como sendo os “negociantes de ideias em segunda mão”, que tem orgulho em não “possuir nenhum conhecimento especializado em particular”, que não tem “responsabilidade directa em assuntos de carácter prático”, e que não precisam mesmo de ser “particularmente inteligentes”, para executarem a sua “missão”. Hayek sustentou que essas pessoas se satisfazem com “serem intermediários no espalhar das ideias” dos pensadores originais para as pessoas comuns, que eles acham não serem seus iguais.

Hayek estava ciente - há mais de meio século atrás, o que significa antes da prevalência dos meios de comunicação electrónicos - do enorme poder dos intelectuais em moldar a opinião publica, e avisou-nos que “será apenas uma questão de tempo até que as opiniões dos intelectuais, se tornem uma força de governo na política”. Isto é tão válido hoje como no dia em que ele escreveu.

A questão é de saber quais são as ideias que são mais favorecidas pela escolha dos intelectuais. A questão é de saber se os intelectuais são neutros na escolha das ideias com que tem de lidar. Hayek argumentou que não são. Os intelectuais não se interessam nem tratam de espalhar todas as ideias. Têm muito claras, e de algum modo muito compreensíveis preferências em relação a algumas ideias. Preferem ideias que lhes dão empregos e dinheiro e que melhoram o seu poder e prestígio.

Desse modo procuram ideias com características específicas. Procuram ideias que ampliam o papel do estado porque é o estado o seu maior empregador, padrinho ou dador. E isto não é tudo. Segundo Hayek “o poder das ideias cresce em proporção da sua generalização, abstracção e mesmo carácter vago”.

Daí que não seja surpreendente que os intelectuais estejam prioritariamente interessados em ideias abstractas e não em ideias directamente implementáveis. Também é nesse modo de pensar que eles apresentam vantagens comparativas. Não são bons nos detalhes. Não tem a ambição de resolver um problema. Não estão interessados em lidar com os assuntos de todos os dias de um cidadão normal. Hayek disse-o claramente: “o intelectual pela sua disposição não está interessado em detalhes técnicos ou dificuldades praticas”. Está interessado em visões ou utopias e porque “o pensamento socialista deve o seu atractivo ao seu carácter visionário” (e eu acrescentaria falta de realismo e natureza utópica), o intelectual tende a tornar-se um socialista.

De um modo semelhante Raymond Aron no seu famoso ensaio “ O Ópio dos Intelectuais”, analisou a bem conhecida diferença entre a maneira de pensar revolucionária e reformista, mas também - e isto é mais relevante neste contexto - a diferença entre “prosaico” e “poético”. Enquanto “ao modo de pensar prosaico lhe falta a grandeza da utopia” (Roger Kimball), a visão socialista é - nas palavras de Aron - baseada “na poesia do desconhecido, do futuro, do absoluto”. Tal como eu o entendo é este o mundo dos intelectuais. Alguns de nós gostariam de acrescentar que “a poesia do absoluto é uma poesia inumana”.

2. Como eu disse antes, o que os intelectuais querem é fazer crescer o seu prestígio e poder. Quando nós nos países comunistas encontrámos as ideias de Hayek ou Aron, nunca tivemos problemas de entender a sua importância. Deram-nos a muito necessitada explicação da peculiar proeminência dos intelectuais na nossa própria sociedade nesse tempo. Claro que os nossos intelectuais não gostavam de ouvir isso, e não queriam reconhecê-lo porquanto a sua peculiar proeminência coexistia com a debilitante ausência de liberdade intelectual, que os intelectuais muito valorizam. Esse não era todavia o único argumento. Os políticos comunistas precisavam dos seus companheiros de caminho intelectuais. Precisavam dos seu “baralhar de ideias” do seu “formar a opinião pública”, da sua apologia de um regime inumano, irracional e ineficiente. Precisavam da sua habilidade de fornecer ideias gerais, abstractas e utópicas. Precisavam especialmente da sua aceitação em lidar com futuros hipotéticos, em vez da crítica à realidade muito menos cor de rosa.

Os intelectuais desse tempo, e já nem me refiro aos anos do terror de Estaline, não eram felizes. Estavam profundamente desapontados com o seu próprio bem estar económico. Estavam frustrados pelas inúmeras dificuldades que tinham de enfrentar e de seguir. Todavia a sua posição na sociedade comunista era relativamente elevada e, paradoxalmente, muito prestigiada (tenho em mente claramente a sua posição relativa). Os dirigentes comunistas, no seu modo arbitrário e voluntarista de lidar com as pessoas, usavam e desusavam os intelectuais como queriam. Isto pôs os intelectuais numa posição periclitante. Não eram valorizados (ou avaliados) pela mão invisível do mercado, mas pela muito visível mão dos dirigentes da sociedade. Para minha muita pena muitos intelectuais não foram capazes (ou não quiseram) entender as implicações perigosas deste arranjo.

Como resultado disto tudo, e uma vez mais isto nem foi surpresa para mim, quando o comunismo caiu, na nossa sociedade subitamente livre, quando quase todos , ou todos, os empecilhos ruíram do dia para a noite, o primeiro grupo de frustrados e abertamente protestatários foi o dos intelectuais – “jornalistas, professores, publicistas, comentadores de rádio, escritores de ficção, e artistas” (parafraseando Hayek). Estavam a protestar contra as desagradáveis dificuldades criadas pelo mercado. Descobriram muito rapidamente que as sociedades livres (e os mercados livres), podiam não precisar tanto dos seus serviços como no passado. Perceberam especialmente que a sua avaliação pelas forças impessoais da oferta e da procura, podiam ser mais desfavoráveis não só do que a sua própria auto-avaliação, (e Robert Nozick tem razão quando afirma que “os intelectuais se acham as pessoas de maior valor”), mas ainda mais desfavoráveis do que a dos políticos e burocratas do regime anterior. Tornaram-se assim os primeiros críticos visíveis e barulhentos da nossa nova sociedade livre com que andávamos a sonhar há décadas.

Na sua crítica elitista do mercado, das pouco “humanas” leis da oferta, da procura, e dos preços, que são o fruto da deliberação explícita de ninguém, eles tiveram - tenho que admitir - um sucesso relativo. Devia esclarecer que - especialmente ao princípio, mas julgo que não mudou muito agora – se tornaram mais críticos da economia de mercado (e da falta de distribuição a seu favor), do que o resto da sociedade porque - para grande surpresa deles - o nível de vida das pessoas comuns subiu, pelo menos relativamente, mais do que o deles próprios. Schumpeter tinha razão quando já em 1942 no seu livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, escreveu o aforismo hoje bem conhecido que “as conquistas do capitalismo não dão apenas mais meias de seda às rainhas, mas tornam-nas acessíveis às empregadas das fábricas, em retorno de um esforço cada vez menor”. Esta simples verdade é algo que os intelectuais não tem aceite.

Nós, os que estamos hoje aqui, sabemos que o mercado livre não recompensa “nem os melhores nem os mais inteligentes” ( John K. Williams), mas aqueles que - de qualquer maneira ou forma - satisfazem os gostos e preferências de outros. Concordamos com Hayek que “ninguém pode saber, sem ser através do mercado, qual o contributo de cada individuo para o produto final”. E sabemos que o sistema de mercado livre não recompensa aqueles que - nos seu próprio entender - são os mais meritórios. E porque os intelectuais se julgam a si próprios muito alto, desdenham o mercado. Os mercados avaliam-nos de um modo diferente do dos seus próprios olhos, e ainda por cima, funciona bem sem a sua supervisão. Como resultado disto os intelectuais suspeitam dos mercados livres e preferem receber do estado. Esta é mais uma razão porque estão a favor do socialismo.
Estes argumentos não são novos, mas a nossa experiência no seguimento da chamada Revolução de Veludo, foi a esse respeito mais do que instrutiva. O que aconteceu na realidade foi mais aquilo que vem nos livros, do que aquilo que esperávamos.

3. Na primeira década do século XXI não nos deveríamos concentrar exclusivamente no socialismo. Há um velho ditado que diz que não devemos lutar contra batalhas antigas que já acabaram. Acho este ponto importante embora eu não queira dizer que o socialismo está definitivamente acabado. Há pelo menos dois argumentos que nos justificam olhar para outras ideologias. O primeiro é a diferença entre a versão dura e versão macia do socialismo, e o segundo a emergência de novos “ismos” baseados em versões iliberais ou antiliberais.

No que respeita ao primeiro problema podemos provavelmente afirmar com confiança que a versão dura do socialismo, - o comunismo - acabou. Foi uma grande vitória para nós, mas essa vitória não nos devia desmotivar porque a queda do comunismo não nos dá automaticamente o sistema que gostaríamos de ter e viver. Não representa uma vitória das ideias do liberalismo clássico (ou Europeu). Tenho receio que quinze anos depois do colapso do comunismo, tenha chegado a sua versão macia (ou fraca), o social-democratismo, que se tornou - sob vários nomes como por exemplo o Estado Social ou a Soziale Marktwirtschaft – o modelo dominante do sistema económico e social da actual civilização ocidental. Este sistema está baseado num governo grande e paternalista, regulamentação extensa da actividade humana, e redistribuição da riqueza em larga escala.

Como já vimos anteriormente, tanto na Europa como na América os intelectuais adoram este sistema. Dá-lhes dinheiro e vida fácil. Dá-lhes a oportunidade de influenciar e serem ouvidos. O mundo ocidental é por enquanto ainda suficientemente rico para suportar e financiar as suas orientações impraticáveis e sem finalidade. Pode-se dar ao luxo de empregar hordas de intelectuais que usam “a poesia” para louvar os sistemas actuais, que vendem o conceito de direitos de discriminação positiva, que advogam o construtivismo da natureza humana (em vez da acção humana espontânea), para promoverem outros valores que não a liberdade.

Temos de entender esta versão contemporânea do socialismo à escala mundial, porque os nossos velhos conceitos podem até omitir algumas das características do que está à nossa volta agora. Podemos até descobrir que o uso continuado do termo socialismo pode ser enganador.

4. Isto traz-me para outro problema. Depois do descrédito completo do comunismo, e no meio de uma crise indesmentível do social-democratismo europeu, o socialismo explícito tornou-se insuficientemente atractivo para a maioria dos intelectuais. Hoje em dia é difícil encontrar - no Ocidente - um intelectual que queira estar “in” e ter influência, que se chame a si próprio um socialista. O socialismo explícito perdeu o seu atractivo e não aparece com rival das nossas ideias de hoje.

As ideias iliberais são formuladas, espalhadas e pregadas sob o nome de ideologias ou “ismos” que não tem nada que ver - pelo menos formalmente e nominalmente - com o velho socialismo explícito. Essas ideias são contudo, muito parecidas com ele. Há sempre um qualquer limitar ou constringir da liberdade humana, há sempre uma ambiciosa engenharia social, há sempre um imodesto “promover o bem à força” praticado por aqueles que foram escolhidos (T. Sowell), contra a vontade dos outros, há sempre o fugir aos meios democráticos, para procedimentos políticos alternativos, e há sempre o sentimento da superioridade dos intelectuais e das suas ambições.

Penso no ambientalismo (com o seu princípio de Primeiro a Terra, e não Primeiro a Liberdade), no humanitarismo radical (baseado - como diz de Jasey) na não distinção entre os direitos e o que está certo, a ideologia da sociedade civil (ou comunitarismo), que não é mais do que uma versão de colectivismo post-marxista, que quer privilégios para os grupos organizados e consequentemente a re-feudalização da sociedade. Também penso no multiculturalismo, feminismo, e tecnocratismo apolítico (baseado no ressentimento contra os políticos e a política), o internacionalismo (e especialmente a sua variante europeia chamada de Europeísmo) e um fenómeno de crescimento rápido chamado ONGismo.

Todos estes representam ideologias substitutas do socialismo. Todas elas dão aos intelectuais novas possibilidades, novos espaços para as suas actividades, novos nichos no mercado das ideias. Enfrentar estes novos “ismos”, revelar a sua verdadeira natureza, e ser capaz de os eliminar, pode ser mais difícil agora que no passado. Poderá ser mais complicado do que lutar contra o velho socialismo explícito. Todas a pessoas querem um ambiente saudável, todas as pessoas querem ultrapassar a solidão da fragmentada sociedade post-moderna, e participar nas actividades dos vários clubes, associações, fundações e organizações de caridade; quase todos são contra qualquer descriminação baseada na raça, religião ou sexo; muitos de nós estão contra os extensos poderes do estado, etc. Demonstrar o perigo dessas aproximações poderá ser soprar contra o vento.

5. Estas ideologias alternativas, pela sua pouco clara, instável, e ainda mal descritas sinergias, tem um sucesso especial onde não existe suficiente resistência, onde encontram solo fértil para fortalecer, onde encontram um país (ou um continente inteiro) onde a liberdade (e os mercados livres) foram prejudicados por duradouros sonhos e experiências colectivistas, e onde os intelectuais tiveram sucesso em manter uma voz e um estatuto social fortes. Claro que estou mais a pensar na Europa que na América. É na Europa que estamos a assistir à substituição da democracia pela post-democracia, onde o domínio da Comunidade Europeia substitui arranjos democráticos nos países membros, onde o “para-governo” de Hayek ligado aos interesses organizados (porque organizáveis), tem tido sucesso em conduzir a política, e onde mesmo alguns dos liberais - na sua justificável crítica do estado – não vêem os perigos do Europeísmo vazio, e de uma profunda (cada vez mais) unificação burocrática do continente europeu. Aplaudem a crescente abertura formal do continente, mas não vêem que a eliminação de algumas fronteiras sem a liberalização das actividades humanas “apenas” empurra os governos para cima, ou seja para o nível onde não há mais controlo democrático, e onde as decisões são tomadas por políticos nomeados por políticos, e não por cidadãos em eleições livres.

A Constituição Europeia foi uma tentativa de montar e consolidar esse sistema de uma forma legal. Foi uma tentativa de o constituir. É por isso importante que os referendos francês e holandês lhe tenham posto fim, que tenham interrompido o cada vez mais irreversível movimento para “uma Europa mais unida” e que tenham iniciado uma discussão que se deseja séria - na novilíngua europeia chamada de “período de reflexão”. Não estou a assumir que esta reflexão organizada de cima para baixo, vá suficientemente longe para nos revelar as causas profundas dos problemas que afligem a Europa. No entanto foi aberta uma porta. Devíamos usar essa oportunidade para lembrar aos nossos concidadãos o que é que faz a nossa sociedade ser livre, democrática e próspera.

É um sistema político que não deve ser destruído por uma interpretação post-modernista dos direitos humanos (com a sua ênfase na descriminação positiva, com a dominação dos direitos adquiridos no grupo sobre as responsabilidades e direitos individuais, e com a desnacionalização da cidadania), pelo enfraquecimento das instituições democráticas, que tem as suas raízes insubstituíveis exclusivamente no território dos estados, pelo “multiculturalismo” causador da perca da coerência necessária entre as várias entidades sociais, e pela procura em todo o continente europeu de se viver das rendas (tornada possível quando a tomada de decisão é feita a um nível muito longe dos cidadãos e onde os votos dispersos se encontram ainda mais dispersos do que nos países soberanos).

É um sistema económico, que não deverá ser estragado pela excessiva regulamentação governamental, por deficits fiscais, por controle burocrático pesado, por tentativas de aperfeiçoar os mercados com a construção de estruturas de mercado “optimizadas”, por grandes subsídios a industrias privilegiadas ou protegidas, pela rigidez do mercado de trabalho, etc.

É um sistema social, que não deve ser afundado por todos os desincentivos imagináveis, benefícios sociais mais do que generosos, redistribuição da riqueza em grande escala, e pelas muitas formas de paternalismo governamental.

É um sistema de ideias que será baseada na liberdade, responsabilidade pessoal, individualismo, preocupação natural para com os outros, e conduta de vida moral.

É um sistema de relações e relacionamento individual entre os países, que não deverá ser baseado em falso internacionalismo, organizações supranacionais, e numa errada interpretação sobre a globalização e factores externos, mas que será baseado na boa vizinhança entre nações livres e soberanas, e em pactos e tratados internacionais.

Os fundadores da mount Pelerin Society, Hayek e Friedman, como tantos outros, sempre insistiram em lutar pelo que parecia politicamente impossível. Devíamos continuar a fazer o mesmo.

Vaclav Klaus no Encontro Regional da Mount Pelerin Society, em Reykjavik, Islândia em 22 de Agosto de 2005.


Nota: Esta tradução portuguesa foi-me enviada por um leitor, a quem aproveito para agradecer aqui.

A versão inglesa, que eu já conhecia, está aqui.

Aí poderão encontrar a bibliografia, que eu não coloquei aqui porque o texto é muito longo.

Adenda: Vaclav Klaus, para quem o desconhecer, é o Presidente da República Checa.

Publicado por Joana às 11:24 PM | Comentários (103) | TrackBack

setembro 14, 2005

Katrina – Do Evento à Sequela

O Katrina vai entrar numa segunda fase. Menos mediática, mas mais sugestiva do ponto de vista económico, sociológico e político. Duas questões vão ser equacionadas: 1) A gestão da catástrofe do Katrina, ou de uma catástrofe em geral; 2) a gestão, a médio e longo prazo da reparação, ou recuperação, dos seus efeitos destrutivos. A primeira questão releva do papel do Estado (administrações federal e locais); a segunda do funcionamento da sociedade civil e do papel que as autoridades públicas pretenderem ter.

Cabe ao Estado a protecção e a defesa da sociedade. Este conceito está na génese da economia clássica (ou liberalismo económico, como depois foi apelidada) e ninguém o põe em dúvida. Sucede que, nos EUA, contrariamente à visão jacobina da Europa Continental, prevalece a tese que remonta ao pensamento dos Founding Fathers (Federalist Papers) «Como poderemos organizar as instituições políticas de forma a evitar que os governantes perniciosos ou incompetentes provoquem danos excessivos?», ou seja, a tese do check and check again, que procura controlar institucionalmente os governantes, contrabalançando os seus poderes com outros poderes – estaduais, locais e/ou judiciais, etc..

Este sistema permitiu que a revolução americana se fizesse de forma incruenta (exceptuando, como é óbvio, as baixas na guerra com a Inglaterra), respeitando o pensamento e a integridade física das diversas facções, enquanto que nas restantes revoluções tal não aconteceu, com especial relevo para a francesa, onde cada facção que subia ao poder exterminava as restantes. Esse sistema, profundamente sedimentado na sociedade americana, permitiu uma vida democrática activa e fecunda que ultrapassou as diversas vicissitudes a que esteve sujeita, sem nunca cair no totalitarismo ou na perversão dos seus valores, como aconteceu em quase todos os países europeus e por diversas vezes em cada um.

Ora essa descentralização dos EUA torna a América mais exposta às catástrofes ou a actos terroristas do que se poderia deduzir, tendo em conta o poder que dispõe e os meios que detém. No caso do Katrina, essa descentralização revelou deficiências na delimitação das esferas de competências entre os diferentes níveis da administração pública, gerou ineficiências e atrasos de actuação em todos os níveis da administração, e possibilitou que a definição de responsabilidades na protecção e resgate das vítimas pudesse ser obscurecida pela tentativa de endosso das responsabilidades das autoridades locais para as federais, potenciado pela vitimização rácica sustentada pelo facto de 70% da população de Nova Orleães ser negra (mesmo assim, numa sondagem realizada entre a população negra, 37% culparam Bush, 20% culparam o Mayor Ray Nagin e 11% culparam os próprios residentes). Esta teoria teve a divulgação normal nos meios de comunicação americanos não afectos a Bush e uma divulgação generalizada na comunicação social europeia, que havia “votado” em peso Kerry, nas últimas eleições, e que vive da nostalgia das épocas imperiais, pelando-se pelos desastres do “imperialismo americano”, numa inveja mesquinha por quem deve a liberdade.

Ora esta questão pode ter na democracia americana um efeito semelhante ao do 11 de Setembro, quando algumas liberdades foram restringidas em nome da luta contra o terrorismo e com o apoio generalizado da população. Se as autoridades federais tomarem como certo que serão sempre responsabilizadas como primeiros culpados na gestão de qualquer catástrofe que venha a ocorrer e se a população julgar que algumas das competências das autoridades locais e estaduais são despiciendas pelo facto de, em situações de emergência, não serem assumidas na prática, poderá acontecer que haja um movimento para o reforço do poder central.

Ou seja, o fenómeno Katrina pode ter uma sequela que se torne destruidora de uma das bases do pensamento dos Founding Fathers. A teoria do controlo democrático não resulta do pressuposto de que um governo de maioria é intrinsecamente justo e virtuoso, nem se baseia no pressuposto de que o poder pertence à maioria, mas sim no pressuposto que devemos considerar os diversos métodos para o controlo democrático (as eleições, um poder judicial independente, um poder local representativo e forte, etc.) como fórmulas que permitam obstar a perversões desse mesmo regime, que sejam abertas a melhoramentos e que forneçam instrumentos adequados ao seu aperfeiçoamento. O fenómeno Katrina pode pois abrir a discussão sobre a eficiência do âmbito da actual descentralização.

Estas reflexões talvez pequem por excesso de receio pelo vigor da democracia americana. Apesar do desconto que dou à visão terceiro-mundista que a comunicação portuguesa, na esteira da europeia, tem feito passar dos EUA, provavelmente os americanos terão uma visão mais equilibrada da situação emergente do Katrina. As sondagens mostram que os americanos não poupam as autoridades locais da Louisiana. Comparam a capacidade de liderança, a firmeza e a assunção das responsabilidades, inerentes às suas competências, do Mayor Rudy Giuliani no 11 de Setembro, com a inépcia e a fuga às responsabilidades do Mayor Ray Nagin. Mas fazem-no mais numa óptica de comparação das capacidades individuais em causa, do que numa óptica de desencanto pelos próprios mecanismos institucionais que fundamentam a sua democracia. Portanto, embora seja de admitir um reforço de alguns órgãos federais de segurança interna e de defesa civil, talvez não seja de prever que uma das traves mestras da democracia americana fique fragilizada pelas sequelas do furacão.

A segunda questão tem a ver com a reconstrução de Nova Orleães. A história mostra que a sociedade americana tem um grande poder de encaixe e uma enorme capacidade em ultrapassar as vicissitudes e contrariedades com que é confrontada. Também aqui, na Europa, em sociedades que se deixaram subordinar ao Estado e que, perante qualquer infortúnio, olham para ele em vez de se perguntarem o que podem fazer por si próprias, é difícil ter uma visão clara como os americanos vão dirimir esta questão e qual vai ser a sua sequência.

Nós, na Europa, olhamos para as vítimas que nos servem na TV e julgamos que elas estão à espera que o governo trate de tudo: sancione os culpados e providencie as reparações dos prejuízos. Projectamos a nossa mundividência, a nossa subordinação e dependência do Estado-Providência no comportamento das vítimas. Provavelmente enganamo-nos. Napoleão, após a derrota dos austríacos em Marengo, justificou o desastre, afirmando: «Melas (comandante do exército austríaco) portou-se comigo, como se eu fosse Melas». É um erro julgarmos os outros por nós próprios. Manhattan está a ser restaurada, sobretudo, por promotores privados. A Câmara de Comércio de Nova Orleães já está, segundo parece, a planear a reconstrução da cidade. As colectas em diversas organizações privadas (Igrejas, fundações, etc.) já ultrapassaram os 500 milhões de dólares. A sociedade civil americana está em marcha. Certamente que a reconstrução da cidade será feita em moldes diversos e menos vulneráveis, pois ninguém quer investir num bem precário e sujeito a desaparecer num próximo furacão. Provavelmente as autoridades federais e locais irão rever as normas e regulamentos que, eventualmente, se tenham verificado serem desadequados em face de uma catástrofe desta dimensão.

Esperemos para ver como a América (não as autoridades públicas, mas os próprios americanos) irá resolver a questão da reconstrução de Nova Orleães.

Publicado por Joana às 08:45 PM | Comentários (131) | TrackBack

setembro 13, 2005

Inovação Tecnológica

O Plano Tecnológico começa a ganhar forma. Manuel Pinho tem-se empenhado na concepção de protótipos capazes de induzirem novas valências na depauperada indústria portuguesa. Foi bastante auxiliado nesse desiderato pelo ministro Mário Lino cuja capacidade de decidir primeiro, projectar depois e comissionar as gerações futuras, como garantes dos cash-flows, é sobejamente conhecida.

O primeiro protótipo foi concebido com todo o rigor e conforme as melhores regras de arte da engenharia. Como podem observar, todos os componentes deste equipamento se integram numa harmonia perfeita e privilegiada e visam um nicho de mercado no qual deterá, sem sombra de dúvida, uma posição monopolista durante muitas décadas.

Maquinismo.jpg

Publicado por Joana às 11:08 PM | Comentários (101) | TrackBack

Tribunal de Contas a Feijões

Gosto muito do Guilherme d’Oliveira Martins. E não apenas por causa do apóstrofo. Sou fã dele por ser pessoalmente uma simpatia mas, mais ainda, por ser parecidíssimo com Mr. Bean. São semelhanças notáveis: no aspecto físico e por nunca saber a quantas anda. A sua prestação como Ministro das Finanças foi assombrosa: conseguiu, com o rosto iluminado pela felicidade ingénua de Mr. Bean, nunca acertar, nem de perto nem de longe, no valor do défice. A sua nomeação para presidente do tribunal de contas está por isso a gerar grandes expectativas e entusiasmos indescritíveis em diversos sectores.

Publicado por Joana às 12:56 PM | Comentários (40) | TrackBack

setembro 12, 2005

Um Prego no Caixão

Palestinianos e a jornalista de causas (e avessa a factos que contrariem as causas) Alexandra Coelho carpiram abundantemente pelo facto dos israelitas terem deixado as sinagogas em pé, quando abandonaram Gaza. A alegoria do Um prego no caixão foi repetida até à exaustão pelos palestinianos e pelos jornalistas da sua causa. A carpideira Alexandra excedeu-se até à rouquidão, derramando uma grosa de pregos, enferrujados pela salinidade das lágrimas, ao longo de uma página inteira do Público. Os palestinianos estavam inconsoláveis: Isto não se faz! Então nós, que queremos passar por civilizados e tolerantes, ficarmos na contingência de termos que destruir as sinagogas, pois a nossa intolerância e hábitos medievais não permitem que as deixemos de pé!

É excessivo dizer que Sharon foi hábil em ter deixado as sinagogas de pé. Nenhum crente de qualquer religião destrói os locais de culto. É pacífico que os locais de culto não se destroem. É de mau gosto e uma prova de intolerância, os outros fazerem-no. Encerram-se, entaipam-se, mas demoli-los é um atentado contra a tolerância e o respeito pelas religiões alheias. Portanto, Sharon pode alegar que teve a atitude normal numa sociedade civilizada e tolerante.

Quem foi extremamente inábil foi a autoridade palestiniana. Ao permitir que jovens incendiassem as sinagogas e ao começar a demoli-las com bulldozeres logo no dia seguinte à retirada dos israelitas, a AP dá uma imagem péssima do que é, do que pretende e do que se pode esperar dela.

Assim sendo, a atitude de Sharon tornou-se numa armadilha para a AP porque esta, impulsionada pelos seus instintos naturais tornou aquela decisão de Sharon numa armadilha para si própria e precipitou-se nela derramando, em simultâneo, lágrimas de crocodilo sobre o determinismo dessa sua vertigem pelo abismo e pela intolerância e sectarismo. A AP é inimputável. Se faz desmandos, a culpa é sempre dos outros, conforme sentencia ela e os jornalistas de causas que arregimenta.

Essa imagem irá influenciar principalmente os Estados Unidos. As lembranças de Hitler, da Kristalnacht e do holocausto ficarão associadas a este comportamento inábil e intolerante da AP. Quando se falar da AP, haverá imediatamente quem a associe ao nazismo e à destruição das sinagogas.

Terá menos efeito na Europa continental. A Europa continental enveredou, desde o fim da 1ª Guerra Mundial pelo capitulacionismo perante os regimes totalitários. E quando a Alemanha derrotada abraçou a democracia, também abraçou esse estado de espírito. A Europa rege-se pelo politicamente correcto: Quando alguém do 1º Mundo incendeia um local de culto diverso do nosso é xenofobia, racismo e exige-se uma punição exemplar; quando alguém do 3º Mundo destrói um local de culto diferente do dele, assobia-se para o lado e aparecem logo jornalistas de causas (mas não de factos) a declamarem alegorias sobre um prego no caixão e a criticarem os crentes, cujos locais de culto foram demolidos, por os terem deixado à mão de semear dos instintos naturais e compreensíveis (quando não louváveis) dos fanáticos intolerantes e medievais.

Publicado por Joana às 07:53 PM | Comentários (145) | TrackBack

Tratado de Alcanices

Faz hoje 708 anos que foi assinado o tratado de Alcanices entre o rei de Leão e Castela, Fernando IV (1295-1312) e o rei de Portugal, D. Dinis (1279-1325), na povoação leonesa de Alcañices, perto da fronteira portuguesa, fixando limites fronteiriços entre ambos os reinos e delimitando a fronteira mais antiga da Europa (ver adiante a cópia do tratado).

Alcanices1.jpg

O Tratado de Alcanices consagrou as fronteiras portuguesas que duram até à actualidade (se exceptuarmos a questão de Olivença). São as fronteiras mais antigas da Europa. Todas as terras de Ribacoa tomadas por D. Dinis passavam para a posse portuguesa, assim como Campo Maior, Ouguela e a margem esquerda do Guadiana (Moura, Serpa, Olivença, etc.). Em contrapartida, D. Dinis renunciou às pretensões que tinha sobre Valência de Alcântara e sobre a faixa de Aracena a Aiamonte.

Foi um tratado bastante favorável para Portugal, só possível pela supremacia política que D. Dinis tinha granjeado nas Hespanhas de então, aparecendo como árbitro entre a regente de Leão e Castela, Maria de Molina (Fernando IV era menor) e diversos pretendentes à coroa, apoiados pelo rei de Aragão. Foi um árbitro bastante interventor, pois enquanto dialogava e arbitrava, ia tomando diversas praças importantes. A política de Maria de Molina, como escreveram os historiadores espanhóis foi “apartar de la alianza con los rebeldes al rey de Portugal, no obstante las continuas infidelidades de éste que sólo procuraba ir ganando vilas para sí”.

D. Dinis resolveu desistir de tentar adquirir territórios mais vastos, como Salamanca, Tordesilhas, Simancas e Valhadolid, que poderiam conduzir a uma reviravolta da situação e preferiu assinar um tratado que lhe era, mesmo assim, bastante favorável, atendendo à situação anterior. Preferiu consolidar uma situação que aventurar-se por anexações territoriais muito extensas que poderiam revelar-se de difícil sustentação.

O futuro imediato mostrou que D. Dinis poderia ter sido mais audaz. Fernando IV tinha 11 anos à data da assinatura do tratado e passou a sua curta vida em luta pela manutenção do seu trono, numa grande instabilidade política. Todavia a história de uma nação não se faz no horizonte de uma ou duas décadas, com políticas de curto prazo. O Tratado de Alcanices era sólido, como se provou pela sua perenidade.


Nota: Embora na fórmula de encerramento seja informada a datação como Era de mil trezentos trinta e cinco annos (ver última cópia abaixo), tal significa que essa data é referida ao calendário juliano, vigente àquela época nas Hespanhas.

Alcanices2.jpg
Alcanices3.jpg

Publicado por Joana às 06:41 PM | Comentários (22) | TrackBack

setembro 11, 2005

Adoração a Hermes

Há pessoas e instituições que foram sacralizadas pelos Deuses ou pelos seus representantes. Há todavia uma que tem a característica curiosa de ter sido beatificada e santificada por ela própria: a comunicação social. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considera que a decisão do Grupo Espírito Santo (GES) de cortar a publicidade na imprensa do grupo Impresa constitui uma tentativa de pressão. Todavia reconheceu que “Expresso não acolheu o contraditório” quando elaborou as notícias sobre o “mensalão” do Brasil, apesar de ter "informação que lhe havia sido fornecida a tempo pelo grupo financeiro". Ou seja, o Expresso prevaricou nas regras deontológicas, mas o GES deveria continuar a levar-lhe as oferendas prescritas nos Mandamentos e que constituem matéria de devoção incontornável.

Os Deuses não se discutem. Mesmo que incorram em alguma diabrura (e sabe-se como os Deuses clássicos eram travessos entre si e com os mortais), a missão dos mortais é continuar a adorá-los e garantir a sua benevolência e bons auspícios através de oferendas. Não o fazer constitui um pecado, reconhecido pela lista de Mandamentos da AACS. O castigo? Se os mortais não consagram a sua devoção pelas oferendas, os Deuses vingam-se pela maledicência. Hermes não era apenas Deus da retórica e das mensagens olímpicas, era também o Deus dos ladrões.

Publicado por Joana às 08:41 PM | Comentários (46) | TrackBack

Apelo vicioso

Os ministros das Finanças da UE, durante o conselho informal da Ecofin, lançaram um apelo a acções urgentes com vista ao crescimento e criação de empregos no quadro da Estratégia de Lisboa, destinada a promover a competitividade da economia. A estratégia defendida pelo Ecofin incidiu em "políticas sociais e laborais modernas, que combinem flexibilidade e justiça", a par do empenho na formação e na eliminação de barreiras burocráticas. Também foi defendido um mercado único genuíno de serviços e abertura nas trocas comerciais tanto entre os Estados membros da UE como com os seus principais parceiros mundiais.

Os ministros das Finanças da UE são os principais responsáveis, a par dos respectivos 1º-ministros, pela implementação das acções urgentes, objecto do apelo de Manchester. A directiva Bolkenstein, sobre o mercado único de serviços, ficou em “banho-maria” por causa do “canalizador polaco” (ou será que o “canalizador polaco” tornava o mercado menos “genuíno”?). As "políticas sociais e laborais modernas, que combinem flexibilidade e justiça" têm sido diabolizadas, estiveram na base do Não francês e têm mantido Schröder na corrida para o poder (a crer nas sondagens), apesar da estagnação económica para onde conduziu a Alemanha. Sócrates só ganhou as eleições prometendo exactamente o contrário do apelo de Manchester (ou será que “modernas” é um adjectivo destinado a permitir leituras diversas e contraditórias?). Há adjectivos que os políticos usam, com frequência inusitada, como advérbios, ou seja, para alterar ao significado ao resto do discurso.

Ou seja, os ministros das Finanças da UE apelam a eles próprios para fazerem aquilo que a maioria deles não tem querido ou conseguido fazer. Os ministros das Finanças da UE refugiam-se atrás de si próprios para engrossarem a voz e lançarem apelos que não têm coragem de formalizarem, sozinhos, nos respectivos países. Os ministros das Finanças da UE fazem um apelo circular. É um círculo vicioso. É um apelo vicioso.

Publicado por Joana às 07:08 PM | Comentários (50) | TrackBack

setembro 09, 2005

Estado Virtual

O peso insustentável da realidade desanima qualquer, nomeadamente alguém que colocou as suas expectativas numa fasquia elevada, para ele e para aqueles que o rodeiam. Quando a realidade se torna insuportável e os factos empecilhos intransponíveis, criam-se paraísos artificiais, mundos paralelos, onde tudo é cor-de-rosa. Foi esse mundo virtual que Sócrates inaugurou ontem accionando um brinquedo, fingindo que era um detonador, e vangloriando-se, cheio de empáfia, sobre o misterioso crescimento do PIB em 0,5%. Suspeita-se que este brinquedo esteja ainda mais longe do real concreto que o falso detonador.

Este crescimento é incompreensível face aos dados anteriormente divulgados pelo INE sobre a evolução das trocas com o exterior (o saldo da balança comercial no 2º trimestre foi de –8,3% do PIB e as exportações caíram 0,1% do PIB). Adicionalmente verifica-se que o investimento caiu 4,5% no 2º trimestre. Para sustentar aquele crescimento do PIB, o consumo privado deveria ter crescido 3% do PIB em termos homólogos.

Ora não se percebe como a oferta interna e a procura externa líquida pudessem sustentar aquele aumento do consumo privado. Segundo alguns analistas, o aumento do consumo privado deveu-se sobretudo a uma antecipação de aquisição de bens como automóveis e outros, que iriam sofrer um aumento importante da carga fiscal. Mas esse aumento de consumo deveria traduzir-se pela diminuição equivalente da procura externa líquida resultante do aumento das importações de automóveis ou bens similares do ponto de vista da iminência do aumento do ónus fiscal. Sucede todavia, e isto é uma hipótese avançada que o futuro dirá se é confirmável, que os comerciantes daqueles bens, em face do pessimismo dos agentes económicos, não repuseram as existências, no todo ou em parte, ou seja, aquele consumo privado adicional não se traduziu em importações.

Admitindo que aquela hipótese seja verdade (se o não for, houve manipulação das contas nacionais, o que seria impensável se se tratasse do resultado anual, mas que não é de excluir em números trimestrais provisórios), aquele crescimento do PIB é fictício, pois apenas se baseia no aumento do consumo e na diminuição das existências de bens importados. Ou seja, baseia-se na antecipação do consumo por parte das famílias e na falta de confiança dos empresários relativamente à evolução da procura e ao futuro da economia portuguesa.

Sócrates ficou satisfeito com a “confiança na economia portuguesa” revelada pelo crescimento de 0,5%. Este é o mundo virtual de Sócrates. O mundo real é constituído pela queda do investimento, degradação da competitividade e estagnação ou queda das exportações e falta de confiança dos empresários relativamente à evolução da procura e ao futuro da economia portuguesa que se traduz na não reposição de stocks, realidade maquilhada pontualmente pela antecipação do consumo privado.

Estar satisfeito pela queda do investimento e pela falta de confiança dos empresários é uma atitude completamente anormal de um 1º Ministro que conviva com o mundo real. Só é explicável pelo abandono da realidade por troca com paraísos artificiais.

Esperemos pelos resultados do 3º trimestre. E esperemos que o OE2006, a elaborar no próximo mês, antes daqueles resultados, não tome a nuvem por Juno.

Publicado por Joana às 08:05 PM | Comentários (116) | TrackBack

setembro 08, 2005

Decisões a Destempo

Sócrates arregaçou finalmente as mangas e pôs-se ao trabalho. Hoje tinha duas tarefas, ambas ciclópicas. A primeira, a demolição de duas torres enormes que esperavam há quase uma década pela sua liquidação. E como Sócrates as conhecia bem. Pois se elas ainda vinham do tempo da sua anterior passagem pelo Governo! Mas agora era a sério. Estava tudo a postos: câmaras de filmar, máquinas fotográficas, lápis das jornalistas. Ele olhava nervosamente, à espera do sinal, com os dedos enclavinhados na barra da caixa detonadora. Era uma emoção única.

Fazia parte do seu imaginário de adolescente os Westerns, com as revoluções mexicanas e caixas iguais àquela, no alto dos montes, e o herói, de barba de 3 dias e o suor a escorrer-lhe pelas faces tisnadas pelo sol inclemente, a carregar decidido na barra e o aluimento fragoroso dos rochedos, por entre nuvens de poeira que sobravam para a plateia, danificando a paisagem e obstruindo a saída do desfiladeiro, encurralando os maus, que teriam a merecida punição nos instantes finais do filme.

Sócrates continuava de dedos enclavinhados, nós brancos pela tensão do momento, nervoso de ansiedade. Fizeram-lhe sinal. Era agora. Sócrates olhou para as câmaras, máquinas fotográficas, lápis das jornalistas, para ver se estavam a postos. Circunvagou novamente o olhar, que aquele momento era precioso, único. Acenaram-lhe aflitivamente. A torre estava a aluir com fragor, com manifesta má vontade e sem qualquer respeito pelo timing de decisão do nosso primeiro. Uma torre destas viera certamente das fileiras da oposição. Sócrates encheu o peito e carregou decididamente na barra. As câmaras, as máquinas fotográficas e os lápis das jornalistas entraram em acção e captaram para a posteridade o acto único da queda de uma torre causar um impulso decisório num membro do Governo. Sócrates sorriu pela satisfação do dever cumprido. A assistência respirou aliviada. A torre, enquanto a poeira assentava vagarosamente sobre os seus escombros, ria-se baixinho.

Belmiro mandou buscar a caixa para a devolver ao jardim infantil que a tinha emprestado para a cerimónia.

A segunda tarefa foi anunciar que o PIB tinha tido um crescimento homólogo de 0,5%. Ninguém percebe como isso foi possível, mas o INE (?) explica que «o contributo da procura externa líquida para o crescimento do PIB foi menos desfavorável do que no trimestre anterior, com as importações de Bens e serviços a registar uma desaceleração». Todavia, dias antes, o INE anunciara que, «no primeiro semestre as exportações registaram uma variação homóloga quase nula e as importações de aumentaram 15,7%, determinando um aumento do défice da balança comercial com os países terceiros de 38,7%».

Terá sido uma caixa de pirotecnia emprestada para a ocasião e que será oportunamente devolvida à procedência? Esperemos para ver.

Publicado por Joana às 10:59 PM | Comentários (103) | TrackBack

setembro 07, 2005

Viragem no Katrina

Foi ordenada a evacuação da cidade de Nova Orleães a bem ou a mal. Hoje, habitantes de Nova Orleães já mostravam apreensão pelo rigor da medida. Este pode ser um ponto dramático de viragem na situação. Até agora a Administração Bush tem sido vituperada por não ter sido capaz de evacuar toda a população da cidade. Imagens pungentes de mártires do furacão inundavam os nossos televisores e emocionavam os jornalistas. A partir de amanhã a Administração Bush vai ser vituperada por estar a promover a evacuação forçada de toda a população da cidade. Imagens pungentes de mártires da violência policial vão inundar os nossos televisores e emocionar os jornalistas.

Publicado por Joana às 10:50 PM | Comentários (137) | TrackBack

Desemprego Conceptual

A controvérsia sobre os números do desemprego em Portugal abona muito pouco políticos, jornalistas, conversadores de café, etc.. Ninguém se interessa pelas coisas “em-si”, escalpelizando-as e investigando o que significam. Apenas se interessam pelas coisas em bruto, para as arremessar contra o opositor político. Se os conversadores de café fazem isso por tradição multi-secular, ancorados como estão na maledicência e no boato, os políticos e jornalistas fazem-no por ignorância (ou para tirar proveito da ignorância dos receptores das suas mensagens) e por falta de ética argumentativa.

Marques Mendes acusou o Governo socialista de estar a deixar aumentar o desemprego, quando tinha prometido a criação de 150 mil empregos adicionais e que o combate ao desemprego seria a sua prioridade. Marques Mendes tem razão em afirmar que o desemprego aumentou. Basta observar o gráfico aqui inserto para se ver que, em termos homólogos (e é assim que deve ser comparado), o desemprego aumentou.
Desemprego04-5.jpg
Todavia Marques Mendes esqueceu-se que o fenómeno do aumento do desemprego já vinha de trás, que é uma questão estrutural que não foi resolvida pela governação PSD/PP, nem está ser resolvida pela actual governação. Já aqui escrevi, por diversas vezes, que o aumento do desemprego tem a ver com a degradação da nossa competitividade (baixa qualificação para os custos da mão-de-obra). Uma parcela muito importante dos custos da mão-de-obra é constituída pela excessiva punção fiscal necessária para solver uma despesa pública excessiva. Portanto a medida primordial para combater o aumento do desemprego no sector produtivo é aliviar a carga fiscal através de uma diminuição rigorosa da despesa pública. Uma outra medida é agilizar drasticamente a justiça. Isto é economicamente evidente e politicamente incorrecto, pelo menos para os nossos políticos.

Ora nem a coligação PSD/PP nem o governo PS fizeram nada sobre esta matéria. A actuação desastrada de Vítor Martins, um dos coordenadores do PIIP, no último Prós & Contras, revela a fragilidade da estratégia socialista. Foi uma actuação demasiado má para a atribuir apenas ao défice de competência e ao desconhecimento da realidade exterior daquele professor universitário. É à própria inanidade do projecto socialista que se deve atribuir aquela performance.

Como resposta a Marques Mendes, Jorge Coelho produziu-se a “provar”, por números (?), que o desemprego havia diminuído, citando os valores dos últimos meses. Olhando para o gráfico verifica-se que, de facto, o desemprego diminuiu nos últimos meses. Sucede todavia que esta diminuição de desemprego tem as características de fenómeno sazonal. Aconteceu o mesmo em 2004. Portanto, Jorge Coelho, se a sua capacidade cognitiva não fosse inversamente proporcional ao vigor da sua voz, não deveria ter dito semelhante disparate, disparate que aliás foi partilhado pela “observadora de Soares” Ana Sousa Dias ao interromper o Prof. Marcelo quando este criticava a situação do emprego, avisando-o solenemente que o desemprego estava a “descer”. O mesmo escreveu Morgado Fernandes hoje no DN: “Marques Mendes abriu uma nova frente - o desemprego - que o Governo desmontou com toda a facilidade … Objectivamente, os números do desemprego desceram durante o Governo socialista - provavelmente, sem que isso seja reflexo da acção governativa - quando antes estavam a subir”. É paradoxal (ou fruto da ignorância) usar o advérbio “objectivamente” como sinónimo de “superficialmente”.

O que se pode concluir é que o desemprego aumentou, ao contrário do que pretende Jorge Coelho e os seus apoiantes, mas que esse aumento é um fenómeno estrutural resultante das opções políticas e económicas que foram tomadas desde há muitos anos a esta parte. Portanto, Marques Mendes erra ao atribuir unicamente ao PS o aumento do desemprego. O governo de que fez parte também concorreu para esse fenómeno. São todos responsáveis porque todos eles foram incapazes de criar condições que permitissem a melhoria do clima económico (justiça, fiscalidade, etc.).

E o grave é que este fenómeno é realimentado por ele próprio. Quanto menor for o sector produtivo, menores serão as receitas para alimentar a despesa do Estado ou, inversamente, se se quiser manter o nível das receitas, mais gravoso será o ónus que pesará sobre o sector produtivo e sobre a sua competitividade.

O emprego no sector produtivo deve ser privilegiado. Só esse emprego pode agir como motor da economia. Grandes investimentos públicos geram empregos pontuais, mas quando desaparece o seu efeito, esse emprego desaparece quase totalmente. Em contrapartida os encargos com esses investimentos ficam a pesar na despesa pública e travam o desenvolvimento do sector produtivo, degradando a sua competitividade. O mesmo sucede com o emprego público.

As causas do desemprego e do empobrecimento relativo do nosso país não são obuses para altercações políticas superficiais – são matéria para sólida reflexão.

Isto ... se os políticos fossem capazes de reflexões sólidas ...

Publicado por Joana às 10:35 PM | Comentários (24) | TrackBack

A Seca na Publicidade

É consensual que a água é um recurso fundamental, porquanto sem ela a vida não seria possível, não só pela sua utilização directa pela humanidade, como pela manutenção da integridade e equilíbrio dos diversos ecossistemas, dos quais a humanidade, directa ou indirectamente, depende. Devem assim serem utilizados instrumentos de gestão dos recursos hídricos incentivando os utentes a adoptarem comportamentos de utilização desses recursos que sejam os mais eficientes e justos do ponto de vista da comunidade e que garantam, simultaneamente a preservação dos ecossistemas. Sucede que, em Portugal, a avaliar pelos anúncios profusamente transmitidos este Verão, espera-se que sejam apenas os particulares a terem esses comportamentos.

Em primeiro lugar, o abastecimento urbano doméstico representa 8,59% do consumo de água no nosso país, excluindo o consumo nas Centrais Térmicas. Se se incluírem estas, aquela percentagem passa para 7,27%. O consumo industrial (rede própria) é de 3,81% (3,23% com CT) e o dependente da rede pública é de 0,82%. A hotelaria e os campos de golf consomem 0,28% (0,24% com as CT). A agricultura consome 86,5% (73,2% com as CT). Por sua vez as Centrais Térmicas consomem 15,41%, (Valores do Plano Nacional da Água de 2001).

De notar que nestes valores não estão as quantidades turbinadas nas centrais hidroeléctricas, que representam cerca de 91% de toda a utilização da água no nosso país. Se o fizéssemos, os números anteriores teriam ser divididos por 10! É óbvio que as quantidades turbinadas nas hidroeléctricas são restituídas ao leito a jusante. Mas também as termoeléctricas restituem o caudal utilizado, embora em condições de temperatura diferente da anterior. E igualmente parte da água consumida pela agricultura e abastecimento público acaba por ser restituída à bacia hidrográfica da qual foi retirada.

Reflectindo sobre estes valores vemos que o os campos de golfe, diabolizados pelos exorcistas do pecado do lucro, representam cerca de 0,14% do consumo (os campos de golf consomem grosso-modo metade das quantidades destinadas ao turismo). Em contrapartida são os responsáveis pelo turismo mais rico per capita e permitem manter uma ocupação razoável na época baixa. São os campos de golf que sustentam parte da hotelaria algarvia.

Continuando a reflectir sobre esta problemática, verificamos que os destinatários da publicidade representam menos de 9% do consumo de água no nosso país. Portanto aquele anúncio destinava-se apenas a utentes que consomem 8,59% da água captada no nosso país. Ou 8,73% se incluirmos os campos de golf, relativamente aos quais diversos programas têm assinalado o carácter pecaminoso e iníquo da utilização do precioso líquido.

Debrucemo-nos agora sobre a água consumida no abastecimento público. As perdas da rede urbana, segundo uma estimativa que considero muito por defeito, representam cerca de 31% em média do continente. Todavia um estudo dos SMAS de Loures, há meia dúzia de anos, concluía que as perdas, só na rede secundária, andariam pelos 35%. É provável que as perdas nas redes de abastecimento, em alta e em baixa, rondem os 40%. Estas perdas devem-se, na sua quase totalidade, a sistemas de canalização envelhecidos, obsoletos, mal concebidos, mal instalados, mal soldados, etc.. Uma pequena parte resulta de má fiscalização das autarquias, que permite roubos.

Finalmente temos a questão das regas. Uma rega efectuada no Verão, com a insolação existente, é um desperdício enorme. As regas devem ser feitas de madrugada ou, de preferência, ao fim da tarde. Os agricultores particulares fazem-no quase sempre. Todavia os municípios não o fazem. Alguns privados, como aldeamentos turísticos, também o não fazem. A razão é simples: não querem pagar horas extraordinárias. O custo da água desperdiçada por evaporação devido a regas feitas às horas de maior insolação é inferior ao custo das horas extraordinárias. Tudo isto é perverso. Deveria haver turnos próprios, ou flexibilização de horários que permitissem que as regas se realizassem em horários convenientes e a custos razoáveis. Ou então sistemas de regas automáticas com temporizadores que desencadeassem as regas às horas convenientes.

São comportamentos como estes de que eu discordo frontalmente. As autoridades, neste caso a AdP, as autarquias (através dos SMAS) e, em certa medida, o INAG (e o Ministério do Ambiente), que tutela o domínio hídrico em Portugal, têm pesadas responsabilidades. Não podem desperdiçar água. Têm que dar o exemplo. É evidente que todos devemos poupar água, que é um bem precioso e indispensável à nossa sobrevivência. Mas as autoridades têm que dar o exemplo, não só pela utilização que fazem dela, como por melhorar os sistemas de abastecimento, de forma a baixar as perdas em carga para valores razoáveis.

É uma irracionalidade e uma iniquidade estar a ouvir aqueles anúncios, enquanto lá fora, em plena canícula, aspersores regam a relva inconscientes que uma parte significativa dela é perdida por evaporação, sabendo que as canalizações que nos trazem água a casa perdem cerca de 40% da água que recebem e sabendo que o abastecimento público é uma parte muito reduzida da captação total da água.

É a irracionalidade e a iniquidade da administração pública, central e local, que julga que está acima da lei e dos comportamentos racionais, que são só aplicáveis e exigíveis ao comum dos cidadãos.

Publicado por Joana às 08:30 AM | Comentários (67) | TrackBack

setembro 05, 2005

Catarse Katrina

No nosso pequeno mundo dos aspirantes a fazedores de opinião, o furacão Katrina tem servido como catarse colectiva da nossa impotência e da nossa mesquinhez. Como não sabemos, não queremos e não podemos resolver os nossos problemas, empenhamo-nos em digladiarmo-nos sobbre os problemas dos outros. Os defensores do estatismo “lêem” o filme da catástrofe tentando extrair argumentos para criticar o modelo estatal americano, fingindo esquecer que Portugal tem um Estado “quase escandinavo”, pela sua dimensão, mas “quase latino-americano” pelos serviços que presta à colectividade. Eficaz em pilhar os recursos da sociedade, mas ineficaz em lhes prestar os serviços que os contribuintes pagaram.

Ataca-se levianamente a alegada lentidão das autoridades americanas, esquecendo que se uma catástrofe com uma amplitude de proporções semelhantes tivesse ocorrido em Portugal, ficaríamos à mercê de nós próprios. O nosso SNS é ineficiente mesmo em situações de normalidade, atendendo, apenas e tardiamente, aqueles que não têm possibilidades de usar outros recursos; numa catástrofe teríamos que ser nós a cuidar de nós próprios e dos nossos semelhantes. A nossa polícia é ineficiente, mesmo num clima de normalidade; em caso de catástrofe teríamos que ser nós a velar pela segurança de pessoas e bens. As nossas forças armadas são quase inexistentes e já não têm serviços de engenharia; em caso de catástrofe teríamos que esperar pelo socorro de forças estrangeiras. Os incêndios, em Portugal, são apagados pelos bombeiros voluntários, que as empresas disponibilizam, e com a ajuda de meios exteriores, enquanto os profissionais estão aquartelados; em caso de catástrofe teríamos que ser nós a tratar da protecção civil, da nossa protecção.

Portugal está completamente inerme perante qualquer catástrofe que ocorra. E os adoradores do Moloch regozijam-se que a acção das autoridades americanas não foi tão lesta quanto deveria ser e que isso é fruto do reduzido peso do Estado americano (cerca de 70% do nosso) e da ideologia que tornou esse Estado tão débil, quando deveriam estar preocupados pelo facto do nosso Estado ser proporcionalmente muito maior que o americano e não ter, nem de perto nem de longe, a capacidade de actuação que as autoridades americanas tiveram.

Será que essa gente pensa no que poderia acontecer em Portugal com uma catástrofe de proporções semelhantes? O que é perverso nas discussões sobre o Katrina e o seu rescaldo é que os adoradores do Moloch apenas discutem a dimensão do Estado e a ideologia que está na base das opções que lhe estiveram subjacentes. Nenhum se questionou se estaríamos preparados para uma catástrofe idêntica. Nada. Apenas arremesso de frases sobre a “ineficiência” das autoridades americanas. Os adoradores do Moloch não estão interessados em extrair lições para a melhoria da nossa capacidade de resposta. Apenas estão interessados em defender uma concepção de Estado. Uma concepção perversa, pois que é um Estado “Social”, pela sua dimensão, mas “A-Social” ou “Anti-Social” pelo seu funcionamento.

Há 2 anos, a França, um dos paradigmas do Estado Social europeu, teve cerca de 15 mil mortos pela vaga de calor, certamente muitos mais que as vítimas do Katrina. O governo e as principais autoridades estavam de férias; não me consta que as tivessem interrompido. É certo que foram mortes pouco mediáticas, e não localizadas. É certo que, à beira da morte, as vítimas não escreveram nas janelas e nos telhados “help us”, perdão, “au secours” nem se alinharam na estrada gritando em coro a mesma frase para as câmaras de televisão. Não podiam, estavam dispersos. É certo que as câmaras de TV não puderam captar que era gente das classes mais desfavorecidas. Só puderam captar estatísticas, e as estatísticas não comovem.

A controvérsia do Katrina é Portugal (ou pelo menos o segmento social que intervém na comunicação e blogosfera) no seu pior.

Publicado por Joana às 11:50 PM | Comentários (126) | TrackBack

setembro 04, 2005

O blog Noites Áticas

Ou … Noctium.atticarum@commentarium.blog.roma

Aulus Gellius - nasceu (entre 117 e 130) durante o reinado de Adriano e morreu (entre169 e 180) durante o reinado de Marco Aurélio. Nascido em Roma, foi completar os seus estudos em Atenas, como era vulgar entre os jovens patrícios, e regressou a Roma onde exerceu as funções de centuvirum ou jurado de causas cíveis e viveu num ambiente de gramáticos, retóricos, filósofos, sábios e antiquários, entregues a debates frívolos “De que cálculos e de que proporções, segundo Plutarco, se serviu o filósofo Pitágoras para determinar o tamanho de Hércules, durante sua estadia entre os homens” [1º escrito do Livro I] Quando se pode dizer que alguém está morto?”, “Deve-se ou não cumprir sempre as ordens dos pais, quaisquer que sejam?”, “Virtudes e Propriedades do número 7”, “Artifícios de Sertório para atrair os Bárbaros [Lusitanos]” (ver adiante este interessante post sobre os nossos antepassados) etc..

Aulus Gellius não foi um escritor, foi um compilador. No seu prefácio ao Noites Áticas escreve que após um debate na sua sociedade de eruditos e gramáticos, ou depois da leitura de um livro, tomava notas e escrevia um pequeno texto: todas as vezes que eu tive nas mãos um livro grego ou latino, ou que ouvia relatar alguma coisa de notável, sempre que fosse digno da minha atenção, qualquer que fosse o assunto, eu tomava notas sem ordem e sem sequência. Eram, por assim dizer, provisões literárias que eu punha de reserva para ajudar a minha memória. Aulus Gellius não escreveu um livro – escreveu um blog, o “blog” Noites Áticas, nome dado em lembrança dos tempos que passara em terras de Ática. Os seus “posts” são escritos ao acaso, sem sequência, nem um fio condutor, ao sabor da matéria em discussão no último debate, ou das leituras do autor, como em qualquer blog actual. Neste por exemplo.

Amontoam-se no seu “blog” histórias de heróis mitológicos ou de figuras proeminentes da história greco-romana, questões sobre o Direito Romano, dissertações sobre as palavras, as suas origens e como se utilizam, o que significam e como se declinam, opiniões de filósofos coevos, fragmentos de obras depois perdidas (o que se reveste de enorme importância), etc. O seu gosto pelos arcaísmos, por tudo o que era antigo, e a sua preferência pelos autores mais antigos, como Porcius Catão, perante outros mais recentes, como Cícero, simbolizam uma época que marca o fim do mundo antigo e o início da transição para a idade das trevas. Dion Cassius, que escreveu a sua história meio século depois, diria, sobre a morte de Marco Aurélio: saída de um reinado de ouro, a nossa história vai mergulhar num reinado de ferro e de ferrugem.

À beira do fim do seu mundo, os intelectuais dessa época queriam agarrar o que havia de mais puro e de menos corrompido desse mundo, e recuavam cerca de 4 séculos, até à época dos romanos de velha têmpera, do mos maiorum (*), dos valores de vida representados por gravitas, pietas e simplicitas(*) e dos ideais competitivos de virtus, gloria, honor e fama(*), as qualidades que tinham sustentado Roma durante as guerras púnicas e durante o período de ouro da república, até à destruição de Cartago, o saque de Corinto, a anexação da Grécia e Macedónia (tudo em 146 AC) e ao colapso da constituição republicana (133 AC), com o começo das lutas sociais e civis. Aulus Gellius é um dos nomes representativos da época de decadência das letras romanas. Provavelmente escrevia numa língua que, exceptuando o círculo em que vivia e os meios cultos da época, já não era entendida por ninguém. Depois dele foi a esterilidade. O século III é um Sahara literário.
Aullus Gelus.jpg
Apesar disso, a leitura de Aulus Gellius é muito interessante. É como estar a ler uma revista típica dos fins do século XIX, princípios do século XX, misturando curiosidades científicas (metafísicas, no caso de Aulus Gellius) e linguísticas, com histórias diversas e por vezes anedóticas sobre figuras conhecidas, numa escrita leve e sem pretensões.

O seu “blog” está compilado em 20 livros (o 8º perdeu-se, assim como parte do 6º), que “correspondem” aos “Arquivos Mensais” deste blog, e cada livro agrupa diversos posts. Citando alguns posts, ao acaso:

Como a obesidade era “censurada”:

Livro VII - XXII. Como os censores tinham o hábito de confiscar os cavalos aos cavaleiros [Ordem Equestre] demasiado gordos. E se esta condenação era degradante para os cavaleiros, ou se ela não atingia a sua dignidade.

Quando os censores encontravam um homem gordo, tinham o hábito de lhe confiscar cavalo, julgando, sem dúvida, que o peso do seu corpo o tornava impróprio para o serviço de cavalaria. Alguns pensam que tal não era uma punição, mais apenas um licenciamento sem degradação. No entanto Catão, num discurso que escreveu para a Celebração dos sacrifícios, reprova esse facto a um cavaleiro de forma tão incisiva que não restem dúvidas que ele atribuía a isso uma ideia de degradação. Se adoptarmos esta opinião, devemos acreditar que quem possuísse um corpo excessivamente gordo era olhado como culpado de indolência

E também tinha posts fracturantes:

Livro IX - IV. Tradições maravilhosas sobre algumas nações bárbaras. Encantamentos funestos e deploráveis. Mulheres que mudam subitamente em homens.

(excertos)
… Entretanto, a propósito de prodígios, permitir-me-ia citar Plínio, o Segundo, …”As metamorfoses de mulheres em homens não são uma fábula. Lemos nos anais que, sob o consulado de Q. Licinius Crassus e de C. Cassius Longinus, uma rapariga de Casinum, que vivia com os seus pais, se tornou num rapaz e que foi transportada, por ordem dos sacerdotes, numa ilha deserta. … Eu próprio vi, em Africa, L. Cossicius, cidadão de Thysdrus, que, inicialmente mulher, mudou de sexo no dia do seu casamento. ”
…
Plínio, no mesmo livro
[História Natural], diz ainda: «Há seres que reúnem os dois sexos, a quem chamamos hermafroditas ; antes eram chamados andróginos, e eram olhados como monstros. Hoje fazem as delícias da libertinagem».

E sobre os nossos antepassados, os Lusitanos, também há um post:

Livro XV - XXII. Aspectos da vida de Sertório; a sua habilidade, a suas astúcias e os seus artifícios para atrair os soldados bárbaros.

Sertório … nas conjunturas difíceis, mentia aos seus soldados, se via utilidade em mentir; Lia-lhes cartas, imaginava sonhos, falsas inspirações, quando esses expedientes lhe pareciam apropriados para agir sobre o espírito dos soldados. … Um Lusitano deu-lhe uma corça branca, de uma beleza rara … e ele soube persuadir todos que era um dom do céu, que inspirado por Diana, conversava com ele, dava-lhe conselhos e ensinava-lhe o que fazer. Quando pretendia que as suas tropas fizessem algo de penoso, dizia que apenas executava o que a corça lhe ordenava, e todos lhe obedeciam como a um Deus.
Um dia a corça, aterrada pelo tumulto do campo de batalha, fugiu e escondeu-se num pântano próximo. Após buscas inúteis, julgaram-na morta.
Dias depois alguém anunciou a Sertório que ela fora encontrada. Ele ordenou silêncio sobre isso e que a corça fosse transportada para o local onde ele se iria encontrar com os seus ajudantes. No dia seguinte, nesse local, ele reuniu-os e contou-lhes que tinha visto em sonhos que a corça iria regressar para o instruir como até então; fez então um sinal ao escravo e a corça precipitou-se na sala, no meio de gritos de admiração. Sertório sabia, nas ocasiões importantes, tirar partido desta credulidade dos bárbaros e verificou-se que todos esses povos fizeram causa comum com ele e nenhum, apesar dos numerosos revezes, desertou; e sabe-se quanto esses povos são versáteis.


Esses bárbaros crédulos e “versáteis” que só seguiam os líderes quando eles lhes mentiam descaradamente, eram os nossos antepassados. Mantemos essa notável herança virtutibus maiorum. Continuamos demasiado versáteis e a acreditar naquilo que os políticos nos dizem, sempre que acham útil mentirem-nos, por mais óbvias que sejam essas mentiras. Só que em vez de corças mensageiras de Diana, dizem-nos que tudo se resolverá sem sacrifícios, que não vai haver aumentos de impostos, que vai haver rigor nas contas, que vai haver mais 150 mil empregos, que vai haver moralização na vida pública, que vai ser restaurado o clima de confiança, etc.

(*) Notas:
mos maiorum: Costumes dos nossos antepassados
gravitas, pietas e simplicitas: sobriedade (ou prudência), cumprimento dos deveres agindo com rigor e honestidade, simplicidade (frugalidade)
virtus, gloria, honor e fama: coragem (brio, virtude), glória, desempenho de cargos públicos sem remuneração, fama.

Qualidades e ideais cuja existência fez a grandeza de Roma (enquanto duraram), e cuja persistente ausência tem feito a mesquinhez e a desgraça de Portugal

Fonte dos textos de Aulus Gellius: Œuvres Complètes d’Aulu-Gelle, 2 vols, Paris – Librairie Garnier Frères (sem data, provavelmente fins do séc XIX ou início séc XX), Edição bilingue.

O texto latino (incompleto) está aqui

Publicado por Joana às 06:55 PM | Comentários (61) | TrackBack

setembro 02, 2005

Entradas de Leão

Saídas de …

O Ministro da Agricultura afirmou anteontem que iria aplicar coimas às autarquias que não tivessem cumprido as medidas legais de protecção contra os fogos florestais. Esta notícia fez manchete do Público de 31-08-05 e ocupa uma página quase inteira do interior do jornal. “No princípio do Outono vai haver notificações para as autarquias e para os privados” afirmou de peito feito. Esta afirmação é notável, pois demonstra alguma coragem, muita ignorância e uma completa insensatez.

É preciso alguma coragem para arrostar com o poder autárquico; é preciso muita ignorância para não saber que estava a acusar as autarquias e os privados de infracções em que o Estado é um dos principais praticantes; é preciso uma completa insensatez para não perceber que se iria meter num vespeiro que poderia pôr a nu e trazer para a ribalta todo o laxismo do Estado nesta matéria e as suas responsabilidades.

Obviamente que a resposta das autarquias foi fulminante e violenta: “Caso notifique as autarquias, conforme disse, o senhor ministro terá não só a resposta política às asneiras que proferiu, mas também a dos tribunais”, disse um membro da Associação Nacional de Municípios, que acusou o ministro de ser “política e intelectualmente desonesto”, conforme notícia que hoje (1-09-05) apareceu exilada numa página interior do Público, tão interior e tão exilada que eu só a descobri depois de ouvir, na rádio, o Ministro a deitar água na fervura das suas anteriores declarações e após folhear várias vezes o jornal! Nessa “tira”, o presidente da CM Viseu considerava que o Estado “não tem legitimidade para apontar o dedo às autarquias já que é ele o primeiro prevaricador: O Pinhal de Leiria, as estradas florestais de sua responsabilidade e as matas nacionais são uma vergonha! Se quer ter legitimidade, que dê o exemplo, que não deixa as suas matas piores que as outras.

Entretanto, para desviar as atenções, a Quercus, a representante “no exterior” dos ambientalistas do ICN, deu uma conferência de imprensa, pondo em dúvida a eficácia dos meios aéreos, alegando indícios estranhos onde mostrava que não fazia a mínima ideia do que falava e que apenas convocara aquela conferência de imprensa para criar um facto mediático para fazer esquecer a lebre que o ministro levantara. A Quercus (e o ICN) pode ser insensata, mas não é ignorante sobre o estado de limpeza das matas do Estado e daquelas, “protegidas”, onde o Estado impede objectivamente a limpeza. A última coisa que a Quercus (e o ICN) quer é que se comece a falar da limpeza das matas.

O problema do ministro é, ao que aparenta, conhecer a problemática dos incêndios apenas pela comunicação social. Não faz ideia do estado das matas do Estado. Ora a comunicação social está completamente manipulada pelo lobby ambientalista e as notícias sobre o desleixo nas matas nacionais não passam, porque não é desleixo, é uma “questão de princípio”. Todavia, ao meter-se com o poder autárquico, o ministro mete-se com uma instituição que também tem, pela sua força, um acesso garantido à comunicação social. Agora foi apenas uma “tira” perdida na página 22, mas se a situação se prolongar o poder autárquico tem força bastante para aparecer em manchete nos jornais, por muito manipulados que estes estejam. O poder autárquico não é a sujeição dos pequenos proprietários das áreas protegidas, que têm que assistir aos incêndios dos seus bens pela TV, sem possibilidade de ter feito, em tempo oportuno, nada para obviar a tragédia, nem conseguir fazer passar o seu protesto. O poder autárquico é acusado de estar cheio de mafiosos? Será … mas a máfia é uma força perigosa e inventiva, quando a põem em cheque.

O ataque às causas profundas dos incêndios tem que começar pela própria administração central. O governo não pode exigir aos outros, principalmente às autarquias que são um adversário poderoso quando hostilizado, aquilo que não faz. Ao exigi-lo coloca-se, e coloca o país, numa situação vulnerável. Nunca resolveremos a questão dos incêndios desta forma, em que cada um só olha para o laxismo dos outros. Esta é uma questão que terá que ser resolvida por todos – Estado, autarquias, particulares – de forma integrada e tendo, cada um dos protagonistas, a honestidade de assumir com rigor e objectividade as suas responsabilidades e as suas insuficiências. Ao sustentar na administração pública comportamentos que, objectivamente, fragilizam sua posição (para além de tornar as matas nacionais em bombas incendiárias), o governo prejudica o país, sem ganhar nada com isso. As teorias dos ambientalistas sobre a (não) limpeza das matas não têm a ver com quaisquer opções políticas, não passam de manias.

São todavia manias caras e perigosas, pois a continuação desta situação vai obrigar, desnecessariamente, a custos muito elevados em meios de combate a incêndios, sem resolver o problema dos fogos que vão continuar devastadores enquanto as suas causas profundas não forem eliminadas.

Publicado por Joana às 12:01 AM | Comentários (60) | TrackBack

setembro 01, 2005

Contra o Pessimismo

É um facto. Soares é o candidato contra o pessimismo que reinava no PS sobre as consequências das presidenciais. A decisão inédita de Sampaio de dissolver uma AR, onde uma maioria estável apoiava um governo, por razões de discordância política, abriu a porta à possibilidade, já existente mas até então nunca utilizada, de um qualquer PR dissolver uma AR de cor contrária e demitir o executivo que governava com o seu apoio. O PS andou a vender ilusões na campanha eleitoral mas, quando governo, confrontou-se com a dura realidade da situação económica e financeira. Teve que “meter as promessas na gaveta” e fazer tudo ao contrário do que prometera. Essa situação tornou-o vulnerável a um “Sampaio” de cor contrária.

Soares representa o regime ancilosado da 3ª República. Representa todo o lastro que se acumulou nas instituições e mentalidades e que terá que ser jogado fora se o país quiser singrar na via do progresso. Soares afirmou que está a ver “instalar-se um pessimismo quanto ao futuro da pátria”, todavia esse pessimismo resulta justamente dos portugueses verem o impasse em que o país se encontra. Ora esse impasse, embora tenha uma culpa generalizável a toda a classe política, é protagonizado pela esquerda que empurrou Soares para esta candidatura. Soares é o candidato do impasse institucional, do projecto de empobrecimento colectivo em que vivemos e que tem sido referendado pelo eleitorado, por acreditar em mentirosos e por receio da mudança para uma sociedade e uma economia abertas às quais tem sido avesso há vários séculos.

Soares afirma que há “um indiferentismo por tudo o que ultrapassa os interesses mais imediatos de cada português”, mas essa afirmação é contraditória com o facto da candidatura dele se inserir na linha que tem levado Portugal a impasses sucessivos e que tem provocado esse indiferentismo. Soares porta-se como o dealer que se abeira de adolescentes pedrados e lhes diz carinhosamente: vocês estão mesmo em baixo … tomem lá mais estas doses para ver se arribam. Aliás é significativo que Carvalho da Silva, um dos protagonistas dos “interesses mais imediatos” dos portugueses, tenha enviado uma carta considerando a candidatura de Soares muito positiva.

O ponto alto do ilusionismo político foi quando Soares afirmou que “Todos sabem que não é a ambição que me move, nem muito menos a ambição do poder”, nomeadamente para uma assembleia que sabia exactamente o contrário, mas que se entusiasma ao rubro com frases como aquelas, apenas porque são “vendáveis”, … são fixes. Depois de 30 anos de mentiras, aquela assembleia de refractários à mudança já não consegue distinguir a mentira da verdade, pois apenas distingue o que é útil à manutenção do statu quo do que lhe é nocivo.

Como candidato da estagnação e da conservação dos interesses instalados, Soares não poderia deixar de avançar com a ladainha de que “Para lá do défice há outras realidades. O que conta, finalmente, são as pessoas e a sua determinação em lutar”. Foi o que Sampaio andou a dizer, até ser obrigado a dizer exactamente o contrário. Aliás Sampaio acabou por provocar a demissão de um governo por este, alegadamente, não estar a ser rigoroso com o défice e enveredar por um laxismo orçamental. Aquela frase é perversamente oca, pois pretende iludir as pessoas sobre o estado do país agitando-lhe emoções e apelando ao irracionalismo estéril e sem saída. A alguém endividado, e à beira da insolvência, não se deve dizer que para além da dívida há outras realidades, pois o que importa é ele ser uma pessoa e estar determinado em lutar, principalmente se até agora essa pessoa apenas tem estado determinada em lutar para continuar a viver acima das suas possibilidades, aumentando continuamente a dívida. As pessoas vencem as crises se forem confrontadas com a realidade e não embaladas nos cantos de sereias dos vendilhões políticos.

Finalmente, quanto à citação de Fernando Pessoa, acho que ela é apropriada à próxima eleição presidencial:
Mais do que isto
É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca

Aqui os dois candidatos (admitindo que Cavaco seja candidato) estão igualados. Cada um é especialista na fraqueza do outro. Cavaco é especialista em saber de Finanças e Soares é especialista em ter uma biblioteca.

Publicado por Joana às 06:25 PM | Comentários (128) | TrackBack