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dezembro 30, 2005

O Ano Novo

É costume desejar a todos um ano novo cheio de prosperidades. Não me eximo a fazê-lo. Esses são os meus votos para todos. É possível que, para muitos, na sua vida privada, este novo ano que se avizinha seja próspero. Para o país não o será seguramente. O novo ano vai trazer mais desemprego, vai trazer um crescimento muito menor que as previsões do OE 2006 indicam e vai continuar a levar o país pelo caminho da penúria, com os diversos parceiros sociais dando socos no ar, tentando inventar bodes expiatórios, para alijarem de si próprios a parcela de responsabilidades que têm na situação.

Não me parece que a provável eleição de Cavaco Silva como PR influencie o rumo do país, pelo menos no curto e médio prazo. É preciso haver um total esgotamento político do Governo, para este ficar à mercê de uma intervenção presidencial e não se prefigura, pelo menos no horizonte de 2006, esse esgotamento. Sócrates é um corredor de fundo e tentará adiar com paliativos o inevitável cataclismo económico que se avizinha no horizonte.

Se Cavaco ganhar, uma coisa acontecerá certamente – a guerra fratricida entre Soares e Alegre vai deixar profundas feridas no PS. Muitos dos actuais membros da candidatura de Soares não escondem, à socapa do aparelho socialista, a sua preferência por Alegre. Diversos socialistas, ou próximos, aparentam ser favoráveis a Soares, porque não querem perder os cargos em que entretanto foram providos. O exemplo de Pina Pereira, Director Financeiro da campanha de Alegre e afastado da Companhia das Lezírias é significativo para quem tiver tentações em estar com Alegre. Os apoiantes de Alegre não perdoarão as pressões que o aparelho socialista tem exercido nos militantes, nem a lentidão com que as Juntas de Freguesia PS processaram as certidões de eleitores para instruírem o processo de candidatura, enquanto as de Soares eram na hora. Depois das eleições, se Cavaco vencer, prevê-se um ajuste de contas.

Ajuste de contas potenciado pela situação de crise cada vez mais profunda que o país atravessa. Todas as promessas de Sócrates se esfumaram. Todas as previsões sobre o crescimento económico, desemprego, balança com o exterior vão sendo sucessivamente revistas em baixa. O Governo ou o BP, ou o INE, emitem uma previsão e dois ou três meses depois, revêem-na, com um valor mais pessimista. E assim sucessivamente. Quando for necessário fazer o próximo orçamento rectificativo, aguardo com curiosidade qual a mentira, ou o pacote de mentiras, que Sócrates irá pregar ao país.

Veremos o que acontecerá. Quanto a cada um, individualmente, que o novo ano traga o melhor que for possível … no mínimo que traga saúde, que é o bem mais precioso que temos.

… principalmente num país onde a falta de confiança no SNS, que nos custa os olhos da cara, obriga as mulheres, que o podem fazer, a irem ter os filhos a Espanha, que é o exemplo mais perverso do mau funcionamento do nosso sector público.

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dezembro 28, 2005

O Criador e as Criaturas

A omnipresença ambientalista em tudo o que seja fazer, é obcecante. São as barragens – Côa, Sabor, etc. – é Rio Frio – cujo até agora inexplicável impacte ambiental ameaça levar o novo aeroporto de Lisboa para os confins – foram as gaivotas de Berlengas –protegidas com tal arte que se tornou necessário começar a abatê-las a tiro para evitar um desastre ambiental na ilhota – são auto-estradas, IP’s, estradas municipais, túneis, etc.. Nesta quadra, onde, à míngua de notícias, para além da nossa consabida penúria financeira e económica, a liturgia católica e o Pai Natal, globalizado, Made in China, nos envolvem e põem a meditar, onde os elementos bíblicos ganham um maior relevo e aguçam a imaginação, é bom que nos debrucemos sobre uma nova perspectiva de ver a questão ambiental.

Acaso Deus, na sua profunda omnipotência, teria podido criar os céus e a terra se tivesse necessidade de um Estudo de Impacte Ambiental? Teriam sido possíveis aqueles 5 primeiros dias do Génesis, hoje designados pelo anglicismo Big-Bang? Porventura não, hoje não existiríamos e, pior que tudo, Haydn não poderia ter composto a soberba Die Schöpfung. Quanta coisa se teria perdido, santo Deus!

Mas admitindo que Deus, todo poderoso, conseguisse levar avante os seus intentos, que dizer da sua obra seguinte: o homem e a mulher? Acaso os ambientalistas iriam permitir a execução de uma obra onde a Área de Lazer e Degustação ficasse paredes meias com um exutor de efluentes? A escassos centímetros? O que bradariam os ambientalistas nos horários nobres das televisões? Quantas queixas seriam apresentadas em Bruxelas? Quantas acções populares seriam interpostas por Sá Fernandes, aliás também ele vítima dessa obra irregular do Criador? Vítima? … julgo que sim … pelo menos no que respeita ao exutor de efluentes …

Mas o Criador, na sua omnisciência, teve confiança nas suas Criaturas, na capacidade destas usufruírem da obra que fizera, dando-lhe o uso mais adequado. Algumas, demasiado imaginativas, ultrapassando porventura os desígnios iniciais do Criador, foram mais longe, anexando o exutor à área de lazer. As primeiras a fazê-lo foram punidas impiedosamente, com a destruição divina de Sodoma e Gomorra. Era tal a fúria do Criador que mesmo a mulher de Lot, só por ter olhado para trás, porventura curiosa com o fragor da destruição, ficou transformada numa estátua de sal. Todavia Deus, na sua infinita piedade, tem uma bonomia, uma benevolência, uma capacidade de estabelecer consensos, que escapam aos ambientalistas, e assim o divino Marquês pôde dar largas à sua imaginação e escapar milagrosamente à guilhotina … sinal evidente que o Criador passara a confiar nas suas Criaturas e que admitia que os equipamentos com que dotara a sua obra prima pudessem ser vistos num conceito multiusos.

E foi assim que uma obra que viola as mais elementares regras ambientais, que foi feita sem Estudo de Impacte Ambiental, completamente irregular, tem prosperado até à data, para satisfação de todos, ou quase todos. Sabe-se lá o que se teria perdido se o Criador fosse obrigado a mandar executar um EIA. Sabe-se lá que seres disformes poderiam ter sido criados. O que teria sido provável, é que os atrasos na elaboração do EIA, na sua discussão pública e aprovação se prolongassem de tal modo que, quando o Criador estivesse munido de todas as autorizações, já não houvesse fundos comunitários para subsidiar a obra.

E lá ficaríamos sem Haydn e a sua Die Schöpfung.

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dezembro 27, 2005

Superficialidades

As parangonas dos meios de comunicação registam que apenas um em cada quatro patrões portugueses era licenciado ou tinha completado o ensino secundário, o que representa metade da percentagem registada em Espanha. Todavia, em letras mais miúdas, lê-se que Espanha tinha também o dobro de empregados licenciados ou com o ensino secundário completo, em comparação com Portugal, que tinha 27%. Na UE a média é de 71%, no caso dos patrões, e de 72%, no caso dos empregados. Ou seja, as proporções são idênticas. O nosso problema não é apenas a baixa qualificação do patronato – é a baixa qualificação da população em geral. A baixa qualificação do patronato reflecte apenas e exactamente a baixa qualificação geral do país.

Uma outra ideia errada que se pode retirar das notícias é a da ligação da capacidade empresarial com as habilitações académicas. Tal não é verdade. A capacidade empresarial terá a ver com o nível de qualificação de um país, mas num dado país, com um certo nível de qualificação, o ser licenciado não assegura, à partida, uma maior capacidade empresarial. Capacidade empresarial tem a ver com a capacidade de tomar decisões em situações de risco, com a capacidade de liderança, com a capacidade e a imaginação na leitura dos mercados e em pesquisar e avaliar correctamente as oportunidades. Imaginação, decisão, risco e liderança são algumas das palavras-chave. Isto não se aprende em cursos, nasce com a pessoa e floresce com a educação e o ambiente onde se molda.

É evidente que, desde que aquelas qualidades existam, quanto mais qualificado for o empresário, quer do ponto de vista profissional, quer do ponto de vista académico, maior será a sua qualidade empresarial, ou melhor, mais a sua capacidade empresarial se exercerá em áreas de tecnologia mais avançada. O que está em causa com a qualificação dos empresários é a sua capacidade em se abalançarem a sectores de actividade de maior valor acrescentado.

Mas para tal não se torna apenas necessário que os empresários sejam mais qualificados, mas também que a restante população activa o seja. Não é apenas necessário que o empresário tenha o sentido do risco e a capacidade de decisão para o enfrentar, é também necessário que a cultura do risco seja estendida a toda a sociedade e que se elimine a cultura da aversão ao risco, que hoje nos estiola.

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dezembro 26, 2005

Nada a Fazer

A força da resistência passiva é temível. O Estado português criou uma máquina burocrática complicada, com procedimentos sinuosos, repletos de documentos redundantes, mas absolutamente necessários segundo ele, cuja obtenção exige um esforço de compreensão, cuja lógica escapa ao mais alfabetizado, que é morosa, cara e implica a permanência em numerosas filas de espera. A população opõe a essa máquina pesada e obtusa uma resistência passiva incontornável. O Estado complica mais do que a imaginação alcança. O país profundo descomplica, ignorando o Estado. A questão da identificação fiscal dos imóveis que o Ministério das Finanças tem tentado regularizar há dois anos é um exemplo claro dessa luta titânica e permanente, sobre cujo vencedor ainda não é possível formular prognósticos.

Aquela regularização foi objecto de várias prorrogações e quando, em Maio deste ano, foi dada uma terceira prorrogação, cujo prazo terminava no fim de 2005, 3.716.350 prédios continuavam sem identificação fiscal, num total de 6.166.008 prédios. Após um ano, duas prorrogações e diversas ameaças, os prédios devidamente identificados ainda não atingiam os 40%. Faltavam identificar 3.113.535 rústicos e 602.815 urbanos. O Ministério das Finanças, ameaçador, deu aquela prorrogação, mas foi inflexível. A partir do final de 2005, seriam aplicadas coimas variando entre os 100 e os 2.500 euros. Os faltosos que se cuidassem!

Chegámos ao limite do prazo. Continua a haver cerca de 3,7 milhões de prédios por regularizar. Apenas poucos milhares, ou talvez centenas, terão reagido às ameaças do MF. Os outros ignoraram-no. Uma desfeita assim não se faz. 60% dos prédios continuam por identificar. Uma afluência pela negativa superior à de muitas votações eleitorais.

Em Maio passado escrevi aqui que iria «ser muito difícil introduzir ordem neste caos alimentado ao longo de séculos pela burocracia estatal e facilitado pela ignorância das gentes e pela sua aversão e receio da rapacidade da máquina estatal». Enganei-me. Não foi difícil … foi impossível.

Nada a fazer. A imponente máquina estatal … o Moloch temível … capitulou perante a incontornável resistência passiva da população. O Ministério das Finanças decidiu conceder um «perdão» a todos os contribuintes que não identificaram os prédios de que são titulares, rústicos ou urbanos, segundo um despacho de 20 de Dezembro do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, João Amaral Tomaz. Perdão é um eufemismo. O MF resignou-se, com este despacho, que 60% dos prédios continuassem sem estar regularizados.

O problema não está na resistência passiva da população. Está na complicação dos registos necessários à regularização, na multiplicação dos procedimentos, no custo da papelada, dos diversos registos, das certidões dos registos, dos averbamentos dos registos, etc., etc., e do tempo, do tempo excessivo que se perde em tudo isso … e da quase impossibilidade de penetrar na lógica incompreensível daqueles procedimentos. O problema não está na resistência passiva da população, está na estúpida e obsoleta máquina estatal. É a essa máquina estúpida e obsoleta que a população resiste

Publicado por Joana às 07:52 PM | Comentários (81) | TrackBack

dezembro 25, 2005

Investigação Natalícia

O Natal sempre me intrigou. Nos primeiros tempos a explicação era simples: Tratava-se de um velhinho barbudo ajoujado a um saco de presentes que descia por uma chaminé, pela calada da noite, e nos enchia os sapatinhos de prendas. As minhas dúvidas começaram quando me apercebi da largura da chaminé. Nem o Pai Natal passaria ali, a menos que fosse um anãozinho, quanto mais o saco e as barbas. As renas também não eram convincentes. Como conseguiriam sobreviver ao tráfego da 2ª Circular e chegar à nossa casa? A partir daí, ano após ano, fui aprofundando as minhas pesquisas sobre esta matéria. Não recorri à net, descredibilizada pelo erro da Wikipedia, nem aos livros, descredibilizados entre os viciados na net. Resolvi investigar in loco.

Fiz as malas, e mesmo sem esperar pelo subsídio do Plano Tecnológico, muni-me de um portátil, mas sem GPRS para evitar cair na tentação da net, e iniciei a minha jornada de investigação. Deve começar-se pelo princípio. Dirigi-me ao cume do Ararat, onde a tradição coloca a “aterragem” da arca de Noé e segui as pisadas daquele patriarca que, felizmente para nós, foi um proeminente especialista em previsões meteorológicas e na protecção da biodiversidade.

Durante horas vagabundeei rumo ao sul, pelas montanhas da Assíria, seguindo a peugada de Cam, filho de Noé. Foi uma investigação arriscada, em vista da instabilidade que reina na região. Seguindo um vale profundo, cavado por um caudaloso afluente do Tigre, dei por mim diante das ruínas de um casebre de adobe ladeado por duas árvores seculares, mais tristes que plantas crescidas na fenda de um sepulcro, erguendo a sua rama rala e sem flor. E na sombra ténue do crepúsculo, emergiam duas velhinhas descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas túnicas pobres, mais velhas que as árvores seculares, mais arruinadas que o casebre de adobe, hirtas, de cabelos desmanchados, alastrados até ao chão, numa neve inesperada. Um cão, que farejava entre as ruínas, uivava sinistramente. … Enfim, o cenário ideal para veicular tradições milenares. Nem Spielberg teria concebido um cenário melhor.

Foi aí que uma das anciãs, cabeça mais lívida que o mármore, por entre os cabelos emaranhados que o suor empastara e os olhos esmoreciam, sumidos, apagados, me informou penosamente que, de acordo com as tradições daquela aldeia e de todo o Crescente Fértil, aliás coincidentes com as da Bíblia, Cam, filho de Noé, havia tido um filho chamado Cush que desposara Semiramis. Cush e Semiramis tiveram então um filho chamado Nimrod (também conhecido por Ninus). Depois da morte de seu pai, Nimrod casara com a mãe e tornara-se um rei poderoso. Nimrod fora o construtor de diversas cidades (como Nínive) e da Torre de Babel (a Semiramis também foi atribuída a construção dos jardins suspensos da Babilónia). Enfim, gente pouco conveniente, viciada em investimentos públicos e em extorquir o dinheiro dos contribuintes.

Continuando a sua narração, a anciã, por entre sons sibilados, inevitáveis face à sua idade avançada e à ausência de recursos odontológicos na região, foi acrescentando que quando Nimrod foi morto, Semiramis proclamara que Nimrod tinha subido ao céu. Mais tarde, a patrocinadora deste blog, após alguns desregramentos domésticos que a decência e os bons costumes me impedem de revelar, tivera um filho, ilegítimo, concebido “sem pecado” (como Jesus), a quem chamara Tamuz, também conhecido por Baal. Para evitar falatórios, Semiramis pôs a correr que ele era Nimrod reencarnado. Quando Tamuz morreu, num acidente de caça, Semiramis igualmente proclamou que aquele havia subido aos céus e se tornara Deus. A sinceridade que a anciã punha nas suas palavras era garante seguro da veracidade da história. Nem por um momento tive dúvidas. Aquela história era credível. Tão credível como uma promessa de Sócrates.

A mãe, Semiramis, era figurada como A Rainha dos Céus com o filho, Tamuz, nos braços. Várias religiões antigas contam este facto. Os nomes podem variar mas a história é a mesma. Esta religião, começada com Semiramis, tornou-se mãe de todas as religiões do mundo oriental. Numerosos monumentos babilónicos mostram a deusa-mãe Semiramis com o filho nos braços. O culto desta figura (mãe e filho) disseminou-se, sob diversos nomes, por todo o mundo antigo. Semiramis e Tamuz, Isis e Hórus, Maria e Jesus.

O filho era exibido apenas como uma criança nos braços da mãe, enquanto que os artistas se empenhavam em favorecer a imagem da mãe, tentando mostrar a beleza exótica atribuída a Semiramis durante a sua vida. Beleza, força, sabedoria, orgulho indomável, resolução inquebrantável e voluptuosidade eram os seus atributos principais. Por exemplo, Catarina II da Rússia, talvez menos pela sua energia política que pela sua vida íntima, turbulenta e lasciva, foi rotulada como a Semiramis do Norte.

Foi então que veio a revelação que eu esperava, tremendo de emoção e de frio, que esta época torna as montanhas da Assíria um local inóspito e gelado. O 25 de Dezembro era celebrado como nascimento de Tamuz! Na antiguidade caldaica, 25 de Dezembro era conhecido pelo dia da criança, o dia do nascimento de Tamuz, o deus do sol. A noite anterior era a “noite da mãe”, em honra de Semiramis, hoje “véspera de Natal” e o Natal seria pois o dia do filho da mãe.

Continuando a ouvir o sussurro sibilado das velhinhas (não haveria um protésico na região?), soube que o nome Semiramis é a forma helenizada do nome sumério "Sammur-amat", ou "dádiva do mar." Também era conhecida por Ishtar que deu a palavra "Easter" (Páscoa) e Este (onde nasce o Sol). Os ritos da Primavera, 9 meses antes do nascimento do Sol do Inverno, foram os precursores da Páscoa cristã. Os Romanos chamavam-na Astarte e os Fenícios usavam Asher. Aquelas velhinhas tinham mais ciência sobre esta matéria que a Filomena Mónica sobre o D. Pedro V.

Em Israel era conhecida por Ashtaroth. A religião judaica, muito circunspecta e pouco dada a tratos de carnes, votava um ódio de morte à religião criada por Semiramis. Ao longo da sua história milenar centenas de vezes o povo de Israel caiu nas tentações idólatras atraído pelo suave e lascivo perfume da religião de Semiramis. E como é doce cair em tentações ... se foi para isso que elas foram concebidas!

Deixei as anciãs no seu tugúrio, após lhes ter dado um óbulo modesto, mas que as comoveu de satisfação (alguns dólares fazem jeito naquela terra de escassez e miséria), pensando na linha contínua que une a nossa história às remotas tradições daquelas terras.

A gestação do cristianismo foi um fenómeno longo no tempo e no espaço. Se os seus ensinamentos morais eram a resposta que os deserdados pretendiam face à crise social e de valores do mundo antigo, o seu ritual e os aspectos lúdicos da sua liturgia entroncam nas religiões do médio oriente, transplantadas para Roma após as conquistas.

Os Romans tinham a "Festa da Saturnalia" em honra de Saturno. Este festival era celebrado entre 17 e 23 de Dezembro. Nos últimos dois dias trocavam-se presentes em honra de Saturno. Em 25 de Dezembro era a celebração do nascimento do sol invencível (Natalis Solis Invicti). Posteriormente, à medida que as tradições romanas iam sendo suplantadas pelas tradições orientais importadas, os maiores festejos realizavam-se em honra do deus Mitra, cujo nascimento se comemorava a 25 de Dezembro. O culto de Mitra, o deus do sol, da luz e da rectidão, penetrou em Roma no 1º século AC. Mitra era o correspondente iraniano do babilónico Tamuz.

A data entrou no calendário civil romano em 274, quando o Imperador Aureliano declarou aquele dia o maior feriado em Roma. A data assinalava a festa mitraista do Natalis Solis Invicti. Com a quantidade enorme de feriados que então havia em Roma, ser considerado o maior feriado era uma proeza notável.

Aureliano ao acabar com a insurreição de Palmira e do Oriente e trazer a sua rainha Zenóbia para Roma, enterrou, em contrapartida e definitivamente, as tradições romanas do culto da família e das virtudes que haviam feito a grandeza da república, mas que foram perdendo influência à medida que o poder de Roma se estendia ao mundo conhecido. E ao ter destruído Palmira, permitiu que Volney, 15 séculos depois, invocasse aquelas ruínas (Je vous salue, ruines solitaires, tombeaux saints, murs silencieux!) para início das suas belíssimas meditações sobre a condição humana e a origem e o destino das sociedades, dos governos e das leis.

A escolha do dia 25 de Dezembro como data de comemoração do nascimento de Cristo nada teve, portanto, de arbitrária. Ao colocar, de uma vez por todas, o nascimento de Cristo a meio das antiquíssimas festividades pagãs do solstício do Inverno, a Igreja Cristã tinha a esperança de as absorver e de as converter, o que veio efectivamente a acontecer. Mas se a Igreja ganhou ao transformar aquela festividade na comemoração mais importante da liturgia cristã, teve que aceitar a aculturação resultante da importação de muitos símbolos das religiões antigas.

Foi assim que no século IV, o 25 de Dezembro passou a ser a festa do "Dies Natalis Domini", por decreto papal. A partir daí não há dúvidas e a história está tranquila.

E assim terminei a minha investigação e regressei a penates. E enquanto crepitava a lareira no conchego do lar, fui pensando no fio oculto que nos liga ao início da história da humanidade. Quando se fala da tradição judaico-cristã da nossa cultura eu penso menos nessa tradição como fé religiosa do que como matriz cultural. A gestação do cristianismo durou vários séculos num meio político que o hostilizava. A religião cristã acabou por incorporar na sua liturgia imensos símbolos das religiões que a precederam – a Virgem e o menino, o Natal, a Páscoa, o halo que se perfila por detrás da cabeça de Cristo (posteriormente alargado às representações dos santos), que representa uma reminiscência simbólica do sol invencível, etc..

O Natal, assim como outros eventos da liturgia cristã, começou há muitos milénios, no seio das primeiras religiões do médio oriente, ligado ao culto solar sob diversas formas e sentimentos. Continuou, adaptando-se ao sabor das alterações políticas e religiosas, incorporando ou rejeitando símbolos e conceitos, mas comemorando sempre o 25 de Dezembro e a sua véspera.

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dezembro 23, 2005

Porque é que Portugal é tão previsível?

Eu havia escrito aqui, no princípio deste mês, que entre aos «alegados 800 mil devedores, algumas dezenas de milhares apenas o são na imaginação virtual dos discos rígidos dos computadores das finanças». Nessa altura o Fisco embandeirava em arco com as cobranças coercivas que tencionava fazer e a comunicação social exultava. As listas dos devedores iam ser publicadas pelo Fisco e os faltosos seriam objecto de opróbrio público. Eu, prudentemente, escrevi «Mas quando forem publicadas listas de devedores, onde vários milhares são devedores forjados por erros das Finanças, então o caso fia mais fino. O dr. Paulo Macedo passará a ser o responsável directo (visto os documentos virem em nome dele) pelo ataque à honorabilidade de alguns milhares de contribuintes. E pode ser objecto de muitas centenas, senão milhares de queixas crime». Hoje a comunicação fala que o Fisco já detectou 134 mil erros e 16.000 contribuintes que estavam na lista da infâmia por equívoco. Ainda não deixei de me rir. Como é que é possível que eles não soubessem que a probabilidade de haver muitos milhares de erros era 1? E a comunicação social? Quando faz afirmações, não pensa no que diz? Não sabe do que fala?

Não

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dezembro 22, 2005

Divergências Sustentáveis

Portugal está a divergir dos seus parceiros da UE. Essa divergência acontece desde há alguns anos e as previsões indicam que irá continuar. As estatísticas mostram isso. As estatísticas mostram também quais os países que convergiram ou que divergiram por “cima”, e os ensaios económicos mostram os factos que estão na base dessa convergência ou divergência por enriquecimento. Todavia, no nosso país prevalece a retórica vazia e a recusa em ver os factos. E a retórica é: «A culpa é das políticas macroeconómicas viradas quase exclusivamente para a redução do défice negligenciando-se objectivos como o crescimento económico, o emprego e a justiça social». E é com esta retórica que se anestesia o país e o empurram para o abismo.

A retórica anestesiante põe os problemas às avessas. Porque, para haver emprego tem que haver crescimento económico; para haver crescimento económico, tem que haver investimento privado e para haver investimento privado tem que haver condições que o incentivem. Isso não existe em Portugal, com uma administração pública burocrática e obsoleta, uma justiça morosa e ineficaz e com uma carga fiscal arbitrária e pesada. Estes diagnósticos estão feitos, mas a maioria não quer acreditar neles. A maioria – líderes sindicais, líderes políticos e mesmo a comunicação social bem pensante – prefere iludir-nos (ou mesmo iludir-se) com a mentira e tentar ignorar os factos ou arranjar razões para alegar que aqueles factos não são explicativos.

Em termos reais, a nossa divergência começou em 2000, como se pode ver pelo gráfico abaixo. Todavia, a política de rendimentos expansionista do governo Guterres, que os fez aumentar acima da produtividade, produziu um aumento do rendimento nacional imediato que não era sustentável a prazo. Quando não havia moeda única o reajustamento era rápido, pois induzia um aumento da inflação pelos custos e uma desvalorização cambial a seguir. Com a moeda única, o ajustamento não pode ser feito através da desvalorização cambial. Nem sequer através da inflação, embora o primeiro efeito seja o aumentar da inflação. Simplesmente este efeito está limitado pela necessidade de manter a competitividade das empresas no mercado único europeu. Portanto o efeito será a recessão e o desemprego. Mas este efeito demora 2 ou 3 anos a ocorrer. Portanto, embora a nossa divergência começasse em 2000, ela já existia, de forma não contabilizada no PIB, desde 1997 ou 1998, mas só se tornou visível a partir daquele ano. Determinados investimentos públicos, como o caso das SCUT’s, que, sem dispêndio de meios financeiros, geraram imediatamente receitas fiscais volumosas e aumento pontual do rendimento disponível (embora criando obrigações futuras) também tiveram efeito de camuflar então essa divergência.

O quadro seguinte (via O Público) não necessita explicações. Mas deve ser recordado que será normal que os países mais ricos convirjam para a média, diminuindo o seu peso na economia europeia e os mais pobres convirjam aumentando o seu peso nessa economia. O que não é normal é Portugal estar do lado dos países ricos que convergem, mas a divergir e ser pobre. Quanto aos países com melhor desempenho, e exceptuando o Luxemburgo que é um caso marginal, pois tem um peso enorme de instituições financeiras para a sua reduzida dimensão demográfica, o caso Irlandês já foi citado aqui diversas vezes, mas a maioria finge acreditar que nunca existiu; o caso dos países de Leste é detestado por muitos como injusto mas, quando esses países enriquecerem e começarem a ter transferências sociais superiores às nossas, possibilitadas por esse enriquecimento, os nossos retóricos começarão a ignorá-lo. Foi o que sucedeu com a Irlanda, que só foi falada enquanto partilhava a cauda da Europa com Portugal, Grécia e Espanha.

Nós estamos num processo de divergência sustentada pela nossa estrutura social e económica. E sustentada por uma retórica demagógica e perversa.

Divergencia.jpg

Publicado por Joana às 11:49 PM | Comentários (47) | TrackBack

dezembro 21, 2005

Discurso

Estou emocionadíssima (sniff) … queria agradecer a todos (sniff …sniff) em especial aos meus paizinhos (a mão esquerda acena para a plateia, enquanto a direita sobraça com zelo fervoroso a coluna direita do Insurgente) … senão fossem eles, eu não estaria aqui … papá (mais uma mão que se agita e uma lágrima que cai) obrigada por me deixares estropiar os teus incunábulos no scanner … e à vizinha Mélita, que tanto me ajudou nos posts … (mais a mão e uma lágrima) coragem, Mélita, vais ver que o teu Alzheimer avançado há-de regredir. E ao Cícero, o meu cocker spaniel, que é um querido que só finca o dente aos de casa. Obrigada Cícero pela tua eloquência, que eu teclo melhor com a mão engessada. E ao jcd, que se vitimizou, a meio do ano, com uma psicose bloguítico-depressiva, porque senão talvez estivesse hoje aqui, em vez de mim, se bem que injustamente. Obrigada, jcd (já chateia a mão e a lágrima), não te cures, que isso de jaquinzinhos é peixe de gato. E obrigada aos meus comentaristas, que quanto mais me enervo, mais a minha adrenalina sobe e mais a minha interpretação ganha arrebatamento. Ah! E obrigada, Blasfemos (e o estupor da mão que não pára de acenar), por só se terem mobilizado para a votação nos últimos dias ... confiaram demasiado na mão invisível do mercado ...

Publicado por Joana às 09:12 AM | Comentários (80) | TrackBack

dezembro 20, 2005

Refutação Absurda

O Vento Sueste, relativamente ao meu post de ontem, refuta, esta tarde, a parte referente ao papel da Convenção Nacional, produzindo abundantes citações de Daniel Guérin, cuja intervenção foi a de um publicista de causas e não a de um investigador de História. Aliás, ele nem teve formação de historiador. Limitou-se a interpretar factos, do seu tempo ou do que leu sobre outras épocas, à luz das suas opções políticas. Daniel Guérin como historiador (que nunca foi) não oferece qualquer fiabilidade e o livro que é citado foi escrito no fim da última guerra, num período de exaltação anarco-comunista, onde se tentava branquear o comportamento dos regimes totalitários “de esquerda” para melhor levar a água ao moinho de uma Europa a caminho do socialismo “real”.

Aliás, sempre que há a emergência do totalitarismo de esquerda, aparecem publicistas a branquear os principais protagonistas do Terror: Robespierre, Saint-Just e outros. Não foi por acaso que a “A Luta de Classes em França na Primeira República”, de Daniel Guérin, saiu em 1946, na época em que a influência do comunismo em França foi maior, e foi editada em Portugal em 1977 (Regra do Jogo), ainda no período da efervescência revolucionária.

Sobre este período, para além das seguintes obras gerais de referência:
Thiers - Histoire de la Révolution Française Bruxelas 1834- 6 vols. É uma história muito bem documentada. Foi escrita no fim da restauração e já reflecte a ascensão das ideias liberais após o período de ocaso que se seguiu ao fim da revolução. Thiers tinha cerca de 30 anos quando iniciou a sua redacção. Permanece talvez a história mais actual, mais lúcida e neutra das histórias produzidas no século XIX sobre esta matéria.

Michelet Histoire de la Révolution Française Paris 1877-9 vols. A obra de Michelet reflecte as suas convicções políticas e o seu anti-clericalismo. Está literariamente muito bem escrita, mas é muito menos factual que a de Thiers.

... recomendo as obras dos que viveram os acontecimentos:
Durand de Maillane Histoire de la Convention nationale Paris 1825. Estas memórias têm muito interesse porque Durand de Maillane fazia parte do chamado Marais, grupo numericamente dominante na Convenção, mas que vivia sob o terror dos líderes revolucionários de Paris. Durand de Maillane foi um dos interlocutores dos deputados do Marais com a facção da Montanha chefiada por Tallien / Collot d’Herbois / Billaud-Varenne na resistência contra Robespierre e St.-Just nas sessões de 8 e 9 Thermidor. As memórias de Durand de Maillane permitem compreender as razões e os argumentos que para si próprios invocavam, para se justificarem, os deputados do Marais, menos “progressistas” que, por exemplo, os Girondinos, mas que foram votando, nos momentos decisivos, sempre do lado dos extremistas, até às sessões de 8 e 9 Thermidor. E permitem igualmente mostrar o enviesamento das leituras dos branqueadores do totalitarismo da Montanha, como Guérin. Frequentemente pensa-se que a força da Montanha correspondia à sua implantação eleitoral. Tal não é verdade. A força da Montanha resultava das instituições legislativas viverem reféns da Comuna de Paris e das secções mais extremistas de Paris. Ler Durand de Maillane e outros autores similares permite compreender os mecanismos que levaram a muitas das decisões da Assembleia Legislativa, Convenção, etc..

Mémoires de Meillan, député à la Convention nationale Paris 1823.
Apesar de deputado, Meillan teve que procurar na fuga a sua sobrevivência. Documento com interesse, mas sem o fôlego da obra de Durand de Maillane, embora escrito na mesma linha.

Billaud-Varenne - Mémoires inédits et correspondance, accompagnés de notices biographiques sur Billaud-Varenne et Collot-d'Herbois Paris 1893
Billaud-Varenne e Collot-d'Herbois foram dois membros de topo da Montanha, implicados em muitos morticínios. Collot-d'Herbois esteve implicado nas chacinas de Lyon. Todavia, juntamente com Tallien lideraram a resistência contra Robespierre que levou à queda deste. Os motivos dos 3 não seriam os mais nobres (Tallien estava principalmente interessado em salvar a sua apaixonada das garras do Tribunal Revolucionário, onde a esperava a certeza da guilhotina) mas o resultado salvou a França da continuação da ditadura sangrenta da Montanha e das suas consequências imprevisíveis. Todavia, quer Collot-d'Herbois, quer Billaud-Varenne foram posteriormente, em face da pressão da opinião pública, confrontados com as carnificinas que tinham organizado ou apoiado e condenados à deportação para a Guiana. Foi pela sua participação no Thermidor que escaparam à sorte de Carrier, o carrasco de Nantes, que foi executado.

Bertrand de Moleville_Histoire de la Révolution de France Paris 1801
1789-1791 (5 vols) 1791-1793 (5 vols) 1793-1799 (4 vols) - 14 volumes no total. Moleville foi ministro de Luís XVI durante o período revolucionário e, aquando dos acontecimentos de Agosto de 1792, escapou milagrosamente à perseguição policial que lhe foi movida, escondido várias semanas numa situação rocambolesca, numa casa em Paris, até conseguir fugir para Inglaterra. Foi o homem então mais procurado de França e os jornais de Paris deram-no várias vezes como capturado ou morto. Se tivesse sido apanhado teria tido a sorte dos restantes ministros – a execução.

Mémoires de Madame Roland (Marie-Jeanne Phlipon) Écrits durant sa Captivité Paris 1864 2vols. Mme Roland foi guilhotinada no âmbito do processo dos Girondinos. O seu marido, ministro girondino, que havia conseguido fugir, suicidou-se ao saber da sua execução.

Mémoires de Barras Paris 1894 4 vols (o 1º volume é sobre a revolução e o 2º e 3º são sobre o Directório). Barras foi quem organizou a resistência militar da Convenção no 8-10 Thermidor, que liquidou as veleidades de reacção das secções populares.

Staël-Holstein, Germaine de Réflexions sur le procès de la Reine par une femme Août 1793
Staël-Holstein,Germaine Considérations sur les principaux événements de la Révolution françoise 3 vols sem data (presumivelmente 1815 ou 1816). Mme de Staël, filha de Necker, foi uma mulher notável, uma observadora atenta e objectiva do seu tempo. Escreveu muitos outros opúsculos durante o período revolucionário e napoleónico. Igualmente Olympe de Gouges escreveu dezenas de opúsculos durante o período revolucionário, alguns sobre os direitos das mulheres, até ser guilhotinada.

Alguns jornais da época merecem destaque, principalmente pela negativa :
Hébert Je suis le véritable Père Duchesne foutre 1790-94 - 6 volumes. O Père Duchesne era uma espécie de blog da época, extremamente ordinário na linguagem (como pode observar-se pelo título), publicado num in-folio dobrado formando 8 páginas. Vivia da exploração do boato e da calúnia e, escrito numa linguagem muito popular e “vernacular” que era do gosto de alguma populaça parisiense. A facção Robespierre achou que Hébert tinha atingido o limite do insuportável e que a sua continuidade poderia ser prejudicial politicamente. Hébert e os exagerados foram guilhotinados.
Camille-Desmoulins Le vieux Cordelier Paris 1793/94. Jornal com alguma influência nos meios revolucionários, iniciou a publicação em fins de 1793 com o intuito de tentar travar os excessos que estavam a ser cometidos. Camille-Desmoulins depois de ter sido um dos arautos da liquidação física dos “aristo” e dos girondinos, evoluiu no sentido de uma pacificação social. Embora inicialmente tivesse, ao que ele pensava, o apoio de Robespierre, rapidamente evoluiu para uma cisão e tornou-se crítico da política de Robespierre. O jornal acabou quando Desmoulins foi guilhotinado, no processo de Danton e dos indulgentes. O último número, o sétimo, já foi póstumo.

Há outros jornais da época, de interesse como o de Brissot Le patriote francois 1789/1793 - 6 volumes. (Brissot era um dos principais dirigentes dos Girondinos). Não conheço nenhuma edição compilada do L’Ami du Peuple de Marat que será igualmente um importante documento de referência. Aliás todas as obras que citei, e as que citarei em seguida, referem-se a edições que estão à minha disposição por via familiar.

Obras gerais de interesse menor

Ternaux, Mortimer Histoire de la Terreur 1792-1794 Paris 1868 - 8 vols. Como o título indica, uma análise da revolução na sua vertente repressiva. Muito bem documentada.

Barante - Histoire de la Convention Nationale Paris 1851 - 6 vols.

Lamartine - Histoire des Girondins Paris 1881 - 6 vols (há uma ediçao portuguesa de 1854).

Georges Duval Souvenirs de la Terreur de 1788 à 1793 Paris 1841 4 vols
Georges Duval Souvenirs thermidoriens Paris 1844 2 vols (é a continuação da obra anterior)

Buchez e Roux - Histoire Parlamentaire de la Révolution Française ou Journal des Assemblées Nationales de Juin 1789 jusqu'en 1815 Paris-1834 - 40 vols (os acontecimentos de 8-10 Thermidor estão descritos nos vols 33 e 34 e o 18 de Brumário no vol 39). Portanto, os primeiros 34 volumes abarcam os anos 1789-1794! Por aqui se pode fazer ideia do acervo documental que esta obra representa. É uma obra notável pela documentação que tem – todos os debates das sucessivas assembleias, autos dos principais processos do Tribunal Revolucionário, extractos de polémicas públicas, manifestos, etc. Há todavia que assinalar que os autores são favoráveis à facção de Robespierre. Isso nota-se nas introduções e notas explicativas que os autores vão apresentando ao longo da compilação e num “certo enviesamento” desta. É uma obra típica do espírito reinante na época da revolução de 1830. Mas a maioria da documentação está lá e é uma obra indispensável de consulta.

É também interessante a consulta de uns escritos de Vilate:
Vilate, Joachim_Causes secrètes de la révolution du 9 au 10 Thermidor
Vilate, Joachim_Continuation des causes secrètes de la révolution du 9 au 10 Thermidor
Vilate, Joachim_Les mystères de la mère de Dieu dévoilés
Estes 3 volumes foram escritos na cadeia após o 10 Thermidor. São edições de 1794. Julgo que foram reeditadas em França no bicentenário do Thermidor. Vilate era membro do júri do Tribunal Revolucionário e foi preso juntamente com Fouquier-Tinville e incluído no mesmo processo. Vilate tentava justificar-se perante a opinião pública e influenciar “de fora” o processo. Não o conseguiu. Todavia são obras importantes porque feitas por alguém de dentro dos mecanismos da carnificina organizada pelo Tribunal Revolucionário. Obviamente contêm muitas falsidades, tendo em vista os objectivos do autor, por isso devem ser cotejadas com outras obras sobre o assunto.

Uma situação interessante e que se repetiu diversas vezes na história foi o facto dos acusados no processo sobre as acções do Tribunal Revolucionário terem alegado que “apenas cumpriam ordens”, o que dá uma triste ideia da forma como era então encarada a independência do poder judicial.

Como contrapartida, o branqueamento posterior da figura de Robespierre passaria por afirmar que ele não saberia da maioria das barbaridades cometidas pelo Tribunal Revolucionário, o que é falso, em face da documentação existente, e que a “conspiração” de Billaud-Varenne, Tallien e Collot-d'Herbois no 8 Thermidor foi destinada a eliminar Robespierre que quereria pô-los a julgamento pelos crimes cometidos. Esta explicação é completamente perversa. Após a liquidação dos girondinos, Robespierre foi procedendo à liquidação dos seus adversários mais radicais (Hébert e os exagerados) e menos radicais (Danton e os indulgentes) e provavelmente continuaria, dentro do mesmo espírito, de forma a obter uma liderança “pura”, à semelhança do que aconteceu, posteriormente na URSS, com as purgas estalinistas.

É todavia provável que Billaud-Varenne, Tallien e Collot-d'Herbois estivessem na calha para serem as próximas vítimas. Certo era Thérésa Cabarrus, a futura Mme Tallien e a «Nossa Senhora do Thermidor», estar indicada para comparecer a 9 ou 10 no Tribunal Revolucionário e ser executada no dia seguinte, como era norma naquela justiça “expedita”. Ter-se-ia perdido a figura de proa da sociedade francesa e dos salões parisienses do post-Thermidor, a organizadora dos “Bailes das Vítimas” onde cada conviva ia mascarado de uma vítima do Tribunal Revolucionário.

Sobre esta época pode ler, neste blog, por exemplo:
A execução de um rei
Fouché revolucionário

Publicado por Joana às 11:22 PM | Comentários (16) | TrackBack

A Autoeuropa e as nossas Fragilidades

Os trabalhadores da Autoeuropa, no referendo realizado ontem sobre o pré-acordo que havia sido negociado, responderam pela sua rejeição, por 55,87% contra 42,49% de votos. Os trabalhadores da Autoeuropa saberão, melhor que eu, o que é melhor para eles (ou mesmo que o não saibam, têm mais dados para o saber que eu). Todavia a situação é preocupante e poderá vir a ser dramática se não for possível chegar a um acordo. Julgo que o principal óbice, nesta altura, é o montante do suplemento para pagamento das horas extraordinárias.

A questão do suplemento para pagamento das horas extraordinárias pode parecer coisa menor, mas não é. Em indústrias que trabalham por encomendas, o diagrama de cargas não é constante (ou linear). Flutua, havendo períodos em que se trabalha abaixo da capacidade nominal e outros em que se torna necessário um esforço suplementar, porque o volume de encomendas, e o prazo para a sua satisfação, excedem a capacidade produtiva. Neste caso há necessidade do recurso a horas extraordinárias, que poderão ocorrer durante um período, mais ou menos extenso, necessário para a satisfação da encomenda. Compreende-se portanto que este ponto se tenha tornado crucial. A administração da Autoeuropa não quer que os veículos que produz sejam onerados por um custo laboral imprevisível e elevado, pois a sua capacidade de gestão das encomendas não lhe deve permitir um poder significativo sobre os prazos das encomendas que recebe, enquanto os trabalhadores querem um suplemento que sabem, pela experiência anterior, poder representar uma fatia significativa dos seus rendimentos.

O ministro da Economia, Manuel Pinho, declarou que «os trabalhadores estão a trocar horas extraordinárias por mais desemprego, menos exportações e menos produção». Provavelmente terá razão. Os trabalhadores, ou pelo menos a maioria deles, olha apenas para os seus próprios interesses imediatos que prevalecem sobre outros interesses mais longínquos: crescimento da empresa e dos seus efectivos e manutenção ou reforço da competitividade da indústria nacional induzida pela Autoeuropa, ou mesmo a manutenção, a médio ou longo prazo, dos seus postos de trabalho.

Porque a Autoeuropa, além de ser um factor imprescindível na nossa balança comercial, tem tido um efeito indutor no nosso tecido industrial, nas áreas que mais nos interessam: alta e média tecnologia. Há indicações que o efeito Autoeuropa tem sido um dos motores do aumento significativo da quota das exportações nacionais que incorporavam alta e média tecnologia.

É o problema dos países com um tecido produtivo de grande fragilidade. A sua economia está muito dependente de pequenas coisas – uma decisão empresarial, uma decisão de 2 mil trabalhadores, etc. – que num país com economia mais sólida seriam facilmente digeridas e, no nosso, podem assumir proporções catastróficas.

Publicado por Joana às 07:39 PM | Comentários (26) | TrackBack

dezembro 19, 2005

Apelo Vibrante

O jcd é o máximo. Acabo de ler o seu vibrante apelo ao voto no Blasfémias na eleição que se realiza no Insurgente. É um apelo onde a emoção só é ultrapassada pela imaginação, arrebatamento, excesso de riscos eloquência do tribuno. Não consegui conter as lágrimas de riso emoção, que se derramaram copiosas por sobre o teclado (amanhã terei que encomendar outro, porque este ficou com os circuitos estragados com a humidade lacrimal), e corri célere a dar o meu voto. Infelizmente apareceu uma resposta importuna, indecente, impiedosa e incontornável «We're sorry, you've already voted in this poll!». Não se faz ... depois dos empenhos com que tentei seduzir corromper os Insurgentes no post anterior. Mas amanhã, lá estarei, jcd ... só espero que, embargada pela comoção, os meus dedos não resvalem e acertem dois círculos abaixo.


Publicado por Joana às 09:31 PM | Comentários (44) | TrackBack

Democracia Representativa vs Directa

Relativamente a um debate blogosférico ocorrido há dias entre o Insurgente e o Vento Sueste sobre a Democracia Participativa (julgo que no sentido de Democracia Directa, porquanto na Democracia Representativa há participação) versus Representativa, que só agora tive oportunidade de ler, há exemplos que foram trazidos à colação como argumentos, que não me parecem correctos. Como primeiro exemplo, a afirmação de que «pode perfeitamente haver uma "democracia representativa" sem garantias constitucionais (a França sob o Terror é um bom exemplo)» é incorrecta. Se é verdade que a Convenção Nacional era um organismo representativo, os seus membros não estiveram, durante o Terror, no pleno uso das suas capacidades como representantes dos seus eleitores.

Paris esteve, nessa época, dominada pela Comuna de Paris cujo poder assentava nas secções populares armadas. Isso permitiu a que um grupo partidário, a Montanha, que disporia pouco mais de 10% dos deputados à Convenção, conseguisse levar avante a sua política totalitária, através do terror imposto pelas secções populares, que sitiavam e invadiam a Convenção, armadas, quando pretendiam impor-lhe a sua vontade. A Comuna de Paris foi o exemplo típico do que posteriormente se designou por “democracia participativa”: uma absoluta perversão totalitária; o serem, por direito próprio, os depositários da verdade; a mais abjecta intolerância para quem não comungasse dessa verdade, que foram liquidados como reaccionários; uma democracia constituída apenas por eles próprios, cujas chefias se perpetuavam ad eternum, sem nunca se submeterem ao escrutínio público e que eram as únicas a saber interpretar fielmente a “vontade popular”, mesmo quando essa “vontade” não correspondesse à vontade expressa nas urnas. Quando no Thermidor(1794) foi possível destruir o poder armado dessa “democracia pseudo-participativa”, verificou-se que aquela não tinha qualquer conteúdo real, apenas se limitava a mobilizar arruaceiros com palavras de ordem demagógicas.

Quanto à afirmação que “temos montes de exemplos de "democracia participativa" que não conduziram a ditaduras, desde Atenas até à Islândia medieval, passando pelas tribos germânicas ou berberes, os cantões suiços, os "town meetings" da Nova Inglaterra, etc.” é uma mistura que confunde coisas muito diversas. Porque não também os Sioux ou os Guaranis? As sociedades tribais primitivas eram pequenas aldeias, sedentárias ou nómadas, e o seu funcionamento não pode exemplificar o funcionamento da sociedade actual. Aliás, evoluíram todas no sentido de ficarem agregadas sob regimes despóticos, excepto aquelas cuja a colonização travou a evolução natural. Os colonos da Nova Inglaterra, agrupados em pequenos núcleos, eram gente perseguida por motivos religiosos, com uma grande identidade própria, religiosa e de cidadania. Mas por cima deles havia uma autoridade que punha baias nas suas capacidades decisórias. Mesmo assim houve o caso das bruxas de Salem, então um pequeno povoado, onde dezanove pessoas, na sua maior parte mulheres, foram declaradas culpadas e executadas num clima de completa histeria colectiva.

Quanto à Grécia Antiga ela foi, de facto, o berço da democracia, mas importa lembrar que essa democracia existiu apenas num pequeno número de cidades-estado e por um período de tempo muito limitado. A democracia ateniense, cujo vibrante elogio feito por Péricles é uma das páginas mais belas do ideal democrático, cairia duas ou três décadas depois, após uma guerra sem sentido, para a qual concorreu muita demagogia política. Basta ver como Alcibíades convenceu os atenienses a uma expedição à Sicília, completamente insensata e cujo desastre levou Atenas à exaustão e à capitulação. Após a derrota na Guerra do Peloponeso, Atenas oscilou entre tirania e democracia, despojada das glórias passadas, até à conquista macedónica, meia dúzia de décadas depois. Além do mais, se Atenas teria, na época de Péricles, cerca de 400 mil habitantes, os cidadãos não seriam mais de 20 mil. Só eles “usavam” uma democracia onde os direitos individuais não eram garantidos, nem na teoria, nem na prática, e onde as assembleias populares tinham poderes ilimitados que conduziam, às vezes, às maiores perversões (o julgamento de Sócrates, por exemplo). A democracia ateniense era a sujeição do indivíduo à autoridade de uma comunidade cuja vontade não conhecia limitações.

Na minha opinião, e os exemplos históricos militam a favor dela, a democracia representativa é a forma governativa que permite o equilíbrio entre o controlo popular e a decisão deliberativa. Como afirmou Edmund Burke: «O vosso representante deve-vos não só os seus actos, mas também o seu julgamento e trai-o se, em vez de vos servir, sacrifica esse julgamento à vossa opinião … na verdade haveis escolhido um representante mas quando o fizeste, ele não já é o vosso representante, mas um membro do Parlamento». Ou seja, nós delegamos a nossa capacidade de decisão em pessoas em cujo julgamento confiamos. Essa delegação permite que as sociedades não oscilem ao sabor de demagogias de momento, e que os governos tenham tempo de implementar a sua política e serem depois julgados por ela. Não funciona necessariamente bem, mas o equilíbrio entre o controlo popular e a decisão deliberativa, assegura que mesmo funcionando mal, seja o mal menor.

Todas as formas de regime que se arrogaram do título de democracia participativa conduziram a modelos totalitários com as características que descrevi no parágrafo sobre a pseudo-representatividade de uma Convenção Nacional, durante o Terror, permanentemente sob o cutelo da guilhotina, um cutelo manejado pelos arruaceiros liderados pela Comuna de Paris e pelo Clube dos Jacobinos

Publicado por Joana às 08:00 PM | Comentários (33) | TrackBack

dezembro 18, 2005

Os Pirros de Bruxelas e os Arrumadores da Europa

A cimeira de Bruxelas saldou-se por diversas vitórias. A França evitou que a PAC fosse, no imediato, posta em causa; os países mais pobres viram aumentadas as suas subvenções, parte devida à diminuição do “cheque britânico”, parte devida a um ligeiro aumento do orçamento comunitário. O próprio Tony Blair, para além de ter conseguido a aprovação do orçamento para 2007-2013, em que já poucos acreditavam, conseguiu a inclusão de uma cláusula de revisão exaustiva e ampla para o conjunto do orçamento no horizonte 2008-2009 e que inclui, nomeadamente, as despesas com a PAC. No campo de batalha de Bruxelas, todos saíram vitoriosos. Nos campos de batalha circundantes, perspectivam-se várias derrotas.

Blair anunciou vitória em Bruxelas, mas é acusado pela imprensa e pela maioria da classe política do seu país de ter capitulado perante a França. Subsidiar os agricultores franceses é a Némesis do povo britânico. É certo que a parcela do cheque britânico cedida foi mais que compensada pelo aumento da riqueza relativa do Reino Unido, face aos restantes parceiros europeus, desde os tempos em que foi negociado por Margaret Tatcher. Nessa altura o Reino Unido estava na fossa e o seu PIB era pouco superior ao da Espanha. Por outro lado, a persistência britânica num orçamento restritivo era mal vista pelos países de Leste que precisam urgentemente de subsídios para modernizarem as suas infra-estruturas. O Reino Unido estava a alienar países cujo apoio precisa, pois seguem políticas externas similares às suas. Todavia a posição de Tony Blair no seu próprio país ficou extremamente fragilizada. O acordo de Bruxelas não foi mau para o Reino Unido em termos de política internacional, mas foi péssimo para Blair em termos de política nacional..

A França ganhou em Bruxelas, mas perdeu em Hong-Kong, onde foi denunciada como o principal obstáculo ao êxito da conferência da OMC. Ninguém compreende que a França, com grande potencial de competitividade no domínio dos serviços e em áreas tecnológicas, se obstine em subsidiar e apoiar os seus agricultores, que apenas sonham darem uma educação suficiente aos seus filhos para eles abandonarem a terra. Assim sendo, e apesar da relutância da França, a União Europeia foi obrigada a aceitar, nessa conferência, a progressiva diminuição das subvenções às exportações, até à sua eliminação em 2013. Essas subvenções representam uma pequena parte da PAC, mas é um sinal importante.

O confronto franco-britânico permitiu que Angela Merkel aparecesse como mediadora, ganhando peso junto dos países de Leste, politicamente contrários à França, mas profundamente irritados com o Reino Unido na questão do orçamento. Se alguém pode reclamar uma vitória, ela caberá certamente a Merkel, que saiu de Bruxelas com um peso político maior do que quando entrou.

Estas vitórias à Pirro ganham contornos ainda mais precisos quando a Europa se confronta com uma situação de estagnação da qual não se vislumbra um horizonte de saída. E são exactamente os países mais aferrados ao modelo económico vigente que estão numa situação de estagnação mais prolongada e profunda. Em Bruxelas discutiu-se o orçamento para o horizonte de 2013, baseado num modelo cujas probabilidades de chegar àquela data sem profundas alterações são muito reduzidas. Pelo que se perspectiva, há muito caminho a arrepiar daqui até lá.

No meio desta peleja, Portugal pode considerar-se beneficiado no que respeita às ajudas comunitárias que vai receber, tendo em conta as perspectivas pessimistas existentes pelo facto de haver muito mais clientes à volta do bolo. Em termos anuais, os fundos comunitários vão representar cerca de 2,2% do PIB actual.

O problema de Portugal é que não consegue potenciar essas ajudas de forma a desenvolver o país. O Estado não sabe usar aquele dinheiro de forma adequada. Não é apenas incompetência dos governantes, é fundamentalmente pela obsolescência das nossas instituições públicas. O país quer dinheiro, não quer, ou não sabe, desenvolver-se. Se gastarmos aqueles fundos em formação, as entidades públicas, e as miríades de entidades privadas que imediatamente se acercarão do bolo, hão-de encontrar maneira de tornar essa formação numa forma de criar empregos precários, enquanto durarem os respectivos fundos. Aliás, é o que se passa actualmente com muitas das bolsas que são atribuídas e que apenas servem para manter jovens licenciados com pseudo-ocupações.

Se o gastarmos em investimentos públicos, havemos de arranjar forma de eles custarem mais do que é devido, demorarem mais tempo a ficarem operacionais do que estava planeado e a funcionarem muito pior do que era expectável.

O nosso problema não é falta de dinheiro. Dinheiro, desde que se saiba rendibilizá-lo, nunca falta. O nosso problema é a desorganização e ineficiência do nosso sector público e a baixa qualificação de uma parcela importante do nosso sector privado. É o excessivo papel do Estado e a excessiva dependência e subserviência de muitos protagonistas privados, relativamente ao Estado. É a nossa secular aversão ao risco. É a nossa subsídio-dependência.

Nós, na Europa, estamos a fazer o papel dos arrumadores de automóveis. Recebemos dinheiro a troco de nada e usamo-lo para comprar droga para ficarmos felizes. Enquanto houver dinheiro há felicidade. Quando deixar de haver ...

Tenhamos fé que tal não venha a acontecer. Enquanto nos mantivermos nesta miséria, a Europa tratará de nos arranjar uns trapos para nosso agasalho e de nos municiar com uns cobres para a droga.

Publicado por Joana às 10:21 PM | Comentários (77) | TrackBack

dezembro 16, 2005

Os Irredutíveis Britânicos Gauleses

E a crise da poção agrícola

Embora seja Blair quem esteja “cercado” pela maioria dos parceiros da UE, no que respeita ao futuro quadro orçamental para 2007-2013 - as Perspectivas Financeiras, a posição da França é, a longo prazo, muito mais frágil. Blair está pressionado pelo núcleo interessado na continuação da PAC, chefiado pela França, e pelos países de Leste, mais os parceiros pobres da antiga UE dos 15, que pretendem fundamentalmente conseguirem subsídios à custa da diminuição do cheque britânico. Todavia, a França está atacada em duas frentes – em Hong Kong, na Conferência de liberalização das trocas mundiais, começada há quatro anos em Doha, no Qatar, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, e na Europa, pois o cheque britânico destina-se a reembolsar o Reino Unido, pelo facto dele não beneficiar praticamente nada das subvenções da PAC, cujo principal benefício vai para a França.

Ou seja, é a PAC que está sempre em jogo. A PAC, a política agrícola comum odiada pelos britânicos, e que absorve 40% das despesas comunitárias. A margem de manobra de Blair é mínima – os súbditos de Sua Majestade detestam alimentar os agricultores franceses e não perdoarão a Blair se ele não for firme. A França pode acusar o Reino Unido de não estar "disposto a assumir a sua quota-parte do fardo financeiro" e classificar o cheque britânico como "anomalia histórica". Todavia o cheque britânico é a resultante de uma anomalia que não é apenas histórica, mas universal; que não é apenas detestada pelos britânicos, mas praticamente por todo o resto do planeta – resulta da PAC.

É verdade que, actualmente, o Reino Unido é, em comparação com os restantes países comunitários, muito mais rico do que era em 1984, quando Margaret Thatcher conseguiu negociar um mecanismo de reembolso das contribuições do Reino Unido, para compensar a PAC. Mas não é menos certo que a PAC é considerada um mecanismo obsoleto, que prejudica não só o comércio mundial, mas também os contribuintes europeus, que a pagam. E o custo da PAC é cada vez mais elevado, pois é o custo da oportunidade de não se aplicarem aqueles fundos em áreas viradas para o futuro, para as inovações tecnológicas, que melhorassem a competitividade europeia num mundo mais aberto e globalizado.

Blair está cercado pela maioria dos parceiros europeus, embora por razões diversas. Mas os sitiantes estão, por sua vez, cercados pelo resto da comunidade internacional. O cheque britânico terá que acabar, mas só acaba quando acabar a PAC. Poderá haver pequenos ajustamentos, mas esta condição é um reduto que o povo britânico não deixará cair. Todavia a PAC é muito mais frágil, pois está assediada pela comunidade internacional. A sua queda é previsível, mais ano menos ano. Resta saber quantos anos mais os europeus vão dissipar dinheiro nesta velharia inútil e contraproducente

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dezembro 14, 2005

Percursos

Li ontem que Silva Graça tinha decidido apoiar a candidatura de Cavaco Silva. Na sequência aliás do apoio dado por Veiga de Oliveira, de quem é bastante amigo, à mesma candidatura. Curioso o percurso deste homem que é o paradigma do desencanto de uma geração perante utopias que desabaram com fragor arrastando na queda convicções que se tinham por absolutas e indiscutíveis.

Silva Graça é amigo do meu pai desde os tempos universitários, embora ele seja cerca de 5 anos mais velho e de um curso diferente. No mais aceso da guerra do grupo dos 6 contra o núcleo duro do PCP ele esteve, por mais de uma vez, em nossa casa, era eu uma jovem universitária. O cerne da discussão era o desvio de Álvaro Cunhal e dos “incondicionais” relativamente às verdadeiras raízes marxistas-leninistas. Silva Graça pretendia demolir a velha guarda, a golpes de Lenine, e eu passei esse serão a carrear volumes das obras completas de Lenine, desde o local onde eles estavam (a outra extremidade da casa) até à sala onde se conversava. Desde as Teses de Abril, até aos debates nas instâncias do Partido Bolchevique, passando por discursos nos sovietes e nos sindicatos, tudo foi passado em revista. Nem telegramas escaparam à nossa devassa exegética! A ideia era que naquela época haveria lugar para uma diversidade de opiniões (dentro do leque estrito do ideário bolchevique, como é óbvio) que desaparecera depois, com o estalinismo de que o Cunhal seria o herdeiro.

O meu pai, que nunca andara na política activa, tinha um distanciamento sobre aquelas matérias, que iam além das nossas lucubrações. Aquando um congresso do PCP, em 1976, ter-lhe-ia dito, na euforia de um momento em que parecia que o PCP iria crescer em força, que o PCP estava condenado a ficar num gueto – bastava ver as pessoas que tinham sido escolhidas para os órgãos dirigentes do partido, que era o sinal evidente de que o partido se fechava sobre si próprio. Mais tarde, no início dos anos 80 (no fim da época Brejnev) ter-lhe-ia dito que, para além de ser uma potência económica de segunda ordem, a URSS corria o risco de se tornar igualmente uma potência militar de segunda ordem, pois estava a perder a batalha das novas tecnologias, especialmente a tecnologia da informação, e a sua organização social nunca permitiria ter qualquer êxito nessa área. Quando alguns amigos dele, do PCP, como Silva Graça e outros, se queixavam da rigidez política de diversos dirigentes, ele sempre dissera que o principal artífice da rigidez do partido era Álvaro Cunhal. Ora a relação desses comunistas, figuras de topo da política – parlamentares, vereadores, ex-ministros, etc. – com a figura de Álvaro Cunhal era exactamente a mesma que a relação dos ditadores de todas as épocas com os seus súbditos: estes pensam que a culpa do que está mal é sempre de alguns dirigentes demasiado zelosos, mas nunca dos ditadores que, quando se derem conta disso, corrigirão os erros. Várias vezes Silva Graça citou então essas conversas, que ele sempre tomara por “pessimismo”, ou vacilação pequeno-burguesa, mas que agora (fins dos anos 80) percebia que afinal tinham tido consistência.

Ilusões, como se provou, algum tempo depois, com a queda do muro de Berlim e a implosão da URSS. Os erros não estavam apenas naqueles dirigentes demasiado zelosos (aliás, alguns deles seriam anos depois expulsos do PCP); também não estavam apenas no alegado desvio estalinista de Álvaro Cunhal perante a pureza do marxismo-leninismo; também não o estariam na redução leninista do marxismo a uma metodologia de assalto ao poder e sua conservação por métodos totalitários, em nome da necessidade histórica da emancipação do proletariado. O erro é a herança do marxismo como utopia de uma sociedade perfeita e de uma vanguarda consciente que tem por missão conduzir o proletariado à redenção.

Ao arrogar-se como intérprete da vontade de um proletariado que já nem sequer existe, a necessidade de passar da utopia teórica à realidade da construção da utopia, aquela vanguarda consciente produz necessariamente um regime totalitário que massacra impiedosamente aqueles que não desejam ser redimidos, que não querem ser o “homem novo” que a utopia em construção pretende engendrar. Aconteceu assim sempre, em todos os regimes que se estabeleceram com aquele intuito. Portanto os propósitos do Silva Graça nunca teriam êxito, como não o tiverem os outros segmentos do PCP que sucessivamente se foram rebelando. Os renovadores só existem na imaginação dos próprios. Não há nada a renovar. Não é possível renovar algo que conduz necessariamente ao totalitarismo. É a própria ideia de base que está errada.

Na semana passada fui ao lançamento de um livro sobre o João Amaral, numa cerimónia que se realizou no salão nobre dos Paços do Concelho. Foi uma cerimónia limitada à família, amigos chegados da família, vereação e figuras do regime (PR, presidente da AR, líderes partidários, um ou outro renovador, etc.). O orador principal foi o Carlos Brito. O Carlos Brito é talvez, entre os elementos do PC que conheci e com os quais debati ideias, aquele que me pareceu ter uma maior preparação teórica, o que, aliás, não é um grande elogio. O seu discurso foi vazio e lamechas. E foi-o porque ele não tinha nada a oferecer de substantivo. Apenas recordações, mais nada.

Já não há renovadores. Apenas pessoas que se reúnem nestas cerimónias e depois vão dando uns dedos de conversa, aqui e ali, revendo outras pessoas que já não viam há anos. Muitos beijos, apertos de mão e conversas banais. Apenas amigos.

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dezembro 13, 2005

Sondagem Insurgente

Verifiquei que os Insurgentes lançaram uma sondagem sobre quais eram os melhores blogs de direita e de esquerda em 2005. Nomearam 5 blogs para cada um daqueles sectores. Com a gentileza que os caracteriza, não se incluíram nas nomeações. Foi óptimo para os outros, porque eles seriam fortes candidatos à vitória. E levaram a gentileza ao cúmulo de me incluírem na lista dos nomeados. Estar incluída naquela lista já é uma vitória bem saborosa. É o máximo que posso aspirar, porque os meus concorrentes são bloggers de alta competição.
Aos Insurgentes, os meus mais sinceros agradecimentos.

Uma nota: Aqueles sectores correspondem de facto a opções políticas e económicas bem diferentes. Todavia, designá-los por direita e esquerda é aplicar nomes que nasceram nos fins do século XVIII a realidades bem diversas. Mas à falta de melhor ... segue-se a tradição ... embora a tradição também já não seja o que era.

Publicado por Joana às 11:27 PM | Comentários (49) | TrackBack

SCUT’s, OTA e TGV’s

O Relatório do Tribunal de Contas relativamente às SCUT’s é devastador. As SCUT’s irão custar cerca de 20% mais do que foi contratualizado. A diferença é o equivalente a um aeroporto da Ota! O erro silencioso cometido pelas entidades públicas na gestão daquele negócio é igual ao custo da Ota, que tanto tem empolgado a comunicação social e a blogosfera. Mas esse é o erro cometido na gestão do contrato, após adjudicação. Há outro erro. O Estado aceitou que o concessionário tivesse direito a uma TIR de 13% (em termos nominais), o que corresponderá a uma TIR de 10,5% a preços constantes, quando, para um projecto como estes, em que o privado não tem, praticamente, riscos nenhuns, uma taxa de 7,5% a 8% (real) seria negociável. Assim sendo, o Estado (nós, os contribuintes) irá pagar um encargo adicional de cerca de 2,5% ao ano, relativamente ao que seria um preço de equilíbrio num mercado eficiente, onde o comprador e o vendedor tivessem ambos racionalidade económica.

Estabelecer parcerias público-privadas para construir auto-estradas não é, em si, um erro. Pode ser um óptimo negócio, desde que bem conduzido. Que essas auto-estradas tenham portagens virtuais também não constitui, em si, um erro, desde que o OE o possa fazer, numa perspectiva de um planeamento financeiro a 25 ou 30 anos. Todavia, quando se contrata uma obra com um empreiteiro, ou um concessionário (que pode incluir, para além do(s) empreiteiro(s), uma entidade financiadora, uma entidade exploradora, etc.) deve ter-se um clausulado seguro, não existirem indefinições sobre o programa e sobre os projectos de construção. Todas as alterações de programa e dos projectos geram custos adicionais aos empreiteiros (na construção propriamente dita e nas imobilizações do estaleiro) e estes sabem fazer-se ressarcir, pesadamente, junto do dono da obra.

Todo o processo de lançamento das SCUT’s foi de uma absoluta irresponsabilidade. As SCUT’s foram lançadas sem os estudos de impacte ambiental estarem, em alguns casos, concluídos e/ou aprovados, sujeitas portanto a alterações de traçado consoante as conclusões finais dos estudos, depois de aprovados. Foram lançadas sem muitas das expropriações estarem feitas, o que é um suicídio, porque, em caso de desacordo, a posse administrativa não é pacífica, haverá demoras, custos adicionais, escolhas difíceis entre parar uma obra ou pagar um valor excessivo por um terreno em litígio, etc..

O estabelecimento de parcerias público-privadas (PPP) em Project Finance (PFI) é um negócio que requer muitas cautelas e muita competência. De um lado está o Estado e do outro os concorrentes à concessão, bem municiados em advogados e economistas experientes, agrupados em consórcios que incluem bancos, grandes empreiteiros e entidades exploradoras. Perante este arsenal, o Estado contrapõe técnicos e advogados inexperientes, que são substituídos ao sabor das mudanças dos titulares das pastas (mesmo pertencendo ao mesmo partido), e um enorme desconhecimento dos dossiers.

Face a este descalabro, é impossível culpar A ou B. É todo o sistema que está errado. A responsabilidade cabe inteirinha ao Governo sob cuja égide foram negociados os contratos. Não cabe aos técnicos inexperientes que foram logrados por gente com grande traquejo nestas matérias. O Governo é que é o responsável pelo bom funcionamento das instituições e pela correcta afectação de recursos.

Este descalabro remete-nos para a questão do novo aeroporto e do TGV. O que aconteceu com as SCUT’s, não pode acontecer novamente. Mas o que aconteceu foi porque o sistema estava, e está, errado. Pode voltar a acontecer e eu já chamei aqui, por diversas vezes, a atenção para isso.

Referindo-me agora ao TGV Lisboa-Porto, acho repugnante fazê-lo sem serem apuradas as responsabilidades do que aconteceu com o projecto da “Modernização da Linha do Norte” onde se gastaram balúrdios sem qualquer melhoria significativa, relativamente à situação anterior. Os estudos foram começados em 1991 (a linha foi dividida em 3 troços e cada um adjudicado a um consórcio) e os projectistas levavam as mãos à cabeça com a incapacidade em obter decisões da CP sobre questões que lhe eram colocadas. Lembro-me, na altura, de um técnico de um dos consórcios dizer que tentara explicar aos técnicos da CP que não era possível haver passagens de nível e dera o seguinte exemplo:

- Você olha para um dos lados, e não vê nada, mas uma composição, a 1 km de distância, é um ponto imperceptível. Depois olha para o outro e também nada vê. Atravessa. Passaram apenas 15 segundos, o tempo suficiente para ter um Alfa em cima de si.

E o consórcio a que me estou a referir (troço Entroncamento-Pampilhosa) era liderado por uma empresa francesa do grupo SNCF, especialista reconhecida em matéria de caminhos de ferro.

Depois, na fase da construção, que começou em 1995, cometeram-se muitos erros, alguns devidos a omissões ou decisões erradas dos projectos, induzidas pela total incompetência da CP em gerir o processo. Desde a ocorrência de assentamentos (por falta de estudos de base suficientes de Geotecnia e Mecânica dos Solos) – o que obriga as composições a diminuírem a velocidade, pelo facto da linha não estar nas condições adequadas à velocidade do Alfa – até à existência de estações onde a drenagem da água dos terrenos vizinhos se faz para dentro dela – o que impede o Alfa, que é mais baixo que as composições tradicionais, de prosseguir viagem em caso de elevada precipitação – aconteceu de tudo. E, claro, a manutenção de numerosas passagens de nível e a inexistência, na quase totalidade das estações, de travessias para os peões atingirem a outra plataforma, sem ser através da linha férrea, etc..

Com projectos coxos, com um Dono da Obra totalmente incompetente, a Fiscalização está de mãos atadas, mesmo no caso de ser competente. Não cabe à fiscalização emendar os projectos; não cabe à fiscalização tomar decisões em nome do cliente. Cabe-lhe assegurar que o projecto se cumpre, que o andamento da obra está correr conforme o planeamento aprovado, que as facturas estão conformes, verificando se correspondem aos trabalhos realizados, cabe lembrar ao Dono da Obra que tem que responder às questões postas pelo empreiteiro, nos prazos devidos, e tomar as decisões necessárias.

Como já escrevi aqui, a linha Lisboa-Madrid é estruturante (com o ramal para Sines). A linha Lisboa-Porto talvez o fosse se não houvesse a sombra da “Modernização da Linha do Norte”. Com o que aconteceu, fica-se com a sensação que o crime compensa – o TGV Lisboa-Porto vai camuflar todos os disparates que a incompetência da nossa administração cometeu ali.

Irá camuflar … se não repetir os mesmos erros.

É evidente que Portugal não pode deixar de fazer obras complexas, apenas porque as anteriores as fez de forma desastrosa. Nesse entendimento, a solução seria fechar o país. O que deve é fazê-las de forma adequada.

Publicado por Joana às 08:43 PM | Comentários (63) | TrackBack

dezembro 12, 2005

A Ana e a Márcia

Ou uma história triste de um sector com nichos de mercado diferentes

Não foi por ter lido o livro da Maria Filomena Mónica este fim-de-semana. Nem pensem nisso! Honni soit qui mal y pense! Mas, por razões enigmáticas e obscuras, que se perdem nas profundezas, porventura perversas, do meu inconsciente, lembrei-me de uma história simultaneamente triste e de sucesso, que vou contar em seguida. Advirto que esta história não é adequada a espíritos sensíveis, nem a mentes mais preocupadas com a essência da totalidade absoluta, do que com a existência insidiosa dos factos. Assim sendo, não me responsabilizo pelas consequências da sua leitura:

Duas prostitutas encontram-se ao fim de alguns anos. Têm a mesma idade, mas que diferença … A Ana estava viçosa, com o rosto indiferente à marca dos anos, bem vestida, com um vestido em tule bordado e seda, chiquérrimo, e umas sandálias em veludo com atilho e um salto bem alto. A outra, a Márcia, tinha o rosto acabado, sem chama, desbotado, envergando um traje barato, sem gosto, cuja única atracção, vocacionada para a libido dos camionistas de longo curso, eram as suas dimensões exíguas.

A Márcia estava estupefacta:
- Ana, filha … estás um espanto! Como consegues manter-te assim?
- Márcia, há muito que abandonei o passeio. Só o fiz durante poucos meses. Agora tenho outro tipo de clientela. Estável.
- Mas que tipo de clientela?
- Intelectuais.
- Mas que é que esses intelectuais fazem?
- Reúnem-se numa tertúlia e conversam sobre coisas deles. Discutem acerca do que disseram uns tipos estrangeiros que eu não conheço e lêem coisas em voz alta. É variado. Uns lêem poesia e coisas que eles dizem que são culturais; há um que anda sempre a explicar que é preciso desconstruir o real e mais coisas, mas se queres que te diga ... não sei como, pois não consegue mexer uma palha. Não o vejo capaz de andar com uma picareta nas unhas. Ah! e também lêem coisas dos jornais … Lêem às vezes uma mixórdia que eu não percebo nada, ao que parece de um tal Coelho no Prado. Ultimamente não têm lido. Talvez por estarmos na época da caça e ele ter sido abatido.
- Mas o que é que tu fazes? Apenas ouves essas coisas?
- Não, eu ando por ali e vou lambendo-lhes os pénis.
A Márcia teve um momento de incompreensão, o que é normal. A baixa qualificação da mão-de-obra portuguesa atinge todas as nossas actividades, mesmo os sectores semi-abertos ao exterior e com grande potencial, como este. Mas ela queria instruir-se, qualificar-se, abraçar o plano tecnológico, e perguntou:
- Pénis? Que é isso?
A Ana esteve uns segundos hesitante, e depois explicou:
- Ó filha, deixa ver se te consigo explicar…. Pénis é uma coisa que os intelectuais têm … é difícil de dizer … deixa ver ... olha ... é uma coisa assim a modos como o ca**lho … mas flácida.


Momento de reflexão:
A Ana não foi suficientemente precisa. Em rigor deveria ter dito que a tarefa dela era a de desconstruir sexualidades heteronormativas, o que evitaria que a conversa descambasse para uma semiótica redutora e pouco abrangente.

Publicado por Joana às 05:05 PM | Comentários (90) | TrackBack

dezembro 11, 2005

Estado Social Irlandês

O OE 2006 da Irlanda contém um importante reforço no financiamento dos benefícios sociais, especialmente no que se refere às crianças. As medidas contidas no programa Putting Children First são ilustrativas desta matéria. Muitos tecem rasgados elogios à Irlanda pelo seu empenho na melhoria das condições sociais. Esquecem todavia como foi possível chegar a esta situação. A Irlanda só começou a "dividir o bolo" com menos parcimónia, quando o bolo cresceu o suficiente para o poder fazer sem comprometer o seu desenvolvimento.

Em 1980, a Irlanda (PIB = 6.875 US$) partilhava com a Espanha, Grécia e Portugal (PIB = 5.110 US$) a cauda dos países europeus. Em 2005, segundo as previsões actuais, a Irlanda é o país mais rico da UE (PIB = 40 mil US$), se descontarmos o caso marginal do Luxemburgo, enquanto Portugal, apesar do crescimento entre 1985 e 1993, é o mais pobre do grupo dos 15 (PIB = 19,5 mil US$). A diferença percentual entre o PIB da Irlanda e o de Portugal manteve-se praticamente constante entre 1980 e 1995 (passou de 34% para 36%), mas daí para cá divergiu, e hoje o seu PIB é 105% superior ao nosso, ou seja mais do dobro!

A demagogia de corporações, sindicatos e a maioria da classe política assenta que se temos um bolo, então deveremos dividi-lo por todos. Ora o que a história económica mostra é que o desenvolvimento económico só é possível onde haja uma acumulação prévia. Quando se divide o bolo, tem que se deixar, de fora da divisão, o suficiente para permitir que cresça. O bolo tem que ser repartido com a parcimónia bastante para que ele cresça e as fatias que tiramos não sejam tão generosas que comprometam o crescimento futuro. Quanto maior for o bolo, mais as fatias, mesmo tiradas com parcimónia, serão maiores. Ou seja, a nossa parcimónia no ano zero, pode tornar-se o nosso bem-estar alguns anos depois, mesmo que o bolo continue a ser dividido com parcimónia.

A Irlanda, após 1985, apostou na política de dividir o bolo com muita parcimónia, pondo o país a uma dieta rigorosa e diminuindo a despesa pública de forma drástica. E hoje é elogiada pela sua política social. Os demagogos, que apontam essa política como um exemplo, esquecem que ela só foi possível porque os dinheiros públicos foram geridos com contenção e bom senso.

Ver, por exemplo, "Sísifo e o Estado 3"

Publicado por Joana às 09:28 PM | Comentários (44) | TrackBack

O Maelstrom Económico e Social

A nossa economia continua na sua corrida para o abismo. O que assusta é a banalização da catástrofe. Parece haver uma resignação geral do país perante a tragédia que atravessamos e para a qual não se vislumbra qualquer saída, para além dos paliativos que apenas atenuam alguns sintomas e eventualmente adiam um pouco o desfecho fatal. O Banco de Portugal continua a rever em baixa as previsões sobre os nossos principais indicadores macroeconómicos. A previsão actual para o crescimento do PIB já é de 0,2%, mas tudo ainda depende do comportamento deste último trimestre, face ao trimestre homólogo do ano anterior. O Governo, impávido, mantém as metas.

A queda do PIB foi apesar de tudo atenuada por um pequeno crescimento da procura externa líquida, pois as exportações caíram ligeiramente menos que as importações. As importações são muito sensíveis ao comportamento das famílias, a nível do consumo privado, e ao comportamento das empresas a nível do investimento, e ambos caíram. Senão a situação seria pior no que respeita ao PIB.

Embora acredite que haja gente nos círculos governamentais preocupada com a contínua degradação da nossa economia, nomeadamente no Ministério das Finanças, essa preocupação não é visível publicamente. As reformas a nível da Despesa Pública, correctas do ponto de vista da equidade social (igualização dos sistemas de reforma do sector público e do sector privado, por exemplo), só darão alguns frutos, e muito insuficientes, daqui a alguns anos. Em contrapartida a ferocidade em ir aos bolsos dos cidadãos é uma constante da actuação governativa. Um trabalhador independente que receba 500€ mensais, em regime de recibo verde, paga agora 30% daquele valor para a Segurança Social, o que é um escândalo. E se receber menos, paga uma percentagem maior, porque há uma quotização mínima.

O Governo finge esquecer, ou alguns nem sequer sabem, que quanto mais se penaliza o trabalho privado, mais a economia se estagna e menos dinheiro consegue angariar para sustentar o Moloch público, a menos que se inventem novas formas de sangrar os contribuintes. Mas este é um círculo vicioso, uma espiral descendente, que leva ao empobrecimento colectivo.

No meio deste panorama, o Governo continua a manter, imperturbável, as previsões para 2006. A previsão do PIB para 2006 baseava-se numa previsão demasiado optimista do comportamento das exportações. A variação que se constatou nos últimos 4 ou 5 meses, no que respeita às exportações, mostrou que aquela previsão deixara de ser optimista e passara a ser inverosímil. Assim sendo, a previsão do crescimento do PIB de 1,1% em 2006 parece pouco credível. Mas um crescimento do PIB abaixo dos 2,5% a 3% significa aumento da taxa de desemprego. Ora as previsões sobre o aumento da taxa do desemprego em 2006 mantêm-se, apesar das previsões sobre a taxa do desemprego em 2005 terem sido infirmadas. Portanto, as previsões sobre a taxa do desemprego em 2006 nem contêm o agravamento do desemprego em 2005, face ao previsto no OE rectificativo, nem o efeito da quase estagnação do PIB em 2006.

Vivemos num sistema de morte lenta. A cura exige uma cirurgia profunda e penosa, com um pós-operatório difícil. Mas quanto mais tempo passa, mais o estado do doente se agrava e mais profunda terá de ser a cirurgia e difícil e lento o pós-operatório.

Talvez quando o doente entrar em coma seja possível levá-lo para a sala de operações.

Publicado por Joana às 06:58 PM | Comentários (55) | TrackBack

dezembro 07, 2005

A Alta Velocidade da Ignorância

A forma como a questão do TGV está a ser ventilada releva da mais completa ignorância. Os Caminhos de Ferro são uma infra-estrutura que, desde há um século, não é financeiramente viável. Ponto final. Têm todavia benefícios para a comunidade, não contabilizáveis na óptica financeira do promotor privado, cujo montante os podem tornar viáveis numa óptica de custo-benefício para toda a colectividade. Portanto, quando se fala em TGV, ou no Metro do Porto, ou do que quer que seja nesta matéria, há uma coisa que temos que meter na cabeça: Parte dos custos financeiros terá que ser a comunidade a pagar através dos impostos. Aliás, este tipo de infra-estruturas insere-se no conjunto de bens públicos citados explicitamente por Adam Smith, economistas clássicos, neoclássicos e por aí fora ..., que deveriam ser objecto de investimento por parte do Estado, visto os privados não o poderem fazer com retorno financeiro. Outra forma de abordagem releva de um malthusianismo económico insensato e estéril que, além do mais metamorfoseia o pensamento económico, que se pretenda seja vivo e capaz de conviver com a realidade, em mitos. O pensamento liberal não se pode transformar num marxismo às avessas. Vive da realidade e para ela, não de mitos ou chavões.

As infraestruturas dos transportes rodoviários são, na generalidade, subsidiadas pelo Estado ou Autarquias (excepto algumas auto-estradas que têm alternativas rodoviárias). Nestas condições, parece desejável, para que o mercado dos transportes não fique distorcido, que, tal como para as vias rodoviárias, o Estado e/ou as colectividades locais tomem a seu cargo o conjunto de infraestruturas (investimentos, manutenção e renovação) necessárias à exploração de uma concessão ferroviária. Na realidade, o mercado dos serviços de transporte só não estará distorcido se os custos e benefícios sociais para cada um dos operadores tiverem correspondência nos respectivos custos e preços de mercado.

Paralelamente, o interesse de um modo de transporte regular e rápido provem do facto de ele permitir ao utente deslocar-se utilizando um transporte mais amigo do ambiente e transportar grandes cargas de maneira mais económica, no que respeita ao custo de exploração. Isto confirma o interesse em subvencionar este tipo de transporte, por forma a encorajar esses movimentos. Esse desiderato é muitas vezes conseguido pela acção directa sobre as tarifas, sujeitas a um tecto com um nível suportável pelo utente. Mas esta medida compromete o ajustamento das contas de exploração pois a cobertura dos custos económicos, a longo prazo, pelas receitas não fica assegurada. É portanto normal restituir ao agente transportador as receitas de que ele ficou privado pelas insuficiências das tarifas impostas. Esta normalização é, na verdade, uma subvenção atribuída indirectamente à comunidade (melhor ambiente, maior mobilidade, desenvolvimento económico induzido, etc.) através do transportador. Esta subvenção pode ser deixada ao encargo do Estado ou das colectividades locais que tirem vantagem da situação assim descrita.

No caso do ramal para Sines, ao aproveitar a bitola europeia do TGV, cria-se um elemento motor de desenvolvimento económico potenciado pela maior actividade portuária: estimulação da actividade comercial, extensão da urbanização, mais-valia dos terrenos, desenvolvimento industrial, etc. O terminal intermodal de Sines tem pontos fortes que são de realçar: Um porto de águas profundas; potencial de desenvolvimento em termos de área e de opções de actuação; acessibilidades rodoviárias razoáveis; existência de infra-estruturas básicas; etc.

Em contrapartida têm sido cometidos muitos erros ou omissões que fragilizam Sines como plataforma intermodal à escala europeia: Falta uma estratégia de marketing e postura comercial, ou o que tem sido feito não consistência; mantém-se uma imagem de Sines como “elefante branco”; não existência de um master-plan que clarifique as possibilidades de intervenção; ausência de empresas complementares e de serviços/estruturas de apoio à industria e, acima de tudo, a má qualidade das acessibilidades ferroviárias e a consequente descentralidade face ao mercado nacional e europeu que é a principal indutora das restantes fragilidades.

Ou seja, o TGV Lisboa-Badajoz, desde que acompanhado com um ramal para Sines, com a bitola europeia, mas sem a necessidade do rigor construtivo da AV, poderá ser uma alavanca poderosa do desenvolvimento do Porto de Sines, transformando-o num hub para os navios de grande porte que assim evitariam demandar os portos do norte da Europa, cujo tráfego é demasiado intenso. Mas para que isso aconteça, as mercadorias têm que ter escoamento assegurado entre Sines e o centro e norte da Europa.

Portanto, o TGV Lisboa-Badajoz (com o ramal para Sines) é um investimento estruturante para o nosso desenvolvimento e não me incomoda nada que as infraestruturas respectivas sejam custeadas pelo Estado e apenas o material circulante objecto de uma concessão parcial ou totalmente paga pelo concessionário. Isto, desde que este projecto seja concebido com cabeça, tronco e membros.

A economia do Bem Estar não lida apenas com fluxos financeiros dos agentes económicos directamente envolvidos na transacção. Lida igualmente com fluxos financeiros induzidos no restante tecido económico por aquela transacção e com a melhoria da qualidade de vida eventualmente proporcionada na sequência dela. Nas análises custo-benefício essa melhoria é avaliada e valorizada em termos monetários. Não contar com estes efeitos é falsear, mesmo que não se dê conta disso, o funcionamento do mercado, originando equilíbrios fora do óptimo do Bem-estar social.

Quanto à linha TGV Lisboa-Porto, a minha posição é diversa e conhecida de posts anteriores. Voltarei a ela numa futura oportunidade.

Publicado por Joana às 08:56 PM | Comentários (117) | TrackBack

dezembro 06, 2005

Sábias Profundidades

A Universidade de Aveiro, a Direcção Regional de Educação do Centro, 5778 alunos do 9.º ano e 935 do 12.º, 148 escolas e dezenas de eméritos investigadores desenvolveram um projecto grandioso e exaltante – o Projecto Matemática Ensino. Finalmente o país ia saber as razões imediatas, mediatas, colaterais, atávicas, climáticas, orográficas, rácicas, quiçá afonsinas, da nossa dificuldade com a matemática. O país sentia os batimentos cardíacos acelerarem-se e a pressão sanguínea subir, num frémito de angústia e esperança, enquanto aquela sábia comissão e os briosos alunos trabalhavam com afã e patriotismo para desvendar, perante a nação, o mistério mais obscuro que a envolve, desde a localização da batalha de Ourique e da obstinada perseverança com que a Despesa cresce, por mais cortes que se façam.

Foram concebidos, elaborados e aplicados testes de diagnósticos – muitos milhares. Os alunos deixaram-se trabalhar e interagir com a ductilidade da plasticina. Foram pundonorosos e destemidos – sabiam que a Pátria tinha os olhos postos neles. Os investigadores desenvolveram uma intensa e esclarecida actividade. A DREC observava, esperançada, cientistas e reagentes. A Universidade de Aveiro tutelava, cientificamente, a arrojada investigação. Nada foi deixado ao acaso.

Finalmente a comissão de investigadores ia apresentar os resultados: O país susteve a respiração alvoroçado, a MM Guedes, de emoção, conteve a boca fechada 1 minuto, até Mário Soares, comovido, esqueceu Cavaco por longos e penosos instantes. E a comissão sentenciou:

«O ensino da Matemática em Portugal é excessivamente "mecanizado" e não leva os alunos a pensar»

Oh que sábia reflexão, que escrupulosa ciência, que madura inteligência, que sagaz entendimento, que conclusão luminosa! Portugal ficou perplexo perante a profundidade do juízo... «O ensino da Matemática em Portugal é excessivamente "mecanizado" e não leva os alunos a pensar».

Teria ficado menos perplexo se tivesse lido, para não ir mais longe, este blog, alguns posts e numerosos comentários. E teria poupado dinheiro. E evitaria criar agora um “observatório permanente” para dar emprego a mais funcionários públicos para observarem, em permanência, a mecanização matemática dos alunos, o nível de óleo das engrenagens desses maquinismos e o desgaste dos respectivos rolamentos.

Publicado por Joana às 06:49 PM | Comentários (69) | TrackBack

dezembro 05, 2005

A Ota novamente

Via Impertinências, li que “em entrevista a O Independente, o doutor Vítor Gonçalves Lopes do banco Efisa ... nos revela que o projecto Ota tem previstos para contingências 193 milhões de euros, ou seja uns astronómicos 7 por cento” Estas declarações são preocupantes pelo seguinte:

Há critérios que definem as margens de contingência, e que são internacionalmente aceites, embora variando ligeiramente conforme o tipo de projecto. Assim, quando o estudo está na fase de existir apenas um Plot-Plan com um esboço da localização da instalação e dos seus principais componentes, a margem de contingência anda pelos 20% a 25%, ou mesmo mais, o que deve corresponder, mais ou menos, ao nosso Programa base. As estimativas de custos são feitas através da lista provisória de equipamentos, das dimensões muito gerais da parte civil, e baseia-se em rácios. Julgo que é esta a fase em que a Ota está. Depois, à medida que se progride na elaboração dos estudos – Estudo prévio, Anteprojecto e Projecto de execução – a margem de contingência vai diminuindo até se fixar num número cerca de 5% quando se tem um projecto “Bom para Construção”, na nomenclatura internacional, e que em teoria deveria corresponder ao nosso Projecto de execução, mas normalmente está mais elaborado, pois tem menos erros e omissões.

Neste entendimento, a margem de 7%, a ser verdade o que vem no Independente, é totalmente insuficiente e pode conduzir a um completo desastre financeiro do projecto, com custos muito avultados para o país. Mais do que andar com discussões frequentemente estéreis, que é o campo onde Mário Lino, um péssimo estratega, mas muito matreiro para a pequena manobra táctica, tem arrastado os que estavam contra a Ota, é este o ponto fulcral a que devemos estar atentos. A questão financeira e a questão dos acessos rápidos a Lisboa deve ser o objectivo dos que querem que Portugal não embarque numa obra faraónica.

Escrevi há dias que «O risco financeiro deste projecto é muito elevado, não apenas pela fiabilidade das previsões de tráfego, mas pelos imprevistos na construção. Portugal tem uma triste experiência nesta matéria e os governos não percebem as causas» Esta é a questão central. Centrar a discussão na localização é um erro porque até agora ninguém apresentou alternativas viáveis e não fazer nada não é alternativa. Centrar a discussão no facto da localização ser na Ota, é fazer o jogo do Mário Lino.

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (33) | TrackBack

Ai Macedo, vê lá onde te metes!

O fisco mostra-se agora preocupado com a publicação da lista dos alegados 800 mil devedores ao fisco que, diz, terá de ser efectuada com todo o cuidado. Descobriu agora que dela constava o nome do dr. Paulo Macedo, o director-geral dos Impostos, pois no fim de 2004 este tinha em execução fiscal a falta de pagamento de uma contribuição autárquica. Eu julgo que esta deveria ser a preocupação menor do Dr. Macedo. Contei aqui, há tempos, um caso passado com um familiar meu. Por outras indicações que tenho tido, deve haver dezenas de milhares de erros no preenchimento ou alteração das bases de dados dos sistemas informáticos do fisco, que deram origem a notas de liquidação adicionais, a notas de discriminação de juros de mora e a notas de cobranças coercivas completamente falsas.

Assim sendo, entre aqueles alegados 800 mil devedores, algumas dezenas de milhares apenas o são na imaginação virtual dos discos rígidos dos computadores das finanças. Aqueles documentos enviados pelas finanças têm todos impresso o nome e a assinatura do dr. Paulo Macedo. Enquanto aquelas asneiras andarem na intimidade do contribuinte e da respectiva repartição das Finanças, tudo bem. Mas quando forem publicadas listas de devedores, onde vários milhares são devedores forjados por erros das Finanças, então o caso fia mais fino. O dr. Paulo Macedo passará a ser o responsável directo (visto os documentos virem em nome dele) pelo ataque à honorabilidade de alguns milhares de contribuintes. E pode ser objecto de muitas centenas, senão milhares de queixas crime.

Ele e, a seguir, os Chefes de Repartição e os agentes administrativos directamente envolvidos nos casos. As Finanças têm o péssimo hábito de, quando se lhe enviam cartas registadas com aviso de recepção com a documentação provando que houve erro, a assinarem tranquilamente o documento de registo e a ignorarem o conteúdo da carta, ou mesmo deitá-lo no ecoponto mais próximo, e deixarem que o rolo compressor continue a avançar e a enviar notas assinadas sempre pelo dr. Paulo Macedo. Ou seja, objectivamente, nestes casos, não é apenas uma ofensa à honorabilidade de contribuintes, mas uma ofensa baseada em documentos forjados, cuja falsidade era, nos termos legais, do conhecimento das Finanças. Assim sendo, um bom advogado deve poder extrair daí a acusação adicional de dolo.

Julgo que a omissão do pagamento de uma CA será o menor dos problemas do dr. Paulo Macedo. E outro, mais grave será o descrédito que, por causa de umas dezenas de milhares de erros, o sistema ser desacreditado publicamente e as muitas centenas de milhares de devedores efectivos se ficarem a rir.

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dezembro 04, 2005

As Carpideiras

Várias páginas do Público de hoje são dedicadas ao desemprego: Muitos diagnósticos, e nós nem somos maus nos diagnósticos, apenas nunca conseguimos distinguir o essencial do acessório, o que facilita que nunca se passe à fase da cura; muitos relatos de casos individuais dramáticos ... muita parra e pouca uva. Sabe-se muita coisa: sabe-se que a nossa mão de obra é pouco qualificada; sabe-se que o nosso empresariado é pouco qualificado; sabe-se que o Estado gere pessimamente as empresas que tutela; sabe-se que a administração pública central e local é extraordinariamente ineficiente. Depois olhamos uns para os outros, apresentamos mutuamente os nossos pêsames, e carpimos as nossas desgraças. E carpimos tanto mais alto, quanto menos capazes nos sentimos de resolver este problema.

A nossa taxa de desemprego é de 7,7%, no fim do 3º trimestre. Segundo o jornal, o desemprego cresce ao ritmo médio diário de 330 pessoas. Se continuar assim, e admitindo que são dias úteis a base de cálculo, a taxa de desemprego no fim do ano será de 8% a 8,1%, exactamente o que eu havia escrito aqui há duas semanas e meia(Quanto ao futuro, em face das novas previsões sobre o PIB para 2005, não custa a admitir que, no fim deste ano, haverá 8% a 8,1% de desempregados.). Esta coincidência indicia que, provavelmente, será esta a taxa de desemprego com que teremos de conviver no fim deste ano.

Todavia, esta taxa de desemprego contabiliza como desempregado aquele que está activamente à procura de emprego. Ora sucede que, em épocas de crise, há uma população potencialmente activa, não empregada e que desistiu de procurar emprego. Oficialmente, essa população inactiva não está desempregada, e isso sucede em Portugal e nos outros países da UE. Portanto, em tempos de crise, o número de desempregados reais é superior àquele que é dado pela taxa de desemprego. Em contrapartida, em épocas de boom, muitos dos que haviam desistido de procurar emprego regressam à procura activa de emprego, e a diminuição da taxa de desemprego não dá totalmente conta da melhoria do nível de emprego.

Este é um fenómeno a ter em conta e é importante para compreender as estatísticas regionais. A taxa de desemprego na região de Lisboa é superior à da região Norte. Ora a região Norte tem sido fustigada por elevado desemprego resultante da falência ou deslocalização das empresas de baixo índice de qualificação. Aparentemente deveria haver lá maior desemprego. E provavelmente há, mas está obscurecido pelo fenómeno explicado atrás. É provável que o regime de propriedade do Norte favoreça uma situação em que parte daqueles que têm caído no desemprego não procurem activamente o emprego.

Regressando à questão central, não é possível resolver a questão do desemprego num futuro próximo, quer se tomem as medidas adequadas ou não. Em face do impasse da situação interna, face ao peso da baixa qualificação, quer entre os empregados, quer entre os empregadores, as medidas de combate ao desemprego passam por criar um bom ambiente às empresas existentes de elevada qualificação e atrair investimento estrangeiro dirigido para as qualificações elevadas ou, no mínimo, acima da média. A instalação em Portugal de empresas de elevada qualificação e métodos de gestão modernos, além de induzir emprego noutras empresas, existentes ou a criar, serve de estímulo para que em Portugal a classe empresarial ganhe mais qualificação quer a que exista, quer a que venha a aparecer. Ou seja, ao promover o investimento estrangeiro qualificado, promove-se a qualificação nacional, quer entre empregados, quer entre empregadores.

Sempre fui adepta que é na água que se aprende a nadar. Há certamente aspectos da qualificação laboral que exigem cursos específicos. Mas a requalificação permanente faz-se no trabalho, em interacção com os colegas, solucionando os problemas. Esta qualificação é a mais importante, depois das habilitações académicas. Basta ver que a maioria dos informáticos de sucesso aprendeu por si própria. Uma parte substancial da inovação e qualificação laborais resultam dos estímulos dos próprios. Se as pessoas se deixam cristalizar, não há cursos que resolvam a sua baixa qualificação. Um curso de formação apenas abre pistas e dá, se for bem apreendido, a base. É apenas o pontapé de saída. A partir daí a continuação da formação é com o próprio.

Portanto, é preciso: 1) criar um ambiente propício ao aparecimento de novas empresas, principalmente empresas estrangeiras de elevada qualificação; 2) fazer com que os trabalhadores se sintam na necessidade de se requalificarem permanentemente.

Ora para resolver a questão (1) há que reformar completamente a administração pública, pôr a justiça a funcionar, simplificar e desburocratizar os procedimentos administrativos e diminuir a carga fiscal sobre as empresas e sobre o trabalho. A diminuição da carga fiscal só é possível com a diminuição do peso da Despesa Pública e para diminuir este ónus há que reestruturar todo o funcionamento do sector público de forma a diminuir os seus efectivos e os gastos desnecessários com consumíveis, materiais, equipamentos, etc. No fundo, o que se faz quando se reestrutura e saneia uma empresa privada. Ora esta política, numa primeira fase vai promover mais desemprego (público) que só pouco a pouco vai ser contrabalançado pelo aumento do emprego no sector privado. Numa primeira fase, e há vários exemplos lá fora, a velocidade de destruição de emprego (público) é superior à velocidade de criação de emprego (privado).

Para resolver a questão (2) há que flexibilizar o mercado de emprego, flexibilização que também é necessária, aliás, para atrair investimento estrangeiro. Com empregos para toda a vida, pese embora haver sempre gente com curiosidade ou brio para aprender, não é possível haver inovação como regra geral.

Portanto, a questão do emprego passa prioritariamente pela reforma drástica do sector público. Sem essa reforma, tudo o resto não passa de paliativos que poderão ter efeitos pontuais, aqui e ali, mas que não resolvem o problema.

Assim sendo haverá sempre, num futuro próximo, um aumento da taxa de desemprego, quer se tomem as medidas adequadas ou não.

Todavia há destruição de emprego que é criativa – ao diminuir o peso do sector público desonera-se a actividade económica e criam-se incentivos ao aumento do emprego privado. Há manutenção de emprego que é destrutiva – ao manter os níveis de emprego público e a ineficiência dos serviços, onera-se a actividade dos agentes económicos, faz-se com que o produto estagne, ou mesmo diminua, aumenta-se o desemprego privado, diminui-se a base da incidência fiscal, aumentam-se os impostos para pagar o sector público e entra-se numa espiral de regressão que conduz a maior desemprego, à miséria e à falência do Estado, se ninguém conseguir inverter esta marcha para o abismo.

E perante o medo em tomar medidas, face aos interesses instalados que vivem na ilusão que conseguem manter esse estatuto à custa de um país cada vez mais exangue, resta-nos ver políticos e jornais a carpirem as mágoas pela situação actual.

A escolha é entre carpir o nosso destino fatal, ou tomar o destino nas nossas mãos e tirar o país do atoleiro em que está.

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dezembro 02, 2005

Austerlitz

Austerlitz foi, provavelmente, o maior êxito militar de Napoleão, não apenas a batalha (que ocorreu faz hoje 200 anos), mas toda a campanha. O génio que desenvolveu nessa campanha pode ser comparado à da primeira campanha de Itália, mas foi mais sólido e mais abrangente. Napoleão tinha o “Grande Exército” estacionado à volta de Boulogne, preparado para invadir a Grã-Bretanha, à espera da esquadra de Villeneuve e de um dia de tranquilidade absoluta, sem tempestade, sobre a Mancha. Em meados de Agosto, Napoleão recebeu duas notícias que o fizeram mudar de planos – a esquadra de Villeneuve atrasara-se e nunca chegaria em tempo útil à zona de Boulogne (aliás, seria 2 meses depois desfeita em Trafalgar) e as tropas russas avançavam para se unirem às austríacas. Pitt salvara a Inglaterra ao subsidiar, a fundo perdido, a mobilização russa e a austríaca. A Prússia e Nápoles também estavam na lista de pagamentos britânica.

Sem vacilar, como era seu hábito, Napoleão mudou imediatamente de planos – se não estou em Londres dentro de 15 dias, estarei em Viena em meados de Novembro – teria dito ao seu estado-maior. Em menos de 20 dias, o gigantesco exército aquartelado no campo de Boulogne passou da Mancha ao Danúbio. Os austríacos tinham concentrado um importante dispositivo militar no alto Danúbio, à volta de Ulm, no Wurtenberg, perto da fronteira com a Baviera, esperando que Napoleão entrasse pela Floresta Negra. Estava sob o comando de Mack e compreendia 80 mil homens. Todavia, Napoleão repetiu a manobra de Marengo, contornando o dispositivo austríaco muito pelo norte e inflectindo depois para o sul, colocando o grosso do seu exército entre Ulm e Viena e cortando a retirada a Mack. Todavia Mack poderia ter retirado enquanto o dispositivo francês não estava totalmente organizado. Simplesmente os serviços de informações franceses induziram Mack em erro. Fizeram chegar a Mack a notícia que tinha ocorrido um levantamento contra Napoleão em Paris e que este ia retirar as suas tropas para acorrer à capital. Como Mack pusesse dúvidas, Napoleão mandou imprimir (no próprio acampamento) um número falsificado de uma gazeta de Paris que trazia notícias da tal revolução imaginária. Mack deixou-se ficar em Ulm. Quando Mack compreendeu o erro, era tarde demais. A sua situação tornou-se desesperada e, intimado a render-se, capitulou com todo o seu armamento (20-10-1805). Apenas 15 mil homens conseguiram escapar ao cerco de Ulm. Esta capitulação foi a chave da vitória de Austerlitz – praticamente sem baixas, Napoleão tinha posto fora de combate 65 mil soldados austríacos(*).

Napoleão avançou depois com grande rapidez sobre Viena, numa das mais impressionantes marchas militares da história, em pleno Inverno, com combates de premeio, e percorreu em 23 dias a distância que separava Ulm de Viena, que ocupou sem resistência. Tinha efectivamente entrado em Viena, em meados de Novembro, como previra.

Na Boémia, em Olmutz, os russos tinham-se reunido aos austríacos. Todavia, as hábeis manobras de Napoleão haviam dispersado o exército austríaco. O exército de Mack tinha sido aniquilado em Ulm; o exército do Arquiduque Carlos, talvez o mais capaz general austríaco daquela altura, composto de 90 mil homens estava retido no norte de Itália, face aos 50 mil homens de Massena. Dessa forma, as forças combinadas da Áustria e da Rússia, na Boémia, compreendiam apenas 75 mil russos e 18 mil austríacos.

A estratégia de Napoleão era agora evitar a união das forças prussianas, que poderiam mais que duplicar aqueles efectivos, convencendo os comandantes da coligação a darem-lhe batalha rapidamente. Napoleão saiu de Viena, para o norte, penetrando na Boémia. Aí pareceu mostrar debilidade e receio das forças da coligação. Enviou emissários aos imperadores russo e austríaco para os sondar sobre uma possível paz. Simultaneamente, as suas manobras de avanços e recuos criaram nos comandantes inimigos a ideia de que as forças francesas estavam fragilizadas, provavelmente extenuadas e desmuniciadas. A pedido de Napoleão, o Imperador Alexandre enviou um plenipotenciário com as condições para a paz. Napoleão burlou totalmente o plenipotenciário russo, um bom cortesão, um mau general e um péssimo negociador, dando mostras de vacilação, reflectindo pensativamente sobre as condições humilhantes propostas pelos aliados, hesitando entre aceitar ou não, mas finalmente, num acto de dignidade, de quem quer morrer com honra, dizer que não poderia aceitar as condições.

Até então Kutusov, o comandante das forças aliadas, tinha dúvidas sobre a fraqueza de Napoleão. Agora essas dúvidas tinham-se dissipado e os aliados resolveram dar batalha.

A batalha de Austerlitz, travada em 2-12-1805, ficou decidida logo nas primeiras horas. Todavia a espantosa destruição que o exército russo sofreu deveu-se a uma série de erros dos comandantes russos e à hábil estratégia de Napoleão. Uma parte importante das forças russas foi atraída a lagos gelados e colocada sob a metralha intensa da artilharia francesa que, quebrando a película de gelo, provocou o afogamento de regimentos inteiros.

Dos 80 mil homens que Napoleão empenhou na batalha, perdeu 9 mil. Todavia os aliados perderam 15 mil mortos (provavelmente mais), 25 mil prisioneiros e praticamente todo o trem militar. Muitos outros terão morrido numa fuga completamente desorganizada. Quando o enviado do Rei da Prússia chegou com a informação que a Prússia ia entrar em campanha, meteu prudentemente a carta de Frederico Guilherme III nos bolsos e felicitou efusivamente Napoleão pela vitória.

É célebre, pelo estilo grandiloquente e retórico, a proclamação de Napoleão ao exército «Soldados! Estou contente convosco ... haveis coberto as vossas águias de uma glória imortal ... regressareis a França ... e bastar-vos-á dizer: estive na batalha de Austerlitz, para que vos respondam: eis um bravo». Mês e meio antes, Nelson, em Trafalgar, tinha dito simplesmente «A Inglaterra espera que cada um de vós cumpra o seu dever». Sempre me impressionou a distância que separa estas duas mentalidades.

Na minha opinião e resumindo, a batalha de Austerlitz é apenas o culminar de um genial plano estratégico que compreendeu: 1) a fixação do exército de 90 mil homens do Arquiduque Carlos, na Itália do norte; 2) a movimentação rapidíssima das forças que penetraram pela zona do Meno, a norte, que levaram ao cerco e à inacreditável capitulação de um exército de 80 mil homens; 3) a rapidez do avanço sobre Viena e da posterior invasão da Boémia; 4) a comédia de enganos que fez com que os aliados não esperassem pelos prussianos e fossem atraídos a travar a batalha de Austerlitz nas piores condições.

A batalha de Austerlitz, em si, é apenas uma peça desse plano genial.


(*) No dia seguinte à capitulação de Ulm, a esquadra de Villeneuve que reunia navios franceses e espanhóis era aniquilada em Trafalgar, dando definitivamente o domínio dos mares à Grã-Bretanha.

Mapa das posições iniciais na batalha de Austerlitz. A escala está em toesas, pois a edição é de 1831 (Victoires, Conquêtes, Désastres, Revers et Guerres Civiles des Français ... etc., par une société de militaires, vol. 21)
Os rectângulos com faixa branca ao meio, são os regimentos franceses, os escuros são os russos e os em losango são os austríacos.

Austerlitz.jpg

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De Redentor a Património

Lula da Silva foi eleito, aclamado como redentor da humanidade. Depois, ou mesmo antes, o charme discreto do dinheiro começou a fazer das suas. Normalmente são os que menos têm que mais roubam. Os que mais têm, ganham-no em negócios. Mas como o lucro é pecado, assim afiança o pensamento escolástico, são eles os acusados de gatunos. Agora, o braço direito de Lula da Silva, José Dirceu, acusado de ter organizado o "mensalão", foi expulso do Parlamento no Brasil e impedido de exercer direitos políticos até 2016. Mas Lula não deve desesperar. Quem sabe se, num futuro próximo, na continuação dos escândalos, Lula da Silva perderá igualmente o seu braço esquerdo. E então poderá reclamar o estatuto de Vénus de Milo Brasília, e passar de Redentor a Património da Humanidade. A UNESCO não deixará passar a oportunidade.

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dezembro 01, 2005

Incertezas

Se eu soubesse que tinha direito a um epitáfio destes, acabava já o Semiramis. Mas resta-me o gozo de saber que aqueles que prefeririam ver este blog acabado, estão irmanados no clube dos que nunca me dedicariam semelhante epitáfio. É uma espécie do aforismo de Groucho Marx às avessas: Nunca aceitaria fazer parte de um clube que me aceitasse como sócio.

Publicado por Joana às 10:59 PM | Comentários (38) | TrackBack

1 de Dezembro

Em épocas de descrença é bom avivar este feriado, misteriosamente esquecido. Eram quarenta. As guarnições espanholas, só na zona de Lisboa e fortes adjacentes, eram mais de 6 mil homens, fora as guarnições das praças fortes do resto do Reino. Não tínhamos soldados, nem canhões. As nossas diminutas forças militares estavam na Catalunha e noutras zonas da Europa, sob comando espanhol. As forças espanholas estacionadas em Portugal estavam fortemente armadas e no Tejo, defronte da Boa Vista, perto do Paço da Ribeira, estava ancorada uma frota de três poderosos galeões espanhóis bem armados. E eram apenas quarenta.

E com apenas esses quarenta e a adesão popular que se seguiu, os fortes guarnecidos por espanhóis capitularam um após outro, os galeões inimigos foram capturados, quase uma dezena de milhar de soldados ocupantes foi ou aprisionada ou fugiu do país, muitos milhares de mosquetes e centenas de canhões foram apreendidos pelos conjurados, que apenas tinham as armas de defesa pessoal, e pelos que os secundaram, que apenas tinham as suas mãos e uma férrea vontade de vencer.

À medida que mensageiros chegavam às as cidades e vilas do Reino, D. João IV era aclamado como novo Rei de Portugal. Em 5 dias todas as cidades e vilas haviam reconhecido o novo rei. Todos os nossos domínios coloniais de então (com excepção de Ceuta) desde Tânger a Timor, passando pelo Brasil, Áfricas e Índia, reconheceram o novo regime logo que o navio que trazia a notícia da Revolução de Lisboa, arribava a cada terra (com excepção de Macau onde a bandeira das quinas flutuou sempre, durante esses 60 anos). Os oficiais e soldados portugueses, que serviam na Catalunha e noutros sítios, desapareciam sem as chefias espanholas saberem como e voltavam a reaparecer em terras lusas.

Quando D. João IV entrou em Lisboa a 6 de Dezembro, já todo o país o tinha aclamado Rei.

O Milagre de Lisboa, como muitos o chamaram, espantou a Europa e muitos historiadores se debruçaram sobre ele. Citei aqui, há dois anos, Vertot: “Provavelmente nunca se viu na história outra conjura que, como esta, ... que tenha sido confiada a um tão grande número de pessoas de todas as idades, de ambos os sexos, de todas as condições e de um temperamento tão fogoso, e por consequência tão pouco apropriadas ao segredo; ... que ... tenha tido um sucesso tão completo e que tenha custado tão pouco sangue ... um segredo confiado a toda uma nação, que não transpirou em nenhum círculo, e a sua execução, que inúmeros acidentes poderiam ter feito parar, foi um êxito completo e imediato. E o êxito do golpe em Lisboa alastrou em menos de uma semana a todo o território e, com a rapidez com que as notícias chegavam, a todas as colónias da coroa portuguesa”

A seguir o frontispício do Portugal Restaurado, do Conde da Ericeira (1632-1690), 2ª Edição. Foi publicado em 4 volumes e é a obra mais importante sobre a Restauração, desde a conjura, até ao fim da guerra em 1668.

Port_Restaur1.jpg

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