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maio 31, 2004

Fouché revolucionário

Fouché nasceu em 31 de Maio de 1759 no seio de uma família modesta de pequenos comerciantes. A sua natureza reservada e estudiosa levaram os pais a fazê-lo ingressar na carreira eclesiástica. Entra na Congregação do Oratório e por aí fica, como professor de seminário, até ao início da revolução.

Nunca tomou ordens. Aliás, Fouché nunca se entregou inteiramente a quem serviu: Igreja, Revolução, Directório, Consulado, Império, Monarquia – Fouché apenas se comprometeu consigo próprio.

Eleito deputado à Convenção por Nantes, em 1792, com a missão de pugnar pelos interesses da classe média, que desejava um regime monárquico ou republicano, mas constitucional e ordeiro, começou por se sentar do lado da Gironda. E sentou-se do lado da Gironda não, provavelmente, para cumprir promessas eleitorais, mas porque a Gironda era então a mais forte. E Fouché sempre esteve do lado do mais forte.

Naqueles dias turbulentos era preciso prudência. Fouché rapidamente se apercebeu que numa revolução os ídolos de um dia são os traidores do dia seguinte e que ela não pertence aos primeiros que a desencadearam, mas ao último que a termina e fica com ela como um espólio. Por isso Fouché permanece numa relativa obscuridade, evitando intervenções na tribuna e nos jornais, mas fazendo-se eleger para comités e juntas, onde pode, na sombra, pela sua discrição, influenciar os acontecimentos e proteger-se da inveja e do desgaste da imagem.

Há decisões que ficam indeléveis na história e na memória das gentes e Fouché teve que tomar uma. Em Janeiro de 1793 a Convenção julgou o Rei. A obrigação de Fouché para com os eleitores moderados que o tinham eleito e para com a Gironda, junto à qual se sentava, era votar contra a morte do Rei. No dia anterior à votação leu, aos seus amigos, o discurso que iria proferir afim de justificar o pedido de clemência. Mas, no dia da votação, ao ver a agitação das secções populares, Fouché, arguto calculista, apercebeu-se que o poder da rua iria intimidar muitos convencionais e que tudo fazia prever que a maioria pendesse afinal para o lado da morte do Rei, maioria pequena, mas maioria. Ora Fouché sempre esteve do lado da maioria. Votou a favor da morte do Rei. O ser regicida foi um facto que nunca conseguiu apagar e que se tornou um pesado ónus nos últimos anos da sua vida. Mesmo depois de ter traído Napoleão após Waterloo e facilitado o regresso de Luís XVIII, não conseguiu conservar o cargo de ministro que tinha sido a moeda de troca do acordo. Instado pelos ultra-realistas, Luís XVIII foi forçado a demiti-lo e exilá-lo de França.

No julgamento do Rei revela-se um traço fundamental do carácter de Fouché – quando trai um partido nunca é de forma lenta e hesitante. É às claras, de um momento para o outro, que, com uma despudorada audácia, ele se transfere de um partido ao partido adversário, com armas e bagagens, e passa a adoptar a retórica e os argumentos do seu novo partido. Muitos anos mais tarde, confessaria, cinicamente, que então era preciso «uivar com os lobos e se submeter às necessidades das circunstâncias». Não teria sido necessária esta confissão tardia: as suas acções eram óbvias.

Fouché não gostava de situações de risco não controlável, como seja conviver com os radicais revolucionários da Comuna de Paris e das secções dos sans-culottes. Preferiu comissões de serviço longe de Paris, à espera de ver quem triunfaria na Convenção. Foi uma má escolha. Trânsfuga do Oratório, convencional regicida, se bem que outros o foram e a quem a opinião pública poupou e a história foi indulgente, o que perdeu Fouché perante a história foram justamente estas comissões, onde Fouché se distinguiu por um raro exagero declamatório, talvez para evitar ser acusado de ser moderado.

Fez um périplo pela província, organizando o recrutamento e os abastecimentos e fazendo discursos de teor comunista (ou igualitário) e terrorista : «Tudo é permitido aos que agem no sentido da Revolução» ... « todo o homem que tem mais do que lhe é preciso, já não usa, mas abusa. E assim, deixando o que lhe é estritamente necessário, todo o resto ... pertence à República». «Aos republicanos bastam a espada (“du fer”), o pão e 40 écus de renda» escrevia o futuro castelão do palácio de Ferrières.

As missivas que Fouché enviou a Paris durante estas missões são, talvez, o pior para o julgamento que a história lhe fez. São tenebrosas, de uma ferocidade fria e configuram a imagem de um carrasco sanguinário.

Após estas provas de acção e retórica revolucionárias, Fouché foi para Lyon, juntamente com Collot d’Herbois, punir a contra-revolução, no cumprimento de um bárbaro decreto da Convenção que ordenava a destruição da segunda cidade da França e que a «reunião das casas que subsistissem usará de futuro o nome de Ville-Affranchie», onde se tornou conhecido como o Metralhador de Lyon, executando, a canhão e em poucas semanas, 1.600 pessoas. Isto sem falar em muitas centenas de execuções pela guilhotina.

Lyon tinha 140.000 habitantes, 5 meses depois, Ville-Affranchie tinha 80.000 habitantes. Escreve Fouché «sim, confessamos que derramámos muito sangue impuro, mas foi por humanidade, por dever». A hipocrisia da retórica revolucionária é uma constante em toda e qualquer revolução.

Todavia, quando Collot d’Herbois abandonou Lyon, Fouché, talvez por ter farejado que a situação em Paris poderia mudar, mudou de postura, chegando a punir aqueles que o haviam ajudado antes. Em Paris Robespierre liquidava a extrema esquerda, os exagerados de Hébert. Para Fouché, tal deve ter soado a que a Revolução iria entrar por uma via mais moderada. O seu último acto em Lyon foi mesmo o de ordenar a execução do carrasco e respectivo ajudante.

Todavia equivocou-se. Robespierre havia liquidado a ala direita da Montanha (os Dantonistas) e a ala esquerda (os Hebertistas) apenas para governar sem empecilhos. O terror revolucionário prosseguia com menos exageros de retórica, mas com mais firmeza sanguinária. Portanto, a mudança de Fouché para uma atitude de maior clemência não passou desapercebida às autoridades revolucionárias, que primeiro o acusaram de moderado e depois de andar a oprimir os patriotas. O Comité de Salvação Pública ordenou o seu regresso a Paris. Fouché havia estado 9 meses ausente do epicentro revolucionário.

A guerra entre Robespierre e Fouché ia começar. Curiosamente haviam travado amizade em Arras, quando Fouché aí estivera colocado, como professor do colégio do Oratório. Fouché teria mesmo ajudado Robespierre a custear a viagem para Paris quando este foi eleito para os Estados Gerais.

Porém, Fouché não era um Hébert ou um Danton. Evitando debates incendiários na Convenção, onde não podia competir com os oradores da Montanha, Fouché adoptou a técnica de sobrevivência dos animais menos aptos para a luta física – fingiu-se morto. Morto, isto é, trabalhando na sombra. Semanas depois, surpreendentemente, perante a estupefacção geral, Fouché é eleito presidente do Clube dos Jacobinos por larga maioria.

Robespierre, furioso, fulmina-o então com um discurso em que o qualifica de «impostor vil e desprezível» e consegue a exclusão de Fouché do Clube dos Jacobinos por conduta indigna. O destino de Fouché parecia traçado. Mas Fouché passa as seis semanas seguintes a conspirar na sombra, junto dos convencionais. Como Tallien e outros, não tem domicílio fixo, para não ser preso de noite, de surpresa. Robespierre teme-o mais que os outros «o indivíduo Fouché não me interessa ... denunciei-o aqui menos por causa dos seus crimes do que por se esconder para cometer outros e porque o vejo como o chefe da conspiração que temos que liquidar».

Se Tallien, Billaud, Collot d’Herbois e Barras são os rostos mais visíveis do 9 Thermidor (27-07-1794), onde a facção de Robespierre é liquidada, Fouché terá sido o conspirador com maior peso na obtenção do apoio dos membros hesitantes da Convenção. Foi seguramente aquele que Robespierre mais temia.

Publicado por Joana às maio 31, 2004 09:28 AM

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Comentários

Este folhetim tá bem feito.

Publicado por: Romeu às maio 31, 2004 11:17 PM

Estes trocatintas da revolução fazem lembrar a evolução de muita gajada do PREC

Publicado por: fbmatos às junho 2, 2004 12:43 AM

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