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janeiro 31, 2006

A Armadilha da Utopia 3

A Dimensão do Estado

Hoje abordarei, com as limitações que a escassez do tempo obriga, a questão da dimensão do Estado e do paradoxo eficiência e/ou equidade. Quando se fala do peso do Estado, a sua determinação não é um problema de solução única. A solução depende da eficiência do próprio Estado, da «qualidade» do sistema fiscal e do projecto que se tem para o país: Qual o doseamento entre desenvolvimento e igualitarismo. Mas esse doseamento depende dos consensos sociais que se formarem. E esses consensos variam de acordo com os projectos pessoais dos diversos agentes económicos. A estagnação e a compreensão das razões económicas dessa estagnação podem levar a que se deixe de apostar tanto no igualitarismo e mais num projecto a médio e longo prazo de desenvolvimento, na convicção que a existência de uma maior prosperidade geral permita um melhor nível de vida, apesar de uma desigualdade maior.

Quanto à questão do papel do Estado, é um facto histórico que nenhuma sociedade atingiu um nível económico elevado sem a existência de um Governo e de um Estado. Sem a existência de um governo suportado num aparelho estatal está instalada a anarquia e não é possível uma actividade económica sustentável, nem há condições para o progresso económico e civilizacional. Todavia, a existência do Estado é condição necessária, mas não suficiente para essa prosperidade. Por outro lado, a experiência tem mostrado que, a partir de certa dimensão, o Estado é um entrave ao desenvolvimento económico.

Portanto, sem Estado, se a despesa pública fosse 0%, não havendo portanto impostos, o PIB, avaliado em termos monetários, seria nulo. Haveria produção, para subsistência, mas esta não teria expressão monetária, visto a ameaça de expropriação ser real e permanente. Esse seria o limite inferior. À medida que as taxas de imposto vão aumentando, os bens e serviços públicos essenciais ao funcionamento normal do mercado vão sendo disponibilizados – justiça, defesa, infra-estruturas básicas, educação etc.. Nesta zona os efeitos destes aumentos em eficiência produtiva vão contrabalançando os efeitos desincentivadores das taxas de imposto para a actividade económica.

Ao aumentar as taxas de imposto, a partir de certo montante, as ineficiências e os desincentivos começam a fazer-se sentir de forma cada vez mais acentuada. Vai ocorrer o declínio dos rendimentos do trabalho, da poupança, do investimento e do próprio rendimento colectável. Os agentes económicos vêm-se forçados a abandonar as suas actividades «monetarizadas» para se dedicarem a outras actividades como o lazer, a trabalhos de rendimento não tributável, etc.. E isto porque as alterações nos preços relativos induzidas nas taxas dos impostos afectam as escolhas entre trabalho e lazer, entre consumo presente/futuro e poupança/investimento e entre economia legal e economia paralela. Em teoria, se as taxas forem 100% não haverá interesse em desenvolver qualquer actividade tributável – o dinheiro que se recebe é totalmente entregue ao Estado. Nessa situação as receitas fiscais reduzem-se a zero e o PIB igualmente. Será o limite máximo. É óbvio que continuará a haver alguma produção, mas apenas para subsistência, sem expressão monetária, visto que a ameaça de expropriação [agora pelo Estado] é certa.

Esta formulação corresponde à conhecida curva de Laffer. Todavia a realidade é mais complexa que a curva que Laffer desenhou num guardanapo de papel. Com o imposto progressivo, os extractos sociais que perdem o incentivo para trabalhar são os de rendimentos mais elevados, e portanto correspondem a segmentos sociais de pequena dimensão, embora de elevado peso económico. O efeito global sobre a economia não é claro. Por outro lado, os impostos não agem da mesma maneira sobre as decisões dos agentes económicos. Impostos indirectos, como o ISPP, IVA, etc., têm uma influência menos nociva sobre a actividade económica do que aqueles que agem directamente sobre os rendimentos. Portanto, a ideia de Laffer tem mérito como abordagem geral, mas saber se a taxa média máxima, a partir da qual a receita fiscal cai, é 45%, 50%, ou outra qualquer, é difícil. Depende das taxas progressivas e da qualidade do sistema fiscal.

Todavia, uma coisa é certa e a teoria económica é unânime sobre isso: o imposto cria um peso morto – redução do excedente total resultante do imposto reduzir a dimensão do mercado abaixo do ideal. E outra conclusão é a de que esse peso morto aumenta mais rapidamente que o valor do imposto que o cria.

Portanto, o aumento da despesa pública cria entraves ao desenvolvimento económico. A curva que relaciona o PIB com a despesa pública é conhecida como curva de Armey. Tem um andamento semelhante à curva de Laffer, só que o seu máximo ocorre necessariamente à esquerda do máximo de Laffer, antes do máximo da receita fiscal. Portanto, antes de se atingir o máximo da receita fiscal começa a ocorrer a degradação da actividade económica e a estagnação e/ou queda do PIB.

Qual será o valor óptimo para a despesa pública em termos do PIB? É claro que a resposta terá que ser genérica, porquanto depende da qualidade do serviço público e da estrutura e mentalidade sociais existentes. Milton Friedman, num estudo onde comparou os USA e Hong Kong, concluiu que, embora o governo tivesse um papel essencial numa sociedade livre e aberta, a partir de um certo valor da Despesa Pública, a contribuição marginal para o PIB anular-se-ia e passaria a ser negativa. Situou esse valor algures entre 15% e 50%. Olhando para um caso de sucesso, dentro da UE, o caso da Irlanda, poderia estimar-se que o peso óptimo seria 35%.

O PIB português, em 2005, foi de 139.208 milhões de euros (números preliminares). A Despesa Pública foi de 68.936 milhões de euros (49,3%). Se fosse 35% (48.723 milhões de euros), teríamos poupado 20.213 milhões de euros. O PIB português, em 2006, prevê-se que seja 144.717 milhões de euros (números preliminares, em valores nominais). A Despesa Pública será de 70.622 milhões de euros (48,8%). Se fosse 35% (50.651 milhões de euros), pouparíamos 19.971 milhões de euros. Aquelas poupanças não se destinariam apenas aos contribuintes, pois parte delas seriam para anular o défice. Mas mesmo assim sobrariam uns 12.000 milhões de euros anuais para os contribuintes (1.200€/hab). Ou seja, anualmente Portugal gasta, a mais, o equivalente ao custo total da Ota + TGV, que tanto alarido têm provocado. Com algumas agravantes: o Governo tem anunciado que a parte mais significativa daqueles projectos é paga pelos privados, enquanto o excesso de despesa pública é, todo ele, pago pela população; ficaremos com um TGV e um aeroporto no “cu de Judas” para mostrarmos, vaidosos, aos amigos, enquanto o excesso de despesa pública é dinheiro deitado à rua.

A dimensão financeira é apenas uma das vertentes da questão do peso do Estado. Outra será a sua eficiência e uma outra o âmbito dos serviços que deve prestar. Estas questões estão obviamente ligadas. O sector público português faz-se pagar como um artigo de luxo e presta serviços miseráveis. Pagamos uma fortuna para alimentar uma máquina pesada e inoperante e escasseia-nos o dinheiro para as pensões de reforma, que são, na sua maioria, uma miséria.

Além disso, o efeito da despesa e receita públicas no PIB depende de vários factores, principalmente da «qualidade» do sistema fiscal. Dois sistemas fiscais que arrecadem ambos, por exemplo, 35% da riqueza nacional, podem ter efeitos muito diversos. Um deles ter efeitos negativos mitigados e o outro ser completamente castrador da actividade produtiva, tendo efeitos devastadores sobre essa actividade. Nesse ponto de vista, o nosso actual sistema fiscal é duplamente mau – por ter taxas elevadas e por ser um agente castrador da actividade produtiva, pela sua “má qualidade”.


(Continua)

Publicado por Joana às 08:04 PM | Comentários (44) | TrackBack

janeiro 30, 2006

A Armadilha da Utopia 2

O Estado

Um dos temas em que a armadilha da utopia se manifesta com mais arrebatamento é na questão do Estado – o âmbito da sua intervenção, a sua dimensão e a extensão dos seus serviços. A questão em si não é utópica. O que pode ser o caminho para a utopia é debatê-la sem ter em conta a situação pré-existente: instituições, mentalidades, teia de interesses instalados, necessidade de consensos sociais, etc.. Outra via para a utopia é trazer à colação como arma doutrinal textos que frequentemente foram escritos como resposta aos dogmatismo então existentes, dogmatismos que pareciam triunfantes e que ameaçavam submeter a humanidade às suas convicções. Não que estivessem basicamente errados, mas porque datados pelos excessos das polémicas em cujo contexto foram produzidos.

Por exemplo, a importância de Hayek foi ter-se apercebido que o “Rei ia nú”, numa época em que ninguém punha em causa que ele estaria soberbamente vestido, uns com o traje Keynesiano, outros pelo figurino comunista. Todavia, os “excessos” de Hayek são porventura datados, porquanto são uma resposta ao dogmatismo colectivista do comunismo soviético, ao totalitarismo da organização económica nazi e ao racionalismo construtivista da criação ex nihilo de sociedades perfeitas, que os Prometeus do século XX nos anunciavam que construiriam. A economia vive com regras e com estruturas. Como compatibilizá-las com uma ordem espontânea? Nunca pelo efeito da vontade humana, sublinha Hayek, mas como fruto do acaso, de um darwinismo institucional: «as instituições são produto da acção dos homens, mas não de um seu projecto». A sociedade acaba por conservar aquelas que são as mais adaptadas. Polemizar tende a privilegiar certas abordagens em detrimento de outras. É normal que isso aconteça. O que é errado será considerar isso como verdades absolutas, sem ter em conta os contextos.

Mas o paradigma da importância do peso do Estado na economia, dito keynesiano, baseia-se numa visão distorcida do keynesianismo. Ou melhor, na aplicação da mesma receita para uma doença que é totalmente oposta. Na grande depressão houve uma crise do lado da procura e uma deflação. Estimular a procura pelo aumento do rendimento disponível nas famílias, através de obras públicas, como estradas, caminhos de ferro, etc., aumentava o consumo e criava escoamento para a oferta excedentária das fábricas, o que provocaria uma dinamização do sector produtivo e a retoma do emprego privado. A guerra de 1939-45 não permitiu chegar a perceber se as prescrições de Keynes teriam ou não resultados sustentáveis. Hayek e Friedman garantem que não. Na sequência da guerra, as 3 “gloriosas décadas” impediram igualmente que se percebesse, na prática, a validade ou não do modelo keynesiano, que se manteve como uma verdade indiscutível. Keynes havia morrido em 1946 e nunca se saberá se ele manteria as suas teses numa conjuntura económica completamente diferente. Todavia, Keynes foi um economista extraordinariamente lúcido. Em 1919 publicou um estudo sobre as consequências económicas da guerra (e dos tratados de paz) que se revelaram proféticas. As receitas que preconizou na década de 30 surtiram efeito na época. Ninguém sabe o que ele preconizaria na década de 80. Sabemos apenas que as receitas dos seus epígonos, que cristalizaram o seu pensamento, foram um desastre. Contestar o keynesianismo pós-Keynes não é o mesmo que contestar Keynes.

Ou seja, trazer à colação autores sem os referir à época, nem ao contexto em que produziram as suas ideias, é extremamente redutor e apenas serve para brandir chavões frequentemente esvaziados de conteúdo.

No que respeita ao peso e papel do Estado, temos que atender a dois paradoxos, o paradoxo da liberdade (como refere Popper em A Sociedade Aberta ...) e o paradoxo da eficiência e/ou equidade.

Relativamente ao primeiro paradoxo, a liberdade destrói-se a si mesma se for ilimitada. A liberdade ilimitada significa que um indivíduo forte é livre de agredir um indivíduo fraco e despojá-lo da sua liberdade. Por essa a razão exige-se que o Estado, em certa medida, limite a liberdade de modo a que a liberdade de cada um seja protegida por lei. Ninguém deve estar à mercê de outrem, e todos devem ter o direito de ser protegidos pelo Estado

Ou seja, num mundo sem Governo não há o predomínio da lei e não há protecção da propriedade e das obrigações contratuais. Os mais fortes podem roubar impunemente os bens dos mais fracos. Não há incentivos à poupança e ao investimento, dado que a ameaça de expropriação é real e permanente. A actividade económica reduz-se à subsistência.

Mas estas considerações, segundo Popper, devem aplicar-se também à protecção na esfera do funcionamento interno da economia. Mesmo que o Estado proteja os seus cidadãos contra as ameaças de violência física, pode fracassar se não os conseguir proteger contra o abuso do poder económico. Se, quem for economicamente forte, for livre de oprimir os que são economicamente débeis e despojá-los da sua liberdade, a liberdade económica ilimitada pode ser tão suicida quanto a liberdade física ilimitada, e o poder económico pode ser quase tão perigoso quanto a violência física, dado que aqueles que possuem excedentes podem forçar os carenciados a uma servidão "livremente" aceite, sem usar de violência. E admitindo que o Estado limite as suas funções à supressão da violência (e à protecção da propriedade), uma minoria economicamente forte pode, desse modo, explorar a maioria dos que são economicamente fracos.

Devemos, segundo Popper, conceber instituições sociais, asseguradas pelo poder do Estado, para protecção dos economicamente fracos contra os economicamente fortes. O Estado deve providenciar para que ninguém necessite de aceitar condições não equitativas por receio de passar fome ou de degradação económica.

E esta a formulação está alicerçada na experiência histórica, porque foi justamente o abandono do princípio da não-intervenção, e de um sistema económico sem restrições, aquilo que salvou a nossa sociedade livre, aberta, baseada no primado do indivíduo e na sua liberdade de escolhas, das ameaças dos modelos totalitários de direita ou de esquerda, que se propunham destruir o “capitalismo” e a “plutocracia”, pois permitiu criar consensos e equilíbrios sociais e mostrar a superioridade de uma sociedade livre, sobre os modelos totalitários.

Regressando a Popper, “se quisermos que a liberdade seja salvaguardada, teremos então que exigir que a política de liberdade económica ilimitada ceda o lugar à intervenção económica planificada do Estado. Devemos exigir que o capitalismo sem restrições dê lugar a um intervencionismo económico”. Tem que se reconhecer que esta intervenção económica tenderá a aumentar o poder do Estado e o intervencionismo estatal traz o germe da destruição da liberdade individual. Mas isso não constitui um argumento decisivo contra, porque o poder do Estado será sempre um mal perigoso, ainda que necessário. A solução, que com mais ou menos sucesso (talvez menos, no nosso país), tem permitido a coexistência do intervencionismo estatal com a liberdade individual tem sido, justamente, o fortalecimento das instituições democráticas, do espírito cívico colectivo e da vigilância permanente para se encontrar um equilíbrio, não necessariamente perfeito, mas que evite perversões que cerceiem a liberdade de cada um, para além dos limites impostos pela liberdade de todos.

Curiosamente, a frase mais lapidar anti-estatista escrita no século XIX, está contida na Directiva ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, e é justamente de Marx: «A Comuna [de Paris] fez da palavra de ordem de todas as revoluções burguesas, governo barato, uma verdade, ao suprimir as duas maiores fontes de despesas, o exército e o funcionalismo»
Marx-Engels Werke Vol 17, pág 341 Dietz Verlag Berlim

Proximamente tratarei do paradoxo eficiência e/ou equidade.

Publicado por Joana às 10:33 PM | Comentários (79) | TrackBack

janeiro 29, 2006

A Armadilha da Utopia

O que a utopia tem de errado é o facto de pretender reconstruir a sociedade como um todo, postulando mudanças generalizadas, cuja aceitação social é duvidosa, porquanto representa uma ruptura com o quadro social existente e cujas consequências práticas são difíceis de calcular, porquanto todas as experiências sociais e políticas que constituíram subversões completas dos modelos pré-existentes conduziram a resultados péssimos. Adenauer disse que “a política é a arte do possível”. Um político poderá ter ou não em mente um modelo da sociedade, e acreditar ou não que o homem tem a possibilidade de vir um dia a estabelecer uma sociedade ideal e perfeita. Mas a arte política do possível é combater as deficiências mais prementes e profundas da sociedade em vez de procurar estabelecer, no imediato, um ideal supremo, a Ideia Absoluta, quer na sociedade, quer no Estado.

As instituições políticas, económicas e sociais representam sempre, desde que se viva em regime democrático, do resultado de um compromisso face a circunstâncias do processo político e social anterior, da gestão, certa ou errada, dos equilíbrios entre interesses corporativos e o bem-estar colectivo, etc. Esse compromisso pode ter conduzido a situações perversas que prejudiquem o bem-estar colectivo e conduzam à estagnação económica da sociedade. Essas situações podem e devem ser combatidas. Todavia não podem ser combatidas em termos de construir uma sociedade ideal alternativa. Uma sociedade não pode parar para reconstrução. Não é possível fazer tábua rasa de uma situação existente. A estrutura social e económica é de tal forma complexa que poucos eleitores se julgarão capazes de avaliar a viabilidade dessa transformação radical, se comporta de facto melhorias, e quais as dificuldades e tormentos que a concretização dessa transformação exigiria. E se poucos se julgariam capazes, duvido que algum fosse efectivamente capaz dessa avaliação.

Essas situações perversas podem porém ser combatidas em termos de ajustamentos parcelares menos sujeitos a controvérsias e mais capazes de mobilizar a opinião pública. As reformas institucionais têm que ser feitas, pouco a pouco, e conduzidas de forma a ganharem a opinião pública. Muitas dessas reformas poderão parecer insuficientes ou a rota traçada nelas não estar totalmente conforme com o percurso para o modelo de sociedade ideal que teorizamos. Mas, “a política é a arte do possível”.

Uma Utopia corresponde à pretensão de que uma ordem social pode resultar da construção feita a partir de um modelo teórico concebido como um mundo perfeito ou, pelo menos, melhor que o existente. Uma Utopia não resulta, necessariamente, de uma visão historicista do devir social, ou seja, não resulta de qualquer convicção que essa Utopia se estabelecerá, inevitavelmente, se o curso da história o determinar previamente. Essa é a visão teleológica do marxismo "Quando uma sociedade tiver descoberto a lei natural que determina o seu próprio movimento... mesmo então não pode saltar por cima das fases naturais da sua evolução. ... Pode, porém, fazer algo; pode abreviar-lhe e minorar-lhe as dores do parto". Essa foi a visão teorizada em esboço por Marx e postulada em diferentes tons e variações pelos seus epígonos durante o século XX, consoante as vicissitudes políticas, sociais e geo-estratégicas.

Para haver Utopia não é obrigatório haver uma visão teleológica da história. Basta que se pense que é possível que uma sociedade brote completamente ordenada e organizada, qual Palas Atena saindo armada do cérebro de Zeus.

O que as Utopias têm de perverso, é que é muito mais fácil concebê-las no papel e em teoria, do que concretizá-las na prática. E a única forma de as concretizar é assaltando o poder instituído, «abreviando e minorando as dores do parto». Mas este processo está vedado a quem considera como prioridade o primado da liberdade individual e o respeito pelas escolhas individuais e pela democracia representativa.

As Utopias que foram levadas à prática e que se saldaram pelo massacre de milhões de indivíduos que não acreditavam nelas, conseguiram constituir um corpo de doutrina sólida e totalitária, que se destinava à defesa do seu domínio, e que era considerada matéria indiscutível.

Quando não foram levadas à prática (na sua formulação utópica e bacteriologicamente pura), quer pelo facto dos fundamentos das suas convicções impedirem o assalto anti-democrático ao poder, quer por quaisquer outras razões, constituíram matéria inesgotável de controvérsias, cada um arrogando-se da presunção de ser ele o detentor da Utopia mais perfeita e teoricamente mais rigorosa. E quanto maior é a impotência sentida em levar a Utopia à prática, mais importância ganham subtilezas doutrinais libadas na exegese dos textos “fundamentais”, maior é o absurdo da hermenêutica semântica e mais incomensuráveis são os abismos gerados por diferenças imperceptíveis

A Utopia impotente resvala sempre para o radicalismo sectário. Quando nos fechamos sobre nós próprios e perdemos o sentido do universal, as pequenas diferenças tornam-se fracturantes. É sempre assim e é preocupante.

É paradoxal que pensamentos doutrinais que se baseiam no primado do indivíduo, na defesa da liberdade de funcionamento da economia e da sociedade, apareçam em travesti de modelos cristalizados pelo radicalismo sectário fechado sobre si próprio, mais preocupado com as subtilezas das diferenças do que com a imensidão do que há em comum.

É paradoxal que pensamentos doutrinais fecundados pela interpretação dos comportamentos e das escolhas dos indivíduos, enquanto livres, e na dimensão anti-teleológica do homem que se faz a si próprio, se preocupem mais a digladiar-se sobre a excelência das subtilezas que separam os seus modelos teóricos, dos do vizinho, em vez de se empenharem em estudar a forma de concretização, mesmo que parcialmente, mesmo que seja apenas um pequeno passo, do que há de comum no pensamento doutrinal de todos.

Publicado por Joana às 11:52 PM | Comentários (40) | TrackBack

janeiro 27, 2006

Burocracias – Pacote Importante ... mas

Sócrates anunciou esta manhã na AR dez medidas de simplificação burocrática e administrativa, que serão em breve aprovadas em Conselho de Ministros. São medidas importantes no combate à burocracia e lê-las levanta a interrogação sobre como foi possível sucessivos governos não terem feito nada, até agora, sobre essa matéria. Todavia, se há medidas que produzem efeitos plenos, há outras que terão um efeito muito menos relevante do que parece à primeira vista.

As medidas que produzem efeitos plenos, segundo o que uma leitura rápida me permitiu ajuizar, são a (4) que acaba com a obrigatoriedade dos livros selados e com a óbvia necessidade dos seus registos nas Finanças, Conservatórias, etc. Apenas se mantém o livro de Actas, mas sem a obrigatoriedade de registo prévio, termos de abertura e fecho, etc.; (5) o deixar de ser feito obrigatoriamente nos notários o reconhecimento presencial de assinaturas, quando tal for necessário; (6) reduzir a um único acto as informações que as empresas prestam sobre as suas contas – o modelo 22 para as Finanças; a prestação de contas nas Conservatórias de Registo Comercial, as informação estatística para o INE e o Banco de Portugal, etc.; (7) reduzir a um único acto a montanha de informações que as empresas têm que prestar, em diferentes momentos, ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social sobre tudo o que se refere a pessoal, remunerações, balanços sociais, etc., etc.; (8) acabar com a obrigatoriedade da apresentação de documentos passados pelas Finanças e a Segurança Social sobre se se tem a Situação Contributiva Regularizada, o que facilita imenso a instrução dos processos de concursos públicos, pois que são documentos que demoram a obter e têm um prazo de validade reduzido; (9) o registo quase imediato dos títulos de propriedade sobre firmas e marcas; e a (10) eliminação das obrigações de registo e actualização para efeitos de Cadastro Industrial.

São medidas que parecem de tal forma evidentes que a pergunta que se põe é porque é que ainda não haviam sido implementadas. Aliás, foi a necessidade de fiscalização dos actos dos cidadãos e das empresas que levou sucessivos governos a introduzirem parte da burocracia cujo fim é agora anunciado.

Há outras medidas que têm efeito mais limitado. Eliminar, ou tornar facultativas todas as escrituras públicas relativas à vida das empresas (que não envolvam bens imóveis), e haver apenas o acto praticado na Conservatória de Registo Comercial elimina alguns passos. O problema é que as Conservatórias de Registo Comercial são o exemplo mais acabado do Parque Jurássico da administração pública portuguesa. É nelas que reside o principal estrangulamento. Actualmente fazem-se escrituras numa semana. Registar o acto na Conservatória (e obter a certidão respectiva) pode demorar, no mínimo, 3 ou 4 meses

Actualmente, no processo de fusão e cisão de sociedades são necessários inúmeros actos – publicações no DR e jornais locais, escrituras e alguns actos de registo nas Conservatórias. Tal vai ser substituído por publicitação por via electrónica e um único registo na Conservatória. A questão é saber quantos meses a conservadora demorará a certificar e registar o acto. O mesmo se dá com a dissolução e a liquidação de uma sociedade. Nas palavras do PM parece simples. Basta um acto na conservatória e a publicitação num site da net. A questão é saber as dificuldades que a Conservatória irá pôr à aceitação desse acto.

Termino contando uma história que exemplifica o comportamento das Conservatórias de Registo Comercial. Há anos foi tornada obrigatória, mesmo para as empresas mixurucas, o depósito da prestação de contas e respectivos anexos nas Conservatórias de Registo Comercial. Entre esses documentos consta a acta da AG onde foram aprovadas as contas. O empresário de uma dessas empresas mixurucas começou a entregar anualmente esses documentos. A acta referia, no que respeita aos sócios, que estavam presentes todos os sócios correspondentes à totalidade do capital social, e era assinada por todos no fim. Durante 3 anos foi assim. Há dois ou três anos, todavia, quando ele apresentou os documentos, foi exigido por quem o atendeu que constasse na acta os nomes, moradas, NIFs, nº dos BI’s, etc., de todos os sócios. Ora essas informações existem na Conservatória de Registo Comercial. O nosso empresário ficou admirado e perguntou porque é que exigiam isso agora e nos outros anos não. Aliás ele levava o livro de Actas que provava que aquela acta era redigida nos mesmos termos que as anteriores, que haviam sido aceites.

Então a funcionária explicou que como passara a haver muito menos prestações de contas, agora a senhora conservadora lia os documentos com mais atenção e tornara-se mais exigente. O nosso empresário ficou perplexo com esse facto. Então a funcionária explicou que as coimas só existiam para quem não fizesse a prestação no mês em que era obrigatória (julgo que Junho) e a apresentasse atrasada. Para os que, pura e simplesmente, não a faziam, não havia coimas.

Foi o que o nosso empresário quis ouvir. Nunca mais fez o depósito da prestação de contas!

Portanto, estas medidas, se bem que muito importantes, necessitam paralelamente de uma completa reforma do funcionamento das Conservatórias de Registo Comercial, porque senão algumas delas terão pouco efeito prático.

Publicado por Joana às 11:19 PM | Comentários (33) | TrackBack

janeiro 26, 2006

A Desfeita do Palestinianos

Francamente … há coisas que não se deviam fazer e só causam empecilhos. Uma eleição que era uma festa, a decorrer dentro da legalidade, apenas com infracções menores, e os palestinianos fazem tamanha desfeita à comunidade internacional! Em 132 deputados, elegem 76 (58%) deputados do Hamas contra 43 (33%) da Fatah, tornando o Hamas uma força maioritária no parlamento palestino. Ora o Hamas foi, há mais de 10 anos, declarado uma organização terrorista pelos EUA e posteriormente pela Austrália, Canadá e, após madura e prolongada reflexão, pela própria União Europeia. Isto não se faz à UE … vejam só a incalculável quantidade de indecisões que ela vai ter que tomar nos próximos tempos em virtude destes resultados!

Mais que apoiar o terrorismo, os palestinianos votaram, fundamentalmente contra a corrupção endémica que corroía a Fatah. Quando deixou de ser politicamente incorrecto falar no assunto, soube-se da corrupção maciça que o regime de Arafat instalara na OLP e depois na Autoridade Palestiniana. Corrupção alimentada com os subsídios da União Europeia e dos contribuintes europeus.

Mas também votaram por quem lhes prometia uma sociedade mais justa, votaram de acordo com o código de violência cujo ensino lhes tem sido ministrado desde as primeiras letras e lhes promete a vingança contra as humilhações de que têm sido objecto. Surpresa? Obviamente que não. Os alemães não seriam certamente menos cultos e civilizados, e os nazis ganharam as eleições de Julho de 1932 e de Março de 1933 justamente porque lutavam contra a humilhação imposta à Alemanha pelo tratado de Versalhes e pela ocupação militar para garantir as reparações e porque personificavam, aos olhos das massas alemãs de então, uma sociedade mais sã, mais justa e mais redistributiva.

E agora? A Palestina não tem o poderio económico da Alemanha nazi e é um território que vive de subsídios do exterior. Terá certamente menos autonomia que a Alemanha para conduzir uma política agressiva; A Europa … bem, a Europa capitulou perante os nazis, e continuou a manter aquele seu jeito de capitular perante as organizações violentas, mesmo aquelas que visam, a longo prazo a sua destruição directa. Schüssel, presidente em exercício da UE, foi cauteloso. Outros líderes europeus foram também cautelosos. Ou seja … não disseram nada de concreto. Porventura o mais incisivo foi Blair, que declarou que: «É importante que o Hamas compreenda que tem que decidir entre a via da democracia e a via da violência». Mas a Grã-Bretanha foi o único país europeu que não capitulou perante o Eixo (nem fez pactos de não-agressão, como a URSS).

Bush, embora reconhecendo a legalidade das eleições, foi claro ao afirmar que a sua Administração não está disposta a negociar com o movimento radical palestiniano, que continua a ser classificado pelos EUA como uma organização terrorista.

É evidente que as eleições foram limpas e o Hamas resultou de uma escolha livre dos palestinianos. Mas Hitler também. Portanto, se se deve respeitar a vontade do povo da Palestina, deve igualmente tratar-se as novas autoridades de acordo com a ideologia que preconizam. Os palestinianos optaram pelo que julgaram melhor, de acordo com a mundividência em que foram criados e educados. Devem estar conscientes das consequências dessa decisão, e a comunidade internacional deve assumir as consequências de ter definido o Hamas como uma organização terrorista e dele vir a constituir a autoridade de um território envolvido até agora num complicado processo de paz, com o apoio da comunidade internacional.

E Israel? Bem, Israel acaba de anunciar que não negociará com uma administração palestiniana em que uma parte é constituída por uma organização terrorista armada que apela para a destruição de Israel, adiantando que «O Hamas é considerado pela maior parte da comunidade internacional como uma organização terrorista. Esta comunidade não pode admitir uma situação em que uma organização terrorista faça parte de um poder que pretende beneficiar de uma legitimidade internacional … Israel exigirá da comunidade internacional que force a Autoridade Palestiniana e o seu chefe (Mahmud Abbas, actual presidente, homem da Fatah, com quem o Hamas terá que negociar a constituição do futuro governo) a respeitar os compromissos de eliminar o Hamas enquanto organização terrorista que reclama a destruição de Israel»

É claro que esta posição Israel terá um apoio parcial dos países anglo-saxónicos, e uma posição ambígua da União Europeia. Mas o facto porventura mais relevante na política israelita será a subida da direita. Sharon tinha saído do Likud e formado um novo partido que estava bem à frente das sondagens. O fim de Sharon como factor político e a vitória do Hamas fortalecerá a posição de Benjamin Netanyahu e do Likud. Hoje, todos os líderes israelitas se afadigam a mostrar, cada um, que é mais falcão que o outro. Mas o triunfo do Hamas e o fim da liderança forte de Sharon vai fazer pender a balança para a direita, para os que são realmente falcões. O triunfo do Hamas vai ser usado para mostrar ao eleitorado israelita que os palestinianos não estão interessados na paz e que o seu objectivo é destruir o Estado de Israel e lançar o seu povo ao mar. Perante isto, os israelitas tenderão a escolher um governo que lhes garanta uma solução forte e intransigente.

Não é possível estabelecer-se um processo de paz com uma autoridade que não reconhece o direito à existência dos outros e que visa a sua destruição. Não é possível negociar com uma organização terrorista.

É evidente que podem surgir mudanças. Arafat era um terrorista e, após um percurso de vários anos conseguiu criar a imagem de pacifista, assinar os acordos de Oslo e receber um Prémio Nobel da Paz. Quem sabe se o Hamas poderá encetar semelhante percurso? Quantos anos demorará esse percurso? Quanto sofrimento sobrará para os palestinianos? Quantas mortes inocentes ocorrerão entretanto? Todavia o Hamas não terá a mesma benevolência que Arafat. Antes do 11 de Setembro muitos defendiam a existência de um terrorismo bom e de um terrorismo mau. Depois disso ninguém se atreve a defender em público (embora muitos o continuem a pensar em privado) que há um terrorismo bom e um terrorismo mau.

Dizia-se que “uma vez nazi, sempre nazi”. Quando Arafat, a seguir a um ataque suicida, tinha um discurso em inglês, de repúdio veemente, para as cadeias ocidentais, e outro, algo diferente, em árabe, para as massas palestinianas, poderia concluir-se que, “uma vez terrorista, sempre terrorista”.

Publicado por Joana às 11:27 PM | Comentários (33) | TrackBack

janeiro 25, 2006

Os Beduínos e os Camelos

Os beduínos têm uma característica interessante. Vagueiam pelo deserto na companhia de cáfilas de camelos remoendo cardos, de beiços descaídos e baba pendente, bamboleando as suas corcovas ao ritmo das suas melopeias. Quando arribam a algum oásis prometedor, esticam as suas tendas sobre estacas de madeira, num acampamento fácil de montar e desmontar. Lá dentro estendem um tapete grosso no chão, onde ficam as selas de camelo, as cordas e as gamelas com água. E depois, recolhidos nas tendas, à luz bruxuleante de lamparinas, fazem os seus negócios com os íncolas, que os haviam acolhido com promessas de fartas transacções. Quando vêem que a colheita das tâmaras não é suficiente, que as cabras estão a ficar escanzeladas, sem dar leite nem carne, e que os poços estão em vias de secar, arrancam as estacas, dobram as tendas, enfileiram os camelos e voltam a internar-se no deserto em busca de outro oásis.

O Governo tem vindo a tentar empolgar a opinião pública com anúncios repetidos de novos investimentos estrangeiros. O frenesim comunicativo do Governo não encontra paralelo no carácter estruturante desses investimentos. A parte que se refere a investimento industrial é muito reduzida. São mais as vozes que as nozes. O Governo tem conseguido esses investimentos mercê dos incentivos, principalmente fiscais, que oferece ao investimento directo estrangeiro. Todavia, não faz o restante trabalho de casa: liquidar a burocracia paralisante da administração pública, pôr a justiça a funcionar e criar um sistema fiscal que não exija uma dualidade de critérios: ónus pesados para os íncolas, facilidades para os beduínos recém chegados.

Ao não fazer esse trabalho de casa o Governo verá (este ou um qualquer no futuro), quando a colheita das tâmaras escassear, as cabras ficarem escanzeladas, sem leite nem carne, e os poços estiverem em vias de secar, que os beduínos arrancarão as estacas, dobrarão as tendas, porão a cáfila em ordem de marcha e voltarão a internar-se no deserto em busca de outro oásis mais prometedor, entoando versículos corânicos.

Das multinacionais dos têxteis e do calçado que se instalaram entre nós no último quarto de século, quantas ainda não desmontaram a tenda? Quantas novenas Sócrates, Pinho e mais ministros não dirigiram à padroeira do país suplicando que a questão da Autoeuropa se resolvesse sem a debandada dos beduínos? Quanto sufoco vive o país sempre que se levanta a hipótese de mais uma deslocalização de alguma empresa relevante para a nossa economia?

Portugal precisa de investimento directo estrangeiro, mas também precisa de o manter cá. E para o manter cá precisa de criar uma ambiente económico favorável ao funcionamento das empresas, portuguesas ou estrangeiras.

Se não o fizer, acontece-lhe o mesmo que aos oásis perdidos na imensidão do deserto – assiste à debandada dos beduínos. Com uma pequena diferença: com tantas idas e vindas de beduínos, os camelos acabaram por ficar cá – somos nós!

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (34) | TrackBack

Ressacas

Terminada a campanha eleitoral para as presidenciais temeu-se que os analistas políticos ficassem no desemprego. Após a eleição de Cavaco Silva, Portugal entra num período, excepcional no nosso sistema político, em que todos os órgãos de soberania, desde a AR, passando pelas autarquias, até ao PR, têm pela frente um mandato completo ou quase. Para quem aprecia a estabilidade política tal pode ser uma benesse. Para os analistas políticos foi o pânico. Pois quê? Faltam mais de 3 anos até ao próximo acto eleitoral? Que fazer? Simples … Discutir o que vai fazer Cavaco Silva com os seus votos. Puxar pelo PSD? Apoiar Sócrates? Rasteirar Sócrates? Proferir banalidades obscuras, vulgo sampaíces?

Mas será que apenas conta o que Cavaco poderá fazer? E Sócrates? E o PS?

Em primeiro lugar estas eleições constituíram a primeira mostra eleitoral da decadência da 3ª República. Os candidatos que se reclamavam como não partidários tiveram 71% dos votos. É óbvio que os seus votos vieram de eleitores que anteriormente votaram em partidos políticos, mas recolheram-nos de uma forma transversal. Cavaco Silva poderá ter feito o pleno do PSD, deve ter recolhido a maioria dos votos do CDS/PP, mas recolheu igualmente votos entre eleitores que anteriormente haviam votado PS, PCP ou BE. Manuel Alegre recolheu votos principalmente entre eleitores PS, mas também recolheu bastantes no CDS/PP, provavelmente poucos no PSD, e alguns entre o BE e PCP. As motivações destes dois conjuntos de votantes teria sido diferente, mas constituíram uma derrota para as máquinas partidárias e para a partidarização que tem levado a 3ª República rumo ao abismo.

Primeira conclusão é a de que o sistema partidário implantado com a 3ª República e aleitado ao longo de 30 anos, está caduco. Os eleitores encarregaram-se de o demonstrar.

Em segundo lugar, Cavaco Silva não tem possibilidades de fazer um primeiro mandato sem fazer ondas, como o fizeram Soares e Sampaio, que só despertaram das letargias após serem eleitos para o segundo mandato. Nem a situação do país permite a continuação das banalidades estéreis de Sampaio, nem a maioria dos eleitores que votou Cavaco espera que ele entre em hibernação.

Em terceiro lugar, o PS está numa encruzilhada. É certo que Manuel Alegre recebeu alguns votos da direita, quer pelas suas alocuções patrióticas, quer pelos ódios de estimação que existem no CDS relativamente a Cavaco. Mas Manuel Alegre é um homem da ala esquerda do PS. Mostrou, na sua luta contra Sócrates pelo cargo de secretário-geal do PS, que não faz a mínima ideia do estado em que o país está e da urgência da tomada de medidas difíceis, que bolem com interesses instalados … logo que criam alguma instabilidade social.

Nesse entendimento, Manuel Alegre pode protagonizar uma oposição de esquerda às medidas governamentais, apoiando-se na ala esquerda do PS, nos partidos mais à esquerda e nas forças sindicais. Ou seja, Sócrates pode ficar fragilizado dentro do interior do partido. Tem, como se calcula, o poder que lhe advém da distribuição das sinecuras. Mas se o clima social se agravar, esse poder pode revelar-se insuficiente. O PS poderá ficar partido entre os que aceitam as reformas de Sócrates, não porque gostem, apesar de muito moderadas, mas porque não há outro remédio, e aqueles que acreditam nos amanhãs que cantam, em odes recitadas por Manuel Alegre.

Em quarto lugar o PSD vai ter que mudar o estilo de oposição. Por exemplo, o comportamento que teve durante a discussão do OE 2006 não pode ser repetido. O OE 2006 tinha, e tem, muitas fragilidades, mas o PSD atacou-o apenas como oposição, não como um partido da área do governo, com responsabilidades. O PSD não pode correr o risco de se encarniçar contra uma medida governativa, que depois venha a ter o beneplácito do novo PR. Os líderes parlamentares do PSD perderiam a face. Portanto, o PSD terá que fazer uma oposição mais construtiva, a menos que dê de barato que o PSD e o PR tenham opiniões opostas sobre determinadas matérias mais delicadas e estruturantes.

Como se fará a coabitação? Será difícil. Sócrates tem-se revelado muito teimoso e vai ter pela frente um homem que sabe do que fala e que estuda os dossiers. Durante os primeiros meses será como no início de uma pugna desportiva, onde os contendores tentam adivinhar a táctica e a estratégia do outro, e em que nenhum deles quer correr riscos. Julgo que até à discussão do próximo OE 2007, a coabitação será pacífica, a menos que a crise económica se agrave dramaticamente por qualquer razão não descortinável de momento. Então se verá.

As possibilidades de tentar encostar Cavaco Silva à parede serão através de questões colaterais, vulgo fracturantes, como a questão do aborto. O PS poderá optar por esse tipo de guerrilha, para enfraquecer a imagem de Cavaco Silva, nomeadamente perante o seu eleitorado tradicional, mais ligado aos valores da família e do primado da vida. Mas certamente que Cavaco já terá pensado que política terá quando for confrontado com esses temas.

Publicado por Joana às 09:18 AM | Comentários (38) | TrackBack

janeiro 23, 2006

Dúvida Angustiante que se Desvanece

Reinava grande inquietação nos meios económicos, financeiros e políticos. Será que Teixeira dos Santos iria convidar Vítor Constâncio para mais um mandato como governador do Banco de Portugal? E admitindo que isso pudesse, porventura, acontecer, será que Vítor Constâncio aceitaria continuar no cargo? Essas dúvidas angustiantes tiravam o sono a economistas e financeiros, perturbavam a classe política e fizeram disparar o mercado de ansiolíticos em Portugal. Hoje veio a acalmia, o serenar dos ânimos, a queda na venda de ansiolíticos: Teixeira dos Santos e Sócrates, num gesto de elevado sentido de Estado, haviam convidado Constâncio para continuar naquele cargo e Constâncio, num gesto patriótico e abnegado, havia aceite.

Foi o próprio ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, que revelou hoje, com uma incontida emoção: «Apraz-me poder contar com Vítor Constâncio para mais um mandato», acrescentando, com a isenção que se lhe reconhece, que Constâncio tem «competência demonstrada para o lugar».

O exercício da democracia e da cidadania é bonito. Faz bem saber que se convidam pessoas para cargos que exigem rigorosa neutralidade, apenas pela sua competência, olhando despiciente para derrisórias ligações partidárias. E é bom saber que há gente que ama o seu país e se entrega abnegada e devotadamente à coisa pública, sem curar de saber se a coisa pública tem potência para satisfazer as suas necessidades mensais e lhe dar um arrimo para a velhice.

Publicado por Joana às 10:19 PM | Comentários (36) | TrackBack

Os Loucos do Pireu

Ou as Ilusões da Vitória

Escreve a Arte da Fuga sobre a derrota de «Mário Soares e a geração de socialistas dona de Abril. Acabou-se uma era. Acabou-se o direito de propriedade sobre a história». Provavelmente muitos outros pensarão assim. Desenganem-se. A esquerda é como o louco do Pireu, na Atenas clássica, que se reclamava dono do porto e de todas as embarcações que o demandavam. Não importava que só tivesse um pardieiro para se acolher, porquanto aquela posse ilusória valia mais para ele, que todo o tesouro da Anfictionia. A esquerda reclama-se dona da História, dos destinos da humanidade, da emancipação dos deserdados. Pode ser derrotada pela História, podem os destinos da humanidade inflectirem por um caminho oposto, pode criar sociedades que transformem todos os cidadãos em deserdados … a esquerda portar-se-á sempre como o louco do Pireu.

Basta observar a campanha de Manuel Alegre. Alegre apropriou-se, ao longo da campanha, de todos os vultos de interesse histórico. Evocou, em panegíricos solenes, todas a figuras conhecidas desde a extrema-esquerda até ao centro-esquerda; visitou e recolheu-se comovido, perante as campas dos ilustres antepassados, pois enquanto alguns candidatos preferiam o bulício das feiras, Alegre elegeu a paz dos sepulcros e o diálogo com os nossos egrégios avós. Na falta de apoio partidário, Alegre apropriou-se de tudo: República; 25 de Abril; Cidadania; Grupos de Cidadãs e Cidadãos (pois quê, todos??); Democracia; Esquerda; Extrema-Esquerda; Centro-Esquerda; Pátria; Poesia; Língua Portuguesa; Literatura; … e mais que a falta de tempo não me permite enumerar. Se a campanha tivesse durado mais alguns dias, tê-lo-íamos visto a recitar uma ode ditirâmbica frente ao túmulo de Afonso Henriques.

E sucedeu o mesmo, mutatis mutandis, com os restantes candidatos de esquerda. Talvez de uma forma menos notória, mas apenas porque eram candidaturas partidárias.

Aliás, toda a esquerda se comporta assim, tenha as derrotas que tiver, e, mesmo quando ganhe, seja obrigada a inflectir por vias contrárias àquelas que tem inscritas no seu código genético. E, no caso de vitória, se seguiu a via que está inscrita no seu código genético, continua imperturbável na sua tranquilidade de proprietária da História, quando anos depois se verificar que tornou uma população que aspirava à emancipação social, num conjunto informe de deserdados em desespero.

Publicado por Joana às 02:47 PM | Comentários (63) | TrackBack

janeiro 22, 2006

Resultados

Faltando apenas os resultados das duas freguesias onde houve boicote, cuja expressão é residual , o resultado das Presidenciais 2006 foi o seguinte:

CAVACO SILVA..............2745491........50,59
MANUEL ALEGRE............1124662........20,72
MÁRIO SOARES...............778389........14,34
JERÓNIMO SOUSA...........466428..........8,59
FRANCISCO LOUÇÃ..........288224..........5,31
GARCIA PEREIRA...............23650..........0,44

Relativamente à minha previsão de há dias, é curioso que a soma das percentagens de Cavaco e Alegre batem certo, havendo todavia uma transferência de cerca de 2,5 % de Cavaco para Alegre. Mas eu tenho insistido que, dada a transversalidade do espectro eleitoral destes dois candidatos, poderia haver erros nas previsões sobre eles. Insisti duas vezes: então, quando apresentei as minhas previsões, e hoje, quando apresentei as sondagens à boca das urnas. Também previ mal a distribuição de votos entre Soares e Jerónimo, mas a diferença foi menor, cerca de 1,5%.

Os resultados destas eleições constituem uma derrota pessoal de Mário Soares e uma derrota humilhante para a direcção socialista. A última fase da vida política de Mário Soares tem sido de uma completa falta de dignidade. Foi visível aquando do seu comportamento execrável nas eleições para a presidência do PE, em que foi em extremo grosseiro com a vencedora, Nicole Fontaine. O seu comportamento desprestigiante em sucessivos actos eleitorais, não é compaginável com o estatuto que espera obter da História. Este resultado é mais uma achega para o declive por onde enveredou Mário Soares. Não me parece, todavia, que Soares aprenda com esta lição. Ele tem mostrado que não aprende com os erros que comete.

O resultado de Manuel Alegre é preocupante. Manuel Alegre limitou-se a ser simpático e a dizer banalidades, bem ditas, com simpatia, mas apenas banalidades. Parte da votação em Alegre é um voto de protesto contra Soares, mas parte significativa é a prova de que muitos portugueses ainda não perceberam a situação em que o país está. A trágica situação do país não se cura com tiradas poético-patrióticas, com evocações de mortos ilustres e com banalidades simpáticas. A retórica de Alegre foi anestesiante. E parte do povo português mostrou que quer ser anestesiado, para só acordar quando a tormenta passar.

Cavaco Silva foi o que se esperava dele: um homem sem chama, que não consegue transmitir simpatia, demasiado racionalizado. Ganhou porque muitos o vêem como um D. Sebastião. Ganhou à tangente porque lhe faltou a capacidade de comunicação e porque, na ponta final, Alegre soube melhor protagonizar o tipo de D. Sebastião que muitos portugueses preferem … um D. Sebastião anestesiante …

Finalmente Sócrates mostrou que não sabe perder e, na pele de 1º ministro, não sabe agir educadamente com quem o contraria. Foi de uma enorme grosseria quando interrompeu a declaração de Alegre, esta noite, e foi extremamente grosseiro na resposta à questão sobre o MIT, há dias.

Nota: É incorrecto dizer que Cavaco ganhou por 0,59%. Cavaco teve mais 1,19% que os outros candidatos juntos (um pouco mais de 64 mil votos)

Publicado por Joana às 11:43 PM | Comentários (46) | TrackBack

Sondagens …

RTP/Antena 1 (Católica)
Cavaco Silva - 49% a 54%
Manuel Alegre - 20% a 23%
Mário Soares - 11% a 14%
Jerónimo de Sousa - 8% a 10%
Francisco Louçã - 4% a 6%
Garcia Pereira - 0% a 1%

SIC (Eurosondagem)
Cavaco Silva - 50.4% a 54.6%
Manuel Alegre - 17.7% a 21.5%
Mário Soares - 12.5% a 16.3%
Jerónimo de Sousa - 6.4% a 8.6%
Francisco Louçã - 4.1% a 6.3%
Garcia Pereira - 0.5% a 1.1%

TVI (Intercampus)
Cavaco Silva - 50,0% a 54,8%
Manuel Alegre - 18,4% a 22,4%
Mário Soares - 11,0% a 15,0%
Jerónimo de Sousa - 7% a 10%
Francisco Louçã - 3,4% a 6,4%
Garcia Pereira - 0,3% a 1,5%

A abstenção situar-se-á entre os 35% e os 39%.
Como eu escrevi anteontem, as margens de erro mais elevadas poderão ocorrer em Manuel Alegre e em Cavaco Silva, dado o espectro do seu eleitorado possível. Há todavia uma coisa que já é clara: A estrondosa derrota de Mário Soares. Avizinha-se uma noite das facas longas dentro do PS.

Publicado por Joana às 08:26 PM | Comentários (17) | TrackBack

janeiro 20, 2006

Previsões

As eleições presidenciais são de previsão mais difícil do que muitos julgam. As sondagens mostram tendências, mas há candidatos cuja margem de erro me parece elevada, pelo tipo de eleitorado onde pescam os votantes. Por exemplo, as sondagens sobre a votação em Manuel Alegre poderão revelar-se pouco fiáveis, mesmo feitas à boca da urna. O mesmo, embora em menor grau, se poderá passar com Cavaco Silva. São dois candidatos que recolhem votos de uma forma transversal ao espectro político, o que poderá complicar o tratamento estatístico das sondagens pela dificuldade de detectar alguns padrões. Em qualquer dos casos, resolvi fazer uma previsão. Passei os olhos pela blogosfera e dei-me conta do afã previsional de diversos bloggers e não quis destoar:

Cavaco Silva.............53,0%
Manuel Alegre...........18,0%
Mário Soares.............15,7%
Jerónimo de Sousa.......7,0%
Francisco Louçã..........5,5%
Garcia Pereira.............0,8%

Como escrevi acima, as margens de erro maiores serão as dos dois candidatos da frente, pelo tipo de eleitorado que têm. Erros que depois se poderão traduzir, proporcionalmente, nas percentagens dos restantes candidatos.

Domingo, à noite, veremos.

Publicado por Joana às 07:34 PM | Comentários (71) | TrackBack

janeiro 19, 2006

Continua o Lodo no Cais

On the waterfront

O Parlamento europeu rejeitou a liberalização dos serviços portuários, como irá rejeitar, no mês que vem, a proposta de directiva geral sobre a liberalização dos serviços. Este PE foi escolhido, há perto de 2 anos, por uma Europa em pânico, com receio das reformas que os governos tentavam, timidamente, introduzir, para melhorar a competitividade da economia mas que se traduziam, a curto prazo, na perda de alguns direitos adquiridos, sagrados e inalienáveis. É um Parlamento cujo lema é … morrer, mas devagar. A maioria dos seus representantes representa o último baluarte de uma Europa defunta. A esperança é que uma seiva vivificadora e revigorante faça reflorescer a árvore em vez desses troncos secos alastrarem, a ressequirem e a fazerem definhar.

Um dos grandes entraves ao comércio europeu e à competitividade dos seus portos é o corporativismo dos estivadores, cujas práticas pouco claras (para não dizer outra coisa) se vão tornando mais sinistras quanto menor é o nível de cidadania do povo e do país. Sucede por isso que países onde os custos laborais médios são menores têm, frequentemente, custos de movimentação de cargas mais elevados. Desde há alguns anos que, um pouco por todo o mundo, se têm desenrolado processos de privatização dos portos, de forma a diminuir a influência dos sindicatos de estivadores e do seu corporativismo improdutivo, com o objectivo de aumentar a sua eficiência e reduzir os custos de embarque e desembarque e a demora em movimentar as cargas dos navios.

O poder das organizações dos estivadores continua a ser obsidiante e torna reféns delas armadores, importadores e todos aqueles, mesmo dentro das suas fileiras, que não partilham dos seus objectivos. Têm autoridade de parar a movimentação de cargas, fazer essa movimentação como entenderem e de definir quais os estivadores que terão os melhores trabalhos. Têm a particularidade, rara em organizações sindicais, de fazerem a intermediação da mão-de-obra.

A estiva é considerada por muitos uma máfia e Elia Kazan utilizou, em “Há Lodo no Cais” (On the waterfront) o seu funcionamento mafioso para retratar, de forma indirecta, o funcionamento de outras organizações igualmente baseadas no uso da dissimulação e no abuso da violência psicológica (ou mesmo física) como instrumento de corrupção para usufruir o poder.

Não sei se foi o poder das organizações dos estivadores que levou o PE a rejeitar a liberalização dos serviços portuários, ou se a maioria do PE partilha, ela própria, da cultura do corporativismo improdutivo. O que não causaria estranheza, visto ele ter sido maioritariamente eleito por corporativismos estéreis e de vistas curtas.

Publicado por Joana às 09:44 PM | Comentários (87) | TrackBack

janeiro 18, 2006

Distorções Fiscais

Portugal tem um sistema fiscal pesado, iníquo, arbitrário e despótico. É uma situação que é um desincentivo à actividade económica. Mas Portugal necessita urgentemente de investimento estrangeiro. Ora nenhum investidor estrangeiro investe num país com um sistema fiscal tal como o nosso, a que se soma a burocracia administrativa e a ineficiência da justiça. Que faz então o governo? Muda o sistema fiscal e moderniza a administração pública? Nem pensar … os contribuintes portugueses hão-de ser sangrados até ficarem exangues. Nesse entendimento, quando negoceia um investimento com um grupo estrangeiro dá-lhe incentivos fiscais, para que ele invista no nosso país. Portugal tem assim dois regimes fiscais – Um pesadão, trôpego, que pilha a riqueza produzida pelos portugueses, estilo “Europa à beira mar pasmada” e outro, diferente, à moda da Europa do Leste, para alguns investidores estrangeiros predestinados.

O caso da Ikea é o mais estranho. A Ikea propõe-se investir 450 milhões de euros em Portugal até 2010, num plano de expansão que criará 1650 postos de trabalho directos em áreas comerciais e industriais. Todavia o investimento fabril, segundo os jornais, é apenas 32 milhões de euros. O resto refere-se a três novas lojas e dois centros comerciais. Foi isto que o ministro da Economia, Manuel Pinho, afirmou ser uma importante captação de investimento directo estrangeiro, uma "questão de vida ou de morte" para a dinamização da economia "porque este é o tipo de investimentos que vai permitir grande parte das transformações estruturais que necessitamos". Não percebo que transformações estruturais são possíveis com três novas lojas, dois centros comerciais e uma fabriqueta.

Por outro lado a Ikea vai concorrer com fabricantes de móveis, portugueses, que não têm as mesmas benesses fiscais. Que dirão os industriais de Paços de Ferreira, e os outros industriais do mobiliário, desta concorrência desleal patrocinada pelo governo? A razão indicada pelo ministro é que “a economia portuguesa tem de ser mais competitiva e estar mais virada para as exportações para se modernizar”, salientando que o investimento directo estrangeiro é uma alavanca extremamente importante para atingir esses objectivos. E o investimento nacional? Não pode tornar a economia portuguesa mais competitiva e mais virada para as exportações? Não … de facto não pode … não se pode ser competitivo com um regime fiscal “pesadão, trôpego, que pilha a riqueza produzida pelos portugueses”.

Um outro caso foi o anunciado pelo secretário de Estado do Turismo, durante a apresentação do Plano Estratégico Nacional para o Turismo. O Governo está a analisar incentivos fiscais para apoiar produtos estratégicos para o turismo nacional, inseridos numa estratégia que conduzirá «a uma cultura nacional de turismo». O turismo é uma actividade importante no nosso país, onde temos elevadas vantagens comparativas, cujo principal empecilho com que se tem confrontado tem sido a demora na aprovação dos projectos (às vezes mais de uma década) e a incapacidade em distinguir um bom projecto que salvaguarde a componente ambiental e paisagística, de projectos que são verdadeiras aberrações. Normalmente as entidades nacionais demoram muitos anos ou mesmo décadas a aprovarem projectos de qualidade, de grande envergadura, enquanto os autarcas vão permitindo a construção de milhares e milhares de perfeitas aberrações. Em Portugal só se contestam as obras de envergadura. Quanto ao resto, podem fazer-se as maiores monstruosidades que ninguém, ou poucos, se preocupam.

O turismo apenas necessita que o deixem à vontade e que decidam as aprovações rapidamente e com critério. Que não o estorvem com delongas e com permitir construir aberrações que retiram qualidade à paisagem e valor comercial ao turismo de qualidade.

Quem precisa de incentivos fiscais é o sector exportador, mormente o sector exportador que tem capacidade tecnológica ou de design para competir a prazo na arena internacional.

Que digo eu … quem precisa de incentivos fiscais é o país … isto é, precisa de um sistema fiscal moderno, justo, equitativo e leve. Não precisa de dois, ou vários, sistemas fiscais, nem precisa de mais distorções de mercado. introduzidas por essa dualidade fiscal

Publicado por Joana às 10:03 PM | Comentários (33) | TrackBack

janeiro 17, 2006

A Catástrofe

Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!.. O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos!

O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!

Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda – é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal!

Ah! Se nós tivéssemos sabido!

Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão. Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração! Já não se vê pela cidade aquela vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir.
As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de preparar cidadãos. Agora trabalhamos. Agora, lemos a nossa história, e as próprias fachadas das casas já não têm aquela feição estúpida de faces sem ideias, porque, agora, por trás da cada vidraça, se pressente uma família unida, organizando-se fortemente.

Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...

Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam, sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e, sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.
Como me lembro! íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças, dizer indolentemente:
– Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...

E em lugar de nos esforçarmos por salvar "isto" pedíamos mais conhaque e partíamos para o lupanar.
Ah! geração covarde, foste bem castigada!...
Mas agora, esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que "isto" está perdido: cala-se e espera; se não está animada, está concentrada...

E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festa, tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa, contando que celebre uma data nacional. Não em público – ainda o não podemos fazer – mas cada um na sua casa, à sua mesa. Nesses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe –se em evidência a linda velha Bandeira, as Quinas de que sorríamos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família cantamos em surdina, para não cha mar a atenção dos espias, o velho hino, o Hino da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!
E há uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum mundo quase religioso, as antigas festas da Pátria!

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Não … não fui eu que escrevi isto … A Carta já passou à história e a Constituição de 1976 também passará … trata-se da transcrição da parte final de um belíssimo e notável texto do Eça, «A Catástrofe», muito apropriado a esta problemática, publicado no fim do «Conde d’Abranhos»

Publicado por Joana às 11:40 PM | Comentários (15) | TrackBack

Mudança de Testemunho

No próximo domingo será eleito um novo presidente, a crer em todas as sondagens feitas até à data. Mas se não for eleito à primeira volta, alguém há-de ser eleito à segunda. Em qualquer dos casos, nas próximas semanas teremos um novo presidente.
A década de Sampaio foi o pior período da história democrática portuguesa, desde a Regeneração, se exceptuarmos o período esquizofrénico da 1ª República. Assistiu impávido à malbaratação dos dinheiros públicos durante o consulado de Guterres, que aproveitou o desafogo pontual fruto da adesão ao euro para criar artificialmente emprego, empolando os efectivos do funcionalismo público em 20%, e aumentando os vencimentos do sector público muito acima da produtividade; assistiu impávido à construção das SCUT’s que só começariam a ser pagas pelo erário público muitos anos depois e durante décadas; assistiu impávido às guerrilhas dos boys guterristas; assistiu impávido à ruína das contas públicas portuguesas. Durante o tempo do pior governo português, desde os tempos da Rainha D. Maria, limitou-se a proferir banalidades ou frases ambíguas, mais próprias da Pitonisa de Delfos que de um PR.

Sampaio assistiu impávido à ruína do país, ruína evidente pelas contas de então, mas mais evidente pelos compromissos assumidos a serem pagos pelas gerações seguintes. E Sampaio tem mais de duzentos assessores, muitos deles economistas. Só começou a importar-se com a Economia quando, com o governo de Durão Barroso, em vez de apoiar as tentativas de redução do défice, lançou o slogan de que «Há vida para além do défice» apoiando objectivamente os interesses corporativos que se encarniçavam contra as medidas de contenção. Só no tempo de Sócrates compreendeu que a vida que havia para além do défice era a vida da miséria e da ruína. Não se percebe como “eminentes” economistas, Teodora Cardoso e outros, lhe apadrinharam as banalidades e as imprudências que debitou sobre a economia portuguesa. Ou percebe-se, se atentarmos que há vida, e boa, para além da ética profissional.

A cena do governo de Santana Lopes é digna de uma república das bananas. Se Sampaio duvidava da capacidade de Santana Lopes, não o deveria ter indigitado, e se a coligação existente não encontrasse alternativa, dissolver então a AR. Em vez disso arrastou a indigitação, sujeitando-a a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política.

Ou seja, Sampaio criou um clima de instabilidade política permanente que culminou na sua decisão de dissolução de um parlamento com uma maioria que apoiava o governo em exercício, abrindo um perigoso precedente que pouco ou nada contribui para a estabilidade política do país. E foi uma total insensatez ter constrangido um governo demissionário, que não tinha quaisquer hipóteses de ganhar as eleições, a fazer o OE 2005 que nunca poderia ser mais que um documento para iludir o país na expectativa, defraudada, de dividendos eleitorais.

Sampaio deixa o cargo com o país desmobilizado e desorientado face a uma crise generalizada cuja solução não consegue descortinar. Sampaio foi um presidente fraco, sem prestígio, sem autoridade, banal. Como qualquer político que não tenha responsabilidades governativas e diga banalidades, teve sempre elevados índices de popularidades. Sampaio não deixa saudades, mas os portugueses tiveram o PR que mereceram.

E a saga continua. Os portugueses esperam um D. Sebastião que os tire do atoleiro sem que tal cause transtorno aos seus interesses ilusórios. Os portugueses não pretendem fazer nada nem pelo país, nem por eles próprios. Pretendem a redenção por um milagre. Outros pretendem um PR que diga banalidades, simpático, mas sem ideias, tirando algumas velharias tiradas do baú do politicamente correcto. Por isso Cavaco e Alegre vão à frente nas sondagens. Os candidatos que representam partidos estão na cauda. Um país descrente da política, desmotivado pela coisa pública, foge dos partidos a sete pés.

Talvez Cavaco tenha ideias sobre o que há a fazer. Simplesmente não cai na esparrela de as dizer, porque o eleitorado gosta de ser embalado com ilusões. Tem a experiência recente de Sócrates que foi eleito, mentindo descaradamente, e continua a mentir sempre que julga necessário.

Não se sabe se Alegre tem ideias, aliás não se lhe conhece qualquer ideia para o futuro do país. Em Setembro de 2004 era o líder da ala esquerdista do PS. Agora aposta na simpatia, na poesia e nas banalidades políticas e patrióticas. Um percurso demasiado largo para se lhe reconhecer qualquer consistência.

Sampaio foi o símbolo de uma década de declínio nacional. Mas os portugueses não aprenderam a lição. Quem aprendeu a lição foram os candidatos que tentam servir ao eleitorado aquilo que ele mais aprecia: ilusões … o milagre das rosas … a salvação do país numa manhã de nevoeiro.

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janeiro 16, 2006

A Campanha Presidencial

Não me vou referir à campanha propriamente dita, porque nada há lá que interesse. Louçã e Jerónimo estão na campanha apenas para vender os seus próprios produtos, portanto fazem parte doutro campeonato. Cavaco Silva não sai, nem um milímetro, do guião que a si próprio impôs. Nem deve. Qualquer coisa que ele dissesse politicamente “incorrecta”, cairia o Carmo e a Trindade, desde os outros cinco candidatos, até às centenas de jornalistas que espreitam ansiosos por qualquer deslize. Manuel Alegre diz banalidades patrióticas e aposta na simpatia e na comunicação. Entre o Manuel Alegre de agora, que tem um discurso transversal relativamente ao espectro político português e o Manuel Alegre de há um ano, ponta de lança da ala esquerdista do PS, disputando o cargo de secretário-geral do PS contra Sócrates, vai um abismo. Quanto a Mário Soares, parafraseando a minha avó … já não arrebanha o gado todo. É o melhor que se pode dizer dele.

Vou deter-me apenas propondo dois gráficos para análise. O primeiro, a tracking poll da Marktest, e o segundo, o conjunto das sondagens feitas pelas diversas empresas, desde 19 de Novembro do ano passado.

Relativamente a Cavaco Silva, verifica-se uma relativa estabilidade, embora no caso da tracking poll da Marktest, uma análise de regressão à série temporal pudesse indicar que se a campanha acabasse lá para Maio, talvez ficasse abaixo dos 50%. Todavia, nem a lei o permite, nem a população portuguesa aguentaria tal violência. As diferenças entre Louçã e Jerónimo de Sousa não são muito significativas. As margens de erro devem estar acima das diferenças que lhes são atribuídas.

Quanto à disputa entre Soares e Alegre, a partir da altura em que a máquina partidária do PS (e as sondagens enviesadas da Eurosondagem) entrou em acção, pareceu que Soares descolaria de Alegre. Todavia, ultimamente, Soares tem caído muito e Alegre subido. Note-se contudo que a penúltima sondagem (JN/Pitagórica) dá melhores resultados a Soares que a Alegre.

Apresento em seguida os gráficos para que cada um tire as conclusões, lembrando que sondagens … são apenas sondagens:


trackingpoll-Mt-16.jpg


Sondagens2.jpg

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janeiro 15, 2006

Abriu a Época de Caça ao PGR

A questão do envio pela PT ao MP do registo de chamadas de mais de 200 telefones tem todos os condimentos que caracterizam o Portugal de hoje: A ligeireza de procedimentos de uma empresa pública; a incompetência e o desleixo da administração pública, neste caso do MP; a falta de ética que com que se devassa a privacidade em busca de audiências; a incoerência de um PR que num dia defende que o «respeito pela protecção de dados pessoais» nunca pode servir «para impedir o cruzamento de informações através do qual podem ser detectados delitos» e no dia seguinte se arma em vítima por o nome dele constar de uma lista de registo de chamadas; a tentativa de liquidar o PGR que, desde que Paulo Pedroso foi indiciado, se tornou a Némesis do PS; a fragilidade de uma justiça que, quando confrontada com acusados politicamente poderosos, capitula perante eles; etc..

A forma desproporcionada como o PR reagiu à questão, evidencia que estava na calha uma tentativa de substituição do PGR em “tempo útil”. Por isso diversos publicistas se apressaram a declarar que a nota da Procuradoria (complementada pelo esclarecimento da PT) não fora considerada convincente pelo PR. Ora o que se sabe até à data é que o Ministério Público, a coberto de despacho do Juiz de Instrução Criminal competente, havia solicitado à PT a facturação detalhada, exclusivamente, do telefone fixo de Paulo Pedroso, o qual, à data, estava a ser investigado. A PT enviou todos os dados referentes aos telefones do cliente Estado, mas encriptando aqueles que não se referiam a Paulo Pedroso. Este procedimento é de uma grande ligeireza. É simples, num ficheiro Excel, através de uma simples query, exportar para outro ficheiro apenas aquilo que se pretende. Mas se os registos estão encriptados é complicado para juízes e procuradores, certamente pouco habilitados em informática, os destruir. Em primeiro lugar teriam que saber que eles existiam, depois retirar-lhes o filtro e finalmente apagá-los. Ou, em vez de os apagar, processo moroso e que poderia conduzir a erros, fazer o que a PT deveria ter feito, e que seria muito mais simples: exportar para outro ficheiro apenas os dados relevantes e destruir o ficheiro primitivo. Mas isto parece-me muita areia para a camioneta dos funcionários da justiça.

Tudo o resto será objecto de inquérito e, portanto, só se poderão fazer suposições. Houve certamente desleixo dos serviços. Os dados foram entregues para consulta de advogados da defesa, sem se saber que eles continham mais informação que a que deveria existir e/ou os suportes informáticos terão sido copiados e cedidos ao jornalista do 24 Horas, ou sabe-se lá o quê, mas certamente algo que nunca deveria ter acontecido.

A pressa do PS em que Souto Moura fosse à AR esclarecer o assunto, já na terça-feira, sublinhando que «não é benéfico um atraso no esclarecimento da situação», uma vez que «é necessário saber o que correu mal e o que realmente aconteceu», é de uma hipocrisia total. Certamente que o PGR não consegue fazer nenhum inquérito apenas num dia útil. O PGR já cometeu diversas gaffes devidas à fragilidade dos seus serviços. O PS apenas pretende que o PGR dê respostas antes de as ter, para que ele saia da AR com uma imagem de irresponsabilidade e de pouca credibilidade, na tentativa de arranjar munições para haver apoio político para a sua demissão.

Estas listas tiveram entretanto um resultado interessante. Ficámos a conhecer uma série de borlistas que não pagam telefone, apesar de já não exercerem cargos públicos. Por exemplo, Mário Soares, que possui três residências e não paga telefone em nenhuma delas. Foi encontrada, finalmente, uma razão para votar nele. Se for eleito PR, poupa-se a conta telefónica de um novo inquilino de Belém.

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janeiro 13, 2006

Variáveis Explicativas

Ontem, no DN, Ruben de Carvalho escreveu que: «É interessante verificar como as regalias dos trabalhadores cresceram com o surgimento do campo socialista e diminuem com o seu desaparecimento». Muita gente também se admira pelo facto de, nos dias em que as pessoas saem com guarda-chuvas, normalmente chove, que quanto maior for a percentagem de pessoas que sai com guarda-chuvas, mais chove e que, quando as pessoas decidem abandonar os guarda-chuvas, faz um dia de sol resplandecente. São dois fenómenos interessantes que têm uma coisa em comum. Em ambos os casos os observadores estabelecem uma correlação significativa, mas em ambos os casos trocam a variável independente (explicativa), pela variável dependente. Erros de principiante.

Na verdade o progressivo aumento do Estado social visou assegurar a equidade social e atenuar fenómenos de exclusão de forma a manter a coesão social, mas a sua transformação em Estado-Providência foi uma resposta, no pós-guerra, quer à intensa propaganda comunista, baseada nas alegadas virtudes do socialismo, que depois se verificou não passarem de grosseiras falsificações, quer à propaganda do Estado social nazi, que tivera, igualmente, bastante impacto junto dos trabalhadores.

O campo socialista faliu. O Estado social que preconizava, nem era social, nem era eficiente. O Estado-Providência europeu (não falo do português, que só é social para espoliar os contribuintes) apesar de social e medianamente eficiente, também caminha para a falência e terá que ser remodelado antes que seja tarde demais.

As causas são as mesmas. Um aumento desmedido do papel do Estado e a impossibilidade de ele assegurar com eficiência as tarefas de que se incumbiu ao longo de décadas. O campo socialista implodiu pelas mesmas razões pelas quais as regalias dos trabalhadores estão a ser postas em causa, ou seja, pelo facto do modelo social europeu não estar adequado às novas realidades e para evitar que ele impluda igualmente

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janeiro 12, 2006

Um Relatório com muitas Leituras

A forma como os meios de comunicação deram a conhecer ao público o estudo ontem apresentado pela Comissão para a Avaliação dos Hospitais SA é paradigmática de que algo vai mal na comunicação social e que muitos jornalistas não conseguem compreender que a sua profissão, pelo impacto público que tem, deve forçosamente cumprir as regras de deontologia. O relatório é o mesmo. Todavia os relatórios do relatório não só são diferentes como, em alguns casos, diametralmente opostos.

Por exemplo, O DN escreve que: Os portugueses ficaram prejudicados com a transformação dos hospitais públicos em hospitais SA? Segundo uma avaliação ontem apresentada, a resposta é não. A criação dos hospitais-empresa teve um "impacto nulo" no nível de qualidade e no acesso aos cuidados de saúde. Mas fez aumentar a eficiência com os mesmos custos, estas unidades passaram a produzir mais. E, em alguns casos, melhor.

Em contrapartida, o Jornal de Negócios é mais céptico, e titula: Hospitais SA são mais eficientes mas têm muitas falhas graves, embora depois escreva que “os hospitais transformados em sociedades anónimas são globalmente mais eficientes do que os do Sector Público Administrativo. Mas a aplicação do modelo empresarial no terreno está ainda muito longe dos resultados prometidos”

Enquanto isso, O Público é mais encomiástico e titula que os Hospitais SA são mais eficientes sem prejudicar os cuidados, escrevendo a seguir que mais de 2.300 mortes seriam evitadas anualmente se todos os hospitais públicos apresentassem a ligeira redução de taxa de mortalidade em internamentos registada nos Hospitais SA. Mais adiante escreve que têm custos 9% mais baixos e relata que os autores do estudo frisaram que «em geral, os hospitais com mais qualidade (menor mortalidade) têm custos mais baixos».

Ou seja, escrevo eu, os custos e a mortalidade estão relacionados positivamente. Um aumento de custos não significa melhores cuidados, mas sim uma maior desorganização e desleixo, como aliás já aqui escrevi mais que uma vez.

Em contrapartida, o Correio da Manhã escreve em letras gordas que “O estudo ontem apresentado pela Comissão para a Avaliação dos Hospitais SA é arrasador. Aponta falhas várias, que passam pela atribuição de subsídios aos hospitais menos eficientes, que se tornaram ainda mais ineficientes por problemas no modelo de financiamento e de gestão e ainda erros graves nas políticas de recursos humanos”
Mas depois de descrever o relatório como «arrasador», escreve algo verdadeiramente muito confuso: «Apesar das falhas, o estudo revela alguma eficácia, o que vem ao arrepio de outro relatório, divulgado em Novembro de 2005, pela Direcção-Geral da Saúde, que já se demarcou do mesmo, justificando que não era uma posição oficial. Contudo, concluía que os hospitais com gestão empresarial são menos eficientes do que os que mantiveram o estatuto público.». Ou seja, a eficácia, que a jornalista foi obrigada a revelar, vinha todavia ao arrepio de um relatório anterior que a jornalista enfatiza.

Talvez o que explique isto tudo seja a prosa de Avillez Figueiredo, no Diário Económico, quando escreve: “As notícias do bom desempenho dos chamados hospitais empresa são boas, e sublinham a excelente interpretação que o ministro da Saúde, Correia de Campos, faz do papel do Estado na sensível área dos cuidados públicos de saúde. Mas elas podiam ser ainda melhores se o assunto não fosse tabu em Portugal. Mas é. E sendo, continua fixado a premissas que arrastam decisões importantes. Mas assunto é sério, pelo que exige que dele se retirem demagogias ideológicas. O que obriga a um avanço por etapas.” E escreve adiante que «os cuidados de saúde não são privilégio da esquerda ou da direita»

Na verdade, quando face a um mesmo relatório aparecem versões jornalísticas tão diferentes e, no caso do Correio da Manhã, absolutamente contraditória com as restantes, é porque este assunto é tratado com «demagogias ideológicas» e que há jornalistas que confundem notícias e jornalismo de factos com “jornalismo de causas”.

Publicado por Joana às 10:48 PM | Comentários (46) | TrackBack

janeiro 11, 2006

Liberais Parabólicos

No tempo em que Jesus andava pelo mundo, as coisas eram simples: os discípulos eram convencidos a golpes de parábolas. Havia dúvidas e Jesus sacava de uma parábola ... era a parábola do semeador, da cizânia, das bodas, do bom samaritano, dos lavradores, etc.. E os discípulos eram fáceis de convencer porque queriam acreditar. Entre os crentes, qualquer parábola serve. Por isso Jesus nem precisou estudar Economia, nem Engenharia. Aos 12 anos já confundia os doutores no Templo com a sua ciência. É o que têm as verdades reveladas. Não precisam de argumentos. Bastam figuras de estilo. Eu julgava que com o advento da ciência e o declínio do pensamento escolástico, essa forma de argumentação teria caído em desuso, excepto nas relações com as crianças, para as determinar a comer a sopa. Aparentemente enganei-me.

Na parábola do jcd de hoje, a Parábola do Investimento Estratégico, ele linkou-me, com este versículo: «A compra de um carro é uma mera questão técnica que só pode ser correctamente analisada por especialistas». Ora eu nunca escrevi que as decisões de investimentos públicos fossem unicamente do âmbito dos respectivos especialistas. São decisões políticas, suportadas por estudos técnicos. O que escrevi e reafirmo é que a execução de investimentos públicos, que envolvem sempre questões técnicas, económicas e políticas complexas, não podem ser dirimidas em referendo, e expliquei porque julgava dessa forma.

Citando Burke, via Fareed Zakaria “Na perspectiva dos Founding Fathers, a democracia republicana, representativa, oferecia o perfeito equilíbrio entre o controlo popular e a decisão deliberativa. Um grande número de teóricos actuais da democracia não deixará de estar de acordo. A fórmula que resume melhor a concepção de James Madison vem-nos de um inglês, o filósofo e político whig Edmund Burke, que terá declarado, aquando de uma campanha política, aos seus eleitores de Bristol: «O vosso representante deve-vos não só os seus actos, mas também o seu julgamento e trai-o se, em vez de vos servir, sacrifica esse julgamento à vossa opinião [...] escolheste um representante, na verdade, mas quando o fizeste, ele não já é um representante de Bristol, mas um membro do Parlamento»” e mais adiante, citando Kennedy “Tal ponto de vista [a função de Senador ser simplesmente reflectir a posição dos seus eleitores] pressupõe que a população do Massachusetts me mandou para Washington para servir apenas de sismógrafo com a função de registar as mudanças de opinião pública [...] Os eleitores escolheram-nos porque tinham confiança no nosso julgamento e na nossa capacidade de o exercer, segundo o que possamos determinar serem os seus interesses, dentro dos interesses da Nação. Isso significa, se for necessário, ter o dever de dirigir, informar, corrigir e, por vezes, ignorar a opinião pública de que fomos eleitos representantes

Era interessante que meditassem no parágrafo anterior, antes de escreverem que «a Joana destacou-se na blogosfera pela defesa da liberdade de escolha individual, criticando a falácia socialista do planeamento central eficiente. Agora, diz que devemos confiar na "capacidade de julgamento deles para tomarem decisões"». Digo-o e julgo que estou bem acompanhada ao dizê-lo. O conceito que expus é um dos alicerces da democracia representativa e não vamos agora derrogá-lo apenas porque não concordamos com uma medida do Governo. Os princípios básicos não podem andar ao sabor das conveniências de momento.

Eu, no meu post de ontem, em ponto algum defendi quer a localização da Ota, quer a construção dos TGV’s, tal como foi apresentada, e muito menos defendi qualquer “planeamento central eficiente”. O que eu me insurgi foi contra a perversidade de convocar referendos nacionais para investimentos públicos. Apenas isso. Mas isso, os defensores do referendo passam ao lado. Tentam reverter o que escrevi, passando ao lado do essencial e enfatizando o não essencial. Por exemplo, quando referi que “Nós, quando elegemos os nossos representantes, confiámos na capacidade de julgamento deles para tomarem decisões”, foi no sentido de que referendar decisões daquelas abre um precedente perigoso.

Quanto ao novo aeroporto, ele é simultaneamente uma opção técnica e política. Tecnicamente concluiu-se que a capacidade da Portela se esgota num dado horizonte (e não vi ninguém contestar esta afirmação). Tecnicamente afirmou-se que “Portela + outro” criaria dificuldades na exploração e operação conjuntas. O que ouvi fazia sentido e verifiquei que alguns técnicos de reconhecido valimento, que inicialmente tinham defendido essa opção, mudaram de opinião. Todavia mantenho a dúvida sobre se construir um aeroporto tão longe de Lisboa será uma boa solução e o receio de que os efeitos directos e colaterais que a incomodidade da distância acarretam não tenham sido estudados com a ponderação suficiente.

Quanto à decisão política, ela cabe ao Governo. Pode fazer, não fazer, localizá-lo na Ota (por razões que não consigo discernir) ou noutro sítio. Os técnicos não tomam decisões políticas. Apenas fazem estudos para instruir processos que permitam a tomada (ou não) das decisões políticas. A sociedade civil pode e deve exprimir-se. E tem-se exprimido. O Governo apresentou estudos e fez sessões de “promoção” pressionado pela sociedade civil. Todavia o que verifico, entre os proponentes do referendo, é que face à incapacidade de uma argumentação minimamente sólida (parábolas e chavões não me parece que constituam argumentação sólida), preferiram a fuga para a frente, apelando, através do referendo, à mesquinhez pública. E isso acho perverso, perverso como princípio.

Um novo aeroporto nunca será “o motor do desenvolvimento”. Sócrates e Mário Lino poderão dizê-lo para mobilizar a opinião pública. Todavia, o congestionamento futuro da Portela, sem ser tomada qualquer decisão atempada, será, sempre, um “motor de subdesenvolvimento”.

Termino com uma citação do Popper (in Conjecturas e Refutações): «A opinião pública é perigosa como árbitro do gosto e inaceitável como árbitro da verdade. Mas pode, por vezes, assumir o papel de um iluminado árbitro da justiça. Infelizmente, pode ser "orientada". Estes perigos só podem ser neutralizados pelo fortalecimento da tradição liberal. ... A doutrina de que a opinião pública não é irresponsável, mas, de alguma forma, "responsável perante si própria" constitui uma outra forma do mito colectivista da opinião pública. A propaganda errónea de um grupo de cidadãos pode facilmente prejudicar um grupo muito diferente»

Publicado por Joana às 07:55 PM | Comentários (162) | TrackBack

janeiro 10, 2006

Perplexidade e Tristeza

Personalidades do Norte do país (juristas, economistas, professores universitários, etc.) apelaram, em carta aberta ao Parlamento, para que proponha a realização de um referendo sobre Ota e TGV. Isto causa-me perplexidade e tristeza. Questões técnicas complexas, que envolvem estudos de tráfego, engenharia, avaliação financeira e económica, estudos ambientais e o planeamento a longo prazo das infra-estruturas de um país, não podem ser dirimidas em referendo. Nós, quando elegemos os nossos representantes, confiámos na capacidade de julgamento deles para tomarem decisões. Fazer referendos sobre obras públicas significa abrir a porta à demagogia mesquinha e malthusiana e acabar definitivamente com investimentos públicos, quaisquer que eles sejam. O “Partido do Estado”, utilizando a expressão de Medina Carreira, tem milhões de bocas sedentas que trocarão tudo, desde o TGV até ao fontanário de Ermidas de Baixo, para continuarem a ser amamentadas e cada vez de forma mais suculenta. É isto que se quer? Amamentar ainda mais o Moloch por contrapartida dos investimentos públicos?

É óbvio que concordo que as decisões em relação à construção do novo aeroporto de Lisboa na Ota e ao comboio de alta velocidade estão a ser tomadas sem uma clarificação suficiente de muita coisa. Eu discordo frontalmente da localização do novo aeroporto de Lisboa na Ota, mas não há dúvida que é inadiável tomar uma decisão sobre o aumento da capacidade de tráfego aéreo, de e para Lisboa, e também me parece não haver dúvidas que construir um segundo aeroporto de dimensão semelhante ao da Portela não é viável do ponto de vista da operacionalidade e exploração conjuntas. Todavia parece-me que colocar o aeroporto de Lisboa tão longe de Lisboa não é uma boa solução e receio que os efeitos directos e colaterais que a incomodidade da distância acarretam não tenham sido estudados com a ponderação suficiente.

Porém, da parte de quem contesta o novo aeroporto de Lisboa na Ota só tenho ouvido ruído. Primeiro foi a exigência que fossem apresentados os estudos. Uma exigência óbvia, que eu aqui apoiei, e mais óbvia quando estávamos confrontados com uma porção de frases insensatas que o ministro Mário Lino andava então debitando. O governo apresentou os estudos e aqueles que contestavam o novo aeroporto de Lisboa na Ota continuaram a fazer o mesmo tipo de ruído que faziam antes. Exactamente o mesmo ruído. Emendo ... nem todos ... alguns mudaram, em maior ou menor grau, o julgamento que haviam feito antes.

Será que não existe, entre quem se opõe ao novo aeroporto de Lisboa na Ota, alguém que escalpelize os estudos e mostre que estão equivocados ou que contêm fragilidades? Por exemplo, numa entrevista dada há um mês ao Independente, um dirigente do banco Efisa revelou que o projecto Ota tem previstos 193 milhões de euros para contingências, ou seja, 7%. Se for assim, há uma fragilidade, porque de acordo com os critérios que definem as margens de contingência, e que são internacionalmente aceites, numa fase tão prematura, a margem de contingência deveria andar pelos 20% a 25%. Outras poderão ser detectadas. Mas para isso, em vez de ruído terá que haver estudo e reflexão.

Não haverá entre os juristas, economistas, professores universitários e etc., quem diga coisas mais consistentes, em estudo e reflexão, do que arengar que se trata de uma obra "sem um mínimo aceitável de contraditório" e com o aproveitamento do conhecido "quem cala consente", que são "decisões alegadamente suportadas pelo manto diáfano de uma maioria absoluta", que colocam os portugueses perante "a inevitabilidade de investimentos faraónicos que condicionam o futuro de várias gerações"?

A questão mais caricata é que o Governo apresentou os estudos e são os que acusam o Governo de se portar "sem um mínimo aceitável de contraditório", que não apresentaram qualquer contraditório consistente. Limitam-se a dizer que são obras faraónicas, que há países desenvolvidos que não fizeram obras similares, etc.. Agora pedem um referendo, porque "seria a oportunidade de exprimir diferentes pontos de vista sobre os investimentos e ter acesso aos estudos que estão na sua origem". Mas porque é que os não têm exprimido? Foi acaso vedado o acesso à comunicação social das personalidades nortenhas que fizeram o apelo ao referendo? Porque o pedem? Não será antes um apelo à demagogia para que medre na mesquinhez enraizada há muito na alma portuguesa? Não percebem que poderão estar a abrir uma Caixa de Pandora? Não percebem que os investimentos públicos não se esgotam na Ota e TGV?

Eu acho um disparate fazer-se o TGV Lisboa-Porto sem estarem apuradas as causas do descalabro que foi a Modernização da Linha do Norte. Todavia o TGV Lisboa-Madrid parece-me um investimento estratégico porque liga o país à rede europeia de Alta Velocidade. Além do mais, o percurso Lisboa-Madrid tem uma distância que não se consegue fazer em termos competitivos por caminho-de-ferro se não for com velocidade muito alta. Os estudos da RAVE indicam, segundo parece, que a linha Lisboa-Porto é rentável, enquanto que a linha Lisboa-Madrid só o será se for subsidiada. Terão sido considerados nesses estudos todos os efeitos directos, indirectos e colaterais? Não sei. Mas estes são assuntos que devem ser debatidos serenamente nos areópagos políticos perante processos e estudos devidamente instruídos e deixando que um debate público paralelo concorra para que a deliberação se enriqueça com as contribuições que forem trazidas à colação.

Não podem ser debatidos da forma como têm sido até aqui. Queremos os estudos! Vieram os estudos ... e depois? Que achegas consistentes houve? Nada. Agora pede-se um referendo. E a seguir? ... um plenário geral do país votando investimentos públicos de braço no ar? Será que o afã inconsistente do não, pelo não, estará a levar pessoas esclarecidas pela via da “democracia participativa” até sabe-se lá onde?

Ao adoptar a fuga para a frente, em vez de tentar mostrar erros ou fragilidades dos estudos e, acima de tudo, quais as alternativas que há, a contestação da construção do novo aeroporto de Lisboa na Ota e do comboio de alta velocidade perde credibilidade.

Publicado por Joana às 11:45 PM | Comentários (89) | TrackBack

janeiro 09, 2006

Começou a Campanha

A campanha das presidenciais começou e os candidatos (re)fizeram-se à estrada. Vão ser duas semanas difíceis e muito arriscadas para os candidatos e para as suas comitivas. Há o frio, há a chuva e há as gripes e pneumonias, há as mãos que se apertam, que sabe-se lá por onde andaram, há o interior do país cheio de galinhas e perus que poderão estar engripados, há as estradas de montanha pavimentadas de geada escorregadia, feitas em carros conduzidos por motoristas de estômagos atascados de linguiça assada nadando em vinho, há as feijoadas com entrecosto, repleto de colesterol, e há o efeito das feijoadas na comitiva (por isso, sabiamente, é sempre o candidato que vai à frente - ele não aguentaria o efeito estufa do metano a exercer-se durante duas semanas), há os chãos escorregadios dos mercados repletos de restos de nabiças e escamas de peixe, há os beijos às crianças ranhosas e às peixeiras tresandando a pexum, há o sovacão dos ciganos das feiras, há ... mas se o povo está nos hipermercados e nos centros comerciais, que vão os candidatos fazer para os mercados e feiras? Será por isso que nunca me confrontei com qualquer candidato, em qualquer eleição?

E o mais cómico é que eles começaram a campanha numa altura em que o país já está farto das Presidenciais 2006. Julgo que, em vez de «Portugal Maior», o mote da campanha do Cavaco devia ser «Uma Campanha Menor» ... «Votem em mim e acabem com este sacrifício» ... «Você tem mesmo coragem para aturar uma segunda volta?». Mário Soares já decidiu. Depois de ter batido o recorde mundial da calinada, na declaração de 50 segundos sobre Ribeiro e Castro e o terrorismo, Mário Soares achou que não voltaria a conseguiria um desempenho tão fabulosamente asnático … não quis defraudar os seus apoiantes … decidiu deixar de falar directamente com os jornalistas. Manuel Alegre, confrontado com as angústias do presente e o desespero do futuro, decidiu passar a entoar panegíricos a figuras de antanho. Em 20 de Janeiro deverá estar em Viseu a invocar Viriato. Enquanto isso, Jerónimo excomunga-o por infracção ao segundo mandamento, ao invocar o santo nome de Álvaro em vão. Com as autoridades eclesiásticas não se brinca, sejam da Igreja Católica Romana, sejam da Igreja Marxista Leninista. Louçã (porque será que cada vez que escrevo Louçã, o meu corrector ortográfico o transforma em Louça? ... o torna tão quebradiço e frágil?) continua a entusiasmar os seus apoiantes e a irritar o resto do país com o seu sorriso plástico e trocista.

País que suspira pelo fim deste sacrifício. País que não acredita em políticos e que desconfia do Estado, mesmo quando lhe exige auxílio. Ainda ontem se soube que o regime de repatriamento de capitais lançado pelo Governo apenas vai render aos cofres públicos cerca de 10% dos 200 milhões de euros previstos no OE 2005 e OR 2005. O Governo está perplexo pela falta de adesão a esta medida excepcional de regularização de capitais e agastado pelo facto de, por causa disso, o défice público de 2005 aumentar de 0,1%. Os nossos governos são de uma ingenuidade atroz. É como se um ladrão se surpreendesse por as pessoas porem fechaduras de dupla entrada nas portas e grades de ferro nas janelas. Com Governos que andam permanentemente a mudar as regras fiscais quem é que arrisca jogar limpo? Quando se joga às cartas com alguém que trouxe um baralho viciado, o melhor é fazer igualmente batota e esconder o máximo número de cartas na manga.

Enquanto o Estado não for uma pessoa de bem, dificilmente se confrontará com pessoas de bem.

Publicado por Joana às 10:55 PM | Comentários (71) | TrackBack

janeiro 08, 2006

Uma Campanha Alegre

O grande embate no próximo dia 22 será entre Manuel Alegre e Mário Soares. A candidatura de Manuel Alegre conseguiu um feito surpreendente, a crer nas percentagens que as sucessivas sondagens lhe atribuem. As candidaturas de Alegre e de Cavaco são as únicas transversais a todo o espectro político português, indo buscar votos da ponta direita à ponta esquerda. No caso de Alegre, a punção em algum eleitorado de direita foi conseguida através de um discurso cheio de apelos aos valores nacionais e patrióticos. E o embate entre Manuel Alegre e Mário Soares vai deixar algumas clivagens. A primeira delas já aconteceu com as empresas de sondagens.

Na realidade, esta campanha tem mostrado que há dois grupos de sondagens: o da Eurosondagem e o das outras (Aximage, Católica, Intercampus e Marktest). A diferença entre os dois grupos, no que se refere ao embate entre Manuel Alegre e Mário Soares, não tem qualquer característica aleatória. Há um enviesamento permanente.

No gráfico que se apresenta em baixo indicam-se os diferentes resultados, para cada candidato e, em cada candidato, por cada grupo de sondagens. No caso de Louçã e Jerónimo de Sousa não há diferenças significativas. No caso de Cavaco Silva já há uma diferença clara, que me parece com tendência a esbater-se. Será que Oliveira e Costa já se conformou com uma possível vitória de Cavaco Silva?

Todavia, é nas percentagens atribuídas a Manuel Alegre e Mário Soares que se verificam as diferenças mais significativas. Os valores atribuídos pela Eurosondagem a Mário Soares estão sempre muito acima dos valores atribuídos pelas outras empresas, enquanto que, no caso de Manuel Alegre, sucede exactamente o contrário.

A anunciada descida de Manuel Alegre não me surpreendeu. À medida que as máquinas partidárias começassem a engrenar, a tendência seria para uma diminuição do eleitorado de Manuel Alegre, devida à recuperação dos votos feita sob a influência das máquinas partidárias. As queixas iniciais de Manuel Alegre poderiam ser levadas à conta de “mau perder”. Todavia, após ter visto os recentes resultados da Católica e da Aximage, resolvi analisar os valores das sondagens repartidos por aqueles grupos, e o resultado foi este:

Sondagens.jpg

Relativamente às sondagens realizadas pela Aximage, verifica-se, a partir de certa altura, uma clara inversão das posições de Manuel Alegre e Mário Soares. Todavia não se trata de um tendência permanente, enquanto que no caso da Eurosondagem há uma diferença sistemática e bastante grande, a favor de Mário Soares.

Ora estas sondagens poderão influir nas decisões do eleitorado, principalmente o eleitorado socialista. Na escolha entre Manuel Alegre e Mário Soares, muitos socialistas optarão por aquele que tiver mais hipóteses face a Cavaco Silva. Por isso estas sondagens não são neutras. E se elas tiverem um enviesamento deliberado, então poderemos estar confrontados com uma tentativa de influir uma parte do eleitorado utilizando processos pouco claros. Rui Oliveira e Costa é um dirigente do PS. Está no meio da guerra que opõe parte do aparelho do PS a Manuel Alegre, tem provavelmente algumas telhas de vidro. Não me parece que a imagem dele fique bem nesta fotografia.

Publicado por Joana às 07:48 PM | Comentários (103) | TrackBack

janeiro 06, 2006

Os Reis Magos

Um Remake em Technicolor

Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade, os investigadores e os viciados no Google, há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela? Seria mesmo uma estrela? Ou um cometa? Ou uma nave de alienígenas à procura do Quinto Elemento (também conhecido por Cavaco Silva)?

Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Se em qualquer capital aparecesse gente assim, pelas esquinas, a fazer perguntas como aquelas, além de serem esportulados do ouro, incenso e mirra, não lhes sobejaria o suficiente, nem para aguar os camelos. Aliás, outros argumentistas coevos, como Lucas, Marcos e João, não referiram, nem os Reis Magos, nem os camelos, apenas pastores e ovelhas que andavam tresmalhados nas imediações. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.

Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus. Comecemos pelo cenário tradicionalista, o mais conforme aos textos litúrgicos.

Neste primeiro cenário era elementar colocar a questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador ou, na Lusitânia, o poder banalizador) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram, em conjunto, centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante de camelos escorrendo uma baba peganhenta e fétida, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.

Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:

1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato socrático-soarista de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos e financeiros para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;

2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice orçamental nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública e os Bancos Centrais reagiriam mal à saída, para destino incerto, atrás de uma estrela, ou sabe-se lá de quê, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias. A menos que a Corporação dos Moedeiros, no seu relatório de Inverno, desse nota pública de que as contas estavam uma lástima, mas tal não tinha qualquer relevância.

3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese do Ministro da Defesa ter desaparecido misteriosamente sem combate, por não ter conseguido convencer as escoltas a abandonar o solo pátrio sem ajudas de custo. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, que transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar cabimento orçamental para custear a escolta.

Portanto, apenas três hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice orçamental e de défice externo; ausência de escolta, etc.

Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam. Obviamente não tinha a memória minuciosa da Filomena Mónica.

Sendo assim demonstra-se que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tem poder explicativo na sua formulação tradicional. Impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, o Cenário Neo-liberal, por muito que custe aos defensores dos sistemas estatizantes.

Assim, a minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.

A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); o rei dos dislates (Jorge Coelho); o rei dos mentirosos (o primeiro-ministro Sócrates); “o Rei” tout court (Elvis Presley); etc..

Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente JS Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.

A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?

Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.

Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?

Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?

As respostas são doravante simples e elementares:

Quem são esses especialistas? – Economistas;

Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;

Porque eram reis? – porque ganharam fama, escrevendo as suas análises económicas em placas de argila de grande audiência pública;

Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra, mesmo correndo o risco de serem sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.

Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, sem pagar o ISPP relativo à água para os camelos, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo a declaração de liquidação que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluída no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal tinha as bases de dados completamente adulteradas, não conseguindo distinguir um camelo, do buraco de uma agulha, nem uma agulha, do buraco de um camelo.

Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.

Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar choupanas de colmo a 30 anos e as prendas para festejar as Saturnalias, deixando a bolsa sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.

Herodes aproveitou o crash bolsista e utilizou as «golden share» detidas nas sociedades vítimas da recessão, e mesmo nas que lhe tinham escapado, ficando com a gestão dos activos de todas elas. Os pequenos aforradores (a maioria deles com mais acções que as «golden share»), inocentes e pouco avisados, ficaram sem um óbolo. Foi este episódio que, ficcionado por historiadores menos avisados, ficou conhecido pela “matança dos inocentes”

Por isso, no regresso, os Reis Magos internaram-se na imensidão do deserto, fazendo um desvio para não voltarem a encontrar-se com Herodes, que havia arruinado a Judeia com uma política keynesiana, baseada no uso imoderado da despesa pública para financiar a reconstrução do Templo de Salomão. Levavam o burro à arreata, para o irem transformando em bifes durante o regresso a Ecbátana, e não queriam ter que o entregar como dação em pagamento das cobranças coercivas que os publicanos haviam emitido às centenas, suportadas pelas bases de dados forjados com o patriótico objectivo de angariar fundos para manter o défice público dentro dos limites do PEC imposto por Roma.

Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.

Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.

Semiramis Rubens_The Adoration of the Magi.jpg

Publicado por Joana às 10:39 PM | Comentários (102) | TrackBack

janeiro 05, 2006

Uma Mão Invisível às Tentações do Mercado

Ou … um estranho acordo

A Rússia e a Ucrânia chegaram a um acordo sobre o diferendo do gás natural. É difícil explicar o que é mais estranho: se a rapidez com que foi atingido um acordo, se o carácter extravagante, e mesmo inexplicável, dos seus termos, pelo menos os que foram tornados públicos. O gigante estatal russo Gazprom vende ao preço de mercado, tal como exigia, de 230 dólares por 1.000 m3. A empresa ucraniana, Naftogaz, a consumidora, paga esse gás a 95 dólares por 1.000 m3, em vez dos 50 dólares actuais. Como é possível o vendedor receber 230, reclamando a vitória negocial, e o comprador pagar 95, reclamando igualmente a vitória negocial? Simples: há uma outra empresa que suporta a diferença: a RosUkrEnergo, controlada em partes iguais pela Gazprom e a Naftogaz. Ou seja, dois monopólios estatais põem uma empresa detida por ambos a suportar a diferença e a pagar as facturas das vitórias!

Se a questão incluísse apenas o gás russo, dir-se-ia que ambas tinham combinado um preço de 162,5 dólares, ou seja, a Gazprom perdia 67,5 dólares relativamente ao preço de mercado. A solução não é tão simples, visto que a Ucrânia importa gás mais barato da Ásia Central – principalmente no Turcomenistão e Usbequistão, mas também no Cazaquistão – que misturado nos gasodutos russos, é depois facturado àquele preço à Naftogaz. E a RosUkrEnergo, que até aqui estava encarregada do fornecimento de gás do Turcomenistão, passa o controlar o fornecimento de todo o gás que entra na Ucrânia, vindo da Rússia.

Por sua vez, num outro contrato paralelo, o preço do trânsito do gás nos gasodutos ucranianos sobe de 1,09 para 1,6 dólares por 1.000 m3/100km, o que é bastante favorável à Ucrânia.

Todos se reclamam da vitória. É uma vitória inexplicável em termos económicos, mas é uma vitória política para cada uma das partes envolvidas. A Rússia percebeu que manchar a sua reputação de fornecedor fiável a poderia prejudicar a longo prazo. A Ucrânia percebeu que tinha que ir aproximando o preço que pagava pelo gás, do preço de mercado. Todos ganharam … por agora … excepto a RosUkrEnergo.

Resta saber as sequelas. A RosUkrEnergo é uma empresa que dizem ser controlada a meias pelos 2 monopólios estatais, enquanto outros afirmam que se trata de uma sociedade registada na Suiça, cujos accionistas são filiais da Gazprom e o Banco Raiffeisen (austríaco) e sobre a qual a Ucrânia tem pouco controlo. Se for verdade que a Ucrânia não tem controlo sobre a empresa que assegura o seu abastecimento de gás natural vindo da Rússia, então pode estar à mercê de um diktat moscovita. Todavia, enquanto o futuro gasoduto não for construído, e vai demorar alguns anos a sê-lo, a maioria do fornecimento de gás russo à Europa vem via Ucrânia. A Rússia não se arriscaria a tomar uma atitude que acentuasse o fantasma de fornecedor pouco fiável que pairou agora sobre ela. Portanto a Ucrânia terá a pena suspensa enquanto adapta a sua economia ao progressivo aumento do preço do gás natural que importa.

Outra sequela é o aumento dos custos energéticos que a já depauperada economia ucraniana irá sofrer. Serão bem menores do que se previam, se a vontade de Moscovo vingasse, mas influenciarão negativamente a economia e o emprego.

Este emaranhado mostra que as combinações e acertos de preços entre monopólios estatais se fazem de forma mais misteriosa e esotérica que a acção da Mão Invisível. Ao menos esta gera equilíbrios que são explicados pelas funções de custo e de utilidade, que têm um suporte matemático bastante refinado. A concertação de monopólios estatais gera equilíbrios inexplicáveis por quaisquer modelos matemáticos e que só são equilíbrios enquanto houver necessidade política em os manter. Quando essa necessidade desaparecer, serão concertados, ou desacertados, novos equilíbrios inexplicáveis, ao sabor de novas vontades políticas. O funcionamento do mercado, pela sua modelização, permite um planeamento do futuro dentro de uma determinada margem de erro. Os “equilíbrios” gerados pela concertação de monopólios estatais variam consoante as vontades que prevalecem nas relações de força. E só quem está por dentro dessas vontades tem dados suficientes para fazer um planeamento … que só é válido até que outras vontades prevaleçam e os anteriores equilíbrios sejam subvertidos.

O que há de invisível na mão que rubricou este acordo são as eventuais combinações que estão subjacentes aos termos gerais que vieram a público e o que cada um dos parceiros congemina para a próxima jogada. Porque quando há um abismo a separar duas posições e, de repente, há um acordo onde todos afirmam que ganham, é porque um deles, ou cada um deles, cogita alguma jogada futura que julga lhe vai, de facto, permitir ganhar.

Não foi um armistício, mas um cessar-fogo.

Publicado por Joana às 10:23 PM | Comentários (49) | TrackBack

janeiro 04, 2006

É Bom ter um Governador do BP

Mas não chega

Vitor Constâncio, na apresentação do Boletim Económico de Inverno do BP, afirmou que «a correcção dos erros do Orçamento inicial de 2005 e o realismo do Orçamento aprovado para este ano fornecem uma indicação positiva sobre a possibilidade de se cumprir aquele objectivo». Em teoria deveria ser assim: O OE 2005 foi feito por um governo demissionário, prestes a ser julgado (ele e o respectivo OE) nas eleições e que não teve possibilidade de executá-lo. O OE 2006 foi feito por um governo maioritário, que não seria julgado eleitoralmente por esse OE e que sabia que o teria que executar. Na prática sucede que o OE 2006 inicial (pois, por este caminho, haverá vários rectificativos) também está cheio de erros. E alguns foram finalmente detectados pelo BP ao rever em baixa diversos indicadores.

Desde a aprovação do OE 2006 que diversas fontes (este blog, por exemplo) têm afirmado que o crescimento previsto era irrealista. Logo em 19-10-2005 escrevi aqui que «A previsão de 1,1% de aumento do PIB em 2006, que condiciona todos os restantes rácios relativos à Despesa Pública e às Receitas do Estado, baseia-se por sua vez nas previsões sobre a variação das exportações (+ 5,7%)» … e que «Estas previsões são muito frágeis e podem comprometer o valor final da Despesa Pública e do défice em termos de percentagem do PIB». Depois disso voltei aqui a referir, por diversas vezes, o carácter irrealista daquelas previsões (clicar na coluna da direita em Economia Portuguesa), nomeadamente em 11-12-2005: «A previsão do PIB para 2006 baseava-se numa previsão demasiado optimista do comportamento das exportações. A variação que se constatou nos últimos 4 ou 5 meses, no que respeita às exportações, mostrou que aquela previsão deixara de ser optimista e passara a ser inverosímil». No presente relatório o Banco de Portugal reviu em baixa o crescimento do PIB português, prevendo um aumento de 0,8%, e das exportações, para as quais prevê um crescimento de 4%. Esta revisão em baixa do aumento do PIB trará necessariamente uma revisão da taxa de desemprego … mas em alta. Mas isso não é matéria do BP.

Pessimismo? Não … porque a seguir o Governador do BP adverte que as previsões constantes do relatório que estava a divulgar, poderiam piorar se os investimentos que a Autoeuropa teria anunciado, não se concretizassem: «É isso que está implícito nas nossas previsões. Se isso não se verificar as previsões serão afectadas negativamente». Ou seja, o Banco de Portugal não corrigiu os erros, apenas os actualizou em face do desempenho da nossa economia nos últimos quatro meses do ano. A previsão do aumento das exportações em 5,7% era completamente insustentável, e foi revista para 4%, mas sempre contando com o ovo na cloaca da galinha. Compreende-se o pânico do ministro Manuel Pinho quando soube da recusa dos trabalhadores da Autoeuropa em aceitarem o pré-acordo laboral. Já não se trata apenas de investimentos … poderemos vir a falar de desinvestimentos ...

Fazendo um trocadilho com o que escrevi em 11-12-2005, «aquela previsão deixou de ser inverosímil e passou a ser optimista».

Mas Vítor Constâncio exige ainda outra condição, pois «a possibilidade de a economia retomar um caminho de crescimento económico significativo depende essencialmente da capacidade das empresas reagirem apropriadamente aos desafios da concorrência no quadro liberalizado em que nos movemos». Não interessa a burocracia anquilosada e paralisante, a justiça cuja ineficácia premeia os infractores, o sistema fiscal ininteligível, arbitrário e que muda as regras a meio dos campeonatos, o sistema laboral rígido, etc. Não interessa que o «quadro liberalizado em que nos movemos» apenas exista lá fora, porque cá dentro, movemo-nos no quadro rígido criado por uma cultura estatizante de longa data. Nada disso interessa a Vítor Constâncio, pois é matéria da esfera governativa e ele, provavelmente, não espera que o Governo reaja «apropriadamente aos desafios da concorrência no quadro liberalizado em que nos movemos». Os outros que o façam, se querem que o país não se afunde.

Assim sendo, os empresários que se amanhem, pois o país, com Vítor Constâncio à frente, já lhes sinalizou a “Ordem do dia”: Portugal espera que cada empresário cumpra o seu dever.

Se perdermos a batalha, já temos a quem imputar responsabilidades.

Esperemos pelo Boletim da Primavera do BP, que nos pode trazer uma invernia ainda mais tormentosa. Se é bom o Governo ter um ministro da sua cor política, para lhe branquear as desgraças, tal não é bastante, pois não é por ficarem mais brancas que as desgraças deixam de acontecer.


Nota: As palavras de Vítor Constâncio foram respigadas do Jornal de Negócios

Publicado por Joana às 11:56 PM | Comentários (123) | TrackBack

janeiro 03, 2006

A UE e o diferendo Russo-Ucraniano

A guerra do gás natural entre a Rússia e a Ucrânia veio confrontar novamente a Europa com a questão da energia. A Rússia é o maior produtor mundial de gás natural e a Europa está bastante dependente desse gás (25% do consumo europeu) e a sua dependência irá aumentar face ao aumento dos consumos e ao esgotamento progressivo das reservas norueguesas. Presentemente, 80% das importações provenientes da Rússia passam pela Ucrânia, enquanto não for executado um novo oleoduto construído por uma sociedade onde a Gazprom (tutelada pelo Estado russo) tem 51% do capital e o resto é detido por empresas alemãs. Empresa cujo CA é presidido por Schröder que, enquanto Chanceler, ajudou à concretização do negócio e, quando perdeu as eleições alemãs, ganhou um lugar chorudo no CA. Enfim … o doce charme da burguesia … O mesmo charme que seduziu Pina Moura na Iberdrola.

A crise foi originada pela decisão da Gazprom em aumentar o preço de venda do gás natural à Ucrânia, em quase cinco vezes, fazendo-o coincidir com o preço do mercado. Aparentemente a Ucrânia estaria disposta a aceitar o aumento de preços, desde que esse aumento fosse bastante faseado no tempo. Esta guerra tem contornos políticos. O preço anterior era um preço político, que visava manter a Ucrânia na esfera de interesses moscovita, e o aumento actual, embora acertando o preço com o valor de mercado, tal como a UE o paga, tem sobretudo contornos políticos (pelo timing e carácter drástico), visando influenciar os eleitores ucranianos nas próximas eleições legislativas, tentando afastar a Ucrânia da UE e dos EUA. A acusação de roubo visa sobretudo a opinião pública interna, pois a Ucrânia tem, por contrato, direito a 15% do gás que circula no seu território a título de “portagem”.

O corte afecta sobretudo o abastecimento à Europa Central e Oriental … e afectará politicamente Schröder, ligado profissionalmente à empresa que está a cortar o gás natural de que a Alemanha é consumidora em 30% das suas importações. Já não bastava a falta de ética em aceitar aquele cargo …

A cartada energética russa pode criar problemas à Europa no curto e médio prazo, mas fará certamente com que esta comece a diversificar as suas fontes, tornando-se menos dependente do gás russo. Portanto a longo prazo (*) poderá revelar-se contraproducente para a Rússia, pois os seus clientes ficarão mais precavidos sobre a sua fiabilidade comercial. Ou seja, esta guerra poderá ter (e deveria ter) o efeito da Europa rever a sua política energética de forma não ficar à mercê de diktats. Para começar terá que diversificar mais os seus fornecedores de combustíveis fósseis e, a prazo, desenvolver novas formas de energia.

Todavia o actual leque de opções é limitado. As energias renováveis actualmente industrializadas terão sempre um contributo pequeno para o consumo energético europeu. A opção nuclear permite produzir electricidade, mas não satisfazer o consumo a nível de transportes e outras utilizações. O mesmo acontecerá com a fusão nuclear, que nem daqui a 50 anos deverá estar em condições de ser utilizável. A energia marítima (ondas e correntes) ainda está numa fase muito incipiente, enquanto que a energia das marés só é possível ser captada em situações muito pontuais e restritivas.

Portanto, não haja qualquer dúvida que nos próximos 20 anos o Mundo continuará dependente dos combustíveis fósseis para produção de energia, e a Europa dependente das suas fontes de fornecimento. A solução será diversificá-las.

Voltando ao diferendo Russo-Ucraniano, a Rússia terá pouco interesse em irritar a Europa. A Europa depende dos fornecimentos russos de gás natural e petróleo, mas a Rússia depende da tecnologia e dos investimentos ocidentais. A Europa pode, a médio prazo, diversificar as suas importações de combustíveis fósseis, mas a Rússia não tem alternativas a nível de tecnologia e dos investimentos, porque nesta matéria a Europa pode ainda contar com o apoio dos EUA, muito interessados na evolução política ucraniana e numa eventual adesão daquele país à NATO e à UE. Como o corte de gás à Ucrânia afecta o abastecimento de gás à Europa, a margem de manobra dos russos não é tão grande quanto seria, se não houvesse esse efeito colateral. Em qualquer dos casos, a Ucrânia, mais tarde ou mais cedo, terá que pagar o gás natural ao preço de mercado. E mesmo que deslize para a órbita moscovita, certamente que o preço político, existente até ao fim do ano passado, não se poderá manter indefinidamente.

Resta ver qual a influência do diktat moscovita no eleitorado ucraniano. No Leste, onde a população é maioritariamente russófila, pouco irá alterar, visto essa população já ter votado massivamente contra o actual presidente. Na parte Oeste, historicamente mais ligada à Europa, o prognóstico será mais difícil. Todavia as ameaças têm, com alguma frequência, efeitos contrários àqueles que, quem as produz, espera.


(*) Nota: A longo prazo não estamos todos mortos …longo prazo, em Economia, é um prazo superior a 4 anos. Será muito pessimismo pensar nessa mortalidade geral … nem com a gripe das aves.

Publicado por Joana às 09:44 PM | Comentários (66) | TrackBack

Plágios e Dejectos

Há dejectos de familiares do Santo Ofício, ressequidos pelo tempo e inertizados pela ausência de seiva vital, restos insidiosos e bafientos que, à falta de uma vida, vegetam dedicando-se à devassa mesquinha do que os outros escrevem, não no intuito de debaterem ideias (por ausência de objecto de debate nas suas mentes vazias), mas com o estéril objectivo de encontrarem frases que já foram escritas por outrem. O que nas suas mentes bolorentas escasseia é suprido pelos motores de busca da net. Estes homúnculos libam o que vem à net, para provarem o seu parasitismo inquisitório aos sabujos da sua laia, e a sua ignorância ao mundo, pois a sua estultícia não lhes permite triar o bom do mau. Como não têm ideias, afadigam-se tentando mostrar que os outros também as não têm.

Não conheço o caso da Joana Amaral Dias, que tomei conhecimento, ontem à noite, via Blasfémias. Como também não conheço o caso da Carla Quevedo, passado há meses (com um blog frequentado pelo mesmo nick), que só li em diagonal. Mas conheço o caso que se passou comigo e o desprezo que voto a esse bisbórria, de nick Luís Rainha, permite-me afirmar com segurança que tudo o que venha desse inquisidor serôdio só me merece o prejuízo da dúvida. Desprezo aqueles que vivem da devassa alheia, que espreitam pelos buracos das fechaduras, que vigiam entradas e saídas, que metem as mãos nos caixotes dos lixos, sempre numa afanosa e permanente busca de descobrirem algo que prove que há gente ainda mais inútil, medíocre e incapaz que eles. Na altura ainda pensei que poderia haver motivos políticos. Vendo agora o caso JAD concluo que se trata apenas de uma malformação congénita: a tentativa da auto-promoção pela denúncia, pela bufaria. Não passam de espreitas, que merecem o mesmo destino das cartas anónimas: o lixo.

Só uma adenda curiosa ao meu caso. Algumas das frases cuja cópia da net fui então acusada, transcrevi-as (na altura não o disse, pois citei apenas as fontes de que esta autora se servira, livros que aliás eu também tenho *) do livro Os Templários da Régine Pernoud (a maior historiadora medieval francesa do século XX). Houve um cretino ignorante que na altura gozou com a tradução que eu fizera. Ele que se queixe da Maria do Pilar Delvaulx, que foi quem traduziu o livro para a Europa-América (nº 164 Colecção Saber). E o que era mais caricato era aquela matilha de trogloditas, que me ladravam às canelas, considerarem o site da net, onde julgo que 2 frases (ou períodos) eram idênticas às minhas, como a Bíblia sobre a matéria, quando aquele site eram transcrições ipsis verbis da edição francesa do livro da Régine Pernoud, sem qualquer menção da autora. Eu demorei uma tarde de domingo a escrever os 5 textos sobre o Código Da Vinci (1, 2, 3, 4 e 5), apenas com o intuito de divulgação; os espreitas despenderam dias em buscas estéreis na net. Estéreis, porque não aprenderam nada, apenas satisfizeram a sua ânsia pela delação e maledicência

Na altura ainda dei trela a um deles (enfim … ele até tinha um duplo tt no apelido …) até ter verificado rapidamente que, embora latindo de mansinho, fazia parte da mesma matilha.

Um conselho final sobre denúncias provenientes dali - não se dignem responder, deitem imediatamente no lixo.

(*)Dupuy Traittez … concernant la condamnation des Templiers … Paris 1654
Michelet - Le Procés des Templiers Paris 1841

Ver aqui:
Confesso ... plagiei
Plágios e Fontes

Publicado por Joana às 01:12 PM | Comentários (137)

janeiro 02, 2006

Boas e Más Perspectivas

O sector privado enfrenta 2006 com perspectivas diferenciadas, consoante o caso. Há sectores que prevêem melhorias, outros prevêem um ano bem pior que o de 2005. Numa leitura apressada pensar-se-ia que tudo se saldasse num equilíbrio, nomeadamente no que toca ao emprego. Infelizmente os sectores que esperam melhorias, como a banca e os seguros, contam que tal aconteça por um ligeiro aumento do volume de negócios e pela continuação da diminuição dos custos, leia-se: diminuição dos efectivos. Quanto aos sectores que esperam um ano bem pior, têxtil, calçado e construção civil, são os principais sectores empregadores e o aprofundamento da sua crise levará a mais falências, deslocalizações e aumento do desemprego. Resumindo: se exceptuarmos as empresas na área tecnológica, ainda com reduzido impacto no emprego, quer os sectores optimistas, quer os sectores pessimistas prevêem diminuir os seus efectivos.

É fácil darmo-nos conta do desemprego nos sectores do têxtil, calçado – basta ligarmos a televisão e vermos os trabalhadores à porta das fábricas, firmes e obstinados em não permitirem a retirada de equipamentos obsoletos com os quais trabalharam durante tantos anos. Todavia o desemprego na construção civil processa-se silenciosamente. As grandes empresas de construção civil têm um núcleo duro – fundações, estruturas, project management – e o resto é dado em subempreitada a pequenas e médias empresas, muitas das quais arregimentam os efectivos a título precário. Quando a obra acaba aqueles efectivos ficam desocupados. Se não houver nada no horizonte, ficam no desemprego, muitos deles sem possibilidade de recorrerem ao subsídio por diversas razões ligadas à precariedade do seu estatuto ou por estarem em situação ilegal.

As previsões do Governo para 2006 têm sido revistas em baixa mas, apesar de nos porem na cauda da Europa quanto ao crescimento, são ainda optimistas. O Governo baseou essas previsões na expectativa que as nossas exportações cresçam 5,7%. Ora esta perspectiva tem pouco fundamento, dada a evolução actual das nossas exportações. O reduzido dinamismo que se nota na UE, nosso principal cliente, não terá reflexos no aumento das nossas exportações. Os nossos sectores exportadores tradicionais sofrem, dentro da UE, a concorrência dos países asiáticos. A agravar esta situação está o actual braço de ferro entre os trabalhadores da Auto Europa e a respectiva administração. Se não houver acordo, bem pode o Governo mandar às urtigas as previsões para 2006 e preparar-se para uma recessão fortíssima. Mas mesmo que haja acordo, é pouco provável que aquelas expectativas se concretizem.

Não são de prever investimentos estrangeiros significativos em Portugal em sectores exportadores. Portugal não tem actualmente qualquer atractividade para um investidor estrangeiro: uma burocracia paralisante, uma justiça ineficaz, um ónus fiscal pesado, confuso e arbitrário, uma legislação laboral restritiva, baixa qualificação da mão-de-obra. Dentro da UE há países muito mais atractivos que o nosso, para onde se estão a dirigir os investimentos e que crescem com taxas elevadas. Mas entre nós subsistem muitos suicidas que são adeptos entusiastas do nosso modelo de empobrecimento sustentável e são eles quem “mais ordenam” na comunicação social e nas esferas políticas e sindicais.

Os sectores abrigados do exterior também vão ser pouco a pouco afectados. O mau desempenho económico dos sectores abertos vai reflectir-se, por via da diminuição do rendimento das famílias, no funcionamento dos sectores protegidos do exterior. E por uma sinergia negativa, será depois o próprio Estado que terá dificuldade em sustentar-se pela incapacidade em manter o nível de receitas.

Até agora o Governo só tem tomado medidas que, mesmo quando são correctas do ponto de vista da justiça social, são insuficientes e não passam de paliativos no que respeita à despesa. O próprio projecto de reestruturação de carreiras, que pretende travar o automatismo das progressões, apenas poderá poupar uns 100 milhões de euros anuais nas despesas com pessoal (1/7 da renda anual das SCUTs!). A convergência da idade da reforma, medida justa do ponto de vista da equidade social, também terá, no médio prazo, um efeito ainda mais pequeno na despesa pública.

O Governo tem a seu crédito o ter mostrado que era possível enfrentar os interesses corporativos que têm paralisado o país e angariar o apoio da opinião pública para esse objectivo. Mas isto é apenas um tabu que se quebra. Em si quebrar um tabu é somente um sinal que se dá. Só será relevante se for para avançar na direcção que a veneração por esse tabu proibia. E o que é imperioso é o Governo atacar em força o despesismo e pôr o sector público a funcionar com eficiência.Sem isso não há retoma possível. Só tolos se podem iludir sobre tal.

É evidente que o país tem capacidade de regeneração. Os países não morrem de morte natural. Quanto mais a situação se agravar, menos suicidas, adeptos entusiastas do nosso modelo de empobrecimento sustentável, haverá. E menos gente será iludida por eles. A questão é saber em que ponto descendente do nosso declínio, os suicidas serão tomados por aquilo que efectivamente são: suicidas maníacos.

Publicado por Joana às 10:33 PM | Comentários (47) | TrackBack