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janeiro 17, 2006

A Catástrofe

Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!.. O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos!

O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!

Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda – é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal!

Ah! Se nós tivéssemos sabido!

Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão. Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração! Já não se vê pela cidade aquela vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir.
As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de preparar cidadãos. Agora trabalhamos. Agora, lemos a nossa história, e as próprias fachadas das casas já não têm aquela feição estúpida de faces sem ideias, porque, agora, por trás da cada vidraça, se pressente uma família unida, organizando-se fortemente.

Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...

Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam, sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e, sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.
Como me lembro! íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças, dizer indolentemente:
– Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...

E em lugar de nos esforçarmos por salvar "isto" pedíamos mais conhaque e partíamos para o lupanar.
Ah! geração covarde, foste bem castigada!...
Mas agora, esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que "isto" está perdido: cala-se e espera; se não está animada, está concentrada...

E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festa, tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa, contando que celebre uma data nacional. Não em público – ainda o não podemos fazer – mas cada um na sua casa, à sua mesa. Nesses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe –se em evidência a linda velha Bandeira, as Quinas de que sorríamos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família cantamos em surdina, para não cha mar a atenção dos espias, o velho hino, o Hino da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!
E há uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum mundo quase religioso, as antigas festas da Pátria!

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Não … não fui eu que escrevi isto … A Carta já passou à história e a Constituição de 1976 também passará … trata-se da transcrição da parte final de um belíssimo e notável texto do Eça, «A Catástrofe», muito apropriado a esta problemática, publicado no fim do «Conde d’Abranhos»

Publicado por Joana às janeiro 17, 2006 11:40 PM

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Comentários

vamos então á tal formidável bacalhoada!

Publicado por: Fradique Xatoo às janeiro 17, 2006 11:57 PM

Já há bocado, na TV, alguém falou do "Conde d'Abranhos".
Duas vezes no mesmo dia é mau presságio. Espera-nos mais uma catástrofe?

No dia 22?

Publicado por: Senaquerib às janeiro 18, 2006 12:24 AM

E depois, toda a gente sabe, o Eça (era) é genial!

Publicado por: Senaquerib às janeiro 18, 2006 12:32 AM

É. Isto está uma desgraça. Mas não se assustem já — ainda vai ficar pior

Publicado por: (M) às janeiro 18, 2006 12:48 AM

Já agora o «Hino da Carta» (canto inferior direito) e também serve para os «anarco-miguelistas» ...
http://www.realsetubal.org/ras.htm

Publicado por: asdrubal às janeiro 18, 2006 02:40 AM

Este anarco-miguelista não tem apreço especial pelo pastiche de ópera italiana composto por D. Pedro I do Brasil, e que ficou conhecido sob o nome de Hino da Carta. Parece que o hino ao Príncipe, composto por Marcos Portugal para celebrar o aniversário do futuro D. João VI, é melhor. Mas nunca consegui ouvi-lo, pois não há dele - nem da cantata em que se inseria - qualquer gravação. O que é próprio deste país de trogloditas...

Publicado por: Albatroz às janeiro 18, 2006 09:04 AM

O Ministro Mário Lino, sobre a decisão dos investimentos da OTA e TGV, disse que o governo foi eleito para governar ....

Por um lado, a sociedade tem que se dinamizar, por outro, a sociedade tem é que estar quieta, que não percebe nada do assunto ....

Publicado por: luis3m às janeiro 18, 2006 10:55 AM

Cavaco continua a descer. Vai haver 2ª volta.

Publicado por: Senaquerib às janeiro 18, 2006 11:25 AM

Joana às janeiro 17, 2006 11:40

Quando nos convém, até o Eça nos serve, mesmo que o Eça pense completamente ao contrário de nós !

É como aquela Sra. Prof. Dra. Clara Pinto Correira, que dizia no debate sobre a Alma da Nação:
- Os alunos chegam à faculdade e confundem o presente do conjuntivo com a forma reflexiva, é uma lástima o português deles...
.... mais à frente disse:
sim.. eu também escrevo com K nas sms que mando... sim os miúdos mandam-me sms...

Bom... confundir o verbo mandar, com o verbo enviar, para uma prof. universitária... eu diria.. que foram os 10 anos vividos nos EUA, porque se a Krida tivesse vivido 10 anos em Paris, saberia por certo que é o verbo envoyer e não outro !

Publicado por: Templário às janeiro 18, 2006 11:30 AM

Senaquerib às janeiro 18, 2006 11:25 AM

Não me diga que aquelas minhas previsões estão certas !!!

É que calculei-as em 3 minutos, será que estou apto a constituir uma empresa de sondagens ?

Publicado por: Templário às janeiro 18, 2006 11:33 AM

Albatroz em Janeiro 18, 2006 09:04 AM,

Tinha talento, António Portugal ...

« (...)Quando o general Lannes esteve em Lisboa como embaixador em 1804, Marcos [António da Fonseca Portugal] tratou de perto com ele, e prestou-lhe os seus serviços artísticos. Lannes mandou celebrar na igreja do Loreto no dia 10 de Maio desse ano, um solene Te-Deum em honra de Bonaparte, e foi Marcos quem compôs a música e a dirigiu. À noite o mesmo general embaixador deu um esplêndido sarau, em que Marcos tomou parte acompanhando os cantores ao piano. Em 1808, Junot, estando senhor de Lisboa, quis que o dia da festa de Bonaparte, 15 de Agosto, fosse aqui celebrado com um grande espectáculo de gala em S. Carlos, e encarregou Marcos de Portugal de escrever uma ópera nova, que fosse mais ou menos adequada às circunstâncias. Marcos lembrou-se do seu antigo Demofoonte, cujo libretto de Metastásio celebra casos heróicos, improvisou sobre ele música nova, ensaiou-a, e dirigiu-a na noite da festa (...)».
(Portugal ; Dicionário Histórico)

Publicado por: asdrubal às janeiro 18, 2006 01:32 PM

Marcos, digo.

Publicado por: asdrubal às janeiro 18, 2006 01:34 PM

Templário às janeiro 18, 2006 11:33 AM

As suas previsões são as mais credíveis que eu vi até hoje.
Pode já constituir uma empresa de sondagens ultra-rápidas. Faz falta!
:-)


Publicado por: Senaquerib às janeiro 18, 2006 02:31 PM

Genesis ... Wind and Wuthering.... in the quiet earth..

Torçam por nós ....hoje ..começa a planificação...até agora foi ...descodificação....

Publicado por: CushPy às janeiro 18, 2006 03:33 PM

Catástrofe(s) :

"As necessidades líquidas de financiamento das Administrações Públicas quase duplicaram nos primeiros 11 meses do ano passado, agravando-se 95,6%, para os 9,35 mil milhões de euros, indica o boletim estatístico do Banco de Portugal divulgado esta quinta-feira.

Em termos homólogos anuais, o endividamento agravou-se 52,8%, face aos 6,1 mil mihões de euros registados no mesmo período de 2004.

Face a Outubro, o indicador agravou-se 26,6%, frente aos 7,38 mil milhões de euros verificados".
(DD)

Publicado por: asdrubal às janeiro 19, 2006 03:42 PM

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