fevereiro 23, 2005

Segredos da campanha eleitoral

Se a campanha de Sócrates não for um chorrilho de mentiras, resta-nos entregarmo-nos à protecção da Virgem Maria, da Nª Sª de Fátima e da irmã Lúcia.

Luís Paixão Martins, responsável de marketing da campanha eleitoral do PS, explicou a campanha do PS: «Começámos por fazer esta investigação, depois criámos argumentos, imagens e peças de comunicação que foram sendo testadas em "focus group", em painéis de cidadãos que foram sendo confrontados com ideias» e acrescentou que «Nos estudos de opinião o desemprego apareceu destacado como a grande prioridade, enquanto uma questão como a justiça foi remetida para segundo plano» ... «Aliás os portugueses não querem as tão faladas reformas políticas se elas trouxerem instabilidade à sua vida».

Comecemos pelo justiça. Há tempos, um estudo sobre o sector da Justiça, concluiu que Portugal era o país da UE que tinha, de longe, mais juízes e funcionários judiciais, e era aquele onde a justiça era pior, mais ineficiente e mais morosa.

Anteriormente, um trabalho da investigadora Célia Costa Cabral baseado num inquérito junto dos empresários portugueses sobre o funcionamento da justiça portuguesa, concluiu que a justiça é "muitíssimo lenta” e que a sua "morosidade leva a uma natural contracção do investimento em Portugal e funciona como um obstáculo ao crescimento do País", pois "os empresários não arriscam investimentos, se não estiverem absolutamente seguros do cumprimento dos contratos". Célia Costa Cabral estimou que "um melhor desempenho do sistema judicial levaria a um crescimento da produção de 9,3 por cento, o volume do investimento cresceria 9,9 por cento e o emprego 6,9 por cento", o que tudo conjugado se traduziria num acréscimo de 11% na taxa de crescimento do PIB. Ou seja 13 mil milhões de euros.

As pessoas de quem Sócrates queria o voto não percebem destas coisas. Só sentem que a economia não funciona, que as empresas não se desenvolvem pois receiam envolver-se em compromissos de cuja solvência não estão seguras. Mas não percebem porquê. Portanto, a justiça não constitui uma prioridade para Sócrates. Espero, sinceramente, que Sócrates tenha mentido, com absoluta desfaçatez, em campanha.

Outra posição interessante decorre da descoberta de que «os portugueses não querem as tão faladas reformas políticas se elas trouxerem instabilidade à sua vida». Os portugueses não querem instabilidade na vida deles. Os portugueses estão a empobrecer em paz, em segurança, asilados. Não era isso que pretendiam, mas é isso que estão a conseguir com aquela aversão ao risco e à mudança. E consegui-lo-ão, seguramente, a menos que Sócrates tenha mentido, com total desaforo, em campanha.

O paradoxo é que os portugueses estão preocupados prioritariamente com o desemprego, mas tomam as opções que levam ao seu aumento pois «não querem as tão faladas reformas políticas» porque lhes traz «instabilidade à sua vida». Isto a menos que Sócrates tenha mentido descaradamente em campanha.

Esperemos que Sócrates seja um mentiroso em campanha ... mas apenas em campanha.

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fevereiro 21, 2005

Atavismos ...

Estes 3 últimos anos, que se iniciaram com a demissão de Guterres e acabaram com o desfecho eleitoral de ontem evidenciaram as razões profundas do atraso estrutural de Portugal e da sua incapacidade em enveredar pela via do desenvolvimento sustentado da prosperidade económica. Não existe no nosso país, nos meios políticos, culturais e económicos, um sistema coerente de ideias e valores sedimentado e suficientemente difundido e partilhado por largas camadas da população, relativo à liberdade do funcionamento da economia, à assumpção do risco, da inovação, da mobilidade e da requalificação permanente. A ideologia veiculada pelo nossa super-estrutura política, cultural e económica, tirando algumas excepções, é a do Estado asilo, do Estado de que todos, pelos mais diversos e desencontrados motivos, dependem.

O Estado patrão sustenta mais de metade da população. O Estado, agindo como Deus ex-machina da economia, tem posto entraves à transparência dos mercados, tem introduzido barreiras institucionais à entrada nos mercados e à mobilidade entre eles, tem agido como protector de empresários, pervertendo a livre iniciativa, pois enviesa o funcionamento normal da economia, protege empresários ineficientes à custa do erário público e incentiva uma mentalidade de dependência perante um “anjo” protector. Esta vivência de dois séculos nunca permitiu, salvo poucas excepções, que as empresas ganhassem maturidade, sentido do risco e da inovação e capacidade de sobreviverem sozinhas, pelo seu próprio esforço e engenho. Essa cultura da mediocridade e da tacanhez, fragiliza extraordinariamente o tecido económico português na actual era da globalização e da liberalização do comércio mundial.

Mas este modelo do Estado Providência (em todos os sentidos, nomeadamente no pior sentido) perverteu toda a sociedade. Na cultura, por exemplo: em Portugal não há Teatro nem Cinema porque estes apenas vivem da dependência dos subsídios. Isso fez com que não tivessem necessidade de obter o favor e a adesão do público. Bastava-lhes obterem os subsídios. A sua produção é em circuito fechado, pois o público é despiciendo. Em vez de promover a cultura, o Estado Providência meteu-a num asilo, com a conivência dos asilados. Para definir o nosso regime, melhor que Estado Providência, seria a designação de Estado Asilo.

Esta perversão do posicionamento do Estado na sociedade afecta toda a classe política e não apenas as áreas políticas cuja ideologia de base é, geneticamente, estatizante. As áreas políticas que se reclamam de uma visão não estatizante da economia e da sociedade, não interiorizaram essa “visão”, nem a modelaram numa doutrina coerente, num projecto capaz, ambicioso e mobilizador.

Neste entendimento, a derrota de ontem começou com a vitória de Durão Barroso, um político medíocre, sem capacidade de liderança e sem coragem para tomar decisões. Mas a sua vitória foi, sobretudo, a evidência de que aquela área política não tinha nem um corpo de doutrina coerente, sólido e rigoroso, nem gente capaz, ou interessada, em liderar o processo de transformação e modernização do país. Muitos dos ministros que Durão Barroso escolheu eram manifestamente incapazes e outros estavam em sítios errados. Manuela Ferreira Leite, por exemplo, tem perfil para secretária de Estado do Orçamento, nunca para Ministra das Finanças.

Durante dois anos, se se exceptuar um anémico pacote laboral, não se fez mais nada senão cortar nas despesas. Mas, numa empresa, quando se pretendem reduzir custos, o controlo de custos estabelece-se em paralelo com a reorganização da empresa em termos dos serviços produtivos e administrativos, procedimentos, etc. Tentar controlar apenas os custos não resolve nada, até porque os custos numa “organização” desorganizada têm uma característica singular: são sempre imprescindíveis e inadiáveis. Foi o que aconteceu com MFL. Ela cortou, congelou, restringiu ... mas a despesa cresceu sempre, inexoravelmente. O défice corrente, apesar das medidas restritivas, continuou assim superior ao limiar aceitável. É óbvio que a má conjuntura económica internacional ajudou a este mau desempenho das finanças públicas, mas só parcialmente. A razão primordial foi a ausência de reestruturação do sector público, foi a ausência de um projecto coerente e capaz.

Provavelmente por isso mesmo, Durão Barroso agarrou com ambas as mãos a oportunidade da Presidência da Comissão Europeia. O seu governo estava politicamente esgotado e ele não tinha coragem (nem provavelmente capacidade) de inverter a situação.

Santana Lopes nunca deveria ter aceitado a indigitação. Como eu escrevi aqui, nessa altura, tal foi um presente envenenado. Durante 4 meses o PR e a comunicação social frigiram-no em fogo lento. Se exceptuarmos um ou outro debate, ele portou-se sempre como prematuramente vencido, mendigando os avales do PR, sem chama nem vigor. A sua campanha eleitoral foi um desastre: cinzenta, sem ambição.

Aliás, não me parece que PSL tenha perfil para o projecto de modernização da nossa economia, tal como o enunciei acima. É certo que conseguiu formar um governo bastantes furos acima do de Durão Barroso, apesar da premência do tempo, mas não tem perfil para levar a cabo uma reforma tão profunda como aquela que o país necessita. Terá que ser alguém com uma imagem de sobriedade e de credibilidade profissional e científica. Cavaco tinha essa imagem. Infelizmente não tinha as ideias que preconizo como indispensáveis à inversão da caminhada de Portugal para o abismo. Lembremos que embora tivesse sido com o guterrismo que o despesismo atingiu as raias do absurdo e do desconchavo, esse despesismo já havia começado com Cavaco.

O PSD e o PP estão numa encruzilhada. Paulo Portas não tem perfil, credibilidade, nem envergadura, para criar e liderar o projecto que defendo. Nem ele, nem o PP. Todavia revelaram, nestes três anos, que são capazes de, eventualmente, exercerem o papel de sócios menores nesse projecto. Quanto ao PSD não vejo saída próxima. Santana não tem perfil para o fazer, e a sua prestação errática, de derrotado à partida, que ele teve nestes últimos 6 meses, degradou a sua imagem política. Santana terá que fazer uma travessia no deserto, à espera que o eleitorado veja que há outros muito piores que ele. Mas também não vislumbro, no leque dos actuais líderes visíveis, alguém suficientemente capaz. A sugestão de António Borges, a MFL, acho que é um disparate. Essa senhora tem uma boa imagem de merceeira honesta e conscienciosa e não de líder partidária de um partido da área de governo.

Todavia, tal como no xadrez jogado entre aprendizes, “ganha quem faz a penúltima asneira”. Acontece o mesmo na política portuguesa. A menos que o “1º Ministro Sócrates” seja totalmente diferente do Sócrates que se tem produzido até à data, é muito duvidoso que o(s) seu(s) governo(s) dure(m) mais de dois anos. E se um líder frágil e sem coragem política, como Durão Barroso, herdou os despojos de Guterres, não custa nada admitir que o líder do PSD, mesmo a MFL ou o Marques Mendes, venha a herdar os despojos socráticos.

Simplesmente estas “heranças” são o remake da dança das cadeiras do estertor da monarquia. Não são vitórias, são a herança de derrotas. Não estão inseridas num projecto coerente e sustentável que modernize o país. Servem apenas de entretém ao Campeonato dos Partidos.

A derrota de ontem foi a rejeição pelos portugueses de um modelo que temem, porque constitui uma alteração à mediocridade, regulada pelo Estado, em que têm vegetado. Mas temem-no não apenas por isso. Temem-no sobretudo porque ele não aparece sob a forma de um projecto coerente, rigoroso e sustentável, liderado por políticos credíveis. O eleitorado mostrou que não quer trocar a actual mediocridade em vias de empobrecimento, por algo cujos riscos não consegue quantificar e em cujos protagonistas não confia.

Publicado por Joana às 07:45 PM | Comentários (54) | TrackBack

fevereiro 20, 2005

Só para entreter

as piranhas ...

Segundo consta, o PS deverá ter a maioria absoluta e o PSD não deverá chegar aos 30%. Isto, se os estatísticos não se enganarem ...

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fevereiro 16, 2005

Banalidades

... ou o vídeo-clip Sócrates

O que me impressionou inicialmente no discurso que J Sócrates tem tido nesta campanha foi o rosário de banalidades que tem desfiado. Não há nada no seu discurso que não sejam banalidades sem qualquer conteúdo prático. Sócrates tem fugido sempre a assumir quaisquer compromissos. Só proclama intenções muito genéricas. Mesmo os poucos números que tem apresentado, confessa seguidamente não passarem de meros objectivos, de metas indicativas.

O que me impressiona presentemente é que essas banalidades têm sido repetidas até à exaustão, sempre as mesmas e da mesma maneira. Sócrates afivela, em todas as ocasiões, expressão facial idêntica, idêntica linguagem gestual, e declama exactamente, textualmente e sempre as mesmas banalidades. Sócrates não é uma cassete ... é um vídeo-clip.

Têm sido desenvolvidas diversas teorias para explicar tamanha limitação “banalística”. A mais difundida é a de que Sócrates entrou no jogo com apreciável vantagem e espera que, se não disser nada de substantivo, faça vingar essa vantagem inicial. Se se ficar por banalidades inócuas evita controvérsias incómodas e desnecessárias. Teria sido por essa razão que Sócrates reduziu ao mínimo indispensável os debates televisivos. Ou seja, Sócrates não espera ganhar as eleições ... espera que os adversários as percam.

Eu tenho outra teoria. Sócrates não sabe que política vai ser constrangido a fazer no caso de ganhar as eleições. Se as ganhar com maioria absoluta, o seu leque de opções será determinado pela evolução da situação económica e financeira do país, pela evolução da conjuntura internacional, pela força dos lobbies sindicais e empresariais que têm sempre influência decisiva no comportamento do PS enquanto governo. Igualmente determinante vai ser a correlação de forças interna que poderá variar ao sabor de interesses internos ou induzida por variáveis externas, nomeadamente as sondagens. O espectro político do PS é muito amplo e os consensos só existem com objectivos muito concretos: ganhar o poder, distribuir sinecuras (às vezes), etc..

Se Sócrates ganhar sem maioria absoluta ficará dependente, para além dos constrangimentos acima enunciados, do estabelecimento de acordos com outros partidos políticos, ou seja, Sócrates ficará refém de maiorias pontuais na AR. Fazer maioria com o PCP (no caso desta ser numericamente viável) é impensável, não só pela actual liderança e evolução do PCP, mas também pelas relações históricas entre os dois partidos.

A aliança com o BE (igualmente no caso de ser numericamente viável) poderia causar menos engulhos internos, na medida em que a ala esquerda do PS tem gente que está no PS, e não no BE, apenas porque o PS é um meio mais viável de chegar a cargos públicos. Todavia essa aliança teria um efeito calamitoso na sociedade civil, no mundo económico e no nosso relacionamento externo, nomeadamente com a UE.

Neste entendimento Sócrates terá que estar preparado para tomar as medidas A, B, C, ... N, ..., ou não-A, não-B, não-C, ... não-N, ... ou quaisquer combinações daquelas medidas (e não-medidas) e todas as soluções intermédias entre uma dada medida e a sua não-medida. Em termos de análise combinatória, Sócrates tem um número infinito de medidas que poderá vir a tomar. Sócrates não tem uma política, ou melhor ... a política de Sócrates é chegar ao governo. O resto logo se vê.

Sendo assim não se pode comprometer. Se lhe perguntarem se irá tomar a medida A, ele responderá : “O que está a perguntar é um pouco dar voz à propaganda dos meus adversários, eu quero um bom governo, um governo que restaure a confiança dos portugueses”. Então estará mais inclinado para a não-A?: “Não vou dar pormenores, não me peçam para fazer o regulamento, e não me deixo impressionar com a propaganda económica de direita que nos quer atrair sobre a discussão sobre um determinado ponto; o que país não tem é confiança, nunca teve desde o discurso da tanga”. Mas ouvi uma sua declaração sobre a medida Z, que tem a dizer sobre isso?: “Z não é uma medida mas uma meta indicativa. O meu objectivo é que a mudança não seja apenas de cor política, mas que seja uma mudança no estado psicológico do país. O que é preciso é restaurar a confiança”.

Por fim, irritado com tanta pergunta supérflua, vem ao de cima o animal feroz: Qualquer general dirá: estratégia é escolher o sítio onde lutar. Os portugueses sabem do que é que eu estou a falar. Penso que já falei em tudo isto, mas não me importo de repetir: Eu quero um bom governo, recuperar a confiança dos portugueses, e introduzir a tecnologia.

Nestes apuros, os crentes entregam-se à providência divina, os católicos marianos rezam à Virgem Maria, os ateus resignam-se ao determinismo histórico, e os portugueses vão para a pastelaria chalacear sobre política.

Publicado por Joana às 09:12 PM | Comentários (40) | TrackBack

Má Fé

Louçã é um político de sistemática má-fé, que apregoa virtudes próprias e enxovalha permanentemente os concorrentes. Tem todas as características dos pregadores fundamentalistas de certas facções religiosas americanas de extrema direita, sobejamente retratados na literatura e no cinema. No debate de ontem Louçã criou o que a imprensa, parcial e ignorante, designou por "caso" do debate denunciando uma suposta isenção fiscal concedida em Agosto passado pelo actual governo ao grupo Santander. Santana Lopes, em vez de aproveitar o intervalo para se municiar com o diploma legal que justifica essa isenção, municiou-se com referência a idênticas isenções, muito mais vultuosas, concedidas pelo governo de Guterres a grupos bancários, o que daria ao pregador de extrema-direita, com chavões de radical de esquerda, a possibilidade de o acusar de ser "muito feio falar-se do que os outros fizeram para justificar os nossos erros".

Ora aquela isenção é regulada pelo Decreto-Lei n.º 404/90, que o OE 2005 prorrogou até 31 de Dezembro de 2006. Sem isso as empresas portuguesas não poderiam beneficiar da isenção de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis, de Imposto do Selo, de emolumentos e de outros encargos legais decorrentes da prática de operações de reorganização empresarial, situação que seria extremamente prejudicial para a capacidade competitiva de grande parte do tecido empresarial português.

Para obterem essas isenções as empresas terão que provar que não haverá mais-valias resultantes desse processo de reestruturação. As empresas que pretendam essa operação terão que apresentar um requerimento à Direcção Geral dos Impostos com um estudo demonstrativo das vantagens da operação que pretendem realizar, um parecer do ministério da tutela da actividade da empresa relativo ao estudo referido, bem como um parecer da autoridade da concorrência sobre a compatibilidade da operação com a existência de um grau desejável de concorrência no mercado. Por outro lado, para beneficiarem destes incentivos, as sociedades envolvidas têm que exercer a mesma actividade económica, ou actividade integrada na mesma cadeia de produção ou distribuição desde que manifestamente complementares. Estas últimas obrigações foram introduzidas pelo OE 2005.

Portanto o que se verificou no debate foi má-fé do Louçã que, ao apresentar aquele papel e fazer aquela acusação, deveria ter-se informado antes das respectivas disposições legais, foi a demagogia saloia de Sócrates que se apressou a dizer que as explicações do PSL eram insuficientes. Quanto a PSL e P Portas, admite-se que, colocados de surpresa perante aquela acusação, não estivessem seguros do enquadramento da situação. Só omniscientes o estariam. O que já não se justifica é que, durante o intervalo, PSL em vez de ser informado do que era substantivo, se municiasse apenas de farpas contra o governo de Guterres/Sócrates.

Sócrates não insistiu a seguir ao intervalo. Provavelmente informou-se e viu o “buraco” em que se tinha metido.

Por outro lado só esquecidos ou desonestos intelectualmente ignoram as benesses que os governos de Guterres/Sócrates deram aos grupos económicos. Não fica mal meter aquelas farpas. Fica mal, sim, mostrar ignorância sobre o assunto.

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fevereiro 13, 2005

Sado-masoquismos

Acompanho com muito interesse as reportagens da Helena Pereira sobre a campanha de Santana Lopes. É curiosa esta relação. É a modos como se um assaltante de bancos fizesse a cobertura das conferências de imprensa dos banqueiros cujos bancos ele vai sucessivamente assaltando. Este processo de relatar publicamente os queixumes das próprias vítimas tem o perfume voluptuoso de uma perversão sado-masoquista.

Observemos o que a imaginativa criadora de “realidades paralelas” assinalou hoje como positivo e negativo da campanha do PSD:
Positivo – Rui Rio que é vice-presidente do PSD, mas ultimamente parecia andar desaparecido, apareceu ontem.
Negativo – O grito de revolta de Pedro Santana Lopes contra a comunicação social entusiasmou a assistência, mas não é a melhor estratégia para um dos maiores partidos do país se afirmar.

Portanto, o positivo é algo que era muito negativo, ter-se tornado menos negativo; o negativo é eles estarem sempre a falar de mim. Mas será que ninguém os cala? Ter que escrever que "Existe uma minoria [de jornalistas] que fazem trabalho político-partidário não isento e que quer enganar os portugueses"! Se este martírio continua assim, despeço-me, alegando justa causa. Alguma coisa se há-de arranjar ... talvez o Barnabé ou A Capital (se ainda não tiver falido) me dêem trabalho.

E a Helena bem lhes dá conselhos estratégicos, mesmo sem eles os pedirem, mesmo não sendo essa a sua missão. Mas eles ...

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fevereiro 12, 2005

Vidas Paralelas

Ou como Plutarco entra em campanha

Nobre Guedes afirmou há tempos ao "Diário de Notícias" que Paulo Portas podia ser o nosso Malraux. O pretérito imperfeito português é dos tempos mais imprevisíveis, pois nunca se sabe se é um passado inacabado, um presente cortês, ou um futuro condicionado. Aliás, deveria designar-se por “pseudo-pretérito imprevisível” para acautelar os utentes do idioma pátrio. Nesta imprevisibilidade resta-me comparar P Portas e Malraux no passado, presente e futuro. Foi o que Plutarco fez com os varões ilustres gregos e romanos. E eu serei menos que Plutarco?

Para começar, a diferença de idades, pouco mais de 6 décadas, pode considerar-se dentro dos limites da razoabilidade, quando se comparam heróis gregos e romanos, ou Malraux (o grego) e Portas (o romano). Mas depois começam a aparecer pormenores que não encaixam. Malraux publicou livros com uma cadência notável, um dos quais, A Condição Humana, obteve o Prémio Goncourt em 1933. Paulo Portas já leva um atraso notável nesta matéria, visto Malraux ter publicado Os Conquistadores logo em 1928 e Portas, por enquanto, nada. Mas tenhamos esperança (e fé!) nas imperfeições dos nossos pretéritos verbais.

Malraux roubou umas estatuetas khmeres do Templo de Banteai Srey em 1923, que lhe valeu a prisão em Phnom-Penh. O processo não deu em nada por vício de forma. A justiça colonial francesa não devia funcionar nada bem. No que toca a Portas, temos o caso Moderna, cuja investigação não deu em nada. Mas há diferenças substanciais: o uso de um Jaguar de uma universidade não tem a estatura de um roubo de baixos relevos khmeres de um Templo, e ser-se investigado não confere as mesmas regalias que ser-se preso.

Também lançou um jornal, mas em Saigão, em 1925, L’Indochine (juntamente com a então sua mulher Clara) onde denunciava a exploração colonial. Portas, n'O Independente, denunciou a degradação cavaquista. Não terá a mesma dignidade e expressão histórica, mas já é alguma coisa.

Quando regressou a França, Malraux colaborou em todos os movimentos de intelectuais anti-fascistas – Frente de Defesa Anti-Fascista e o CVIA (1934), movimento contra a guerra na Etiópia (1935). E quando deflagrou a Guerra Civil em Espanha, em 1936, lá estava Malraux em combate. Cisneros, do PCE, escreveu dele: “foi, à sua maneira, um progressista ... talvez pretendesse ter entre nós um papel semelhante ao que Lord Byron desempenhou na Grécia ... mas ... se a adesão de Malraux, como escritor célebre, podia ser útil à nossa causa, o seu contributo como comandante de esquadrilha revelou-se absolutamente negativo”. Mas sabe-se como os comunistas são mal agradecidos. Malraux poderia ser um inábil, mas obteve da França o fornecimento de alguns aviões.

Quanto a Portas ... bem, os tempos são outros, e agora, tal como Malraux o fez após o fim da 2ª Guerra Mundial, a luta é contra o totalitarismo de esquerda. Aí tem-se mostrado muito aguerrido, mas não me parece que venha a ganhar algum Goncourt. Quanto a acções militares, temos que ser indulgentes para com Portas. As épocas são diferentes ... Mesmo assim há que reconhecer o denodo com que perseguiu o barco das holandesas pró-aborto. O barco não trazia munições bélicas, mas tinha um grande potencial desmoralizador.

Malraux, até se aliar a De Gaulle, apoiou os comunistas “Tal como a Inquisição não atingiu a dignidade fundamental do cristianismo, os processos de Moscovo também não diminuíram a dignidade fundamental do comunismo”. Mas os intelectuais de esquerda, naquela época, disseram tanto disparate de que depois se vieram a arrepender, que não me pareça que se deva lançar aquela frase a crédito (ou a descrédito) de Malraux (também os intelectuais de esquerda, da nossa época, dizem tanto disparate ... só que ainda não chegou a época de se arrependerem). Proponho que se neutralize esta frase nas nossas “Vidas Comparadas”.

À medida que Hitler se prefigurava como uma ameaça, Malraux tornou-se figura de proa dos “amigos da URSS”. Por isso não se pronunciou aquando do pacto germano-soviético. Preso durante a guerra foge, vai para a zona de Vichy e em meados de 1944, após a ocupação dessa zona pelos alemães, entra na clandestinidade. Devido a isso, quando a seguir à guerra adere ao RPF do general De Gaulle, passa a ser acusado de seguir o itinerário clássico do “entusiasmo revolucionário” à "amargura reaccionária”.

Era uma erro de análise – para Malraux o perigo já não vinha de Hitler, mas do totalitarismo soviético. A uma escala reduzida, mas, cuidado! ... temos que atender à diferença de escala entre os dois países, Paulo Portas também teve um momento de ruptura – até 1982, Paulo Portas fez parte da JSD, Juventude Social-Democrata, mudando a seguir para o CDS. Paralelizando ... o perigo vinha agora do autoritarismo cavaquista.

Em 1958, após a tomado do poder por De Gaulle, Malraux torna-se um efémero Ministro da Informação. Infelizmente, P Portas nunca poderia comparar-se a Malraux neste pormenor, pois se nem uma Central de Comunicação o PR consentiu, quanto mais um Ministério da Informação! Cairia o Carmo e a Trindade ... e Belém antes!

Em 1959 Malraux tornou-se Ministro da Cultura. Há aqui um paralelo que, a estabelecer-se, seria muito divertido. Portas, como Ministro da Cultura, a lidar com os agentes culturais portugueses que só produzem para os amigos verem, que só sabem viver na subsídio-dependência e que temem qualquer êxito comercial, que os pode deixar, em definitivo, liquidados culturalmente junto dos seus pares. Uma de três coisas podia acontecer: 1) Ou a Cultura liquidaria Portas; 2) ou Portas liquidaria a Cultura; 3) ou liquidar-se-iam mutuamente. Qualquer das hipóteses 2 ou 3 parece-me um resultado deveras interesse. Para o País e para a Cultura.

Há todavia um paralelo que não consigo estabelecer. No barco que os trouxe da Indochina, Clara teria tido um affaire, que Malraux romancearia num capítulo d’A Condição Humana. É bom ser-se casada com um escritor – em vez de uma cena de pugilato caricata e burlesca, apanhar com um capítulo cheio de erotismo, numa obra premiada! Porém, neste episódio, não atino com qualquer paralelo ... todavia, talvez Nobre Guedes, que estabeleceu a comparação, saiba alguma coisa. Se souber, que o diga, pois não há qualquer problema, porquanto a má língua só é ignóbil quando se refere a alguém da esquerda. O pessoal da direita não sofre desses complexos ... teve que se habituar ...

Publicado por Joana às 12:13 AM | Comentários (35) | TrackBack

fevereiro 11, 2005

Da Delinquência à Arte

Certamente por uma punição do destino (ou do patrão) coube a Helena Pereira a cobertura da campanha do PSD, ontem, em Bragança. E foi bom, se lermos o seu arrebatamento ao destacar que PSL se tinha insurgido contra a "realidade paralela" que é criada pela comunicação social. Helena Pereira julgava que tinha falsificado a realidade. Afinal teve a gratificante surpresa de ouvir, no extremo nordeste do país, em primeira mão e por uma das vítimas da sua inventona, que apenas criava “realidades paralelas”. Deve ter sido um momento alto da sua carreira, pois é enorme a distância que separa uma falsária de uma criadora de “realidades paralelas”. É a mesma que separa a delinquência, da arte.

É bom saber-se uma artista. É bom olhar-se ao espelho e poder exclamar com uma surpresa inebriante: Ecco una artista!

Apenas lhe desejo que não se veja na contingência de ter de saltar do parapeito da plataforma do Castel Sant'Angelo para o vazio, aos gritos de: O Santana, avanti a Dio!

Publicado por Joana às 07:20 PM | Comentários (25) | TrackBack

Distracções

... ou como a idade não perdoa.

Simone de Oliveira foi convidada para um jantar com o Presidente do PSD, em plena campanha eleitoral. Este jantar incluía uma série de pessoas ligadas ao meio da cultura. Simone de Oliveira chegou, viu e saiu ... alegando que não sabia que se tratava de uma acção da campanha.

Pergunta-se: De que estaria Simone de Oliveira à espera, tratando-se de um jantar a decorrer durante a campanha eleitoral e presidido pelo líder de um dos partidos que se digladiam pela conquista do poder?

Para mais um líder que, desde a questão dos violinos, passou a ser olhado de revés por tudo o que tenha pretensões a intelectual ou a ser admitido em círculos culturais. Um líder cuja companhia pode constituir uma nódoa curricular para qualquer aspirante a cinturão negro da cultura portuguesa. Em resumo, um líder que não constitui um cartaz cultural apelativo.

Resposta: Estava à espera das câmaras da Televisão para poder afirmar com empáfia e jactância que tinha ido ali por equívoco, pois não se queria misturar na campanha daquele partido ... ela que até era uma figura visível do partido contrário.

Conclusão: A idade não perdoa ... resta apenas a vertigem das câmaras, o mesmo que aconteceu a Gloria Swanson no Sunset Boulevard.

Publicado por Joana às 06:38 PM | Comentários (24) | TrackBack

fevereiro 10, 2005

A Ignóbil Public(aria)

A Nota da Direcção do Público é o paradigma do farisaísmo mais abjecto e canhestro. Começa por reconhecer que a notícia era falsa (este [Cavaco] não fez "qualquer declaração ou comentário sobre o processo eleitoral em curso"). Depois confessou que andava a trabalhar há várias semanas naquela falsificação e que a notícia resultou do cruzamento de várias fontes (obviamente inexistentes e falsas, como havia confessado anteriormente). E acrescenta este mimo: Contudo, ao falar das intenções de Cavaco Silva sem que este tivesse tomado qualquer posição pública, a notícia permitia um desmentido nos termos do de ontem (!?). Leia-se: Contudo, pela notícia ser inventada e falsa, ela permitia um desmentido nos termos do de ontem.

Será que a Direcção do Público não tem vergonha na cara? Como é possível escrever seraficamente que andava há semanas a trabalhar no cruzamento de várias fontes e confessar em simultâneo que Cavaco não fez qualquer declaração ou comentário. Que jornalismo é este que cruza durante semanas informações inventadas para produzir notícias inventadas? Será que o jornalismo desistiu dos factos, esses empecilhos à criatividade de Eunice Lourenço, Helena Pereira e de toda a Direcção do Público?

O mais sórdido nesta nota é que o Público não se penitencia de ter falsificado uma notícia e de ter sido contumaz nessa falsificação. Apenas reconhece que fez uma má escolha do título de capa ao optar pela expressão "aposta em", expressão ambígua a meio caminho entre o "prevê" e o "apoia". O Público apenas errou por ter feito desta falsificação o título de primeira página. Se a tivesse escondido nas páginas interiores, como faz com os desmentidos das suas falsificações, estaria certo e imaculado.

Ontem eu havia escrito que “É óbvio que este jornalismo sórdido não é produzido às escondidas da Direcção do Público. Ele terá que ter a conivência dessa Direcção, ou pelo menos de parte dela”. Confesso humildemente que me enganei, ainda que parcialmente. Esta falsificação e a sua contumácia foi feita, como parece agora evidente, com a conivência de toda a Direcção do Público..

É uma Ignóbil Porcaria ... ou melhor ... Public(aria). Teria sido menos sórdido não ter escrito nada.

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fevereiro 09, 2005

A Vitimização e o Vale-Tudo

A relação da comunicação social com Santana Lopes faz lembrar a relação da madrasta cavernícola e autoritária com o enteado – depois de o sovar, quando o miúdo se apresta num vago queixume, grita-lhe: e se choras apanhas mais! Não há nada a fazer – primeiro sovam-no em todos os tons e sons; depois quando ele menciona os agravos, é sovado por “se estar a vitimizar”. Vem isto a propósito de uma jornalista do Público, Eunice Lourenço, que eu já citei mais que uma vez (aqui e aqui), pelas suas notícias absolutamente destituídas de rigor e ética, ter escrito ontem (em co-autoria com a colega Helena Pereira) um artigo em que afirmava peremptoriamente que “Cavaco aposta na maioria absoluta de Sócrates”.

É uma notícia escrita de uma forma absolutamente perversa, pois pela sua leitura se verifica que aquela afirmação, e outras de teor idêntico nela insertas, não provêm directamente de Cavaco, mas de alegadas “fontes próximas”. Aquela notícia foi imediatamente desmentida.

Hoje o Público traz, das mesmas autoras, uma notícia intitulada “Ex-primeiro Ministro Incomodado com Notícia do PÚBLICO”, onde as autoras sugerem que aquele desmentido apenas indiciava que Cavaco estaria incomodado. Ou seja, não era a primeira notícia daquelas jornalistas que era uma mentira, o mentiroso seria agora Cavaco que mentia (desmentindo) por estar incomodado ...

Agora o ex-primeiro-ministro enviou uma declaração à Lusa onde afirmou: "Ontem, dia de Carnaval, fui surpreendido com uma notícia no jornal PÚBLICO intitulada 'Cavaco Silva aposta em maioria absoluta do PS'. A notícia não tem qualquer fundamento". "Trata-se de uma total invenção da parte de quem a escreveu. Não fiz qualquer declaração ou comentário sobre o processo eleitoral em curso. Embora ausente de Lisboa, tive oportunidade de transmitir o meu protesto ao director do PÚBLICO".

Curiosamente esta informação aparece no Público on-line sob a epígrafe de “Cavaco Silva recusa envolver-se em manobras eleitorais” e nem está sequer assinada. Provavelmente a intenção será a de insinuar que se trata de mais uma mentira de Cavaco Silva para evitar “envolver-se em manobras eleitorais”. Conclusão, não vale a pena desmentir, pois a notícia continua lá, incólume, indiferente aos factos.

É óbvio que este jornalismo sórdido não é produzido às escondidas da Direcção do Público. Ele terá que ter a conivência dessa Direcção, ou pelo menos de parte dela. Um jornal como o Público pode errar uma vez, pois é natural que um chefe confie nas suas colaboradoras e não vá verificar a seriedade das notícias. Todavia é um indício terrível que publique os sucessivos desmentidos a esse erro metamorfoseados em “mentiras piedosas”. É o indício que é o próprio jornal que não é isento; é o indício que a falta de ética e a sordidez jornalística daquelas plumitivas têm a cobertura da Direcção do jornal.

Não vou discutir quais as intenções destas “notícias”. Santana Lopes está impedido de se queixar – qualquer queixa dele não passa de vitimização. Cavaco Silva está impedido de desmentir – qualquer desmentido dele é apenas mais uma mentira para disfarçar o seu “incómodo”. Não há pois nada a fazer quando a nossa comunicação social cria um “facto político”. Mesmo que não exista ... é um “facto político”!

Para mim, é justamente esse o “incómodo”: a fabricação pela nossa comunicação social e, mais grave, por um órgão de referência dessa mesma comunicação, de um “facto político” e a sustentação desse “facto político” para além de todos os desmentidos.

Chegámos ao Vale-Tudo.

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Sócrates nunca terá maioria absoluta

... mesmo que o PS a obtenha

É ilusório pensar que uma eventual maioria absoluta do PS conduza a um governo estável com um projecto coerente. Em primeiro lugar, o espectro político dentro do PS é demasiado amplo para permitir tal suceda; em segundo lugar, Sócrates está na margem direita desse espectro político, tendo sido eleito para liderar o partido apenas por ser a hipótese mais viável para o aparelho socialista regressar às sinecuras do poder. A questão de fundo é que existe uma ambivalência genética no socialismo, que nasceu e tem vivido no seio de relações de produção, que originalmente detestava e pretendia eliminar, mas de cuja gestão, posteriormente, se tem, por diversas vezes, encarregado. Essa ambivalência moldou a teoria e a praxis política socialista nas últimas décadas.

Por isso não surpreende a actual campanha de Sócrates; campanha onde não existe um projecto, mas apenas alguns chavões cujo conteúdo não se conhece, admitindo que o tenham; campanha baseada em banalidades e na ausência de assumpção de compromissos. Por isso os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. Por isso gerem o sistema no papel do gestor pouco à vontade, contrariado por estar a administrar uma empresa num ambiente cujas regras do jogo detesta. Como solução de compromisso, revestem essa gestão com tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, porquanto não sabem desenvolver os mecanismos que permitem a sua criação.

E essa necessidade de compromisso interno é o resultado de um espectro político muito vasto, onde afluem diversas heranças políticas, do jacobinismo ao marxismo, passando pelo radicalismo pequeno-burguês, e económicas, de Proudhon a Keynes, passando pelos “revisionistas” alemães de Marx. Mas estas heranças, cada vez mais longínquas e esvaziadas de conteúdo, servem fundamentalmente de bandeiras nos conflitos internos, quando o aparelho partidário, depois de se ter apoderado do poder e distribuído entre si os almejados cargos públicos, se vê confrontado com a desilusão social provinda de todos os quadrantes.

Quando a experiência governativa chega a este estádio e a sua popularidade está em queda, a ala esquerda do partido, no interior, e os grupos radicais, no exterior, acusam o governo socialista de “meter o socialismo na gaveta”, de estar a perder porque “fez uma política de direita”. Obviamente que esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar essa perda pela alegação que o governo socialista teria feito uma política de direita?

A verdade é que o PS, face a uma realidade em mutação, plena de transformações e rupturas, carregando o lastro da sua ambivalência genética, não tem ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acaba, forçado pelas circunstâncias económicas, a aplicar receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sente pouco à vontade em aplicar essas medidas, fá-lo de forma incoerente e errática e tenta disfarçar essas contradições com políticas sociais de intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.

Sócrates não conseguiria resistir, internamente, a uma política reformista. Conhece certamente as maleitas que a sociedade portuguesa sofre. Talvez saiba que essas maleitas só se curam com uma política de ruptura face ao modelo actual, modelo que teve a sua expressão mais calamitosa no período guterrista, mas que já vinha de trás, e com o qual o próprio Cavaco pactuou, e mais acentuadamente na segunda metade da sua governação. Por isso é o cinzentismo da sua campanha e a contínua fuga aos debates, de forma a não ser obrigado a precisar as suas propostas programáticas. Limita-se a desfiar um rosário de banalidades pouco exaltantes nos comícios, deixando o aquecimento das plateias para a trauliteirice verbal do aparatchik Coelho.

Esta impossibilidade de maioria absoluta de Sócrates, mesmo que o PS tivesse maioria absoluta na AR, não significa que esse eventual governo possa cair na AR. Na AR prevalecerá a disciplina de voto, principalmente se a alternativa for a perca do poder. A questão põe-se ao nível dos conflitos internos que transbordam para a praça pública e corroem a imagem do governo e da estabilidade governativa. Todos estamos lembrados que, mesmo num período de vacas gordas, durante o consulado guterrista, como ex-membros do governo criticavam o governo na praça pública e com azedume inaudito: Sousa Franco, Fernando Gomes, Manuela Arcanjo, etc., etc.. Todos estamos lembrados como destacados parlamentares socialistas encetaram cruzadas mortíferas contra iniciativas governamentais.

Ora se numa época que, para os menos avisados, tudo parecia sorrir – as taxas de juro baixas incentivavam o consumo e diminuíam os encargos com a dívida pública; as obras públicas eram feitas no sistema “faça agora e comece a pagar daqui a alguns anos”; a diminuição dos encargos com a dívida pública e as disponibilidades geradas pelo fazer de obras sem pagamento imediato, permitiam que o governo encontrasse meios para aumentar o emprego público; etc., etc. – o que acontecerá agora, quando aqueles mecanismos já não estão disponíveis; quando chegou a época do “pague depois”; quando o emprego público criado nessa época se tornou num peso insustentável que suga o nosso sector produtivo e lhe diminui a competitividade?

Neste entendimento, se o PS chegar ao governo, mesmo com maioria absoluta, encontrará uma forte oposição dentro de si próprio. O erário público está quase vazio e o país exangue. A continuação do actual modelo significa a progressiva deslocalização (ou fecho) das empresas que tenderá a acelerar-se. A deslocalização das empresas, o aumento do desemprego e a diminuição do peso do sector privado fará diminuir a base de incidência fiscal. Primeiro sairão as empresas e depois emigrarão os trabalhadores cuja ambição e qualificação não se satisfizerem com o subsídio de desemprego. Na ausência de medidas de fundo, este processo é cumulativo mas não é sustentável – mesmo que a sociedade portuguesa não se tenha entretanto mobilizado para evitar o colapso do país, haveria uma fase intermédia desse processo em que ocorreria o colapso do Estado.

Portanto é inevitável fazer qualquer coisa para, no mínimo, suster este processo. A partir do “pântano” guterrista, as alternativas que se colocam, e se continuaram a colocar, resumem-se à escolha entre tomar medidas impopulares, ou tornar-se impopular pela pauperização contínua do país, isto é, por não tomar essas medias. Confrontado com estas alternativas, um eventual governo PS estará em permanência sob o fogo das próprias hostes. Numa situação muito mais favorável, Guterres não conseguiu evitar a queda, mais provocada por factores internos que por uma oposição frágil, liderada por um político fraco e sem carisma, como Durão Barroso mostrou ser na oposição, no governo do país, e está a mostrar agora na presidência da Comissão Europeia. Numa situação muito mais complexa, como a actual, a questão é saber quanto tempo aguentaria Sócrates.

Há uma convergência muito maior no espectro político português à direita de Sócrates, incluindo a margem direita do PS, para um projecto de reformas sociais e económicas que travem esta descida aos abismos, que dentro do próprio PS. E isso pode ser mortífero.

Publicado por Joana às 07:23 PM | Comentários (34) | TrackBack

fevereiro 03, 2005

Só para não estar calada

Debate sem criatividade, num formato que não permitiu que nenhum dos candidatos fosse questionado pelo outro sobre como implementaria as medidas apregoadas e à custa de quem. Portanto tudo demasiado asséptico. Ficou tudo muito vago, o que favoreceu Sócrates, que não se viu obrigado a concretizar um programa baseado em propostas vagas. Um empate sem golos.
Não percebo a razão que levou os jornalistas a repisarem o tema do «colo». Aparentemente parece serem os jornalistas os mais empenhados no baixo nível da campanha.
A questão que se coloca agora é saber se PSL, em campanha contra o PS e, principalmente, contra todos os meios de comunicação, consegue reeditar a surpresa Bush. Duvido ...

Publicado por Joana às 11:23 PM | Comentários (54) | TrackBack

fevereiro 01, 2005

A Contra-Insinuação

Sábado passado, ao "colo" de mais de mil mulheres do distrito de Braga, que participaram num almoço de pré-campanha do PSD, o "sedutor" Pedro Santana Lopes teria dito “O outro candidato tem outros colos. Estes colos sabem bem". Objectivamente, pelo seu valor facial, esta frase é inócua. Todavia, no plano das intenções, pode ser lida como proferida por um político eufórico por se ver rodeado de tanta mulher em êxtase e que as elogia, sentenciando que o opositor certamente não encontrará colos tão gentis como aqueles, ou, no pólo oposto, como uma torpe insinuação que pretende trazer para a ribalta pública, como arma de arremesso político, as alegadas preferências sexuais do candidato socialista. Entre uma e outra são possíveis dezenas de interpretações, umas mais maliciosas, outras mais inocentes.

Por isso mesmo, pelo leque de leituras possíveis, a sabedoria e o discernimento políticos aconselhariam a que aquela frase fosse ignorada e que se esperasse por eventuais sequelas. Se a intenção de Santana Lopes fosse a de trazer para a campanha questões do foro pessoal, certamente que ele repetiria essa intenção de uma forma mais explícita e então poderia haver matéria para acusar PSL de tentativa de enxovalhar a campanha política com matérias do foro pessoal. Se tal não acontecesse, o assunto morreria ali, e ninguém mais falaria nele. E há matérias que, pelo seu melindre, o preferível é deixá-las no silêncio, pois quem fizer a primeira jogada, perde o jogo.

Porque este caso é completamente distinto do caso Louçã-Portas. Neste debate, Louçã afirmou, de forma insistente e cara a cara, que Portas, pelo seu estilo de vida pessoal, não tinha direito a intervir e a ter voz em certas matérias.

No caso da frase do almoço feminino de Braga, ela não contém, objectivamente, nada de ofensivo para Sócrates, nem nada que ponha em causa a sua capacidade política. Por isso, quando Ana Sá Lopes a traz à colação afirmando que «A direcção do PS está "estupefacta com o nível a que a campanha está a chegar" e discute, neste momento, a melhor maneira de demonstrar o "repúdio" do partido ao actual clima vivido na campanha eleitoral, em que já é o próprio Santana Lopes a fazer insinuações relativamente a José Sócrates», duvido que tal corresponda a intenções dos mentores de campanha de Sócrates. Provavelmente não passa de um “desejo” de ASL, a quem o fanatismo político tira discernimento.

Estou a ver Santana Lopes com o ar mais ingénuo que conseguir afixar no rosto, a contestar: Eu? De forma alguma ... tratava-se apenas de um elogio dirigido àquele público feminino tão caloroso e amável que me rodeava com tanto entusiasmo! Não insista ... Aliás, se está a levar a conversa por essa via mal intencionada, tenho a dizer-lhe que sempre fui tolerante com as preferências sexuais dos outros e o meu percurso político mostra que nunca pus em causa as capacidades políticas de ninguém em virtude dessas preferências. Por exemplo, tenho liderado uma coligação em que o líder do outro partido foi objecto de um manifesto público, da autoria de um dirigente do PS, contestando, durante uma campanha eleitoral, a sua capacidade política devido a alegadas preferências sexuais. E tenho tido, como é visível, um entendimento excelente com ele. As preferências sexuais do Engº Sócrates são do seu foro íntimo e pessoal. Respeito-as, como sempre tenho respeitado tudo e todos, e reitero que essas preferências não constituem, na minha opinião, qualquer óbice à sua vida política.

.... e assim por aí fora ... PSL, o tolerante, a afirmar em todos os canais televisivos, no horário nobre, que havia apenas uma interpretação mal intencionada, que o facto do Engº Sócrates ser ... enfim ... ele lá sabe ... são questões pessoais que não devem ser trazidas para a política ... não calculam o repúdio que me merecem as pessoas que têm vindo a público com essas calúnias que ofendem o Engº Sócrates e a mim ... mas eu já estou habituado ... há décadas que todos os dias me caluniam...

Se a intenção de Santana Lopes fosse a de fazer desta questão uma arma de arremesso político, seria, para ele, ouro sobre azul ... fazer de vítima, enquanto a arma se disparava, sozinha, sobre Sócrates. Porque o pior para o PS seria que esta questão tivesse âmbito nacional. Enquanto ela se mantiver na franja do eleitorado que lê o Público e frequenta a net, não haverá estrago, bem pelo contrário, pois aí serão as alegadas insinuações de PSL que prevalecerão. Mas se ela transitar para o domínio público pela mão de estouvados jornalistas e políticos, então PSL será o favorecido.

Por isso, alguns dirigentes socialistas vão protestando contra o “baixo nível” da campanha, sem entrar em pormenores. Mas é difícil aumentar o nível do protesto, sem referir contra o que se protesta. Assim sendo, estes protestos poderão vir a ter um lado perverso, que é o de serem os próprios dirigentes do PS a trazerem a público questões do foro pessoal de Sócrates que lhe podem ser prejudiciais não apenas durante a campanha, mas também, se for eleito, na chefia do governo.

Quanto a Pacheco Pereira ... bem ... JPP anda a dar tiros no pé desde a indigitação de Durão Barroso para Primeiro-Ministro. Calculo que, actualmente, a extensa área do espectro político do PSD que ele representa seja a abarcada pelo seu volumoso bojo e nem mais um milímetro. Hoje em dia, JPP é fundamentalmente um bloguista. ... o Il Traviato da política.

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janeiro 31, 2005

Metas Aspiracionais e Indicativas

Enquanto os líderes dos dois maiores partidos andam empolgados pelo país a prometer meter Portugal nos eixos – 150 mil novos empregos, crescimento de 3% ao ano, emagrecimento da FP em 75 mil efectivos (PS); ou peso do Estado no PIB de 48% para 40%, diferencial de produtividade face à média da UE de 64% para 75%, peso da economia paralela no PIB de 23% para 10% (PSD) – os seus assessores são mais comedidos: Mexia referiu, na 5ª feira, que estes números eram “Metas Aspiracionais” e Vitorino asseverou, na entrevista ao programa "Diga Lá Excelência", que veio a lume hoje no Público, que aqueles números eram “Metas Indicativas".

Quer um quer outro são indivíduos competentes e sensatos, com experiência, um com experiência mais empresarial (Mexia), outro mais administrativa (Vitorino), mas ambos com práticas vividas que lhes sugerem que, embora aqueles números correspondam a vontade de mudança das estruturas do país por parte das lideranças de ambos os partidos, a dura realidade dos hábitos instalados no sector público, os lobbies sindicais e os interesses corporativos, que também se insinuam internamente quer no PS, em maior grau, quer no PSD, irão dificultar as acções correctivas e que aqueles números quase de certeza não serão atingidos.

Uma plumitiva do Público, Eunice Lourenço, com a objectividade e o espírito de isenção que a caracteriza, desancou no Sábado passado, no Público, o PSD pelas declarações de Mexia, dizendo que foi “o sinal mais evidente do desnorte e desgoverno em que vai o PSD e o reconhecimento mais descarado do verdadeiro programa eleitoral do PSD”. E a partir daí seguiu furibunda, glosando em diversos tons agrestes o conceito de “Metas Aspiracionais”.

Eunice Lourenço cometeu dois erros. O primeiro foi a forma acintosa e desabrida como caracterizou a conferência de imprensa de António Mexia. São palavras espectáveis de responsáveis pela campanha do partido opositor, ou de quem não aprecie o actual PSD ou apenas António Mexia. Todavia, são palavras que deveriam ser evitadas por uma jornalista, de um jornal de referência, quando noticia um evento.

O segundo erro de Eunice Lourenço foi a sua precipitação. Quando escreveu aquela diatribe, ou pelo menos quando ela veio a lume, já Vitorino havia dado a entrevista onde falava das “Metas Indicativas”. Teria sido preferível ter ficado calada, pois agora Eunice Lourenço tem a obrigação ética de produzir uma igualmente furiosa catilinária contra o “desnorte e o desgoverno” de Vitorino. Isto admitindo que Eunice Lourenço tem qualquer ética profissional.

Da entrevista de Vitorino respigo o seguinte parágrafo, pelo que ele tem de lucidez, vindo, como veio, de um destacado militante do PS e membro do governo de Guterres. Sobre as expectativas falaciosas de progresso criadas no país durante o consulado de Guterres, Vitorino reconhece a responsabilidade do PS, “pela perspectiva de adesão ao euro e a baixa das taxas de juro, o que provocou um desafogo extraordinário nas famílias e, portanto, uma espiral de sobreendividamento. A verdade é que nos devíamos ter concentrado mais nos "basicks", como dizem os ingleses. E isso o que é? Neste período de integração europeia fomo-nos aproximando do rendimento médio per capita a nível europeu e tivemos um progresso assinalável com cerca de 20 pontos acima em matéria de rendimento per capita mas a nossa produtividade como país não acompanhou essa subida de rendimento.”.

Ora isto corresponde a afirmações que eu tenho produzido aqui e contrariam a generalidade das declarações de dirigentes do PS, como Cravinho e Santos Silva, entre muitos outros. Vitorino reconhece que o nosso crescimento de então era falacioso. Era o crescimento do rendimento das famílias decorrente da política de despesa pública de Guterres, mas esse crescimento do rendimento não tinha contrapartida no crescimento da produtividade. Era artificial e teria impacte negativo no défice orçamental e no aumento do saldo negativo das nossas contas com o exterior.

Não é possível sustentar o crescimento do país baseado no aumento da procura interna (consumo), sem correspondente aumento da oferta interna. E como parte do aumento do consumo se dirige a bens importados, parte do aumento dessa oferta interna deve dirigir-se à procura externa, de forma a assegurar o equilíbrio da balança de transacções com o exterior.

Vitorino compreendeu isso perfeitamente. As declarações dos restantes líderes do PS não evidenciam, de forma alguma, essa compreensão.

Publicado por Joana às 08:52 PM | Comentários (16) | TrackBack

janeiro 26, 2005

Compromisso de Mudança

Interessada em conhecer o programa do PSD, fui ao site do partido, fiz o d/l tal como lá estava indicado e comecei a lê-lo. Fiquei entusiasmada, e cada vez mais, à medida que o ia devorando. Tudo o que lá estava escrito me empolgava e correspondia ao que tenho aqui escrito frequentemente. Estava magnífico. O diagnóstico era perfeito e as medidas exemplares. Racionalizar, reduzir e simplificar o Estado e promover a liberdade de escolha dos cidadãos entre ofertas alternativas de prestação dos serviços públicos, sempre foram ideias que acarinhei. Sempre defendi que se devia trazer a responsabilidade para os modelos de decisão administrativa do Estado e redistribuir competências no Estado. A minha adesão era total.

Só que a partir do meio do documento (em pdf), após meia hora de leitura rápida, comecei a achar que havia ali algo estranho ...

Tenho que confessar que faço as coisas com demasiada rapidez e que provavelmente deveria ser mais ronceira a ler alguns documentos. Mas aquele era exaltante. Por exemplo, quem tinha escrito a parte sobre a reforma da administração pública percebia obviamente do assunto. Foi certeiro aos pontos fulcrais:

– proceder a uma identificação sistemática, ministério a ministério, da missão e tipo de intervenção que devem ter os respectivos serviços, eliminado decididamente duplicações e desperdícios de recursos;
– implementar novas técnicas de gestão pública, difundindo a prática da gestão por objectivos, nomeadamente ao nível dos serviços prestados;
– introduzir mudanças indispensáveis a uma maior eficiência organizacional;
– aproximar a Administração Pública dos cidadãos;
– simplificar métodos e processos de trabalho;
– motivar os funcionários públicos e agentes, mediante a definição clara de objectivos;
– premiar o mérito e a produtividade;
– melhorar e aumentar a utilização das tecnologias da informação, por forma a estabelecer práticas de “e-government”;

etc.

Foi quando cheguei à parte em que se propunha:

Reavaliar, no curto prazo, a utilidade funcional de todos os Institutos Públicos existentes (78 deles criados durante os seis anos de Governo Socialista ...que eu me questionei: Então isto não foi já encetado no governo de Durão Barroso? Calculo que ainda haja institutos a mais ... mas aquela referência aos 78 institutos criados pelo PS e aparentemente não extintos, deixou-me pensativa.

Continuei mais umas páginas, mas já com o sentimento que havia ali qualquer coisa que não batia certo. Nada que se relacionasse com a qualidade das propostas, que era óptima. Havia rigor, conhecimento dos factos e, acima de tudo, a sensação que emanava do documento de que fora feito por gente que percebia, e bem, de organizações administrativas e dos procedimentos e processos de reestruturação dessas organizações.

Foi então que tomei uma decisão que se revelou sábia: folheei a introdução, a que eu tinha dado menor atenção, porque normalmente só se escrevem aí banalidades e, entre essas banalidades, estava a assinatura do Presidente do PSD. Bem ... as assinaturas, nem os caixas dos bancos as sabem interpretar frequentemente ... mas não havia dúvidas ... o primeiro nome era José e o último Barroso! Então e o Santana?

Voltei ao site do PSD, revolvi aquilo tudo, e não havia dúvidas, aquele “Compromisso de Mudança” era o programa para as eleições de 2002!

Depois das imprecações que soltei por ter perdido quase uma hora com um documento ultrapassado, soltei outras imprecações que vou dar conta a seguir:

O que é que o governo de Durão Barroso andou a fazer? Onde é que está a desconcentração e a descentralização de muitos departamentos da administração pública e a redução da sua dimensão exorbitante, assim como das respectivas unidades, de modo a permitir a flexibilização das suas tarefas, a simplificação das suas estruturas e a responsabilização dos seus dirigentes?

Onde é que pára o sistema de Certificação da Qualidade dos Serviços Públicos?

Onde é que estão implementados os procedimentos para permitir que se detectem actos de má execução orçamental, gestão irregular, incompetência, desperdício ou clientelismo?

Onde é que estão os mecanismos destinados a recolher permanentemente a opinião dos utilizadores, tendo em vista a correcção de deficiências?

Onde é que foi alterado o regime da função pública, por forma a permitir a melhoria do processo de recrutamento, o reforço e simplificação da mobilidade interna e da intercomunicabilidade entre carreiras e o ensaio de novos e mais rigorosos critérios de avaliação do desempenho, centrados nos resultados e no mérito efectivo, tendo em vista a classificação e promoção dos funcionários?

Os lemas eram: Dinamizar, desburocratizar e tornar transparente. Perfeito! Onde é que estamos nós 3 anos depois?

É certo que os lobbies que se opõem à reforma da administração pública são fortes e têm apoios importantes, mas como foi possível o governo ter faltado ao “Compromisso de Mudança” de uma forma tão absoluta? É certo que Durão Barroso se revelou muito inábil na constituição do governo e na gestão da comunicação política, mas por que é que o PSD não conseguiu mobilizar as pessoas competentes, por exemplo, as que conceberam e escreveram o programa, para o implementarem na prática?

Recordando os factos, o que eu tenho assistido nestes 3 anos, foi ao distanciamento de algumas personalidades consideradas imprescindíveis, aos sucessivos tiros no pé dados por Pacheco Pereira que pretendia, insensatamente, que medidas tão profundas e contestáveis fossem levadas à prática sem coligação, por um partido sem maioria na AR; a dois anos de governo cinzento que, em vez das reformas profundas que eram o seu “Compromisso de Mudança”, utilizou paliativos; à saída de Durão Barroso para um cargo que certamente prestigia o país, mas que deve ter constituído um alívio para ele; a 4 meses de um governo morto à nascença.

E foi pena ... aquele programa estava muito bem concebido e escrito!

Apenas cometi um erro: os programas devem ser lidos antes das eleições ... 3 anos depois causam uma enorme sensação de mal estar.

Publicado por Joana às 07:49 PM | Comentários (48) | TrackBack

janeiro 23, 2005

Uportugalia

Uma Utopia académica para Portugal

O programa do Partido Socialista constitui um excelente exercício académico. Está perfeito. Consegue prometer os resultados de uma pujante economia de mercado, com menos Estado e melhor Estado, e o conformismo imobilista de uma economia da matriz estatizante. Portugal, dentro de 4 anos, vai conseguir o milagre económico que irá abalar os fundamentos do pensamento económico contemporâneo: criar uma eficiente economia de mercado, mantendo o estatuto de Estado providência, esmoler e burocrata. Uma Utopia ... ou, neste canto da Europa, uma Uportugalia.

A questão da burocracia estatal fica resolvida com a Via Verde ... mas só para produtos inovadores, pois será criada uma “Via Verde” para produtos inovadores - canal de decisão rápida na Administração Pública para licenciamentos ou apoios aos investimentos;”. Excelente ideia. Quem quiser investir num produto inovador arranja uma certidão de produto inovador e passará sempre pela Via Verde. Só estou curiosa em saber quantos anos demorará a obter uma certidão de produto inovador que permita aquele trânsito rápido através da burocracia estatal. A burocracia estatal é intocável. A única possibilidade será utilizar a Via Verde!

Está prometido “Viabilizar a criação de 200 novas empresas de base tecnológica;”. 200? Porque não 500 ou 1.000? Ou 10? Que magia terá o número de 200 no que respeita a empresas de base tecnológica? Será algum código esotérico? Imaginemos que eu queria criar a empresa de base tecnológica nº 201 ... será que me respondiam: V.Exa desculpar-me-á, mas atingimos o limite de largura de banda desta legislatura.

São números de uma semiótica esotérica e cabalística, tais como os 150 mil novos empregos e os 3% de crescimento real prometidos.

Outra promessa é a Prestação Extraordinária de Combate à Pobreza dos Idosos, por forma a que finalmente nenhum pensionista tenha que viver com um rendimento abaixo de 300 €. A solidariedade nacional fará com que aproximadamente 300.000 pensionistas vejam os seus rendimentos totais significativamente aumentados com efeitos muito poderosos na diminuição da taxa de pobreza. Quando as famílias dos restantes souberem desta dádiva, deixarão de apoiar os seus familiares, ou pelo menos dirão isso. O nosso povo tem desenvolvido os mais engenhosos esquemas de candidatura a subsídios. Certamente não lhe escasseará a arte e a indústria quando este subsídio for criado.

Outra medida de grande alcance é a de “Criar a regra global de entrada de um elemento recrutado do exterior por cada duas saídas para aposentação ou outra forma de desvinculação. Este programa visará diminuir em pelo menos 75 mil efectivos o pessoal da AP, ao longo dos quatro anos da legislatura”. Uma das mais imorredoiras obras do socialismo foi a da indiferenciação, ou do igualitarismo, das pessoas. Portanto, no sector público português passará a haver UTs (unidades de trabalho). Saem duas UTs, não importa de que sítio e com que qualificações e habilitações, entra uma UT.

Por exemplo: reformam-se uma professora de inglês e um mergulhador da marinha. Sócrates vai à lista de espera e lá está: um cantoneiro para a Direcção de Estradas de Faro.

Antes de ler este programa, eu julgava, ingenuamente, que um organismo, para emagrecer, deveria ser objecto de um processo de reestruturação, definindo objectivos, circuitos e missões, avaliando o pessoal necessário e o excedentário, e criando procedimentos para avaliação permanente do desempenho. Afinal todos aqueles especialistas de gestão que escreveram milhões de páginas sobre organização de empresas e gestão do pessoal estavam completamente equivocados. A solução era simples e estava à vista de todos: por cada dois que saem, entra um.

A próxima investigação nesta matéria vai ser sobre o que fazer quando a saída do pessoal se processar por números ímpares: 1, 3, 5, ... 2n+1.

Neste programa também são contempladas proezas científicas: “criar condições para que pelo menos um curso pósgraduado de gestão (MBA) venha a estar entre os 100 melhores do mundo;”. Obviamente que seria interessante, e de significado para o país, se as nossas escolas estivessem bem colocadas no ranking mundial. Mas isso não é um objectivo, é uma consequência das políticas. Se as políticas forem as adequadas, os resultados aparecem. É um pouco indiferente verificar-se que está um curso entre os 100 primeiros, ou 2 entre os 100 e os 120. E acho provinciano, ou uma infantilidade, propor este objectivo.

O programa diz que: “Governo do PS promoverá a revisão do Código do Trabalho, tomando por base as propostas de alteração que em devido tempo apresentou na Assembleia da República, bem como a avaliação do novo regime legal”. Paralelamente tece diversas considerações sobre o actual código, genericamente críticas, mas sem nunca concretizar essas críticas. Julgo que se trata apenas de “conversa para sindicato ler”.

Quanto à questão das SCUTs estou de acordo, embora por razões diversas das do PS. Julgo que as receitas financeiras líquidas resultantes de pôr portagens nas SCUTs existentes dificilmente cobrirão mais que 20% ou 25% dos custos anuais. As SCUTs foram um péssimo negócio e o PS não reconhece isso, mas agora pouco há a fazer. Aliás, numa entrevista recente, Santana Lopes afirmava, orgulhoso, que fora ele quem convencera Mexia, porquanto este não estava inicialmente de acordo. Isso só prova que Mexia é um sujeito competente.

Quanto à Lei do Arrendamento Urbano, o PS compromete-se a apresentar na Assembleia da República uma iniciativa legislativa nos primeiros 100 dias do seu mandato. Mas é muito nebuloso sobre o conteúdo dessa lei. A lei do PSD é má, como já escrevi aqui. Mas a do PS poderá não ser melhor, nomeadamente porque o PS é muito mais susceptível aos lobbies que o PSD. Portanto, tudo permite concluir que os comerciantes irão ser bastante beneficiados por essa iniciativa legislativa.

Mas o programa tem também bons momentos, nomeadamente quando se situa ao nível do ensaio académico. Eu, por exemplo, não desdenharia escrever, neste blogue que:

“o Estado pode facilitar a formação de parcerias para a inovação em clusters em que Portugal já tem competência e onde acrescenta valor e reforçar a sua competitividade internacional. São exemplos:
• Combinar as indústrias dos têxteis, confecções e calçado com o design e a
distribuição, para desenvolver o cluster da moda;
• Partir das indústrias automóvel e aeronáutica para desenvolver o cluster da mobilidade, da electrónica e da logística;
• Promover a indústrias dos moldes como uma base fundamental de desenvolvimento de capacidades de concepção, do desenho e da engenharia de produto, com aplicaçãoem múltiplos sectores;
• Apoiar o cluster das florestas;
• Apoiar a indústria de software especializado;
• Promover a agricultura de precisão em áreas como os vinhos e as horti-frutícolas;
• Combinar o turismo com a cultura, a gastronomia, o desporto, a protecção ambiental e a recuperação do património, para desenvolver as indústrias do lazer;
• Combinar estas actividades com o sector da saúde para desenvolver um cluster de apoio à terceira idade, aberto a nacionais e estrangeiros

Está excelente, mas não passa de intenções vagas, bom para um ensaio académico, mas inconsistente, para um programa de governo.

Publicado por Joana às 10:13 PM | Comentários (34) | TrackBack

janeiro 21, 2005

The Harder They Fall

O beirão Candal acusou Paulo Portas, algumas campanhas eleitorais atrás, de ser homossexual. O manifesto caiu mal, foi considerado um enxovalho contrário à ética política, e Carlos Candal acabou mais mal visto que o seu acusado. Mas há duas coisas a reconhecer no beirão Candal: foi frontal e a sua acusação corresponderia, tudo o indicava, às opiniões que ele tinha sobre a homossexualidade.

Francisco Louçã foi muito pior e mais baixo que Candal. Louçã não foi frontal ... apenas insinuou e, na questão da IVG, insinuou da forma mais torpe: trouxe a filha à colação - "O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança", e repetiu isto insistentemente, para que não restassem dúvidas. Louçã foi farisaico, porque não se espera de um defensor dos direitos dos homossexuais, das uniões de facto e de tantos outros temas ditos “fracturantes” utilize, como marketing político, insinuar que o opositor é homossexual e utilizar a filha para que essa insinuação fosse mais clara.

Candal apenas usou a baixa política, frontalmente, por convicção, mas não deixou por isso de ser baixa política. Louçã foi um Candal, mais a pusilanimidade e mais o farisaísmo. Foi um Candal pusilânime e farisaico.

Quanto ao resto do debate nem vale a pena falar. No que respeita às questões nacionais ficou claro aquilo que já se sabia – que Portas tem obra feita, quer nas OGMA, quer nos Estaleiros de Viana de Castelo, e que Louçã é apenas um maldizente que tenta enganar o auditório falseando os números, comparando valor da transacção com capitais próprios, passando displicentemente ao lado de passivos, o que é de estranhar num economista ... mas não num demagogo.

Quanto à questão da fiscalidade bancária, há medidas que não podem ser tomadas abruptamente, se não têm efeitos perversos na economia. Ora a situação, a partir do OE2005, passou a ser mais justa do que era anteriormente, e tenderá, assim se espera, a evoluir nessa direcção. Mas Louçã não percebe destas coisas: ele é mais demagogo que economista.

Por isso os conceitos que ele mais utilizou no debate foram: ladrões, medíocres, sem-vergonha, mentirosos, roubalheiras, etc. etc.

Publicado por Joana às 02:29 PM | Comentários (109) | TrackBack

janeiro 19, 2005

Voto Invertido

Estas eleições vão ter uma peculiaridade invulgar. Os eleitores não vão votar no que querem. Vão votar para evitar que ganhe, quem não querem. Haverá obviamente franjas do eleitorado que, quer por acreditarem em mitos, a quase totalidade do eleitorado do BE e do PCP, quer por fé clubística, diversos e disseminados por todos os partidos, irão votar no que é a sua escolha real. Os outros votarão no que julgam ser o mal menor. Uma percentagem significativa pensará que, com o que há nos escaparates políticos, que venha o Diabo e escolha, e abster-se-á de comparecer nas urnas, deixando ao Diabo a escolha...

Instalou-se na sociedade portuguesa uma enorme decepção sobre a classe política. Essa decepção é disparatada, insensata e está a servir de álibi para os portugueses se lastimarem da situação em que estão, atribuindo como é seu hábito, a culpa a outros: neste caso aos políticos.

Em primeiro lugar, a classe política portuguesa é constituída por ... portugueses. Não é um corpo estranho que se incrustou na nossa sociedade e lhe está a devorar a seiva. Os políticos portugueses também somos nós: vêm de nós e somos nós que os elegemos.

Em segundo lugar, o enxovalho da classe política tem sido uma tarefa levada a cabo com afinco e perseverança pela nossa comunicação social, mas sustentada pelos instintos baixos e mesquinhos dos politiqueiros de café que sempre foram um furúnculo no tecido social português. Essa tarefa ganhou envergadura com o Independente do tempo de Paulo Portas e infectou todo o tecido social a partir do aparecimento dos canais privados que apostaram na mexeriquice e no enxovalho dos políticos como forma de aumentarem as audiências.

Não pretendo com isto tirar mérito aos canais privados. Acabaram com o cinzentismo do canal público e têm prestado um relevante serviço no aumento da transparência nas relações da população com o Estado e a sua máquina omnipotente e omnipresente. Todavia, as inovações têm lados positivos e negativos e cabe aos seus utentes fazerem a triagem. Por exemplo, os automóveis tornaram-se um objecto indispensável, mas os portugueses usam-no como arma de destruição maciça, numa guerra civil que dura há décadas e que custou dezenas de milhares de vítimas.

Por isso, nós somos vítimas da mexeriquice dos meios de comunicação, porque queremos ser vítimas dessas alcovitices. Eles apenas nos servem aquilo que queremos.

Em terceiro lugar as remunerações dos cargos públicos de governação estão muito abaixo das remunerações de cargos de menor responsabilidade (ou no máximo idêntica) no sector privado e mesmo em algumas empresas públicas. Essas remunerações são baixas porque se instalou a convicção, alimentada pelos mais diversos sectores, que o exercício da política em Portugal deve constituir um sacerdócio, uma tarefa para frades franciscanos e não para gestores de mérito.

Ora em matéria de sacerdócio, sabe-se como as vocações escasseiam nesta época materialista ...

Em quarto lugar instalou-se a convicção que os políticos actuais são mais medíocres que os do antigamente. É a Lei de Gresham, cuja aplicabilidade na “circulação” dos políticos, Cavaco Silva descobriu recentemente. Verificou-se, no programa Prós e Contras desta semana, como esses “bons” políticos do antigamente estão completamente desprovidos de ideias, só dizem banalidades e em vez da política séria, resvalam para estéreis lutas de clãs familiares. Não se viram ideias novas, conhecimento dos factos, intuições geniais, mas apenas arqueologia política, algo de defunto, de arcaico, de desenterrado da história passada ... apenas pó. Somente Cadilhe, feito menino entre os doutores ... perdão ... senadores, sabia do que falava e apresentava soluções, boas ou más, mas com consistência. Os senadores, a “boa moeda”, eram apenas espectros exumados e maquilhados para público ver.

Temos a classe política que merecemos e estamos nesta situação económica e financeira porque trabalhámos para isso – acreditámos que era viável receber sem ter em conta o que produzíamos, acreditámos que a euforia de 1995-8 estava assente em bases sólidas e vinha para ficar, acreditámos em tudo o que nos venderam, porque queríamos acreditar.

E quando a realidade se perfilou perante os nossos olhos, ficámos deprimidos. Fica deprimido quem é confrontado com uma situação incómoda que não sabe, nem quer saber, resolver e ultrapassar. A depressão é a doença de quem desiste de lutar. Passamos da euforia à depressão, porque nem fizemos nada para o surto de euforia, nem fazemos nada para eliminar o que nos leva à depressão. É o perfil do jogador de casino, de quem ganha ou perde sem um fundamento consistente e sustentável daqueles eventos.

Por isso vamos escolher o que não queremos. Não queremos continuar deprimidos. Todavia a depressão não é matéria de escolha. A depressão acaba quando compreendemos as causas e as combatemos. Não acaba pelo zapping do ecrã político.

Por isso vamos escolher não continuar deprimidos e obter a continuação da depressão.

Nota - Sobre a Campanha das Legislativas 2005, ler ainda:
Sopro Reformador
Uportugalia
Compromisso de Mudança
Metas Aspiracionais e Indicativas
A Contra-Insinuação
A Ignóbil Public(aria)
A Vitimização e o Vale-Tudo
Sócrates nunca terá maioria absoluta
Da Delinquência à Arte
As Eleições e a Processionária
Banalidades
Má Fé

Publicado por Joana às 10:26 PM | Comentários (45) | TrackBack

janeiro 18, 2005

Sopro Reformador

Finalmente, um sopro reformador varre o país. Políticos, sindicalistas, jornalistas, funcionários públicos e profissionais de todos os ramos, mesmo o arrumador de automóveis a quem esportulo diariamente 50cent., são unânimes em considerar que tem que haver uma reforma profunda da administração pública e que só com uma política de verdade, vamos lá. Há todavia uma divisão sub-reptícia nesta unanimidade: uns acreditam convictamente, nessa varridela reformadora; outros, citando Lampedusa, apenas reconhecem que é preciso mudar alguma coisa, para que tudo fique na mesma.

Carvalho da Silva reconheceu que talvez fossem necessários cortes na administração pública, mas advertiu que se oporia a cortes cegos. Todavia, para os atingidos, esses cortes serão sempre “cegos”. Por muito mau que seja um funcionário, público ou privado, está por aparecer o primeiro que reconheça que a sua saída forçada é uma medida justa. É sempre um acto cego, injusto e mesmo prejudicial para a entidade que o praticou. Faz parte da natureza humana. Portanto, Carvalho da Silva apenas aceita cortes virtuais.

Ontem, na RTP, Mário Soares ouvia atentamente Cadilhe, acenava afirmativamente às reformas propostas por Cadilhe, partilhava da unanimidade sobre a urgência dessas reformas e ... elogiava o programa do BE, afirmando convicto haver lá muitas medidas interessantes ... provavelmente as que iam no sentido exactamente oposto das medidas enunciadas por Cadilhe. Para Soares a única medida importante é evitar que o detestável Sócrates tenha uma maioria absoluta, desviando votos para o BE. Presentemente, o pensamento político do Patriarca da democracia e Senador da República está reduzido a uma zaragata de clãs interna ao PS.

Quanto a Sócrates, simplificou a questão: já declarou solenemente que abandonou as ideologias. Há dias, numa reunião no CCB, afirmou que, caso o PS ganhe as eleições legislativas, iria introduzir alterações ao Código do Trabalho aprovado pela actual maioria, mas que não iria revogá-lo "apenas por objecções ideológicas". Isto é, Sócrates reconheceu publicamente que a ideologia socialista, qualquer que ela seja, não serve os interesses do país.

Todavia existe sempre uma ideologia. A ideologia é um sistema de representações (ideias e valores) lógico e coerente que se consubstancia em normas ou regras sobre o que (e como) devem pensar, valorizar e fazer aqueles que seguem essa ideologia. Uma das característica de uma ideologia é justamente a sua lógica interna e a sua coerência.

Mas Sócrates abandonou a coerência. Votou contra o OE2005, classificando-o como de «maior ataque à classe média», e poucas semanas depois anunciou a manutenção do regime de benefícios fiscais inscrito nesse Orçamento de 2005. Ora quando ele atacou aquelas medidas orçamentais já sabia que daí a poucas semanas estaria em campanha. Nada se modificou entretanto. Mudou porque ... mudou.

A perplexidade acentuou-se quando, dias volvidos, declarou que, caso o PS vença as eleições legislativas, no Orçamento de Estado para 2006 será dado um "sinal claro" para o incentivo à poupança. Só não explicou que sinal claro seria aquele: alguma medida concreta; uma palavra amiga; um aceno de simpatia ... ou um simples olhar embaciado e comovido?

Outra promessa foi a de que haveria um crescimento médio de 3% nos próximos quatro anos e a criação de 150 mil postos de trabalho. Também não explicou como faria isso. Certamente que não será da forma como se fez durante anos, com cursos de formação subvencionados que serviam para manter o desemprego num valor baixo fictício e que não trouxeram quaisquer vantagens a nível da qualificação profissional. Não passaram de expedientes. A UE não voltará a aceitar uma vigarice destas, à custa do dinheiro dos contribuintes europeus.

Aliás, com um crescimento de 3% não é materialmente possível a criação de tantos empregos no sector produtivo. Além do mais perspectiva-se a aceleração do desemprego nos têxteis e na construção civil. Há várias centenas de milhares de postos de trabalho em perigo nestas áreas. E se houver reforma da administração pública haveria lugar igualmente a desemprego nesta área. Pelos números de Cadilhe poderiam ser de 200 a 250 mil empregos a menos. Que fazer? Sócrates aconselha a falarem com o seu assessor para os assuntos económicos.

Sócrates também propôs uma curiosa medida: aumentar em 90 euros por mês a pensão de 300 mil reformados com rendimento inferior ao limiar de pobreza, sabendo-se que as pensões inferiores ao salário mínimo nacional se referem a 1,3 milhões de reformados, para os quais existe um plano de convergência a longo prazo, considerado excessivamente longo, por alguns. Aqueles 300 mil são os que foram estimados (não se sabe de que forma) como não apoiados pelas suas famílias. Este medida é completamente inverosímil. É iníqua porque penaliza as famílias que apoiam parentes pobres, introduz uma diferenciação injustificável perante essas famílias, e é impossível de aplicar, pois uma coisa são estimativas, outra são as pessoas concretas e não vai ser possível diferenciar os pobres não apoiados, dos que estão agora apoiados ... mas deixarão de estar quando se fizer o recenseamento.

Outra medida anunciada foi o fim dos Hospitais SA, transformando-os em empresas públicas e que iria cancelar o programa em curso de construção de hospitais, em regime de parcerias público privadas. No dia seguinte, em Braga, o ex-ministro Correia de Campos declarou que o eng.º Sócrates apoiava os Hospitais SA e até aplaudia que o novo Hospital de Braga fosse construído naquele regime. Lembram-se que eu sempre disse aqui que a única diferença de política, nesta área, entre PSD e PS, era apenas a cor dos boys nos respectivos órgãos de gestão?

Portanto, sendo a ideologia um sistema de representações lógico e coerente, como não há qualquer coerência nas sucessivas declarações de Sócrates, seria uma contradição filosófica o Sócrates inquietar-se com minudências ideológicas.

Pergunta-se: mas os jornalistas que o acompanham na sua campanha não o interrogam sobre essas sucessivas contradições? Boa pergunta, mas ... silêncio.

Quem viu o Expresso da Meia-Noite de 6ª-feira passada decerto se apercebeu da ensaboadela que Sócrates havia dado, naquela manhã, aos jornalistas que o acompanham, por não o tratarem com o respeito que ele merece. Segundo uma fonte fiável, os jornalistas “foram elucidados que quando é feita uma pergunta a que não é dada resposta [pelo Eng. Sócrates] os jornalistas não devem insistir, por respeito ao tal primeiro ministro que o irá ser, e se continuarem muito interessados, devem tentar obter a resposta mais tarde em off”.

Amordaçando a comunicação social, coisa que acusou o anterior governo de tentar, pode-se sobreviver sem coerências, nem ideologias ... pelo menos durante algum tempo.

Sabe-se o que foi o governo anterior. Todavia pode alegar que estava numa situação insustentável do ponto de vista de legitimidade pública, sob a espada do Damocles Sampaio e com uma esperança de vida limitada. Mas estas cambalhotas de Sócrates não prenunciam nada de bom. E Sócrates nem sequer pode alegar algo que justifique mudar de opinião como quem muda de camisa.

Pois se ele ainda não começou a governar ... pois se ele ainda não foi confrontado com as duras realidades da vida e da governação.

Acontece, e mais do que seria desejável, um político prometer uma coisa em campanha e depois, já no governo, fazer o contrário.

Agora, em campanha ... unicamente em campanha, sem o empecilho das pequenas misérias da governação, prometer num dia uma coisa e, no dia seguinte, prometer o contrário ... confesso, nunca tinha visto.

Publicado por Joana às 10:33 PM | Comentários (49) | TrackBack

janeiro 16, 2005

Pacto de Silêncio

Augusto Santos Silva, mais conhecido como plumitivo do Público, que como ex-Ministro da Educação, escreveu no sábado passado subordinado ao imagético mote “não são os profetas da desgraça nem os apóstolos das soluções financistas que nos farão sair” da crise que atravessamos. Resolvi traçar umas linhas sobre este texto porque considero-o um paradigma de quem tenta iludir-se a si próprio, ou talvez aos outros.

Em primeiro lugar, e embora reconhecendo que em “2002 havia problemas reais e sérios no equilíbrio das contas do Estado”, Santos Silva postula que foi o facto da dupla Durão Barroso/Manuela Ferreira Leite “empolar demagogicamente as dificuldades, lançar um duche frio sobre as expectativas dos agentes económicos e paralisar a acção do Estado, o investimento público e a despesa social, cortando sem critério nem sustentação” que teria agravado a situação. É normal que um sociólogo, habituado ao poder da palavra, ache que a causa das nossas dificuldades económicas é ... falar-se nelas!! Que erro colossal que DB/MFL cometeram! Se eles não falassem que havia uma profunda crise orçamental, ninguém teria dado por ela ... teria passado despercebida, quer entre os agentes económicos portugueses, quer no Eurostat. O perigo que representa a incontinência verbal!

Sampaio, em vez de pactos de regime, deveria ter proposto ... pactos de silêncio!

Quanto aos cortes, eles aconteceram onde era possível, dada a rigidez da despesa com a massa salarial e com outras despesas correntes.

Mas depois desta crítica, Santos Silva só pensa no futuro. E hierarquiza 3 medidas:

A primeira é a “participação numa revisão inteligente do Pacto de Estabilidade e Crescimento”. Portanto, a nossa medida financeira prioritária será a alteração das regras do jogo das finanças europeias. É uma medida inteligente. Como não depende de nós, nunca seremos culpabilizados por não acontecer ... ou pelo que venha a acontecer.

A segunda é a medida, por excelência, que os gastadores públicos apregoam: é preciso haver uma elevação da receita do Estado. Se o nível de evasão fiscal, designadamente entre as empresas e as profissões liberais, e o nível de informalidade económica são aqueles que todos os estudos indicam, então há uma enorme margem de crescimento da receita, sem aumento da carga fiscal, e o Governo tem de usar todos os meios legais para fazer pagar quem deve.

Há duas realidades que se conhecem: 1) Portugal tem uma carga fiscal elevada; 2) o nível de evasão fiscal em Portugal não é significativamente maior que no resto da Europa. Deve haver combate à evasão fiscal para obter uma maior equidade fiscal e fazer diminuir a carga fiscal sobre famílias e empresas, não para sustentar a ineficiência e o laxismo. São aqueles que mais se especializaram em aumentar a despesa pública, que mais apregoam a receita do combate à evasão fiscal como panaceia, embora nos seus governos nunca ninguém tivesse dado conta da sua pertinácia nessa luta. Por outro lado, o combate à evasão fiscal é uma luta demorada que passa também por uma mudança de mentalidades, quer da população, quer da administração fiscal.

Quanto à despesa pública, Santos Silva é cauteloso “Finalmente, é preciso enfrentar os grandes agregados da despesa pública. Não para abater despesa onde for mais fácil, sem preocupação de equidade e justiça social, nem sentido estratégico de desenvolvimento. Mas para introduzir medidas de calibragem das prioridades do investimento público e de racionalização e sustentação da despesa”. Para Santos Silva é pecaminoso falar de “baixar a despesa pública” ... em vez disso pretende “enfrentar os grandes agregados da despesa pública“.

Portanto, a primeira medida ... não é connosco; a segunda medida é sacar mais dinheiro ao contribuinte exangue, matéria em que o Estado português se tem apurado num exercício de quase 9 séculos, especialmente nos últimos 30 anos; a terceira é ... uma metáfora poética!

E conclui: Há mais vida para além das receitas gastas do monetarismo e dos truques contabilísticos. E é dessa vida que vale a pena falar.

Acho preferível que ele fale dessa outra vida, porque desta ele não parece saber o que diz. Ou então julga que os outros são tolos.

Publicado por Joana às 11:38 PM | Comentários (21) | TrackBack

janeiro 14, 2005

Despesa Insultuosa

Há nomes que se forjam pela política. Nunca seriam mais que profissionais desinteressantes e ignorados, se a política não os tivesse projectado para a ribalta. Helena Roseta é um deles. Como política, não passa de uma arquitecta inexperiente; como arquitecta, o que é, deve-o à política. É um círculo virtuoso (para ela) e vicioso, para o resto da sociedade. Mas, num ápice, arrisca-se a libertar-se da lei da morte ... a imortalizar-se ... a ser mais um ícone para encimar o Arco da Rua Augusta!

Helena Roseta afirmou ontem na Visão que "A austeridade de que precisamos em Portugal não é apenas uma exigência do nosso saneamento orçamental - é um dever moral à luz das carências tremendas de dois terços da humanidade.".

Sublimes palavras. Um frade franciscano do século XIII não teria proferido declarações mais virtuosas. É comovente como a ala obreirista do PS chega ao objectivo patriótico de redução da despesa pública e de consolidação orçamental pela via da solidariedade. Não a solidariedade banal com uma função pública excessiva e parcialmente inútil. Melhor e mais exaltante: a solidariedade absoluta com a humanidade mais desvalida. Temos que eliminar o excesso de despesa, porque a nossa despesa pública é um insulto social a dois terços da humanidade.

Portugal deve encetar uma política de austeridade por solidariedade com os desfavorecidos do Bangla-Desh que, para além de não terem que comer, passam a vida empoleirados nas árvores de maior porte, para escaparem às cheias da monção; Portugal deve fazer uma rigorosa política de austeridade por solidariedade com os somalis, entalados entre as secas e os senhores da guerra; Portugal tem que ser intransigente numa frugal política de austeridade por solidariedade com todos os deserdados do mundo: Erguei-vos ó vítimas da fome, que nós partilharemos convosco a vossa abstinência!

No cumprimento desse sublime dever moral, o país teria, além de uma excelsa satisfação espiritual, que nenhum ouro (ou euro) do mundo consegue pagar, o magnífico superavit material resultante de remunerar a função pública, e as actividades de baixo valor acrescentado, com rações parcimoniosas de arroz, milho, feijão e óleo. Certamente Carvalho da Silva, João Proença e Bettencourt Picanço estariam na primeira fila para aplaudir esta medida e receber as sóbrias e parcas rações diárias.

E seria o boom económico. Todas as multinacionais dos têxteis e do calçado, que têm demandado terras longínquas, fariam marcha atrás e estabelecer-se-iam num país de tanto merecimento e tão virtuoso e solícito em dádivas espirituais. Sócrates falou em 150 mil empregos? Só 150 mil? Seriam 500 mil ... 1 milhão ... Portugal teria que importar mão de obra em fornadas gigantescas, descomunais. Claro que teria que ser mão de obra trabalhadora mas, acima de tudo, com a sublime capacidade de entrega ao seu semelhante que Helena Roseta possui.

Portugal está em dívida com Helena Roseta. Ela resolveu, provavelmente sem se dar conta, o nosso problema das outras dívidas, grosseiramente materiais – dívida pública, dívidas com o exterior, etc..

Com a vantagem que as dívidas espirituais pagam-se com um olhar embaciado pela gratidão ... apenas assim. Helena, obrigada!

Publicado por Joana às 07:54 PM | Comentários (60) | TrackBack

janeiro 13, 2005

Desaprender nas Tascas

Um comentarista afirmava ontem que em vez de ler as entrelinhas dos jornais, eu deveria frequentar as tascas suburbanas para adquirir um conhecimento mais profundo do país. Mesmo sem essa frequência instrutiva e embriagante, tem-se verificado que, normalmente, antecipo os acontecimentos. Por exemplo, no dia anterior à entrevista de PSL com o PR, em que este comunicou a dissolução da AR, eu havia escrito que o PSL se deveria demitir porque não tinha condições para governar. Quem ler o artigo que escrevi sobre o discurso do PR, dando posse ao governo de PSL, verificará que retratei então todo o clima de instabilidade que se iria gerar na sequência desse discurso e que culminou na dissolução da AR. Estes são apenas dois exemplos entre muitos.

Ontem escrevi aqui que “o país apenas anseia que lhe sirvam a próxima dose de ópio”, que os portugueses “preferem a tranquilidade ilusória da mentira” e que uma solução seria o colapso da nossa economia e sociedade criando as “condições para que o eleitorado aceite o tratamento de choque que o país necessita”. E o que escrevi ontem reflecte uma preocupação que sinto pela incapacidade do eleitorado português, ou uma parte significativa dele, perceber a situação dramática que o país atravessa e reparar no abismo por onde resvalamos, e que aceite apoiar soluções dolorosas mas indispensáveis. Preocupação que tenho transmitido ao longo de diversos textos que tenho colocado aqui (*).

Igualmente ontem no JN, embora só hoje eu tivesse tomado conhecimento, diversos e conhecidos economistas opinavam que “Portugal ainda não está preparado para aceitar uma verdadeira reforma da Administração Pública”, que “não existe na sociedade portuguesa um clima que permita ao Governo, qualquer que ele seja, reestruturar os fundamentos do Estado”, pois “pela simples força do número de famílias que poderiam ser atingidas por encerramentos ou restruturações de serviços, avaliações de desempenho, deslocações de uma zona do país para outra, ... o custo político de uma real reforma será insustentável, enquanto a sociedade entender que o actual estado de coisas é sustentável”

Medina Carreira concordou com aquelas afirmações e afirmou que "o primeiro passo é consciencializar a sociedade". Mas, "infelizmente, ainda não há pânico suficiente" para ultrapassar a actual "fase caricata de imobilismo e sequer começar a pensar em levar a cabo as medidas propostas por Miguel Cadilhe, que fazem todo o sentido", mas que "são bloqueadas logo à partida pela sociedade", e concluiu “Enquanto Portugal não sentir dificuldades sérias, não vai fazer nada para ultrapassar a actual bandalheira, relaxe e desordem”.

Portanto, todos estes distintos economistas concordam com o que tenho escrito aqui desde há muito tempo. E Medina Carreira foi ministro socialista.

Quem apreende a realidade nacional nas tascas suburbanas apenas vê os anseios, sociologicamente compreensíveis, mas economicamente insensatos, de uma população que, maioritariamente, se tenta drogar com ilusões, que foge desesperadamente da crueza dos factos, que contesta a política e os políticos dando socos no ar, pois nem quer acreditar que os verdadeiros alvos estão nela própria, em interesses ilusórios e ruinosos que não passam de ícones ocos, sem substância, mas aos quais sacrifica o bem estar nacional e os seus interesses mais essenciais e mais a longo prazo.

E a caminhada para o colapso é inevitável, e visível, para quem não se inebrie pelas tascas suburbanas, pois a nossa economia já não tem a possibilidade da desvalorização cambial para repor as condições de competitividade. E essa inevitabilidade é reforçada pelas promessas absurdas de Sócrates, o mais provável vencedor das eleições, que se desfaz em declarações avulsas, sem coerência entre si, tirando a despesa avultada que elas representam para o erário público, excepção feita à promessa, a longo prazo, de elevar o crescimento para um ritmo de 3% ao ano e criar 150 mil empregos. Só não explicou como pensa consegui-lo.

E seria igualmente importante que Sócrates, e também Santana, explicassem que medidas irão tomar para evitar o desemprego gerado pelo próximo colapso dos têxteis de baixo valor acrescentado, face à liberalização do comércio internacional dos têxteis, e na construção civil, face à estagnação continuada do sector imobiliário e das obras públicas.

Mas uma economia para gerar emprego, tem que ser competitiva e a competitividade não se estabelece por decreto, nem com declarações para eleitor ver. Consegue-se com medidas de longo prazo relativas à qualificação e formação, e estímulos diversos, nomeadamente aliviando o sector privado do pesado ónus de sustentar a ineficiência pública e de sofrer os seus efeitos.

(*) Cito, por exemplo:
A questão que se coloca é saber até quando Portugal sobreviverá sem uma revolução completa do seu actual modelo económico e financeiro. A questão que se coloca é saber o que sucederá primeiro: se um pacto de regime, ou se a convulsão e a destruição do actual espectro político.

às vezes, a iminência da morte leva a actos desesperados, e um deles pode ser o doente mandar às urtigas ... a constituição ... que lhe espartilhava a sua conduta, mandar passear sinapismos e emplastros emolientes, e fazer a cura que a ciência médica impõe.

Hoje toda a gente aceita as reformas ... desde que não belisque os seus interesses individuais. Toda a gente está convencida que é imprescindível fazerem-se reformas, mas quando elas se perfilam no horizonte, todos os argumentos valem para impedir que elas se façam. ... Elas hão-de se fazer, quer queiramos, quer não e quanto mais tarde acontecerem, mais sacrifícios teremos que suportar, mais custos haverá em desemprego, falências, insolvências. Será o preço acrescido a pagar pelo nosso desleixo.

Publicado por Joana às 10:23 PM | Comentários (137) | TrackBack

janeiro 12, 2005

Logro Velho Não Cansa

Os dados estão lançados para mais uma encenação eleitoral. Os protagonistas estão ensaiados e sabem as marcações e as deixas. Os protagonistas destacados para o palco são exímios na arte de iludir; os protagonistas destacados para a plateia treinam-se há séculos a acreditar naquilo que querem acreditar, mesmo tendo a experiência que tudo o que for prometido se irá revelar depois uma refinada mentira.

É difícil avaliar porque é que estes protagonistas aceitam fazer reposições periódicas e regulares desta tragicomédia. Uns asseveram que os protagonistas-actores são constrangidos a mentirem porque os protagonistas-espectadores têm medo da verdade e preferem a tranquilidade ilusória da mentira. Outros asseguram que os protagonistas-actores mentem porque são incompetentes e apenas anseiam por continuarem no palco, mesmo à custa de iludirem os protagonistas-espectadores, que não passam de ingénuos iliteratos, que caem sempre no mesmo conto do vigário.

Parece-me que ambos têm razão. Os portugueses sempre se iludiram a si próprios, partindo do princípio que a tragédia que se perspectiva, apenas irá atingir os outros. Cada um pensa que acabará por se safar da “enrascada”. Esta percepção é comum em todos os domínios da relação do português com as instituições.

Com frequência inusitada, os governos legislam disposições insensatas, com efeitos colaterais que não avaliaram devidamente. Na Europa “civilizada”, tal conduziria a movimentos de opinião poderosos, aparecimento de organizações cívicas criadas unicamente para liderar a opinião pública no combate contra essa legislação. Em Portugal é o silêncio. Cada um pensa ... cá me hei-de safar. E o que é singular é que, na generalidade, safa-se. O mau funcionamento das instituições, a inércia dos cidadãos em cumprirem as disposições legais e o laxismo geral do país faz com que esses instrumentos legais caiam rapidamente em desuso, sejam esquecidos e ninguém lhes ligue.

O mesmo tem sucedido com as promessas políticas. Até há poucos anos este jogo de ilusões tinha funcionado. Os políticos cumpriam algumas das promessas, a população ficava satisfeita, meses depois a desvalorização cambial fazia ruir vantagens adquiridas, mas todos esses mecanismos complicados escapavam à compreensão geral das populações ... era a fatalidade do destino. E na eleição seguinte novas promessas insustentáveis, a mesma crendice, e os mesmos resultados.

O último grande comediante destes enganos foi o Actor Guterres. O crédito fácil e a descida das taxas de juro proporcionados pela adesão ao euro, a aplicação da diminuição dos encargos com a dívida pública na criação de empregos públicos desnecessários e nas benesses improdutivas distribuídas a esmo. Todavia, a actuação do Actor Guterres não permitia uma reposição. Os ingredientes dessa actuação tinham sido consumidos no acto.

A ressaca foi terrível. Foi como que o despertar dos Paraísos Artificiais criados por dose excessiva de ópio. Esperava-se que o país reagisse, lutasse ... e afinal o país apenas anseia que lhe sirvam a próxima dose de ópio.

E os políticos vão servir-lhe. Começou pelo OE 2005, onde Santana Lopes descobriu, surpreendentemente, que a austeridade tinha acabado e que era possível aumentar o rendimento disponível das famílias, quer através de aumentos salariais, quer através da diminuição do IRS por troca com os benefícios da poupança. Ao apostar no consumo das famílias por contrapartida da poupança, Santana deu o sinal que uma suave dose de ópio seria administrada ao país para lhe diminuir a ressaca.

E o PR, ao dissolver a AR e ao marcar eleições antecipadas, foi o dealer que a classe política ansiava, ávida por distribuir mais doses maciças de estimulante tão poderoso.

E assim tudo se perfila para que a comédia de enganos continue.

Santana Lopes perdeu a coragem política que o seu passado sugeria ter. Capitulou perante o vampirismo da comunicação social e a hipocrisia das manobras presidenciais. Também promete quimeras. Em vez de denunciar e combater a mesquinhez, fica “incomodado”.

Sócrates quando não diz banalidades, quando promete coisas específicas, estas promessas são imediatamente “limadas” ou “corrigidas” por aqueles que lhe fazem o programa. Só promete generalidades: empregos, sem especificar onde; o PS ser “amigo” das políticas sociais, sem especificar onde leva essa amizade; substituir os Hospitais S.A. pela mesma coisa, mas com outro nome e com os boys do Correia de Campos nas administrações; etc.

Portas tem a tarefa mais facilitada. Escusa de prometer seja o que for, pois se sabe que só irá para governos como sócio menor. Assim, basta-lhe apresentar o currículo dos seus ministros e vender a ideia que a coligação ruiu por inabilidade do parceiro.

Quanto aos outros, não fazem parte do regime. Apenas o querem enxovalhar e destruir, mas sem nada para oferecer em troca. O BE ainda teve pretensões em chegar-se ao conchego do poder, mas a elaboração das listas do PS mostrou claramente que Sócrates não apostava nessa carta. A única solução para Sócrates é a maioria absoluta. Aliás, só há duas soluções para o país evitar o colapso imediato: 1) o PS ter a maioria absoluta; 2) a Direita, coligada ou não, ter a maioria absoluta.

A solução em que uma parte do PSD aposta é a liquidação política de Santana nas eleições de Fevereiro, o semi-colapso do país com Sócrates durante a próxima legislatura, admitindo que ele chegue ao fim da legislatura, e a criação de condições para que o eleitorado aceite o tratamento de choque que o país necessita.

A primeira condição está quase garantida. Não parece que Santana Lopes consiga evitar uma pesada derrota em Fevereiro. Ele próprio comporta-se como um derrotado. Poderia tentar uma reviravolta em debates com Sócrates, mas Sócrates vai gerir uma situação que à partida lhe é vantajosa e não a vai comprometer em debates onde se poderia espalhar. Sócrates vai apostar na derrota de Santana. A sua vitória será apenas a consequência inevitável dessa derrota.

A segunda condição é quase certa. Sócrates não tem base de apoio, na sua clientela política, para tomar as medidas que o país precisa. Sócrates parece-me um político com algum pragmatismo, embora pouco consistente, mas a base clientelar que se perfila detrás dele não permite alimentar esperanças. Além do mais, há duas eleições a seguir e Sócrates irá evitar tomar medidas difíceis no primeiro ano de mandato. Todavia, não tomar medidas equivale a tomar uma decisão calamitosa.

Quanto à terceira condição, já é de prognóstico longínquo e difícil. Tudo depende do estado em que ficar o país, depois do consulado de Sócrates, se este ganhar.

Nota
Ler sobre estes temas:
Pacto de Silêncio
Desaprender nas Tascas
A Frase do Dia
O Aumento da Idade da Reforma
Ministro Equivocado
Portugueses e Alemães
A Entrevista de Daniel Bessa
Tiros ao Acaso
Política, para que te quero ...

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janeiro 09, 2005

Tiros ao Acaso

Fico perplexa pelo que tenho lido e ouvido nos últimos dias. Jornalistas, fazedores de opinião e políticos no desemprego fazem lembrar um grupo de caçadores urbanos, vestidos a rigor, de um camuflado impecável, com caçadeiras e cães do último modelo e topo de gama, que iniciam a caçada pelas onze da manhã, atirando a tudo que mexe e não conseguindo destrinçar uma vaca de uma lebre.

A questão é simples. O país tem um problema, mas nem sequer conseguiu ainda atinar com o enunciado do problema, quanto mais com a solução ou soluções. E isto é deveras preocupante.

No início de 2002 o problema era Guterres, segundo a quase unanimidade daqueles caçadores urbanos. Mas quase nenhum tentou formular o enunciado do problema, porque Guterres não passava de um epifenómeno de um problema muito mais complexo. O problema ia muito para além de Guterres. Este apenas o tinha tornado desmedido.

Nos dois anos seguintes assistiu-se aos esforços inábeis de um governo para resolver um problema do qual se desconhecia o enunciado. E os caçadores urbanos, nos seus artigos, colunas e homilias, apenas se comportavam como tal: atiravam a tudo que mexia ... menos às espécies cinegéticas.

Finalmente, a indigitação de um novo primeiro ministro permitiu uma clarificação: Era ele o problema. Os caçadores urbanos já tinha um alvo: Santana Lopes. Foi a explosão de alegria entre os caçadores urbanos. Mas como Santana não era uma espécie cinegética, os chumbos continuavam inúteis para a solução de um problema sem enunciado.

A dissolução da AR pelo PR foi uma espécie de ágape festivo, de febras grelhadas e tinto, numa caçada infrutífera, num trilho abandonado e inútil. Foi um folguedo: a carne acalmou os estômagos e o tinto inebriou os espíritos. A caçada iria prosseguir, por trilhos ínvios, horizontes ignotos e espécies inexistentes, mas prosseguiria.

Surge agora a questão das listas. A depressão é geral. Santos Silva geme: “Nos partidos, as inumeráveis capelas e as suas afinidades e rivalidades tribais enxameiam as listas de candidatos sem rosto, sem ideias e sem valor autónomo”, esquecendo que mesmo os que têm rosto, como ele, não têm ideias nem valor autónomo. Numa coisa tem esse ex-Ministro de Educação, de desconhecida memória, razão, os “atiradores” esquecem-se que, na vez anterior, escreveram exactamente o mesmo.

António Barreto foi liminar: Três cavalheiros, Santana, Sócrates e Portas, nomearam pessoalmente cerca de 80 deputados ... mais ou menos 5.000 pessoas dos cinco partidos, reunidas em comissões locais ou nacionais, nomearam 190 deputados, ou seja, a quase totalidade do Parlamento que entra em funções dentro de seis semanas. Restam 40 para nós elegermos.

Outros falam de que o país estava à espera que a moeda boa regressasse, e expulsasse a moeda má, e afinal os partidos porfiaram em apresentar ao eleitorado um baú repleto de moedas mais “quebradas” que alguma vez o rei D. Fernando ousou fazer, nos períodos de maior aflição de escassez de metais preciosos no Reino. Nunca se viu moeda de tão baixo teor, clamam.

O problema agora é a questão das listas. Com tanta mediocridade, como resolver o problema? Mas qual problema? Primeiro há que identificar “o problema” e formular o respectivo enunciado. Eu olho para as listas e não vejo que estes sejam, em média, mais medíocres que os anteriores. Alguns nomes sonantes saíram dos elencos elegíveis. Mas são apenas nomes sonantes. Nunca vislumbrei neles qualquer competência. Helena Roseta, por exemplo, competente? Nem como política, nem como arquitecta ... não passa de um nome gerado pelos aparelhos partidários do PSD e do PS.

Jorge Sampaio, um dos mais exímios caçadores de pólvora seca, num debate há dias na SIC, na sequência aliás da sua mensagem de Ano Novo, voltou a afirmar a necessidade de uma estabilidade a médio prazo (ele, que vai ficar na História como o primeiro, e esperemos o último, presidente que dissolveu uma AR com uma maioria estável, a meio do mandato) e um entendimento entre os principais partidos para resolver “o problema”.

Portanto, para Sampaio, e não só, a solução poderia estar num entendimento partidário alargado para tomar medidas ditas “impopulares”, mas necessárias, para recuperara o país. O que há de anedótico em tudo isto é que Sampaio andou a vetar, ou a enviar para o Tribunal Constitucional, para este considerar inconstitucional, inúmeras medidas impopulares em matérias que agora reclama serem solucionadas mediante um entendimento salvador.

O problema das medidas impopulares não é apenas elas serem impopulares e só gerarem efeitos positivos a médio e a longo prazo. Não é precisarem de um entendimento partidário alargado, para assegurarem a quietude social. É serem inconstitucionais. A nossa constituição, apesar das revisões que teve, continua inquinada pelo conceito de um Estado demasiado interventor na economia e na prestação de serviços públicos, o que é uma contradição com o funcionamento eficiente de uma economia de mercado. Continua inquinada por conceitos que protegem interesses corporativos e impedem o funcionamento eficiente do mercado de trabalho, o que é negativo em termos de competitividade e de incentivos à qualificação. Temos uma constituição que tem disposições que não deveriam figurar lá, por constituírem matéria para decisões dos governos e não normas rígidas que os governos estão impedidos de alterar. Temos uma constituição completamente desajustada face aos países com os quais concorremos, face aos países com os quais estamos unidos política e economicamente. Temos uma constituição que é contrária aos interesses do país e um entrave ao seu desenvolvimento.

Para que queremos deputados competentes e governantes competentes, se essa competência não se traduzir em resultados práticos? Apenas por masoquismo extremo, gente competente aceitaria expor-se a governar, sabendo que não tem possibilidades constitucionais de resolver as questões mais essenciais.

E o masoquismo é uma perversão e não uma virtude.

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dezembro 21, 2004

Os Irmãos Marx e o Défice

Este Natal apareceu nos escaparates uma edição dos filmes mais emblemáticos dos Irmãos Marx. Comprei-a. Há uma cena nos Irmãos Marx no Far West onde eles usam toda a estrutura do comboio como combustível para atingirem o seu destino. E, na aflição de manter a locomotiva em andamento, nos equilíbrios difíceis de transportar, até lá, os destroços das carruagens desmanteladas, Harpo, diligente, mas azarado, perde a maior parte das tábuas pelo caminho. Quando vi esta cena, lembrei-me do ministro Bagão Félix.

O ministro tem feito malabarismos para descobrir receitas extraordinárias para maquilhar o défice. É o mesmo que maquilhar um doente num caso de anemia progressiva. Como não se consegue combater a anemia, a maquilhagem tem que ter cada vez mais camadas, para o doente aparentar um aspecto saudável. Em 2001, quando não houve receitas extraordinárias, o défice do Orçamento do Estado ascendeu a 4,4 %. Nos dois anos seguintes o défice foi ficou abaixo dos 3%, mas sem receitas extraordinárias teria sido de 4,1% e 5,3 %. E nos primeiros 11 meses de 2004 já vai nos 5,2 por cento. É certo que houve algumas receitas de Janeiro que foram contabilizadas, por antecipação, em 2003 ... manobra também frequente em empresas com receio de apresentarem prejuízos, que durante Janeiro continuam a emitir facturas com data de 31 de Dezembro do ano anterior. Mas Bagão Félix declarou hoje, na conferência de imprensa, que este ano não utilizará essa técnica.

A conferência de imprensa de Santana Lopes e Bagão Félix, hoje, foi importante para desfazer algumas inexactidões que a comunicação social havia transmitido, e que eu me fiz eco, sobre o alegado facto desta última solução (o lease back), que foi chumbada em Bruxelas, ter sido tomada à última hora, em desespero de causa. Bagão Félix apresentou documentação que prova que as duas soluções haviam sido apresentadas, em tempo (no início de Outubro), ao Eurostat. Assim, quando aparece um comentador a dizer que o que interessava saber era o futuro e não fazer a história do que aconteceu, só cabe designá-lo por hipócrita. No dia anterior afirmava que eram decisões atrabiliárias; quando confrontado com o facto de serem decisões previstas há mais de dois meses, ignora o que dissera anteriormente e critica Bagão por falar do passado.

O ministro apresentou ao Eurostat duas soluções: a alienação dos imóveis, ou uma operação de lease back. A primeira tornou-se indesejável por alegados motivos éticos, visto tratar-se de um governo de gestão. O ministro das Finanças afirmou que a opção pelo lease back surgiu como definitiva face a imperativos éticos e políticos, inerentes ao facto de «um Governo em gestão não dever vender património». Todavia houve outro motivo mais poderoso – após a dissolução do Governo, os consórcios vencedores, invocando o risco político, tentaram renegociar as condições do contrato de venda, aumentando de 6,5% para 7,5% a remuneração anual a preços correntes.

A segunda opção era uma não-opção. Não consigo atinar com a argumentação que Bagão Félix terá arranjado para servir ao Eurostat algo que era um simples empréstimo caucionado por imóveis, em travesti de alienação patrimonial com possibilidade de reversão. Vítor Constâncio, à saída de Belém, afirmou com pesporrência que havia previsto a sua rejeição por Bruxelas. Não me parece grande feito. Eu, que não governo o Banco de Portugal, e cujo único orçamento que giro é o orçamento doméstico, já havia escrito neste blog, posts atrás (cf. A Tirania do Défice), que não acreditava que Bruxelas aceitasse aquela operação. O próprio Bagão, numa entrevista esta noite, disse ou pareceu-me entender, que ele mesmo não estava convencido que a medida passasse em Bruxelas. Se era assim, porque razão a propôs?

Vítor Constâncio previu igualmente que a execução orçamental em 2005 obrigaria ao recurso de elevadas receitas extraordinárias para manter o défice abaixo dos 3%.

Estou completamente de acordo com ele. Aliás, é uma tal evidência que qualquer leigo se apercebe, desde que raciocine. A governação em Portugal está a ser vítima de heranças cada vez mais pesadas. O actual governo teve uma herança terrível, sem quaisquer hipóteses de reverter a situação. Mas o anterior executivo também tinha tido uma herança pesada. E o próprio Guterres teve duas heranças difíceis. A primeira herança era difícil, mas ele, na sua doce inconsciência, julgou que era uma herança de fartura e dinheiro fácil. A 2ª herança, mais onerosa, herdou-a dele mesmo, e continuou a ignorar os seus custos até ser tarde demais.

A questão central é que cada governo deixa ao seguinte uma herança pior do que aquela que recebeu. Se, no caso do governo de Guterres, este pode ser acusado de inconsciência, o mesmo não se pode dizer destes últimos governos. Por mais cortes que se façam e vencimentos que se congelem, a despesa pública aumenta a um ritmo que as receitas não conseguem acompanhar. O PIB estagna porque a competitividade das nossas empresas diminui face ao exterior e está vedada a possibilidade de aumento artificial do PIB pelo lado da despesa, como aconteceu durante o período de Guterres, em virtude da situação de desequilíbrio orçamental a que se chegou e à existência do PEC.

Antes da moeda única era fácil. Ao aumentar o PIB pelo lado da despesa, ele apenas aumentava em termos nominais, pois o deslizamento cambial fazia-o rapidamente cair em termos reais. Aumentava-se a despesa pública em termos nominais, mas o deslizamento cambial fazia-a diminuir em termos reais. Esse processo permitia igualmente manter a competitividade externa das nossas empresas. Todos viviam felizes.

Com a moeda única conseguimos estabilidade cambial e taxas de juro muito baixas. Mas em troca teríamos que aceitar que o aumento dos nossos rendimentos disponíveis seria de acordo com o nosso aumento de produtividade e que as despesas que fazemos nos serviços que gerimos, públicos ou privados, teriam que estar de acordo com os recursos disponíveis. Esquecemo-nos dessa contrapartida.

Antes vivíamos uma farsa cuja ilusão se desvanecia pelos equilíbrios automáticos do mercado internacional. Tínhamos uma mentira que ele própria se encarregava de se metamorfosear em verdade, sem a nossa intervenção e contra nós. Agora temos a verdade crua dos factos e não conseguimos lidar com ela. Agarramo-nos, desesperados, a ilusões; zombamos daqueles que nos chamam a atenção para a situação dramática em que se encontra a nossa economia; chalaceamos quando nos falam do resvalar da despesa pública; satirizamos sordidamente o governo por questões acessórias, na esperança de o vermos substituído, não por outro mais capaz de fazer as reformas que o país necessita, mas por meros vendedores de ilusões.

De tanto se falar nas reformas, a palavra banalizou-se. Hoje toda a gente aceita as reformas ... desde que não belisque os seus interesses individuais. Toda a gente está convencida que é imprescindível fazerem-se reformas, mas quando elas se perfilam no horizonte, todos os argumentos valem para impedir que elas se façam.

A palavra banalizou-se, mas o conceito persegue-nos na sua totalidade semântica. Elas hão-de se fazer, quer queiramos, quer não e quanto mais tarde acontecerem, mais sacrifícios teremos que suportar, mais custos haverá em desemprego, falências, insolvências. Será o preço acrescido a pagar pelo nosso desleixo.


Nota - Ler ainda:
A Tirania do Défice
Aspirina ou Benuron?

Publicado por Joana às 10:54 PM | Comentários (7) | TrackBack

Um País no Crematório

A questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos é o paradigma do cretinismo da nossa demagogia política, que aposta em emblemas para agitação eleitoral, vazios de conteúdo e nocivos para o país, pois que apenas servem para não fazer nada, para manter tudo na mesma. É perverso que as forças políticas e mediáticas do nosso país se tenham especializado e adquirido a máxima proficiência em mobilizarem o país ... para não deixar fazer nada.

Quando findou a governação de Cavaco Silva estava na calha um projecto para a construção de uma incineradora dedicada, destinada à eliminação dos resíduos industriais perigosos (RIP), em Estarreja, com o aval da autarquia respectiva. A equipa de Guterres fez abortar esse projecto.

Posteriormente o ministro Sócrates propôs uma solução diferente: a co-incineração realizada nos fornos cimenteiros. Esta proposta levantou imensa polémica, criaram-se e desfizeram-se comissões de iniciativa governamental e iniciativa cívica, choveram insultos mútuos entre figuras científicas, até então tidas como prestigiadas, foi, enfim, um enorme e pouco dignificante sururu. Não se percebe como cientistas e docentes universitários, com currículos volumosos, estejam em desacordo sobre, por exemplo, a quantidade de dioxinas emitidas pelas lareiras e que esse desacordo, entre os cientistas opositores e os cientistas da CCI, seja de 1 para 100! Ou de 1 para 1 milhão (!?) no caso da cremação de cadáveres.

Pelo que me apercebi, a co-incineração tem a vantagem de ser muito mais económica, pois os investimentos nos filtros das cimenteiras deveriam ter sido feitos em qualquer dos casos. Por outro lado, como os RIP são usados como combustível, poupa-se em fuel, o que é um factor muito positivo na nossa balança de pagamentos (o combustível fóssil constitui, de longe, o principal custo da fabricação de cimento).

Tem em contrapartida a desvantagem de só poder ser efectuada sobre parte dos RIP pois há restrições à queima de resíduos com elevadas concentrações de metais voláteis, como o mercúrio. Quanto às desvantagens ambientais tenho dificuldade em me pronunciar em face de contradições tão antagónicas de cientistas tão eminentes. Todavia parece-me que, desde que haja uma triagem prévia e que aos RIP mais nocivos seja dado outro destino, é uma solução que não causa prejuízos ambientais.

Quando Sócrates decidiu avançar com a solução ... caiu o governo de Guterres. Empolgado com a polémica anterior, Durão Barroso fez do não à co-incineração um dos seus emblemas de campanha. É profundamente estúpido que questões como esta se transformem em armas de arremesso político.

Durão Barroso ganhou as eleições e a questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos voltou à estaca zero. Só uma coisa era sólida ... o não à co-incineração. O assunto ia ser estudado e seria encontrada uma solução ... desde que não fosse a co-incineração!

Dois anos e meio depois, uma nova solução entretanto estudada está em fase de implementação e o país, e sobretudo os ambientalistas, tranquilo. E é nesta tranquilidade de quem julgava que havia sido encontrada uma solução ... ou melhor, uma decisão, que Sócrates aparece a ressuscitar a polémica e a garantir que com ele haverá co-incineração.

Resumindo: há 10 anos o país estava à beira de implementar uma solução para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; após muita inércia, estudos e polémicas, o país, há cerca de 3 anos, estava à beira de implementar uma solução (diferente) para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; agora, após alguma inércia e muitos estudos, o país está à beira de implementar uma solução (igualmente diferente) para a eliminação dos RIP ... e ... aparece Sócrates.

Sócrates tem sido sistematicamente acusado de só dizer banalidades e ser um vazio total. É perverso que a primeira ideia concreta com que ele nos obsequiou tenha sido um disparate, tenha sido o reviver uma polémica inútil.

Se Sócrates fosse inteligente e tivesse consistência política, estaria calado sobre este assunto durante a campanha e, posteriormente, poderia implementar uma solução conjugando a que está actualmente em concurso, que é ambientalmente muito melhor, com a eventual queima, nos fornos de cimento, dos RIP mais adequados a tal operação, o que tem vantagens económicas.

Mas não, Sócrates além de dar um tiro no próprio pé, deu mais um tiro certeiro na credibilidade dos políticos, na (in)consistência das suas (in)decisões. Deu mais uma achega àqueles que estão convencidos que os políticos apenas estão empenhados nos seus interesses partidários, em guerrilhas mútuas e nocivas para o país e completamente alheios aos interesses do país.

Municiou aqueles que acham que a nossa actual classe política é o principal estorvo à solução dos nossos problemas e ao desenvolvimento do país.


Nota - Ler ainda:
Prometemos o mesmo, mas ...

Publicado por Joana às 07:45 PM | Comentários (6) | TrackBack

dezembro 19, 2004

António Barreto não vota

António Barreto, que está farto de ser enganado nas escolhas políticas que tem feito (mal de que também me queixo), não vai votar nas próximas legislativas. É todavia óbvio que um homem com as responsabilidades cívicas de António Barreto nunca publicitaria tamanho deslize de cidadania com crueza, taxativamente. Por isso escreveu-o de forma cabalística, enigmática ... esfíngica mesmo. Desconfio que ele seja do Priorado do Sião ... Ele que evite ser apanhado no Louvre fora de horas ...

Barreto é um político fino e astuto. Limitou-se por isso a elencar uma série de perguntas cujas respostas adequadas são imperiosas para a sua decisão de votar e em quem votar:

«Dêem-me respostas simples a perguntas simples, planos claros para questões práticas, e o meu voto, como o de tantos outros, tomará forma. O que vão fazer, no concreto, para reduzir os prazos da justiça? Como vão abrir, à sociedade, os sistemas fechados da Justiça e da Educação? Permitem que os Institutos Politécnicos confiram doutoramentos e se transformem em Universidades? Como pretendem organizar a colocação de professores? Continuarão a gerir, a partir do Ministério da Educação, as doze mil escolas ou vão entregá-las às autarquias? O que vão fazer com as portagens das auto-estradas e das SCUT? Mantém a uniformidade das formas de governo das Universidades? Permitem ou não que cada universidade tenha as suas regras próprias de selecção de professores e estudantes, os seus critérios de promoção, a sua autonomia de gestão e os seus órgãos de direcção? Que destino darão aos hospitais públicos e aos hospitais ditos SA? Que medidas práticas e concretas tomarão para lutar contra a evasão fiscal? Como vão cuidar dos miseráveis resultados escolares portugueses, nomeadamente dos desastres que constituem os ensinos da matemática, do português, da física e da química? Como lidar com as centenas de cursos e licenciaturas existentes em cada área disciplinar? Alteram ou mantém a actual legislação do aborto? São favoráveis ou adversários a um referendo sobre o aborto? Em qualquer dos casos, que voto recomendam? Como vão votar e que pergunta propõem para o referendo europeu? São contra ou a favor da integração da Turquia na União?».

Infelizmente nunca ninguém respondeu a estas perguntas, com clareza e sem sofismas, durante uma campanha eleitoral. Houve eventualmente alguns aprendizes de política que começaram a balbuciar respostas sinceras e adequadas a estas questões. Os aparelhos partidários boicotaram todavia, e de imediato, a sua participação, pois as sondagens indicavam que nenhum deles teria mais que 0,01% dos votos expressos.

Publicado por Joana às 10:25 PM | Comentários (11) | TrackBack

dezembro 16, 2004

Atiradores Furtivos

Portugal está num pântano político, económico e social. Para resolver a grave crise económica em que se encontra, e da qual o descontrolo financeiro é apenas um sintoma, o país precisa de uma política adequada, rigorosa e firme. Mas para implementar essa política, cujos vectores principais já os referi aqui diversas vezes, é necessária uma direcção firme e segura. Uma política de rigor exige competência, mas também exige uma forte coesão da direcção política.

Essa coesão não existe nos partidos portugueses, se exceptuarmos a “paz do sepulcro da história” do PCP e o PP, mas cuja coesão se baseia numa direcção personalizada que depende apenas do crédito político do chefe, e que se pode desvanecer se esse crédito faltar. No BE nem vale a pena falar. O que o mantém coeso é o seu discurso anti-sistema. Se, para desdita do país, fosse chamado a integrar o governo, o BE ficaria desfeito ao fim de meia dúzia de medidas governamentais. Não há gente mais mesquinha e invejosa que no segmento intelectual urbano que se reivindica de progressista e onde o BE recruta os seus militantes e dirigentes. Não há gente que valorize tanto os mais insignificantes cambiantes de opinião e que utilize essas diferenças como biombo atrás do qual se aninha a inveja, como esse grupo social.

Infelizmente esse mal afecta igualmente as elites políticas do PS e do PSD, partidos cujo advento e os prelúdios da III República predestinaram para serem os únicos partidos do poder, sozinhos ou liderando coligações. O que é prodigioso nessa vertigem pelo abismo da cizânia é que ela tem origens diferentes, pelo menos as origens mais imediatas.

As diferenças dentro do PS resultam de opções políticas internas muito diversas. A distância política entre a ala mais esquerdista e a ala mais centrista do PS é muito superior às distâncias ideológicas no interior do conjunto da «coligação» PSD/PP. Refiro-me às questões político-económicas e não a questões éticas e sociais, como o caso da IVG.

No sector mais à esquerda do PS, muitos poderiam ter continuado no PCP se este partido desse mais merecimento às «mentes brilhantes». Mas o aparelho do PCP sente qualquer fulgurância política como carreirismo e envia todos aqueles que adquirem protagonismo mediático para o purgatório dos segundos planos. Na sua quase totalidade, esses políticos não saíram, ou foram expulsos, pela sua ânsia de democracia interna, pois conviveram muitos anos, incondicionalmente, com o centralismo democrático, mas pela sua ânsia de protagonismo. Houve obviamente excepções, mas a regra geral foi esta.

Outros, como por exemplo Ana Gomes, estão ideologicamente na área do BE, mas foram para o PS porque este partido está na área do poder, com as oportunidades que tal posição oferece.

Na outra extremidade do PS, muitos caberiam perfeitamente no PSD. Estão no PS por razões de oportunidade ou de percurso político.

Estas diferenças muito significativas tornam difícil ao PS conduzir uma política coerente. Acresce que no “centrão” que optou pelo PS, se encontram altos quadros da função pública e dos meios universitários, bastante relutantes a uma reforma profunda da administração pública, que é a primeira prioridade do país.

Para além destas diferenças, que têm substância política, existem as rivalidades pessoais, as políticas de campanário e as guerrilhas de algumas máfias autárquicas, especialmente virulentas na zona do Grande Porto. Mas essas diferenças acabam por ter uma importância menor que a diversidade política, até por que se submetem boamente a quem lhes garante o poder político e só estrebucham quando se vêem arredadas do poder por alguma circunstância, como foi o caso de Fernando Gomes.

A questão do PSD é muito mais paradoxal. O PSD ganhou as últimas legislativas mas só poderia formar um governo estável, para gerir uma situação económica e financeira excepcionalmente grave, em coligação. A necessidade de fazer uma coligação, evidente para qualquer observador sensato, foi o primeiro pomo de discórdia. Sobre as opções políticas, económicas e financeiras de base estavam todos de acordo. O pomo da discórdia foi o ódio de estimação que algumas elites intelectuais do PSD tinham por Paulo Portas.

Esse ódio sobrelevou tudo, principalmente as razões de oportunidade política. Os principais detractores da coligação e protagonistas da campanha de maledicência contra Paulo Portas encontravam-se dentro do próprio PSD e eram figuras proeminentes desse partido. E Durão Barroso acabou por se ver na emergência de constituir governo com figuras de segundo plano do seu partido. Até ao epílogo do «Caso Moderna» a campanha contra Portas prosseguiu sem desarmar e os seus principais motores estavam dentro do PSD. Esta campanha fragilizou bastante um governo já de si debilitado pela sua composição e por ser chefiado por um líder sem carisma.

A saída de Durão Barroso e a indigitação de Santana Lopes levaram as críticas ao governo ao paroxismo. Em causa não estavam opções políticas ou económicas, apenas rivalidades pessoais das elites intelectuais do PSD. A Jorge Sampaio apenas bastou gerir a situação, aproveitando as guerrilhas internas do PSD. O governo caiu face ao cerrado ataque de muitos dos seus barões por questões menores. E o absurdo de tudo isto foi que o parceiro de coligação, designado à partida como factor de instabilidade, foi o único factor estável na coligação.

Há uma maldição que pesa sobre o PSD. Conseguiu duas maiorias absolutas devidas ao discurso sólido de Cavaco Silva e ao facto dos portugueses estarem fartos de uma política baseada em discussões ideológicas estéreis. Mas o próprio Cavaco Silva abandonou o cargo quando viu que não conseguia ter mão nos barões do seu partido.

O PSD está presentemente órfão de alguma figura messiânica que se consiga impor eleitoralmente e que congregue as elites do partido não apenas pela detenção do poder (viu-se que não foi suficiente no que respeitou a Durão Barroso e a Santana Lopes), mas pela projecção nacional incontestável da figura.

Enquanto no PS é preciso primeiro conquistar o partido como meta para chegar ao poder, no PSD é preciso primeiro conquistar o país, de forma incontestável, para poder dominar sem contestação o PSD ... pelo menos nos primeiros anos, enquanto o domínio do país por essa figura parecer incontestável.

Atiradores furtivos há em todos os partidos. Apenas sucede que no PSD não há período de defeso. Atiram durante todo o ano.

E quando a estrela de Portas decair, também irá encontrar muitos atiradores furtivos em casa.


Nota - Ler ainda:
Divórcio de Conveniência

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dezembro 15, 2004

Prometemos o mesmo, mas ...

com a necessária mudança política

É certo que um périplo pelo centro e norte do país não ajuda à reflexão política. Aquelas gentes olham os lisboetas como vítimas infelizes da má alimentação e do fast food, amarelados e débeis. E quando lhes aparecem políticos da capital, alegadamente para lhes transmitir o evangelho da redenção do país, a primeira e, por vezes, a única preocupação que lhes suscitam é a imperiosa urgência de os alimentar. O político lisboeta enceta uma vigorosa tirada sobre a necessidade da mudança política e o íncola sorridente e solícito, estende a travessa e objecta: Pois ... é evidente ... e não vai mais este naco de entrecosto ... já reparou como não tem tirado os olhos de V.Exa? Ninguém na província lhe passa pela mente que um forasteiro vindo de Lisboa não esteja apenas empenhado numa excursão gastronómica.

Rodeado de morcelas, entrecostos, feijoadas, orelhas de porco, lombos de vaca, e etc., Sócrates não pode ser acusado de ter um discurso vazio. Qualquer político, por muito bom que fosse, não conseguiria arrancar qualquer ideia nova de um crânio fragilizado pela ascensão dos eflúvios provenientes de todo aquele manancial de colesterol devidamente misturado com encorpados tintos e espirituosos brancos.

Em vez do lombo de vaca, seria preferível terem-lhe servido o António Vitorino e o seu programa ... mas qual quê! ...Sócrates bem perscrutou por entre as cacholeiras, chourições e farinheiras, se divisava o lombo do Vitorino ... mas nem vestígios!

Nesta emergência, o ponto mais forte do programa que Sócrates apresentou foi o «Queremos a maioria absoluta». Sócrates não disse o que pretende fazer, mas apenas o que quer. Normalmente os políticos começam por prometer coisas e só quando estamos encurralados, sem alternativas, é que eles nos pedem coisas. Sócrates foi direito ao fim – começou por pedir. E para que quer tal coisa? «para que Portugal possa ter um governo preocupado apenas com a governação e possa aplicar um projecto coerente». Mas para que vai servir esse projecto coerente? «para que o país possa vir a ter um governo estável».

Querer estabilidade para ter um governo estável cheira a tautologia, pois Sócrates quer uma maioria, logo uma situação política estável (desde que o PR não se chame Sampaio), para levar a cabo o exaltante projecto de ter um governo estável. E tem razão. Precisamos de um governo tranquilo, sossegado, de pantufas e amodorrado no sofá, cabeceando face ao aparelho de TV, e não «uma governação que está sujeita aos humores do momento, aos caprichos de quem governa, ao espírito de quem acha que pode fazer política como um episódio de cada dia».

Falou todavia de um assunto concreto – a empresarialização dos hospitais e sublinhou: o Governo do PS não vai olhar com preconceito e deitar fora tudo o que tiver sido feito pelo PSD". "Vai olhar para o que existe e melhorar", prometeu, acrescentando que o PS considera a empresarialização dos hospitais "um bom passo, em termos de descentralização", ainda que mantenha "reticências" quanto à forma como os governos PSD-CDS concretizaram a medida.

Esta frase consubstancia as posições de Correia de Campos sobre esta matéria e que eu já referi neste blog: está de acordo sobre a solução, mas fortemente crítico por causa dos boys escolhidos para as administrações serem os do outro clube.

O momento alto do seu périplo foi quando Sócrates fez as promessas que até agora nenhum político jamais ousara fazer. Cheio de coragem, de peito feito e olhos nos olhos, perante um auditório estarrecido de emoção, prometeu «rigor nas finanças públicas, crescimento económico, justiça e coesão social e modernidade».

Sentindo o olhar carrancudo de Manuel Alegre pousado nele, apressou-se a acrescentar «crescimento acompanhado de uma consciência social». Foi inolvidável. Julgo que mais nenhum partido se atreverá a fazer promessas tão inovadoras.

Sócrates não responde a perguntas sobre eventuais coligações ou acordos pós-eleitorais, justificando que a conquista da maioria absoluta, nas legislativas de 20 de Fevereiro, é "o único cenário admitido”, pois uma «vitória dos socialistas sem maioria absoluta não seria "uma boa solução para o país». Sócrates tem toda a razão – seria uma situação péssima. E por ser uma situação péssima é que Sócrates deveria explicar, desde já, o que fará então. Quando alguém se abalança a um empreendimento, e só constrói cenários optimistas, arrisca-se a grandes dissabores. Neste caso Sócrates pretende conquistar o voto útil, mas correndo o risco de ficar refém de um acordo pós-eleitoral. O grave desta questão é que não seria apenas o PS a ficar refém, seria todo o país.

O início da campanha de Sócrates, para além das rescendentes morcelas e farinheiras, tem-se pautado pela negativa. Diz mal do governo anterior. Muito mal. Curiosamente não aponta as políticas erradas, mas apenas «episódios que desprestigiam as instituições e assinalam um estilo marcado por caprichos e por birras». E afirma peremptório que, em contrapartida, «apenas nos devemos concentrar nos problemas nacionais», enquanto pensa, melancólico, nas saborosas morcelas que estão à espera dele. Nos problemas políticos nacionais não pensa, obviamente, pois senão proporia soluções para eles.

O discurso de Sócrates até agora tem sido absolutamente vazio. Apenas generalidades e banalidades. Esperemos que quando Vitorino escrever o programa, esse discurso ganhe alguma substância.

Publicado por Joana às 11:57 PM | Comentários (21) | TrackBack

dezembro 14, 2004

Divórcio de Conveniência

Como já era público e notório, PSD e PP vão separados às eleições de Fevereiro de 2005. Ao terceiro dia rubricaram um acordo que será uma mistura de um pacto de não agressão durante a peleja eleitoral e uma promessa de que, após as eleições, a única coligação possível, para qualquer dos dois partidos, será entre eles. Foi um divórcio por mútuo consentimento e com a cláusula irrevogável que não se casarão com mais ninguém, a não ser entre si.

Os meios de comunicação gastaram solas, pneus, gasolina, saliva e a paciência, a leitores e a telespectadores, durante estes 3 dias, perseguindo os líderes de ambos os partidos e conjecturando as hipóteses mais imaginativas, para as derrubarem logo a seguir. A TVI contratou mesmo, em vez de uma analista política, uma especialista em leitura labial, a Constança Cunha e Sá, que nos trouxe as matérias discutidas no almoço entre Portas e Santana, com um pormenor tal, que não deixa margem para dúvidas sobre a sua proficiência naquela matéria. Só lhe falta clarividência política.

Foi uma espera que enervou imenso os jornalistas e a oposição, perfilada, em sentido, entediada, sempre perto de qualquer carro de exteriores, na ânsia de intervir no instante imediato. Os jantares que Sócrates tem feito pelo país nem têm caído nada bem, tal era o receio de aparecer a comentar de boca cheia, circunstância que, como é sabido, liquidou politicamente Cavaco Silva nas eleições presidenciais.

Para não se tornarem monótonos e manterem as audiências, os jornalistas foram arquitectando cenários. Como o que sabiam era nada, era esta a matéria que utilizaram para construir os sucessivos cenários. O nada é uma matéria leve, dúctil, mas muito volátil. Ao fim do 2º ou 3º cenário, os jornalistas tinham que arranjar um bode expiatório para consecutivos cenários tão díspares e hílares – a culpa era da inconstância daqueles líderes cujo silêncio ora induzia os jornalistas a pensarem uma coisa, ora os induzia a pensarem o inverso. Aqueles dois líderes conseguiam ser mais trapalhões calados que quando falavam!

Finalmente os líderes falaram e o país ficou em «serenidade emocional».

Três posts atrás, em Dois Registos, eu havia escrito sobre a óbvia ida às urnas em separado. Aliás, o ataque de Paulo Portas a Jorge Sampaio e à sua alegada capitulação perante o lobby bancário e segurador era sintomático de que os dois partidos nunca se apresentariam coligados. Foi um ataque que se destinava ao consumo do seu eleitorado, sem preocupações com o eleitorado potencial do PSD.

Por isso as criticas de João Salgueiro, Silva Lopes e Fernando Ulrich a Portas devem ter sido lidas por este com um sorriso escarninho. Ele fez aquelas acusações exactamente para isso. Um importante nicho de mercado de Paulo Portas é constituído pelos descamisados, onde só fica bem uma querela com poderosos banqueiros.

Enquanto isso, Santana Lopes não pode ter aquele tipo de discurso, nem provavelmente o desejaria ter. O PSD depende demasiado dos equilíbrios da sociedade portuguesa. Santana Lopes vai apostar no eleitorado do centro. Por sua vez, a escolha dos grandes agentes económicos radicará no grau de confiança que Santana Lopes souber transmitir a empresários e a banqueiros. Neste cenário não cabem discursos como o de Paulo Portas.

Portanto, era absolutamente despiciendo os meios de comunicação gastarem solas, pneus, gasolina e saliva durante estes 3 longos e penosos (para eles) dias. Constança Cunha e Sá terá que se matricular novamente num Curso de Leitura Labial, mas ... Constança ... por favor, outro curso por correspondência, não.

Bastava sentarem-se sossegados, raciocinarem sobre os factos ... e tirarem as conclusões. É simples.

Publicado por Joana às 10:54 PM | Comentários (30) | TrackBack