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dezembro 21, 2004
Os Irmãos Marx e o Défice
Este Natal apareceu nos escaparates uma edição dos filmes mais emblemáticos dos Irmãos Marx. Comprei-a. Há uma cena nos Irmãos Marx no Far West onde eles usam toda a estrutura do comboio como combustível para atingirem o seu destino. E, na aflição de manter a locomotiva em andamento, nos equilíbrios difíceis de transportar, até lá, os destroços das carruagens desmanteladas, Harpo, diligente, mas azarado, perde a maior parte das tábuas pelo caminho. Quando vi esta cena, lembrei-me do ministro Bagão Félix.
O ministro tem feito malabarismos para descobrir receitas extraordinárias para maquilhar o défice. É o mesmo que maquilhar um doente num caso de anemia progressiva. Como não se consegue combater a anemia, a maquilhagem tem que ter cada vez mais camadas, para o doente aparentar um aspecto saudável. Em 2001, quando não houve receitas extraordinárias, o défice do Orçamento do Estado ascendeu a 4,4 %. Nos dois anos seguintes o défice foi ficou abaixo dos 3%, mas sem receitas extraordinárias teria sido de 4,1% e 5,3 %. E nos primeiros 11 meses de 2004 já vai nos 5,2 por cento. É certo que houve algumas receitas de Janeiro que foram contabilizadas, por antecipação, em 2003 ... manobra também frequente em empresas com receio de apresentarem prejuízos, que durante Janeiro continuam a emitir facturas com data de 31 de Dezembro do ano anterior. Mas Bagão Félix declarou hoje, na conferência de imprensa, que este ano não utilizará essa técnica.
A conferência de imprensa de Santana Lopes e Bagão Félix, hoje, foi importante para desfazer algumas inexactidões que a comunicação social havia transmitido, e que eu me fiz eco, sobre o alegado facto desta última solução (o lease back), que foi chumbada em Bruxelas, ter sido tomada à última hora, em desespero de causa. Bagão Félix apresentou documentação que prova que as duas soluções haviam sido apresentadas, em tempo (no início de Outubro), ao Eurostat. Assim, quando aparece um comentador a dizer que o que interessava saber era o futuro e não fazer a história do que aconteceu, só cabe designá-lo por hipócrita. No dia anterior afirmava que eram decisões atrabiliárias; quando confrontado com o facto de serem decisões previstas há mais de dois meses, ignora o que dissera anteriormente e critica Bagão por falar do passado.
O ministro apresentou ao Eurostat duas soluções: a alienação dos imóveis, ou uma operação de lease back. A primeira tornou-se indesejável por alegados motivos éticos, visto tratar-se de um governo de gestão. O ministro das Finanças afirmou que a opção pelo lease back surgiu como definitiva face a imperativos éticos e políticos, inerentes ao facto de «um Governo em gestão não dever vender património». Todavia houve outro motivo mais poderoso após a dissolução do Governo, os consórcios vencedores, invocando o risco político, tentaram renegociar as condições do contrato de venda, aumentando de 6,5% para 7,5% a remuneração anual a preços correntes.
A segunda opção era uma não-opção. Não consigo atinar com a argumentação que Bagão Félix terá arranjado para servir ao Eurostat algo que era um simples empréstimo caucionado por imóveis, em travesti de alienação patrimonial com possibilidade de reversão. Vítor Constâncio, à saída de Belém, afirmou com pesporrência que havia previsto a sua rejeição por Bruxelas. Não me parece grande feito. Eu, que não governo o Banco de Portugal, e cujo único orçamento que giro é o orçamento doméstico, já havia escrito neste blog, posts atrás (cf. A Tirania do Défice), que não acreditava que Bruxelas aceitasse aquela operação. O próprio Bagão, numa entrevista esta noite, disse ou pareceu-me entender, que ele mesmo não estava convencido que a medida passasse em Bruxelas. Se era assim, porque razão a propôs?
Vítor Constâncio previu igualmente que a execução orçamental em 2005 obrigaria ao recurso de elevadas receitas extraordinárias para manter o défice abaixo dos 3%.
Estou completamente de acordo com ele. Aliás, é uma tal evidência que qualquer leigo se apercebe, desde que raciocine. A governação em Portugal está a ser vítima de heranças cada vez mais pesadas. O actual governo teve uma herança terrível, sem quaisquer hipóteses de reverter a situação. Mas o anterior executivo também tinha tido uma herança pesada. E o próprio Guterres teve duas heranças difíceis. A primeira herança era difícil, mas ele, na sua doce inconsciência, julgou que era uma herança de fartura e dinheiro fácil. A 2ª herança, mais onerosa, herdou-a dele mesmo, e continuou a ignorar os seus custos até ser tarde demais.
A questão central é que cada governo deixa ao seguinte uma herança pior do que aquela que recebeu. Se, no caso do governo de Guterres, este pode ser acusado de inconsciência, o mesmo não se pode dizer destes últimos governos. Por mais cortes que se façam e vencimentos que se congelem, a despesa pública aumenta a um ritmo que as receitas não conseguem acompanhar. O PIB estagna porque a competitividade das nossas empresas diminui face ao exterior e está vedada a possibilidade de aumento artificial do PIB pelo lado da despesa, como aconteceu durante o período de Guterres, em virtude da situação de desequilíbrio orçamental a que se chegou e à existência do PEC.
Antes da moeda única era fácil. Ao aumentar o PIB pelo lado da despesa, ele apenas aumentava em termos nominais, pois o deslizamento cambial fazia-o rapidamente cair em termos reais. Aumentava-se a despesa pública em termos nominais, mas o deslizamento cambial fazia-a diminuir em termos reais. Esse processo permitia igualmente manter a competitividade externa das nossas empresas. Todos viviam felizes.
Com a moeda única conseguimos estabilidade cambial e taxas de juro muito baixas. Mas em troca teríamos que aceitar que o aumento dos nossos rendimentos disponíveis seria de acordo com o nosso aumento de produtividade e que as despesas que fazemos nos serviços que gerimos, públicos ou privados, teriam que estar de acordo com os recursos disponíveis. Esquecemo-nos dessa contrapartida.
Antes vivíamos uma farsa cuja ilusão se desvanecia pelos equilíbrios automáticos do mercado internacional. Tínhamos uma mentira que ele própria se encarregava de se metamorfosear em verdade, sem a nossa intervenção e contra nós. Agora temos a verdade crua dos factos e não conseguimos lidar com ela. Agarramo-nos, desesperados, a ilusões; zombamos daqueles que nos chamam a atenção para a situação dramática em que se encontra a nossa economia; chalaceamos quando nos falam do resvalar da despesa pública; satirizamos sordidamente o governo por questões acessórias, na esperança de o vermos substituído, não por outro mais capaz de fazer as reformas que o país necessita, mas por meros vendedores de ilusões.
De tanto se falar nas reformas, a palavra banalizou-se. Hoje toda a gente aceita as reformas ... desde que não belisque os seus interesses individuais. Toda a gente está convencida que é imprescindível fazerem-se reformas, mas quando elas se perfilam no horizonte, todos os argumentos valem para impedir que elas se façam.
A palavra banalizou-se, mas o conceito persegue-nos na sua totalidade semântica. Elas hão-de se fazer, quer queiramos, quer não e quanto mais tarde acontecerem, mais sacrifícios teremos que suportar, mais custos haverá em desemprego, falências, insolvências. Será o preço acrescido a pagar pelo nosso desleixo.
Nota - Ler ainda:
A Tirania do Défice
Aspirina ou Benuron?
Publicado por Joana às dezembro 21, 2004 10:54 PM
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Comentários
A herança que este governo e este 1ºministro vai deixar é a de faltar à verdade aos portugueses.
Sabendo que tinha herdado uma situação extremamente difícil(já nem se inibe agora de acusar M.F.Leite), dourou a pílula dizendo que já estavamos no oásis (onde é que eu já ouvi isto), a recuperação económica estava aí, até já podia-mos desapertar o cinto, etc...
E agora é o que se vê!
Descontrolo absoluto das contas do Estado.
Desorientação na atitude para dar uma saida à situação.
Acusação cerrada sobre pessoas, que no mínimo deveriam merecer solidariedade institucional de quem com elas privou no governo, numa atitude lamentável de falta de ética, o que aliás já nem sequer é novidade na pessoa do senhor ministro das finanças.
É a conversa do salve-se quem puder!
Enfim, um esbracejar de quem está politicamente moribundo!
Paz à sua alma...
Publicado por: E.Oliveira às dezembro 21, 2004 11:21 PM
A comparação com o Harpo Marx tem piada e está bem vista
Publicado por: c seixas às dezembro 21, 2004 11:48 PM
Janica, eu acho que só o Portas é que endireita isto. Se estiveres com ele ainda hoje diz-lhe que pode contar comigo.Senão dizes-lhe amanhã ao pequeno almoço que ainda vai muito a tempo.
Publicado por: Átila às dezembro 22, 2004 12:31 AM
Esta comparação de Bagão Féliz e Santana Lopes com os irmãos Marx é interessante, mas é injusta para os comediantes mortos.
Os originais também faziam rir, mas eram inteligentes
Publicado por: (M)arca Amarela às dezembro 22, 2004 04:50 AM
Cada povo tem o governo que merece.
Estamos a chegar ao mais baixo nível do miserabilismo governamental.
Portugal está em vias de extinção.
Que misérrima sorte!...
Publicado por: Senaqueribe às dezembro 22, 2004 10:07 AM
O problema do défice é tão grande e impossível de resolver por quem quer que seja na actuais condições.
Começo a achar que PS e PSD vão fazer tudo para perder as eleições para não ter que lidar com o monstro.
Publicado por: Mario às dezembro 22, 2004 10:43 AM
Monstro!!!!!!!!!!
Vem cá, donde é que te conheço?
Publicado por: E.Oliveira às dezembro 22, 2004 02:28 PM