Tenho que confessar que detesto os pregadores de moral que condenam, com pretensa e seráfica virtude, os vícios alheios, vícios que quando são eles próprios a praticar, os ignoram candidamente, ou os justificam pelas circunstâncias, ou, quando confrontados formalmente com eles, apenas aceitam que se cometeram exageros.
É óbvio que os factos descritos no relatório das sevícias não desculpam os actos cometidos na prisão de Abu Ghraib. «O mal não pode ser comparado com outro mal. Deve ser condenado por si só». É óbvio que ir desenterrar agora aquele relatório numa tentativa de desculpabilização das sevícias de Abu Ghraib seria uma manobra canhestra.
Então porquê tanta irritação? Tanto incómodo? Tal sucede apenas porque os mais tenazes pregadores moralistas sobre as sevícias de Abu Ghraib são, politicamente, os mesmos que ignoraram o relatório das sevícias e que conseguiram que a comunicação social lhe desse pouco ou nenhum relevo. Pelo menos é um relatório praticamente desconhecido de quem não conviveu com essa época e também, provavelmente, de quem conviveu com ela.
No Público, Eunice Lourenço indigna-se escrevendo que foi «Assim como podiam ter ido buscar os crimes da Inquisição para contrapor à condenação das torturas feita pelo Vaticano. E a esquerda cai no erro de, entrar no jogo, justificando e até mesmo negando aquilo que foram, obviamente, os exageros da Revolução.»
Curiosa, esta indignação. 30 anos de distância é o período de apenas uma geração. Provavelmente mais de metade da população portuguesa actual viveu aquele período. Os crimes da Inquisição ocorreram há mais de 7 gerações. Ocorreram numa sociedade estruturada de forma diferente e com uma estrutura mental igualmente diferente. Para criticar uma comparação, obviamente inadequada, Eunice Lourenço estabelece outra comparação, completamente absurda. E ao dar conselhos à esquerda, Eunice Lourenço devia começar por os dar a si própria. E um deles é que aquilo que num caso são apenas exageros, porque não o serão no outro? Ou se num caso forem sevícias bárbaras porque não o serão no primeiro?
Quem desenterrou o relatório das sevícias errou, se pretendeu estabelecer uma comparação desculpabilizadora. Uma barbaridade não desculpa a outra. Se apenas pretendeu demonstrar a hipocrisia de alguns segmentos políticos portugueses, acertou em cheio. O comportamento de muitos jornalistas, fazedores de opinião ou simplesmente blogueiros é prova disso.
Também é curiosa a forma como muitos jornalistas e fazedores de opinião reagiram perante a divulgação das imagens aterradoras da decapitação do cidadão americano Nicholas Berg. Uma divulgação parcial, porque mostrar uma decapitação por vídeo, na íntegra, excede a nossa capacidade de conviver com o horror.
No Público de ontem o articulista de «O Horror Infinito», Amílcar Correia, dedica-lhe meio parágrafo e o resto do artigo às sevícias físicas e morais dos soldados americanos. Augusto Seabra faz o mesmo, este domingo, em A Espiral Alucinante: um curto e cauteloso parágrafo inicial, dedicado à decapitação, para depois teorizar sobre as sevícias.
As sevícias perpetradas das pelos soldados americanos em Abu Ghraib são condenáveis. A bárbara decapitação pública de Nick Berg é condenável. Ambas o são, uma independentemente da outra. Mas é profundamente hipócrita referir en passant uma para se poder dedicar, com mais profundidade e com a consciência tranquilizada, à outra.
Miguel Sousa Tavares é mais conspirativo: esta decapitação é uma ajuda prestada pela Al-Qaida a Bush, quando a popularidade deste decrescia em face dos desmandos cometidos por soldados americanos no Iraque. Saberiam aqueles ferozes decapitadores islâmicos que quando separavam a cabeça do corpo de Nick Berg, aos gritos de Alá é grande, estavam a dar uma preciosa ajuda a Bush? Está tudo explicado aquela decapitação está integrada numa manobra mais vasta que visa o branqueamento das acções americanas no Iraque, com a cumplicidade da Al-Qaida.
Há uma coisa em que MST tem razão. Esta execução abre uma porta para aliviar a consciência da América face às fotografias das humilhações e maus tratos sofridos pelos prisioneiros americanos. Quando a barbaridade atinge tal clímax, direitos humanos, tolerância, tudo é postergado e a sociedade aceita acções que consideraria inaceitáveis normalmente.
E isto deve ser combatido. A nossa sociedade vive do primado do Direito. Também tem, no seu seio, criminosos e gente violenta. Mas as instituições funcionam, melhor ou menos bem, e o Direito, por regra, triunfa. Também neste caso terá de triunfar.
eu concluo que o post "Abruptamente ... no passado" não terá sido muito feliz ou não teria sido preciso este ...
Afixado por: zippiz em maio 17, 2004 12:29 AMzippiz em maio 17, 2004 12:29 AM:
Este post pretende dizer, de forma diferente, o mesmo do anterior.
Diz Ramos Horta:
Seja o que for que os governos em retirada engendrem, cada vez que um país abandona o Iraque é uma vitória para a Al Qaeda e outros extremistas. Eles tiram a conclusão de que a coligação é fraca e que quantos mais ataques terroristas realizarem, mais países retirarão.
Como Prémio Nobel da Paz, eu, como tantas outras pessoas, abomino o uso da força. Mas quando se trata de salvar inocentes da tirania ou do genocídio, nunca questionei a sua justificação. Foi por isso que apoiei a invasão do Camboja pelo Vietname, em 1978, que acabou com o regime brutal do Pol Pot, e a invasão do Uganda pela Tanzânia no ano seguinte para derrubar a ditadura de Idi Amin. Em ambos os casos, estes países agiram sem a aprovação internacional ou das Nações Unidas - e nos dois casos agiram bem.
Talvez a França se tenha esquecido como também ela derrubou um dos piores violadores dos direitos humanos do Mundo sem esperar pelo aval da ONU e também eu aplaudi, no início dos anos 80, quando os seus pára-quedistas aterraram na capital do Império Centro Africano e destronaram o "imperador" Bokassa, conhecido pelo seu canibalismo.
Quase duas décadas depois, aplaudi mais uma vez quando a NATO interveio - sem um mandato da ONU - para acabar com a limpeza étnica no Kosovo e libertar da tirania sérvia uma comunidade muçulmana europeia oprimida. E regozijei uma vez mais em 2001 quando as forças lideradas pelos Estados Unidos derrubaram os talibã libertando o Afeganistão de um regime bárbaro.
Porque será que ainda há quem pense que o Iraque é diferente? Passado apenas um ano da queda do antigo regime, parece terem-se esquecido como morreram centenas de milhares de pessoas durante o poder tirânico de Saddam Hussein, cuja imagem de marca eram o terror, as execuções sumárias a tortura e a violação. Também se esqueceram como os curdos e os países vizinhos do Iraque viviam aterrorizados o dia a dia enquanto Saddam esteve no poder.
Tá excelente. Como o anterior.
Afixado por: David em maio 17, 2004 11:12 AMEm todas as revoluções há excessos. Portanto tem que se dar um desconto às sevícias do relatório
Afixado por: c seixas em maio 17, 2004 05:04 PMÓ Seixas, em todas as guerras há excessos. Temos que dar o desconto!
Em todas as cadeias há excessos, principalmente nas nossas. Temos que dar o desconto!
Estou totalmente de acordo. A esquerda arroga-se de um moralismo, julga-se acima de qualquer suspeita e só vê o argueiro no olho do vizinho.
Afixado por: Novais de Paula em maio 17, 2004 05:44 PME acho muito oportuno o comentário do Nereu. Acredito que o Seixas escreveu aquilo sem ponta de maldade. A questão é que muita malta está honestamente convencida que aquilo que o "lado dela" faz está certo. E se alguma coisa corre mal, pode admitir então que houve excessos(!?).
Para os outros é que não há desculpa.
No presente ou no passado, sempre a deitar a esquerda abaixo.
Afixado por: Cisco Kid em maio 17, 2004 06:48 PM...«E isto deve ser combatido. A nossa sociedade vive do primado do Direito. Também tem, no seu seio, criminosos e gente violenta. Mas as instituições funcionam, melhor ou menos bem, e o Direito, por regra, triunfa. Também neste caso terá de triunfar»...
Salvo erro, ou melhor opinião, a questão que verdadeiramente se coloca é a de se saber se às instituições que têm por missão assegurar o primado do Direito é permitido violar grosseiramente o próprio direito.
A decapitação e as torturas dos prisioneiros iraquianos não são comparáveis, porque os autores da decapitação são uns facínoras e o exército americano é suposto não ser um bando de facínoras.
A menos que eu esteja enganado...
A menos que eu esteja enganado...
Afixado por (M)arca Amarela em maio 17, 2004 07:25 PM
eu acho que está enganado , apesar de se poder ler alguma ironia na sua dúvida !
se , no entanto, não mudar nada na administração americana ,pelo menos resta a esperança de que os cidadãos americanos mudem algo em Novembro.
(...) O governo anunciou hoje a venda de 49% das Águas de Portugal.
os neo-liberais cá do burgo devem estar exultantes
para quando o fim do regime socializante que ainda vigora em relação ao ar que respiramos? (...)
in barnabé
Não vão ser as sevícias que farão Kerry ganhar a Bush. Os americanos, democratas ou republicanos, não vêem esta questão da mesma forma que os europeus a vêem. Os que têm a leitura da esquerda europeia é uma minoria sem peso eleitoral. Em face do 11 de Setembro, dos esquartejamentos de Falujah e da decapitação de Berg, muitos americanos poderão, não publicamente, mas na intimidade, que é o que conta para o voto, achar que uma atitude musculada no tratamento dos prisioneiros para extrair confissões que possam evitar mais vítimas é capaz de ser útil.
Os americanos serão mais sensíveis à (in)competência da administração Bush ao gerir esta guerra. Poderão penalizá-lo por ele não a saber ganhar no plano político, mas se virem que a situação se torna instável e perigosa poderão paradoxalmente preferir Bush a Kerry, porque este dá uma imagem de uma personalidade frágil.
Tudo depende do sentimento que for mais forte na altura das eleições: castigar a incompetência de Bush ou recear a fragilidade de Kerry em resolver a situação.
zippiz:
1-Questão da privatização é normal na Europa que o serviço de abastecimento público de água seja privado. Em Portugal, a EPAL foi privada foi privada antes das nacionalizações e a Lusagua foi privada antes de ser adquirida pelas Águas de Portugal
Por outro lado, a AdP só controla o abastecimento em alta. Em baixa, na distribuição ao consumidor, são os SMAS ou os municípios directamente que, em regra, o fazem.
2-A questão da AdP O ministro Sócrates criou um monstro que funcionava da seguinte maneira: se os serviços municipais aderissem aos sistemas multimunicipais, onde a AdP tinha a maioria, as candidaturas das instalações aos fundos da UE andariam, caso contrário ficavam a marinar no ministério. Esse comportamento continuou no actual governo.
A maioria dos municípios do Alentejo não aderiu às AdP e quando ouve falar em Sócrates fica apoplética. O Theias prometeu recentemente aos autarcas alentejanos agilizar as candidaturas, mas não sei se o conseguirá. Há uma parte do país que não entrou no monopólio AdP.
E vender 49% não é perder o controlo
Também estou a falar sem conhecer exactamente os contornos do negócio ...
Afixado por: Joana em maio 17, 2004 10:50 PM
Cara Joana,
Volto, uma vez mais, a este "nosso" espaço" para uns reparos acerca deste assunto.
Se bem que perceba os remoques de Pacheco Pereira (afinal, o retratar-se nunca fica mal a ninguém), já o mesmo não poderei dizer de muita gente que não passou pelo que se discute: parece a eterna luta de Portas pelos ex-combatentes (quem o autorizou a tomá-la como sua? quem se sente representado por ele?)
Os "anos de brasa" pós 25 de Abril, passei-os mesmo em brasa: vivi o antes e o depois demasiadamente por dentro para deixar que, agora, apareçam os politicamente correctos a tentar moralizar o que não tem moral.
As tais "sevícias" aconteceram e pensar que seria normal não acontecerem é que me parece anormal...
Tal como pareceria anornal pensar que o que aconteceu no Iraque não aconteceria.
Anormal, no entanto, será justificar umas com as outras ou tentar pesar umas com as outras.
Lá voltamos ao mesmo do costume: pesar dois quilos de caca e dois quilos de ouro e dizer que têm o mesmo peso é coisa de cientista politicamente correcto: só se pesam valores da mesma grandeza.
Pacheco Pereira poderá ter as suas razões para se chicotear nas costas...
Eu, por outro lado, não tenho esse tipo de razões (nem sequer vontade disso).
Como tal, as tais "sevícias" pós 25 de Abril não me envergonham.
Por que será que envergonham quem nem sequer sabe do que fala?
Um abraço, uma vez mais
joana , se é de água que se trata , só pode ser jogo limpo !!!
«Empresários das águas temem lóbi político
Os agentes do sector das águas estão preocupados com a concorrência de um grupo financeiro. A Fomentinvest, liderada por Ângelo Correia e Tavares Moreira, está a incomodar concorrentes
Luiz Carvalho
O ministro do Ambiente não formalizou o modelo que quer aplicar ao sector das águas
A PRIVATIZAÇÃO das águas não arrefece. Desta vez, a polémica surge pela alegada proximidade entre o ministro do Ambiente, Amílcar Theias, e Tavares Moreira, ex-governador do Banco de Portugal, impedido pela supervisão financeira de exercer qualquer actividade na banca por sete anos.
No sector especula-se sobre a possibilidade de ter sido Tavares Moreira, enquanto porta-voz económico do PSD, a sugerir Theias ao primeiro-ministro para a pasta do Ambiente. Fonte social-democrata confirmou ao EXPRESSO que o nome do actual ministro do Ambiente foi efectivamente recomendado por Moreira, depois de ter sido recusado um convite que Durão Barroso fizera a outra personalidade(...)http://jumento.blogdrive.com
Afixado por: zippiz em maio 17, 2004 11:39 PMzippiz:
Eu conheço o Theias o suficiente para lhe dizer que não acredito em qualquer teoria conspirativa com ele.
Todavia o Theias tem uma personalidade muito frágil - normalmente, a opinião que tem sobre um assunto é a opinião da última pessoa com quem falou.
Nessa medida é imprevisível o que fará. Duvido é que ele se mantenha. O Theias será o primeiro ministro a ser "remodelado". É uma pessoa simpática, afável, mas não tem qualquer perfil para ministro, secretário de Estado ou qualquer cargo que exija tomadas de decisão.
re-tombola:
Não me parece que essa sua alegoria do "pesar dois quilos de caca e dois quilos de ouro" colha.
Porventura falta de imaginação minha ... ou de sentido poético?
"O Ícone" ou a falta de inteligência em movimento
para a joana ler em Gloria Fácil
Afixado por: zippiz em maio 18, 2004 12:23 AMQuando me referi aos excessos que há sempre nas revoluções não os estava a desculpar, estava a constatar um facto.
Uma revolução , com a própria Joana escreveu algures, caracteriza-se por o poder cair na rua e as instituições não serem capazes de garantirem a lei devidamente.
Espera-se outro comportamento de um exército profissional
C Seixas:
O que você diz, e eu concordo, também se aplica aos outros casos. Há humilhações físicas e morais (e sexuais) nas cadeias. Numa guerra há sempre excessos, etc. Limito-me a constatar factos, como você
O Seixas tem toda a razão. Em 1975 havia a necessidade de o povo se defender dos fascistas e evitar que o fascismo regressasse
Afixado por: Cisco Kid em maio 18, 2004 06:09 PMCisco: Também não acontecerá isso no Iraque? Os americanos não estão a lutar para que o Iraque não regresse ao que era antes?
Afixado por: David em maio 18, 2004 06:25 PMGostei do artigo, parabéns.
Afixado por: canzoada em maio 18, 2004 07:20 PMExcelentes palavras, Joana. Revela também uma louvável coerência.
Afixado por: Fred em maio 18, 2004 08:13 PMDavid: Uma coisa é lutar contra os fascistas, outra é lutar pelas forças de ocupação.
Afixado por: Cisco Kid em maio 18, 2004 11:57 PMO Ramos Horta saiu cá um traste. Subiu-lhe a importância ao miolo.
Afixado por: Cisco Kid em maio 18, 2004 11:59 PMO Ramos Horta mudou apenas de registo. Antes era o representante de um país ocupado. Agora é Ministro dos Negócios Estrangeiros de um país reconhecido internacionalmente.
Além disso, Timor-Leste tem que se agarrar a algum patrono, encaixado como está entre um gigante populacional e um gigante económico.