janeiro 03, 2006

A UE e o diferendo Russo-Ucraniano

A guerra do gás natural entre a Rússia e a Ucrânia veio confrontar novamente a Europa com a questão da energia. A Rússia é o maior produtor mundial de gás natural e a Europa está bastante dependente desse gás (25% do consumo europeu) e a sua dependência irá aumentar face ao aumento dos consumos e ao esgotamento progressivo das reservas norueguesas. Presentemente, 80% das importações provenientes da Rússia passam pela Ucrânia, enquanto não for executado um novo oleoduto construído por uma sociedade onde a Gazprom (tutelada pelo Estado russo) tem 51% do capital e o resto é detido por empresas alemãs. Empresa cujo CA é presidido por Schröder que, enquanto Chanceler, ajudou à concretização do negócio e, quando perdeu as eleições alemãs, ganhou um lugar chorudo no CA. Enfim … o doce charme da burguesia … O mesmo charme que seduziu Pina Moura na Iberdrola.

A crise foi originada pela decisão da Gazprom em aumentar o preço de venda do gás natural à Ucrânia, em quase cinco vezes, fazendo-o coincidir com o preço do mercado. Aparentemente a Ucrânia estaria disposta a aceitar o aumento de preços, desde que esse aumento fosse bastante faseado no tempo. Esta guerra tem contornos políticos. O preço anterior era um preço político, que visava manter a Ucrânia na esfera de interesses moscovita, e o aumento actual, embora acertando o preço com o valor de mercado, tal como a UE o paga, tem sobretudo contornos políticos (pelo timing e carácter drástico), visando influenciar os eleitores ucranianos nas próximas eleições legislativas, tentando afastar a Ucrânia da UE e dos EUA. A acusação de roubo visa sobretudo a opinião pública interna, pois a Ucrânia tem, por contrato, direito a 15% do gás que circula no seu território a título de “portagem”.

O corte afecta sobretudo o abastecimento à Europa Central e Oriental … e afectará politicamente Schröder, ligado profissionalmente à empresa que está a cortar o gás natural de que a Alemanha é consumidora em 30% das suas importações. Já não bastava a falta de ética em aceitar aquele cargo …

A cartada energética russa pode criar problemas à Europa no curto e médio prazo, mas fará certamente com que esta comece a diversificar as suas fontes, tornando-se menos dependente do gás russo. Portanto a longo prazo (*) poderá revelar-se contraproducente para a Rússia, pois os seus clientes ficarão mais precavidos sobre a sua fiabilidade comercial. Ou seja, esta guerra poderá ter (e deveria ter) o efeito da Europa rever a sua política energética de forma não ficar à mercê de diktats. Para começar terá que diversificar mais os seus fornecedores de combustíveis fósseis e, a prazo, desenvolver novas formas de energia.

Todavia o actual leque de opções é limitado. As energias renováveis actualmente industrializadas terão sempre um contributo pequeno para o consumo energético europeu. A opção nuclear permite produzir electricidade, mas não satisfazer o consumo a nível de transportes e outras utilizações. O mesmo acontecerá com a fusão nuclear, que nem daqui a 50 anos deverá estar em condições de ser utilizável. A energia marítima (ondas e correntes) ainda está numa fase muito incipiente, enquanto que a energia das marés só é possível ser captada em situações muito pontuais e restritivas.

Portanto, não haja qualquer dúvida que nos próximos 20 anos o Mundo continuará dependente dos combustíveis fósseis para produção de energia, e a Europa dependente das suas fontes de fornecimento. A solução será diversificá-las.

Voltando ao diferendo Russo-Ucraniano, a Rússia terá pouco interesse em irritar a Europa. A Europa depende dos fornecimentos russos de gás natural e petróleo, mas a Rússia depende da tecnologia e dos investimentos ocidentais. A Europa pode, a médio prazo, diversificar as suas importações de combustíveis fósseis, mas a Rússia não tem alternativas a nível de tecnologia e dos investimentos, porque nesta matéria a Europa pode ainda contar com o apoio dos EUA, muito interessados na evolução política ucraniana e numa eventual adesão daquele país à NATO e à UE. Como o corte de gás à Ucrânia afecta o abastecimento de gás à Europa, a margem de manobra dos russos não é tão grande quanto seria, se não houvesse esse efeito colateral. Em qualquer dos casos, a Ucrânia, mais tarde ou mais cedo, terá que pagar o gás natural ao preço de mercado. E mesmo que deslize para a órbita moscovita, certamente que o preço político, existente até ao fim do ano passado, não se poderá manter indefinidamente.

Resta ver qual a influência do diktat moscovita no eleitorado ucraniano. No Leste, onde a população é maioritariamente russófila, pouco irá alterar, visto essa população já ter votado massivamente contra o actual presidente. Na parte Oeste, historicamente mais ligada à Europa, o prognóstico será mais difícil. Todavia as ameaças têm, com alguma frequência, efeitos contrários àqueles que, quem as produz, espera.


(*) Nota: A longo prazo não estamos todos mortos …longo prazo, em Economia, é um prazo superior a 4 anos. Será muito pessimismo pensar nessa mortalidade geral … nem com a gripe das aves.

Publicado por Joana às 09:44 PM | Comentários (66) | TrackBack

dezembro 02, 2005

De Redentor a Património

Lula da Silva foi eleito, aclamado como redentor da humanidade. Depois, ou mesmo antes, o charme discreto do dinheiro começou a fazer das suas. Normalmente são os que menos têm que mais roubam. Os que mais têm, ganham-no em negócios. Mas como o lucro é pecado, assim afiança o pensamento escolástico, são eles os acusados de gatunos. Agora, o braço direito de Lula da Silva, José Dirceu, acusado de ter organizado o "mensalão", foi expulso do Parlamento no Brasil e impedido de exercer direitos políticos até 2016. Mas Lula não deve desesperar. Quem sabe se, num futuro próximo, na continuação dos escândalos, Lula da Silva perderá igualmente o seu braço esquerdo. E então poderá reclamar o estatuto de Vénus de Milo Brasília, e passar de Redentor a Património da Humanidade. A UNESCO não deixará passar a oportunidade.

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novembro 17, 2005

Filáucias

Ou como é fácil em Portugal prever o contrário dos meios de comunicação ... e acertar

1 - Em 02-11-05 escrevi “Die Unordnung herrscht in Berlin” referindo que a decisão da direcção do SPD de eleger Andrea Nahles, uma dirigente da ala esquerdista do SPD, era um tiro no pé, que a vitória de Nahles era uma vitória à Pirro, que seria duvidoso que congresso do SPD de Karlsruhe ratificasse aquela decisão, que Matthias Platzeck seria eleito e que contrariamente ao DN que escrevia “a chanceler indigitada, Angela Merkel, sofre um duplo revés no espaço de 24 horas”, eu tinha a opinião exactamente oposta, que a posição de Angela Merkel sairia reforçada e que a coligação teria mais possibilidades de se fazer. Aliás, a posição do DN era a prevalecente então na imprensa portuguesa.

O congresso de Karlsruhe, que acabou anteontem, escolheu Platzeck com 99,4% dos votos!! No seu discurso de vitória, Platzeck falou no erro cometido pelo SPD e que a correcção desse erro tinha sido importante para o futuro do SPD. Nahles desapareceu de cena.

A “grande coligação” formou-se finalmente e Franz Müntefering do SPD será, como inicialmente previsto, vice-chanceler do governo.

É claro que uma coligação de 2 partidos com opiniões divergentes não será fácil. Como de costume há entendimentos diferentes. Schröder, de saída, fala da «marca social-democrata» do texto de acordo, enquanto Merkel refere a «marca da CDU»!!

A frase de Franz Müntefering «Ousemos em vez de nos suicidar com medo da morte» merece reflexão. Deveria ser tomada como lema dos nossos políticos que não têm coragem de tomar as decisões que se impõem face à nossa situação económica.

Isto parecia evidente em 2-11-05, mesmo para quem não tinha correspondentes na Alemanha, excepto para os meios de comunicação portugueses que preferem prever o que desejam e não o que é provável.

2 – Em 09-11-05 escrevi “Les Arroseurs Arrosés” referindo que “aquilo que começou por ser a grande oportunidade de liquidar Sarkozy como candidato às próximas presidenciais, virou-se contra os que quiseram agarrar essa oportunidade”. Isto numa altura em que todos os meios de comunicação portugueses embandeiravam em arco com a liquidação política de Sarkozy. Dois dias depois, no Eixo do Mal dos Nulos, segundo me contaram, pois eu não vejo essa mixórdia, os Nulos presentes festejaram o fim da carreira política de Sarkozy.

Ontem, numa sondagem para Le Point, Sarkozy aparecia com uma subida de popularidade de 11 pontos em relação a sondagens anteriores. Segundo esta sondagem, 68% dos inquiridos apoiavam a actuação de Sarkozy. Numa sondagem para as presidenciais de 2007, Sarkozy tinha 61% das preferências (entre eleitorado seguro e potencial), à frente de todos os outros candidatos (uma subida de 10% em relação a sondagens anteriores). Segundo uma sondagem, Sarkozy vai mesmo recolher 40% do eleitorado socialista.

Na altura escrevi «Em situações de grandes distúrbios sociais, as populações viram-se para quem mostra firmeza. As ladainhas que tentam desculpabilizar os desordeiros invocando postulados sociológicos não colhem – as populações não querem melopeias estéreis, querem acção, querem firmeza. Sempre foi assim. A seguir ao Maio de 1968, quando os lunáticos do pensamento sociológico pensavam que a França estava ganha para a esquerda, as eleições saldaram-se numa vitória estrondosa da direita».

Portanto tudo isto era previsível e há inúmeros exemplos que mostram que é assim que os acontecimentos se desenrolam. Paradoxalmente esses exemplos têm ainda outra constante: Os “mesmos” enganam-se sempre ... e sempre da mesma maneira!

É óbvio que até às presidenciais muita água irá correr debaixo das pontes e muitos eventos e decisões poderão ocorrer e alterar, eventualmente, a actual popularidade de Sarkozy. Mas isso é futurologia. O que está em causa são os efeitos dos acontecimentos destas últimas 3 semanas na popularidade dos políticos franceses.

Isto parecia evidente em 9-11-05, mesmo para quem não tinha correspondentes em França, excepto para os meios de comunicação portugueses que preferem prever o que desejam e não o que é provável.

Embora eu intitulasse este texto “Filáucias”, não é minha intenção qualquer vanglória. O meu objectivo é de chamar, mais uma vez, a atenção para os enganos que cometem os que tomam os desejos por realidades, os que fazem das suas causas factos incontornáveis.

Publicado por Joana às 07:49 PM | Comentários (112) | TrackBack

novembro 13, 2005

E as consequências?

Muito se tem escrito sobre os tumultos em França. As alegadas causas são esquadrinhadas ao milímetro. Os sociólogos da auto-culpabilização não têm dúvidas: a casa nova que afinal não era senão um penhor de culpa; o roubo do sonho de uma nova identidade social; um mal geral que se desencadeou em França porque “na Europa, é o país mais politizado, mais participativo e mais mobilizado”; uma lógica de automutilação devido à quebra da anterior "sociabilidade e a solidariedade do bairro de barracas", etc. Outros, mais modestos, referem a desigualdade económica, desemprego crónico, falhas de estratégia policial, fracasso nas políticas de integração, falta de perspectivas dos jovens revoltados. Ninguém arrisca falar nas consequências.

É a própria inventariação de causas que inviabiliza soluções. Refiro-me a soluções e não a paliativos que apenas adiem uma nova e porventura mais grave explosão.

Se uma casa nova não é senão um penhor de culpa, uma esmola que “ao invés de colmatar a exclusão a confirma”, então não servirá de nada fazer novas urbanizações mais humanizadas. As urbanizações não têm alma. Quem as humaniza ou desumaniza, é quem as habita.

A afirmação que estes tumultos se desencadearam em França porque “na Europa, é o país mais politizado, mais participativo e mais mobilizado”, é apenas uma utilização canhestra do mecanicismo histórico: os jovens desordeiros não são herdeiros da civilização francesa (aliás, recusam-na), a única participação cívica que se lhes conhece é a de receber subsídios estatais e não evidenciaram quaisquer pretensões políticas.

A razão mais sólida, mas pouco enunciada porque a França continua a ser um modelo de virtudes para a nossa intelectualidade da “ética republicana”, é a da discriminação. Colegas de um mesmo liceu vão a uma discoteca, mas um ou dois ficam à porta porque os seguranças aperceberam-se que são de ascendência árabe. Quando respondem a um anúncio de emprego, se enviam um CV onde, pelo nome, se detecta que são de ascendência árabe, o mais certo é nunca serem sequer entrevistados. A actual geração de franco-magrebinos tem muito mais dificuldade em encontrar empregos que os seus progenitores, porque a actual taxa de desemprego é muito elevada e a concorrência no mercado de emprego é muito forte. Se o empregador tem muito por onde escolher, descarta preferencialmente os árabes.

Ou seja, se parte dessa discriminação é intrínseca à sociedade francesa, a do mercado de trabalho resulta principalmente da falta de empregos. Afinal de contas a primeira geração encontrou emprego, apesar de ser magrebina. A actual geração não os encontra porque há poucos e os poucos que existem dirigem-se preferencialmente aos não-árabes.

Portanto estamos naquilo que me parece ser o cerne da questão, e que tem a ver com o desenvolvimento económico e o nível de emprego. A essência do Estado Providência europeu consiste na sua omnipresença social, regulando de forma rígida o mercado de trabalho, protagonizando uma função assistencialista generalizada e suportado por uma carga fiscal pesada. Todavia, quando há crescimento económico, a rigidez do mercado laboral desincentiva os empresários a admitirem os efectivos que admitiriam se não houvesse essa rigidez, por temerem ficar com pessoal excedentário, se o crescimento não for sustentável. Isto é, a rigidez do mercado laboral promove o malthusianismo económico.

Simultaneamente, a pesada carga fiscal é um entrave ao crescimento, porque aumenta os custos de produção e retira competitividade à economia, face a um mundo cada vez mais globalizado.

Finalmente, a função assistencialista generalizada tem um efeito nocivo em toda a sociedade. Cria nela a síndrome de dependência do Estado, a aversão ao risco, a ilusão de que as regalias que goza são “direitos adquiridos” ad aeternum, a mentalidade de que o Estado tem soluções para tudo e que cabe a ele resolver todos os problemas. E, pior que tudo, a permanente insatisfação pelos bens que o Estado proporciona: não era aquela a casa que desejavam, os subsídios que recebem não são os suficientes, etc. É a psicologia do mendigo que insulta quem dá uma esmola que ele considera insuficiente.

Talvez seja esta mentalidade perniciosa o efeito mais perverso do Estado Providência, com as suas características de omnipresença e omnipotência, tal como se verifica actualmente em França e em alguns outros países europeus. A capacidade de escolha, de decidir o rumo da sua vida, de assumir o risco de uma decisão, de ter audácia e espírito inovador são as características de uma sociedade de homens livres. Foi isso que fez a grandeza da Europa e do Novo Mundo. Tudo isso tem sido, pouco a pouco, castrado pelo Estado Providência. O Estado Providência está a transformar uma sociedade de homens livres num rebanho de subsídio-dependentes.

A anona e as distribuições gratuitas de alimentos e distracções a um número cada vez maior da cidadãos romanos, que passaram a viver na ociosidade, corromperam as virtudes cívicas e as qualidades que haviam feito a grandeza da República Romana e conduziram à sua decadência e queda. O Estado Providência europeu está, mutatis mutandis, a seguir um percurso semelhante no que respeita ao envilecimento dos valores e virtudes cívicas dos cidadãos europeus.

O que está de errado em tudo esta questão é a omnipresença e omnipotência do Estado Providência, a extensão desmesurada que a função assistencialista adquiriu e os efeitos perversos a que tudo isso conduziu: estagnação económica, aumento do desemprego, exclusão das camadas mais jovens do mercado de trabalho, a síndrome de dependência do Estado e o aviltamento dos valores.

É isso que tem que ser corrigido.

Publicado por Joana às 10:51 PM | Comentários (89) | TrackBack

novembro 09, 2005

Les Arroseurs Arrosés

A esquerda é vítima da armadilha das suas próprias convicções. Como se baseia nas suas convicções e nunca nos factos, toma sempre a nuvem por Juno. Embora com tendência mais pragmática, os conservadores também cometem com frequência erros semelhantes. A sequência dos acontecimentos em França é exemplar desse ponto de vista. Com os primeiros tumultos (27Out) e a frase de Sarkozy onde prometia “varrer a canalha (racaille)”, Chirac e Villepin esperaram, quietos e calados, que Sarkozy fosse cozinhado em fogo lento, com a oposição a pedir a sua cabeça e os desordeiros a declararem à comunicação social, entre cada dois incêndios de viaturas, que a culpa era do Sarkozy.

Esta situação não se aguentou uma semana. Por várias razões. Os tumultos e as depredações de viaturas e bens públicos exasperaram as populações. Os bombeiros ficaram desesperados por servirem de alvos dos desordeiros e incendiários. A comunicação social bem podia transmitir um magrebino a declarar que «Il joue au fort, il fait venir les cars de CRS, il parle de racaille, c'est lui qui crée la tension.», que a população olhava com desdém a tese dos ateadores dos fogos e virava-se para Sarkozy, a única figura agente e movente naquele caos. Villepin, primeiro, e Chirac, depois, compreenderam que tinham que apoiar publicamente o seu ministro do Interior. Em situações de desordens e de caos, as populações não se deixam embalar por teorias sociológicas desculpabilizadoras. Viram-se para quem faz frente à desordem.

A partir do início de Novembro, Villepin resolveu assumir um papel com maior protagonismo, mas insistindo preferencialmente nos apelos à calma e na cena ridícula de receber um grupo de jovens (com idades entre os 18 e os 25 anos) residentes nos bairros problemáticos dos arredores de Paris, que apenas se representavam a si próprios, mas que Villepin pretendia que simbolizassem as comunidades de imigrantes, desempregados, beneficiários dos subsídios mínimos de subsistência, etc. – Enquanto isso, os desordeiros ignoravam os apelos ao diálogo e continuavam a desafiar a polícia, atacando e incendiando bens públicos (entre eles escolas), lojas e veículos.

Perante a evolução dos acontecimentos e da opinião pública, Chirac e Villepin compreenderam que tinham que fazer frente comum com o seu ministro do Interior, Sarkozy. A tentativa de o cozinhar nos incêndios dos subúrbios franceses fracassara. Apenas a oposição continuava a pedir a cabeça de Sarkozy, mas já sem o apoio dos maires de esquerda das zonas afectadas. Os próprios Chirac e Villepin compreenderam que a demissão de Sarkozy, naquela altura, seria muito pior para eles próprios que para Sarkozy, além do que fragilizaria o Governo face aos incendiários.

Uma sondagem aparecida em 6Nov, mas realizada 3 dias antes, quando Sarkozy estava praticamente sozinho a enfrentar a tormenta, mostrava que 57% dos franceses tinham boa imagem dele, apesar de tudo aquilo que se fazia ouvir na comunicação social a pedir a demissão dele. E como é difícil um francês ter boa imagem de alguém que não tem ascendência francesa ... mas húngara!

Finalmente o Governo passou a tomar medidas mais musculadas, como a possibilidade do recolher obrigatório sempre que fosse necessário, e a mostrar uma frente comum, unida, para fazer face aos tumultos. O próprio chefe do grupo parlamentar do PS aceitou ontem um pacto de não-agressão com o centro e a direita para combater as desordens. Sarkozy foi firme, chamando as coisas pelos seus nomes «Il faut appeler un chat un chat. Derrière les grands frères des cités se cachent souvent des caïds. Quand on emploie le mot jeune, ce sont à l'occasion des voyous. Et les tournantes, ce sont en réalité des viols.», lembrando à esquerda a sua actuação enquanto Governo, : «Entre 1998 et 2001, il y a eu vingt-trois jours d'émeutes, et aucune interpellation. Nous, au bout de treize jours, nous en sommes à 1 250 arrestations».

Concluindo, aquilo que começou por ser a grande oportunidade de liquidar Sarkozy como candidato às próximas presidenciais, virou-se contra os que quiseram agarrar essa oportunidade. Em situações de grandes distúrbios sociais, as populações viram-se para quem mostra firmeza. As ladainhas que tentam desculpabilizar os desordeiros invocando postulados sociológicos não colhem – as populações não querem melopeias estéreis, querem acção, querem firmeza. Sempre foi assim. A seguir ao Maio de 1968, quando os lunáticos do pensamento sociológico pensavam que a França estava ganha para a esquerda, as eleições saldaram-se numa vitória estrondosa da direita.

Provavelmente estes distúrbios acabarão pelo cansaço de quem os provoca. São “rebeldes sem causa”. É uma violência sem objectivo racional. Não é possível negociar com grupos cujo único objectivo é a depredação dos bens alheios, sem uma causa definida, sem racionalidade. Dominique de Villepin promete 100 milhões de euros suplementares, mais dezenas de milhares de bolsas de mérito (para quem? – os que incendeiam as escolas nunca terão habilitações para terem direito a elas), etc., etc. Não se resolve o problema de um modelo social que está periclitante por excesso de despesa e de subvenções sociais, gastando ainda mais com ele. É o próprio funcionamento do Estado social francês que terá que ser revisto, aligeirando-o para permitir que se criem mais oportunidades de emprego. São precisos empregos e não esmolas.

Publicado por Joana às 10:19 PM | Comentários (161) | TrackBack

novembro 04, 2005

A Intifada Francesa

A França tem as características que a tornavam no país europeu onde este fenómeno teria a máxima probabilidade de ocorrer e com maior virulência. Congrega duas características extremas: 1) é o país onde o complexo de superioridade e a arrogância perante os estrangeiros atingiu os limiares do insuportável; 2) é o país onde a intelectualidade politicamente correcta mais se empenhou na ajuda à vitimização rácica dos imigrantes não europeus e em desculpar os respectivos desmandos comportamentais, alegando a defesa de culturas permanentemente discriminadas e vítimas da opressão da cultura ocidental.

Individualmente, enquanto pessoas, os imigrantes são desprezados pelos franceses; colectivamente, enquanto entidade abstracta, os imigrantes não europeus são reverenciados e vêem ser-lhes atribuído o estatuto permanente de vítimas da malevolência do Ocidente, mesmo que cometida há 3 ou 4 séculos, Ocidente que é culpado ad aeternum sem possibilidade de redenção para além das hipóteses fugazes de penitências através da participação nas ladainhas de auto-flagelação. O francês olha desdenhosamente para o negro que varre a rua, mas assina comovido petições inflamadas em favor dos sans papiers. O francês trata arrogantemente o empregado magrebino que lhe serve o croissant, enquanto escreve um veemente artigo, de elevado rigor intelectual e sólido humanismo, verberando as injustiças e a exclusão social que vitimam os magrebinos, explicando as razões lógicas e poderosas que justificam a revolta actual, a destruição e os incêndios que, só na noite passada e na região parisiense, destruíram mais de 500 veículos.

Estão a ajudar duplamente a intifada francesa: pessoalmente, acicatam-lhe o ódio; colectivamente, absolvem-na das violências e destruições.

Jornalistas em busca do certificado de intelectuais bem pensantes asseguram que tal se deve ao facto do Estado francês ter acabado com os bairros da lata e alojado os seus habitantes em bairros de rendas sociais nos subúrbios, com infra-estruturas deficientes – transportes, creches, terrenos desportivos, dispensários, jardins, etc. É uma jornalista portuguesa que escreve isto! Por esta visão 80% da população que habita os subúrbios de Lisboa e Porto estaria duplamente revoltada e a incendiar um número proporcionalmente maior e devastador de viaturas e edifícios: além de habitar bairros com aquelas características, despendeu, ou está a despender, avultadas quantias para habitar esses apartamentos geradores de revoltas.

Um paradigma desta hipocrisia: o maire de Clichy apressou-se a ir ao funeral dos jovens insurrectos electrocutados quando fugiam à polícia, enquanto ignorou o francês que foi assassinado por gangs de delinquentes.

Nota: Ver no Blasfémias “SOBRE A "INTIFADA" FRANCESA” que é uma caricatura da via politicamente correcta para apaziguar a “revolta popular”.
Ver igualmente uma série de posts do Insurgente sobre esta matéria.

Publicado por Joana às 05:56 PM | Comentários (171) | TrackBack

novembro 02, 2005

Die Unordnung herrscht in Berlin

A crise que se desencadeou na Alemanha com a decisão da direcção do SPD de eleger Andrea Nahles, uma dirigente da ala esquerdista do SPD, como secretária geral do partido ainda vai nos prolegómenos. Imediatamente, por efeito dominó, Franz Müntefering, o presidente do SPD, indigitado vice-chanceler e ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, renunciou a fazer parte do governo de coligação CDU/SPD e demitiu-se de presidente do SPD. A seguir, Edmund Stoiber, líder da CSU bávara, renunciou a ser ministro da Economia e da Tecnologia do futuro governo. A razão que indicou foi a da saída de Müntefering, com quem mantinha boas relações e cuja presença considerava imprescindível, para garantir que o SPD encarava com seriedade a sua presença no governo de coligação. Como de costume cada analista comentou estas ocorrências consoante os seus desejos.

Por exemplo, o DN comenta que “a chanceler indigitada, Angela Merkel, sofre um duplo revés no espaço de 24 horas”. O tempo o dirá. Nas circunstâncias actuais discordo frontalmente e por várias razões.

Em primeiro lugar, o SPD, assim que se viu despojado da responsabilidade integral pela governação, teve uma recaída (ainda que ligeira, segundo parece) na sua reverenciação pelo Moloch estatal e pela política de distribuir o que não existe. Uma síndrome que está inscrita no seu código genético. Ao eleger Andrea Nahles a direcção do SPD fragilizou o partido. Mais do que a coligação. A vitória de Andrea Nahles foi uma vitória inconsequente. Perante o sismo político que essa eleição provocou, Andrea Nahles já admitiu renunciar ao cargo para que foi eleita. Aliás, após Müntefering ter batido com a porta e as ondas de choque que tal gerou, será duvidoso que o próximo congresso do SPD, a realizar de 14 a 16 deste mês, ratifique aquela decisão. Segundo consta a direcção do SPD estaria a esta hora cheia de “arrependidos”. Se esta indicação é certa, não abona muito o terem ficado “arrependidos” apenas depois de verem o efeito que a sua decisão havia causado.

Em segundo lugar, o nome proposto para substituir Müntefering, Matthias Platzeck, tem feito parte de governos de coligação com a CDU no estado do Brandeburgo. Está portanto habituado a consensos com a CDU. Também foi um forte apoiante das reformas de liberalização económica de Schröder, contra a opinião da ala esquerda. Ou seja, o sismo provocado na comunicação social, fazedores de opinião, dentro do SPD e na opinião pública em geral, é capaz de levar o SPD a uma clarificação e a apostar sem ambiguidades num governo de coligação. Esperemos para ver os resultados do próximo congresso de Karlsruhe.

Em terceiro lugar, a partida de Stoiber e a sua previsível substituição por Michael Gross será um alívio para a indigitada chanceler, Angela Merkel, cujas relações com Stoiber eram péssimas. Stoiber também era o chefe da ala mais conservadora e iliberal da CDU/CSU.

Ou seja, 3 dias depois da "vitória" de Andrea Nahles, tudo indica que a situação esteja a evoluir favoravelmente à grande coligação e a um reforço da posição de Angela Merkel no futuro governo federal. A jogada da direcção do SPD foi, aparentemente, um tiro no pé.

Resta saber se estas previsões se confirmam. O congresso de Karlsruhe será decisivo. Se estas previsões não se confirmarem a Alemanha fica num impasse. A economia alemã está fragilizada, pois desde o anúncio das eleições que deixou, praticamente, de haver governo. Uma coligação em que um dos partidos tem um pé no governo e outro na oposição não é viável a médio prazo. Ou seja, se aquelas previsões não se confirmarem, o resultado mais provável será a realização de novas eleições no primeiro semestre do ano que vem.

Publicado por Joana às 10:30 PM | Comentários (57) | TrackBack

setembro 20, 2005

Partido Schröder

Há um equívoco que percorre os analistas políticos portugueses desde os socialistas até aos conservadores, passando por liberais, neo-cons, paleo-cons, etc., que é Schröder ser do SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). Funesto engano. Schröder é do SPD (Schröder Partei Deutschlands). Schröder não tem uma ideologia coerente nem uma política própria. Schröder apenas tem Schröder – uma férrea determinação em vencer e uma sugestiva e insinuante imagem telegénica de vendedor de pasta dentífrica.

Schröder não concorre em eleições partidárias. Apresenta-se em plebiscito. Não é um partido – é ele. O partido é apenas uma das alavancas para ele conquistar o poder. Schröder precisa do partido como de uma empresa de Manpower. Schröder derrotou Kohl em 1998 com um programa socialista. Conduziu a Alemanha à estagnação económica. Perante a falência da sua política económica resolveu, nas eleições de 2002, jogar a carta do anti-americanismo e dramatizar a questão iraquiana. Schröder deve ralar-se tanto com os iraquianos como com os pinguins da Antártida. Todavia precisava dessa carta para lançar uma espessa nuvem de fumo sobre a crise económica e levar de vencida um desastrado Stoiber.

Face ao aprofundamento do insucesso económico, Schröder resolveu apostar numa política de liberalização da economia e na liquidação de algumas das mais evidentes vacas sagradas do Estado providência. Resolveu avançar com os projectos da Agenda 2010 e da legislação Hartz IV. Os cortes substanciais nos subsídios de desemprego alienaram-lhe as simpatias do Leste (com 20,4% de desemprego) e desencadearam as manifs das segundas feiras. Essa política colidia com a ideologia do SPD. Não interessava: quem era insubstituível era Schröder, não a ideologia. Substitui-lo seria como tentar produzir uma Matrix Reloaded sem Keanu Reeves. O argumento é despiciendo e ninguém o percebe – quem é fundamental é o Keanu Reeves.

Os primeiros recalcitrantes saíram, com Oslar Lafontaine à cabeça. Poderia haver preocupações dentro do SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). O SPD (Schröder Partei Deutschlands) permaneceu imperturbável.

O continuidade da estagnação alemã levou Schröder a aprofundar a sua política de aplicação de algumas receitas liberais. Um frémito de horror percorria o SPD. Para além da contestação sindical, dos trânsfugas de Lafontaine, das manifs dos Ossies, Schröder tinha agora a contestação interna. A somar a isso, as sucessivas derrotas nas eleições regionais, para a CDU, tinham tornado o Bundesrat (uma espécie de Senado) num órgão de larga e sólida maioria conservadora.

Perante esta situação, Schröder resolveu jogar o seu trunfo principal – o plebiscito à sua figura. Conseguiu que fossem convocadas eleições antecipadas para o Bundestag.

Durante a campanha eleitoral, Schröder não defendeu o seu programa. Nem era conveniente, pois tirando alguns pormenores e a flat-tax, o programa que estava a aplicar tinha muitas semelhanças com aquele que a CDU se propunha fazer. O eleitorado correria o risco de ficar perplexo. Schröder apenas atacou. Atacou sempre. A CDU ia destruir o Estado providência (cuja demolição já começara com ele próprio). Instilou o pavor da mudança (mudança que ele já encetara). Lançou cartazes em que apareciam caixões de soldados americanos com a legenda “Sie hätte Soldaten geschickt” (ela teria enviado soldados), agitando medos antigos. Prometeu 1.500 “empregos por dia” (como estas promessas colhem sempre?!). Usou e abusou da sua telegenia e da inexperiência e inabilidade políticas da sua principal adversária. Não houve argumentos, truques, ilusionismo político a que ele não recorresse. Mostrou uma férrea determinação em vencer.

E quase o conseguiu!

Agora aparece intitulando-se o vencedor das eleições e promovendo contactos para formar governo. Argumenta que a CDU/CSU são dois partidos distintos. Embora salvaguardadas as devidas proporções entre a Baviera e a Madeira, seria o mesmo que excluir os deputados do PSD-Madeira da bancada do PSD, para efeitos de determinar o partido com mais assentos.

Schröder sabe que a sua pretensão em ser o vencedor das eleições não tem qualquer acolhimento entre constitucionalistas e na classe política em geral. Ele apenas pretende manter a pressão para ver o que consegue obter. Schröder é um jogador. Está na política como a uma mesa de póquer. Com a mesma coerência ideológica. Continua a aumentar a parada apenas para ver se algum adversário passa.

Não sei que futuro político terá Schröder. As próximas semanas serão decisivas para o seu futuro imediato. Todavia, se a partida de póquer em que está empenhado o levar à derrota, auguro uma difícil travessia no deserto para o SPD (Sozial Demokratische Partei Deutschlands). Schröder está para o SPD como Cavaco esteve para o PSD: é um eucalipto que secou tudo à volta. Quando cair, se cair, vai deixar o SPD órfão.

Todavia, mesmo que perca agora, Schröder é demasiado tenaz e sequioso da ribalta para não regressar no momento que achar mais conveniente aos seus propósitos. É hábil, audaz, telegénico e completamente destituído de escrúpulos ideológicos.

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setembro 19, 2005

A Portugalização da Alemanha

O inesperado aconteceu. Em vez de sermos nós a aprender com a Alemanha, sucedeu serem os disciplinados germânicos a aprender connosco. A nossa capacidade de aculturação dos alienígenas é notável. Em primeiro lugar, nas eleições alemães, ganharam todos. Cinco partidos clamam vitória. A CDU/CSU clama vitória, porque teve mais votos e mais lugares no Bundestag (embora a Forsa, uma empresa de sondagens, tivesse, há instantes, previsto o mesmo número de lugares, 222, para a CDU e para o SPD). O SPD clama vitória, apesar de ter perdido 4,5% dos votos e cerca de 30 lugares, porque após o descalabro dos últimos meses, conseguiu recuperar cerca de 10% dos votos que as sondagens lhe atribuíam. O FDP (liberais) clama vitória pois terá cerca de 10% (mais cerca de 3% do que obtivera em 2002), muito acima do que previam as recentes sondagens, tornando-se no 3º partido alemão. O Linkspartei/PDS subiu 4% na votação (agora terá 8,7%), mas como passou a fasquia fatídica dos 5%, terá cerca de 50 assentos, contra os 2 que detinha. Os Verdes clamam vitória, porque desceram menos do que se previa (cerca de 8%, contra 8,6%). Ganharam todos. Aparentemente, apenas a Alemanha perdeu.

Na verdade, CDU, SPD, FDP, Grüne e L/PSD tornaram-se peças de legos que são manejadas por analistas políticos para tentarem construir conjuntos viáveis. A grande coligação (CDU e SPD) é rejeitada. Aliás parte da subida do FDP é atribuída ao deslocamento de votos da CDU para FDP para impedir essa coligação. CDU-FDP ou SPD-Grüne não têm a maioria. A coligação “semáforo” (SPD vermelho, Verdes e FDP amarelo) parece fora de questão, pelo menos de momento, pelas declarações do líder do FDP. A coligação SPD, Grüne e L/PSD seria o dobre a finados da economia alemã. Se as empresas alemãs estão contra a actual coligação e têm ameaçado com deslocalizações, a entrada do L/PSD seria um desastre económico. Ou seja, no futuro próximo, a Alemanha está ingovernável. As ligeiras melhorias que a economia tinha tido nos últimos meses, fruto das expectativas que os empresários tinham sobre os resultados destas eleições, vão regredir quase de certeza.

O segundo passo da portugalização da Alemanha, foi que os alemães votaram no medo da mudança. A política de Schröder tinha levado a Alemanha à estagnação e o desemprego ao número fatídico de 5 milhões. Schröder estava pelas ruas da amargura. Todavia Schröder pode não ser um político fiável do ponto de vista da verticalidade política, mas é um político astuto. Quando conduziu a Alemanha para novas eleições numa situação de completa desvantagem, apostou no medo da mudança e sabia que colheria fartos dividendos dessa aposta. Toda a sua campanha foi instilar o medo das reformas que a CDU e o FDP previam fazer para dinamizar a economia e do seu efeito no Estado providência. E conseguiu. A vitória de Schröder sobre as sondagens de há dois meses, foi a vitória da manutenção do statu quo. Foi a vitória do medo.

Por enquanto o statu quo ainda não é suficientemente mau, para os alemães votarem na mudança. Mutatis mutandis, é o que acontece em Portugal. Resta à Alemanha, como a Portugal, como à Itália, etc., que o statu quo seja mesmo calamitoso, para a opção da mudança se torne inevitável.

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setembro 16, 2005

Previsões? No fim do Jogo

As eleições do próximo domingo na Alemanha são aguardadas com muito interesse. Há várias questões em jogo, quer dentro da Alemanha, quer a nível europeu. Há meses, a vantagem nas sondagens da líder da CDU, Angela Merkel, parecia sugerir que a vitória da coligação CDU/CSU+FDP estava assegurada. As sondagens destas 2 últimas semanas mostram que a coligação CDU/CSU+FDP anda pelos 48,5% a 49%, o que se pode revelar insuficiente para formar governo. O que mudou na economia alemã e nas propostas dos políticos nestas semanas? Nada. Ora é isso que é surpreendente.

O que tem feito Gerhard Schröder, um mestre na arte de utilizar os média? Instilar o medo à mudança. Gerhard Schröder não apresenta nada de novo, para além da continuação da sua actual política, aliás muito mais liberal que a dos seus correligionários portugueses. Pior, Gerhard Schröder sabe que nunca a poderá aplicar, pois se o SPD chegar ao governo será, ou com a grande coligação com a CDU/CSU, ou com a coligação inviável com os Verdes e a Linke-PDS. Ora estes últimos estão totalmente em desacordo com as recentes reformas de Gerhard Schröder. Gerhard Schröder apenas pretende manter-se, e ao SPD, à tona de água. O seu discurso é instilar medo ao eleitorado alemão sobre o desmantelamento do Estado providência (que, aliás, já levou uma profunda machadada pelas leis Hartz do próprio Schröder), sobre a Flat-tax de Paul Kirchhof, sobre tudo o que cheire a mudança.

Curiosamente, as medidas preconizadas por Paul Kirchhof também assustam os barões do CDU/CSU. A simplificação do sistema fiscal alemão, considerado o mais complexo do mundo, com um imposto sobre o rendimento à taxa única e supressão, em troca, da miríade de nichos fiscais, deduções, subvenções e outros benefícios, não agrada a muitos políticos da CDU/CSU.

Portanto, não houve mudanças na economia alemã, Gerhard Schröder não fez propostas diferentes, tudo como dantes ... O que mudou foi a aproximação da data da escolha e o receio do eleitorado alemão por essa mesma escolha, por trocar o que é certo, e do qual não gosta, pelo que é incerto e sobre o qual tem medo. O que mudou foi o eleitorado estar confrontado com a hora da escolha. O que antes estava no domínio das hipóteses, hoje está a dois dias de poder ser uma realidade.

Para os empresários, a possibilidade de uma coligação CDU/CSU+SDP é um pesadelo. Seria a castração de quaisquer veleidades de reformas. Para os sindicatos a coligação CDU/CSU+FDP é o pesadelo a exorcizar. Mas também não se revêem no radicalismo da Linke-PDS que pode levar à aceleração das deslocalizações das empresas para fora da Alemanha. Aliás, a Linke-PDS está ligada à clivagem das duas Alemanhas. Segundo as sondagens, a coligação CDU/CSU+FDP tem 35% na parte oriental (Linke-PDS tem 26%) contra 53% na parte ocidental (Linke-PDS tem 7%). A ex-RDA pode não chegar para ganhar eleições, mas pode servir para as perder.

Para a Europa, a derrota de Schröder levaria à mudança de correlação de forças e ao isolamento da França de Chirac. Se a coligação CDU/CSU+FDP chegar ao poder, Sakorzy terá o caminho facilitado para poder ser o próximo presidente da França. Do ponto de vista da evolução da economia europeia, este seria o cenário mais favorável. Mas é um cenário que implica mudanças e as pessoas preferem, por vezes, um cenário previsível de empobrecimento tranquilo temperado com promessas ilusórias que “agora é que é a valer”, a um cenário de ruptura cujos contornos não conhecem bem e ao qual os que se lhe opõem se encarregam de instilar um temor obscuro, de contornos propositadamente indefinidos. É fácil meter medo à mudança e à alteração dos hábitos. Tem sido, desde que há a democracia representativa, a especialidade das forças conservadoras.

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março 17, 2005

Dois Socialismos?

O socialista Schröder apresentou hoje ao Bundestag um conjunto de medidas para reduzir o desemprego alemão (cuja taxa actual é de 12,6%). Baixar o imposto sobre as sociedades de 25% (um dos mais elevados da Europa) para 19% e reformar de alto a baixo todo o sistema fiscal aplicado às empresas. Em contrapartida prevê reduzir diversos benefícios fiscais – pretende reduzir as possibilidades de deduções nos impostos, reduzir subsídios, como o subsídio à compra de casa própria, e também aumentar os impostos sobre os dividendos e sobre os lucros mínimos.

Anunciou também um amplo programa de desburocratização, maiores facilidades à criação de empresas (diminuição do actual capital social mínimo de 25.000€, por exemplo) e eliminação de legislação supérflua (300 überflüssige Gesetze sollen wegfallen), ou seja, 300 leis “vão à vida”. 300? Porque não 299 ou 301? Este número “redondo” cheira a chavão publicitário, mais que a uma medida rigorosa!

Schröder promete um programa de investimentos públicos de dois mil milhões de euros em projectos no âmbito rodoviário nos próximos quatro anos, mais 700 milhões para a reabilitação de edifícios. As suas previsões são que estes projectos podem gerar investimentos adicionais vultuosos. Schröder pretende que os grandes consórcios energéticos realizem a breve prazo investimentos da ordem dos 20 mil milhões de euros e que as empresas, face ao novo enquadramento fiscal e administrativo, deixem de abandonar a Alemanha, rumo ao leste europeu.

A CDU/CSU, cujo apoio é indispensável, porquanto Schröder, tendo embora a maioria na Dieta Federal (Bundestag), não a tem no Conselho Federal (Bundesrat), acha-as insuficientes, pois pretende que a legislação laboral seja modificada no sentido de uma maior liberalização. Todavia é natural que acabe por as aprovar.

Não estou em condições de discutir se estas reformas serão ou não suficientes, nem se elas se traduzirão apenas num maior défice orçamental (embora a dimensão dos investimentos públicos seja reduzida, quando comparada com o PIB alemão). Também não sei se o optimismo de Schröder sobre o efeito multiplicativo dos seus investimentos é fundamentado, ou se é apenas uma fé messiânica. Mostram todavia uma vontade de diminuir o ónus que as empresas suportam e de desburocratizar a relação do Estado com a actividade económica.

Que se passa entretanto em Portugal? Num país que está décadas atrasado relativamente à Alemanha, que tem uma carga fiscal pesada, a burocracia mais asfixiante da Europa, e uma rigidez laboral paralisante? O silêncio socrático.

O grave é que é um silêncio cheio de recados. Campos e Cunha já avisou que, a médio prazo, é de esperar um aumento de impostos; subitamente vieram à baila as taxas do IVA e as suas eventuais alterações; Constâncio sugere que se aumentem os impostos sobre os combustíveis e sobre os veículos "como alternativa" a não se pagarem as portagens das SCUT’s. Com tantos recados, torna-se num silêncio ensurdecedor. Com o anterior governo o país já estaria em estado de sítio psicológico, e as “fontes de Belém” já teriam enviado dezenas de recados à comunicação social.

Ninguém fala em desburocratizar, em reestruturar o sector público, em pôr cobro à voracidade desse monstro que está a asfixiar o país. Não há o mais leve boato sobre estas matérias.

O país está encurralado. Os impostos e contribuições sociais sobre o trabalho atingiram níveis insuportáveis; os impostos sobre a actividade económica atingiram o limiar, limiar a partir do qual o aumento da fiscalidade se traduz na diminuição das receitas pela diminuição da actividade económica e deslocalização das empresas; o imposto sobre o tabaco está limitado pelo contrabando – quanto maior for o imposto maior é o rácio benefício-custo da actividade dos contrabandistas e mais atractivo este “nicho de mercado”. Outro tanto sucede com os produtos petrolíferos – quanto maior for o diferencial entre Portugal e Espanha, maior é a propensão para o adquirir em Espanha e sustentar o erário público espanhol em vez do português.

A economia paralela aumenta com a burocracia estatal e o fundamentalismo fiscal. Não vale a pena entoar jeremiadas na comunicação social sobre aquela actividade. Ela resulta da ineficiência da nossa sociedade. A maioria dos que protestam contra ela é conivente na prática com ela. Quando chamam um canalizador a casa, exigem-lhe factura? Por outras palavras, aceitam pagar mais 19% de IVA? Se recorrem a um advogado, exigem o recibo, aceitando pagar mais 19% de IVA? Protestamos contra a economia paralela, mas procuramo-la para obter bens ou serviços mais em conta. Imprecamo-la, mas sustentamo-la.

Só os hipócritas ou intelectualmente desonestos propõem alimentar o Moloch estatal com o fim da evasão fiscal e da economia paralela que eles próprios alimentam e com as quais são coniventes, sempre que têm ocasião. O fim do sigilo fiscal não passa de um mito porque é fácil de ser torneado. Terá alguns efeitos positivos, mas nada do que os adoradores do Moloch esperam.

O que resta? O imposto sobre os automóveis, em bruto ou em “prestações suaves”, como já se murmura, e os impostos sobre os bens imobiliários. A esses é impossível fugir. Mas atenção, o imposto sobre bens imobiliários é o que mais mexe sobre a totalidade do país. O primeiro objectivo dos revoltosos da Patuleia era o assalto às recém criadas repartições de finanças e o incêndio dos registos cadastrais. E não só em Portugal. Em diversos países tem-se verificado que o excesso fiscal sobre bens imobiliários conduz à revolta fiscal e à rápida queda dos governos que o promovem.

Como é diferente o socialismo em Portugal! ... o socialismo e o resto ...

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março 08, 2005

Países Soberanos com uma Moeda Única

e as contradições inerentes

É difícil o entendimento no Luxemburgo. Temos 12 Estados com situações diferenciadas quanto ao desenvolvimento económico, competitividade e qualificação do sector produtivo, peso relativo e eficiência do sector público, conjuntura económica específica, grau de consciência cívica e discernimento dos respectivos habitantes, etc., etc.. Cada um destes Estados soberanos, se não houvesse moeda única, estaria a realizar uma política financeira própria.

Por exemplo, Portugal ainda estaria a ser governado por António Guterres, o escudo estaria desvalorizado 50% ou mais, e caminharíamos, hipnotizados, para uma economia de troca natural, para uma situação similar à vivida pela Argentina há poucos anos.

Outros Estados teriam aplicado políticas diferentes. O difícil é uniformizá-las, dentro da diversidade de situações. Há Estados que consolidaram a sua economia e têm um modelo que funciona bem, nas presentes circunstâncias.

Outros não o fizeram e estão com sérios problemas orçamentais que tenderão a agravar-se, como os casos da Alemanha e da França, por exemplo. Estes últimos gostariam de aplicar as mezinhas keynesianas, tentando dinamizar a economia através da despesa, sem cortar na sua actual despesa pública, tornada rígida pelo modelo que adoptaram. São soluções de efeito transitório, porque o que é estruturante não é alterado. Mas como as legislaturas também são transitórias e o objectivo é ganhar as próximas eleições...

As razões apontadas para flexibilizar o pacto até são “aliciantes”. A Alemanha pede que o PEC não contemple: 1) custos com a reunificação do país (que já foi há 14 anos!); 2) contribuições nacionais para o orçamento comunitário; 3) despesas públicas com qualidade. Quanto à França quer excluir: 1) despesas de investimento; 2) despesas de investigação; 3) despesas de Defesa (!!); 4) ajudas ao desenvolvimento.

O problema é que um défice é um défice, quer seja por motivos nobres, quer seja por se ser perdulário. Eu posso endividar-me porque investi em casa própria mais do que conseguiria pagar; porque fui perdulária a despender nos centros comerciais e locais de diversão; ou apenas porque, em repetidos gestos piedosos e altruístas, dei esmolas em excesso. Ou ainda, como no caso da França, porque adquiri uma AK47 e vários pitbull e doberman, para defender a minha residência de intrusos.

A questão é que, quando se começa neste regateio, criam-se escapatórias por todo o lado, nomeadamente no caso dos países com contabilidades públicas criativas. Talvez por isso, o primeiro-ministro do Luxemburgo, que assume actualmente a presidência da União Europeia, considera que o PEC em vigor funciona mal mas prefere essa realidade a ter um novo Pacto que, daqui a uns anos, não funcione.

Provavelmente tem razão. Quem não tem dinheiro, não tem vícios. Portanto, uma forma de acabar com o vício da despesa excessiva, é cortar no dinheiro.

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fevereiro 26, 2005

O Exemplo Francês

Hervé Gaymard, ministro das Finanças francês, que sempre tentara dar de si mesmo uma imagem pública de modéstia, alugou um luxuoso apartamento, com 600 metros quadrados, junto aos Campos Elísios, com uma renda mensal de 14 mil euros, paga pelo erário público. As obras de remodelação do apartamento, para permitir a instalação do casal e dos seus 8 filhos, também pagas pelo Estado, custaram 150 mil euros.

Hervé Gaymard não cometeu nenhuma ilegalidade. Todavia cometeu dois erros políticos calamitosos. Numa época de austeridade em França, com uma taxa de desemprego que atingiu 10% e com uma enorme crise nas finanças públicas, que obriga a medidas severas de contenção da despesa, e quando, perante a UE, a França não cumpre os limites do PEC e argumenta que esse incumprimento resulta das reformas necessárias para pôr a economia a funcionar de forma a tornar as suas finanças saudáveis e sustentáveis, é uma machada na credibilidade da política francesa, no quadro europeu, e da política do governo, no quadro interno, um gasto tão exorbitante, feito pelo próprio ministro das Finanças.

O 1º Ministro Raffarin apressou-se a estabelecer regras para a despesa com alojamento de ministros: o Estado não poderá a seu cargo um alojamento que exceda uma superfície de 80 m2, mais 20m2 por menor a cargo (que aliás, também não serviriam para Hervé Gaymard, pois apenas tem 8 filhos ...). Hervé Gaymard apresentou hoje a sua demissão, após 3 meses no cargo. Mas o mal está feito. Não é possível praticar uma política de austeridade sem os promotores dessa política mostrarem continência nos seus próprios gastos, quando pagos pelo erário público. Não é possível pedir compreensão nas instâncias europeias, se se dá um exemplo de um gasto sumptuário.

Para agravar a situação e tornar o caso mais caricato, soube-se que, entre os bens do casal, figura um apartamento de 200 m2, no boulevard Saint-Michel, em Paris.

Chirac terá agora que nomear um novo ministro das Finanças. Será o quarto no espaço de um ano. A vida não está de feição para os ministros franceses das Finanças.

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dezembro 28, 2004

Ucrânia, a Fronteira

Uma digressão geográfica

Ukraina significa confins, fronteira longínqua, e a Ucrânia, ela própria, constituiu sempre uma fronteira entre a Europa e a Rússia e estepes asiáticas. E essa fronteira passava por dentro da actual Ucrânia, como a história o mostra e os mapas seguintes o provam. E essa fronteira interna, foi a fronteira entre Iuschenko e Ianukovitch, entre a base de apoio de um e de outro, entre a Ucrânia mais europeizada e a Ucrânia mais russificada.

Para tentar explicar a clivagem existente entre as bases de apoio de Iuschenko e Ianukovitch, nada melhor que olharmos a evolução geográfica das terras actualmente constituintes da Ucrânia e sob que domínio estiveram.

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Vemos na viragem do milénio o Principado de Kiev, que russos e ucranianos reclamam com origem, e a costa sul dominada pelos petchnegos

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A geografia em 1200, mostra o desmembramento desse principado, durante os 2 séculos seguintes

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A continuação desse desmembramento em 1300, e a emergência da Lituânia. Os lituanos, que se tinham mantido pagãos apesar das cruzadas dos cavaleiros teutónicos, vão durante um século XIV, construir um extenso Estado onde a maioria da população não era lituana.

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Em 1386 Jaguelão, Grão-Duque da Lituânia, torna-se também Rei da Polónia. A partir daí estes 2 Estados ficam em união pessoal, mas governando-se autonomamente cada um. Foi durante o reinado de Jaguelão que os lituanos adoptaram, pouco a pouco, o cristianismo, e os cavaleiros teutónicos foram vencidos em Tannenberg.

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Se se observar o mapa referente a 1500, nota-se claramente a clivagem entre a actual Ucrânia ocidental, incluída no Reino Polaco-Lituano, e a Ucrânia Oriental, incluída nos principados russos e depois na Rússia. A sul, o que restou do domínio mongol, o Khanato da Crimeia. A Crimeia foi mais tarde, em meados do século XX, russificada, com a expulsão dos tatares. Provavelmente por isso ela é actualmente favorável a Ianukovitch. Estas fronteiras vão-se manter, com poucas modificações, até ao último quartel do século XVIII.

Leste 1700.jpg

No mapa relativo a 1700 vêm-se os territórios sob o domínio dos Hetman dos Cossacos, no limite entre as duas Ucrânias. Entretanto os Lituanos, povo numericamente muito reduzido, que haviam conquistado um domínio tão extenso, que colocaram o seu soberano no trono da Polónia, acabaram “engolidos” por quem tinham anexado!

Leste 1809.jpg

A partir daí, com o aparecimento de Pedro o Grande e o enfranquecimento do Reino Polaco-Lituano, vítima das disputas entre a sua nobreza irrequieta, a Rússia progride para o ocidente e, em fins do século XVIII, juntamente com a Áustria e a Prússia, repartem a Polónia. Neste mapa, relativo a 1809, no apogeu de Napoleão, vê-se o Grã-Ducado de Varsóvia, reconstituído por Napoleão, a seguir à derrota dos russos em Friedland e dos austríacos em Wagram. Após a queda de Napoleão, o Grã-Ducado de Varsóvia passou para o domínio russo. Esta situação vigorou até à Grande Guerra de 1914-18

A Polónia e a Lituânia só recobram a independência após a Grande Guerra de 14-18, embora a Lituânia tivesse sido incorporada na URSS em 1940. A Ucrânia teve uma curta experiência de independência no final da Grande Guerra de 14-18, mas foi rapidamente incorporada na URSS. A Lituânia e a Ucrânia recuperaram a independência com o colapso da URSS em 1990.

O futuro dirá que Ucrânia irá emergir do actual processo. Se a Ucrânia que esteve, durante quase um milénio, ligada à Europa oriental, que durante esse tempo foi os confins orientais da Europa, ou a Ucrânia que durante os 2 últimos séculos esteve dependente da Rússia. Ou se a Ucrânia se cinde em duas Ucrânias, Ucrânias que tiveram, ao longo da História, percursos tão diversos

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dezembro 20, 2004

A Turquia e a Europa

A Europa está anémica, inerme. Quem acompanhou as negociações entre a UE e a Turquia com vista a uma futura adesão desta à União, decerto se apercebeu que quem falava mais grosso era a delegação turca. Tudo indiciava que os turcos estão convictos que irão a fazer um prestimoso favor à Europa em serem admitidos na UE.

O facto da Turquia ser um país islâmico parece-me uma questão menor, embora quem esteja contra essa admissão invoque essa questão como primordial. Primordial para quem contesta a entrada, mas também para quem a usa implicitamente, pretendendo dar ares de politicamente correcto, para a apoiar. Para mim, o essencial, são as seguintes questões:

A Turquia ocupa militarmente, há mais de 30 anos, cerca de 40% da República de Chipre, membro da UE. Ninguém fala dessa ocupação militar e o que tem sido abordado, embora de uma forma ambígua e susceptível de interpretações contraditórias, é apenas um eventual reconhecimento da República de Chipre pela Turquia.

O sueste da Turquia é habitado por uma importante e numerosa população curda (superior em número à população portuguesa), destituída de quaisquer direitos, cuja língua é proibida em tudo o que é público, incluindo as escolas e o seu ensino. Isto, penso eu, é o que se chama genocídio cultural. Por menos que isso, a Sérvia foi justamente penalizada pelo seu comportamento no Kossovo.

Quando se reclama pelo reconhecimento do genocídio dos arménios não se reclama, como é óbvio, pela reposição do statu quo ante. Seria estulto perante o facto de já se ter passado um século. Mas o seu não reconhecimento significa que a Turquia não está arrependida desse acto, ou que não o considera criminoso ou, pior, que o poderá repetir se se oferecer ocasião para tal.

Estes são os três pontos fulcrais. A questão islâmica é relevante apenas na medida em que a sociedade turca não teve o exercício de um poder e de uma cidadania laicos como na Europa Ocidental, mesmos nos países como a Irlanda, a Áustria e o próprio Reino Unido que, em teoria, são Estados confessionais.

E essa ausência de exercício de uma cidadania laica pode torná-la presa do fundamentalismo islâmico se as condições sociais o facilitarem. E mesmo que isso não aconteça, confere-lhe uma matriz cultural certamente muito diversa da europeia. Mas isso, apesar de ter algum relevo, não é de forma alguma motivo de impedimento, até porque a integração na Europa facilitaria o exercício da cidadania e o afastamento progressivo dos demónios do fundamentalismo religioso.

As três questões que enunciei são, essas sim, fracturantes. E o que me surpreende e revolta é a cortina de silêncio cúmplice que se abate sobre elas.

Os Estados Unidos fecham os olhos aos abusos dos direitos humanos quando, na sua óptica, os seus interesses estratégicos sobrelevam aqueles direitos. Mas não se percebe porque razão a Europa deve seguir na esteira dos EUA nesta matéria, quando tanto contesta outras opções políticas americanas.

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dezembro 01, 2004

Deriva Continental

Eduardo Lourenço, num curso promovido pela Fundação Mário Soares e pelo Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa fez uma comunicação sobre um tema que já várias vezes trouxe aqui à colação(*) – a relação entre a Europa e os EUA e algumas similitudes que essa relação tem com a relação entre gregos e Roma na Antiguidade Clássica.

A tese de Eduardo Lourenço tem as mesmas raízes que as minhas, só que a sua análise dos acontecimentos e dos efeitos, actuais e potenciais, não consegue subtrair-se da influência da intelectualidade francesa que constitui a vivência cultural do ambiente em que vive e lecciona.

Para Eduardo Lourenço os «Estados Unidos são apenas o Frankenstein da História, feito dos pedaços da Europa que fugiram à Europa (e em seguida, ao mundo) e lá, depois de limparem a paisagem, (de índios), conservando a nostalgia dos seus ocupantes, se reconstruíram com energia quase desesperada, inventando, ao longo de quase duzentos anos ... uma identidade de tipo novo, não europeia, tendo no futuro o seu tempo utópico e messiânico».

Os Estados Unidos foram criados, mais ideologicamente que demograficamente, por europeus que fugiam às perseguições políticas e religiosas. Os Pilgrim Fathers eram, na maioria, aldeões ingleses que estavam numa situação social incomparavelmente superior à dos camponeses franceses e da Europa continental, subjugados pela sobrevivência de um feudalismo anacrónico. Um servo medieval nunca teria fundado as cidades livres a autónomas da Nova Inglaterra. O Canadá francês, formado na mesma época, foi a transplantação do camponês medieval sob a chefia do seu nobre feudal e do seu padre, enquanto a imigração colonial inglesa foi a transplante de uma sociedade muito mais moderna, semi-industrial e desperta para as transformações económicas e intelectuais (**). Era gente capaz de fundar instituições sólidas, onde podiam florescer, lado a lado, a agricultura, os ofícios mecânicos e o comércio. Mas simultaneamente fugiam da perseguição e da intolerância religiosa. Para eles, a liberdade individual era um bem precioso.

E as vagas que se lhe seguiram, ou fugiam dos despotismos e das coacções extra-económicas das sociedades feudais, ou fugiam da miséria e da escassez de recursos das suas terras. A emigração maciça de irlandeses durante o século XIX, que fez descer a população da ilha para cerca de um terço do que era anteriormente, foi causada pela miséria, mas também pelo colonialismo inglês. Dizer que os americanos, por serem descendentes de “retalhos” da Europa, são um Frankenstein da História é uma imagem enviesada por um intelectualismo blasé, pretensamente superior, tipicamente francês (ou português, na sua versão fotocopiada e ainda mais provinciana).

Quem demandou o Novo Mundo, fê-lo porque teve a coragem de quebrar as amarras e partir, enfrentando o desconhecido. Nas classes sociais economicamente mais desfavorecidas, entre as quais se recruta a emigração, são sempre os mais aptos, os que têm mais vontade em se afirmar e mais coragem em enfrentar o desconhecido que emigram. Os outros ficaram.

É evidente que as gerações se renovam e aquelas características não são genéticas. Mas as sociedades criadas por gente livre, quando os que ficaram eram servos, corajosa, quando os que ficaram lhes faltou ânimo, empreendedora, quando os que ficaram permaneceram apáticos, são sociedades que motivam os seus membros ao exercício da liberdade, às virtudes do trabalho e à busca da prosperidade e da felicidade. São sociedades que olham para a frente, para o futuro, enquanto as outras têm medo de encarar o futuro e reinventam o passado para explicarem, ou justificarem, a sua incapacidade e inanição actuais.

E se os EUA ganharam protagonismo na Europa, foi por necessidade vital desta, como reconhece Eduardo Lourenço: «Por mais imperialistas que nos pareçam hoje os desígnios hegemónicos dos Estados Unidos - pelo menos, de um dos EUA, aquele que se revê na tradição de Theodore Roosevelt e chega até Bush - esta intervenção nos assuntos europeus não foi (ou não foi só) de iniciativa, da então ainda inocente jovem América. Foi de conveniência da "velha Europa". Como, em tão pouco tempo, esse passado "salvador" dos EUA, se converteu - ao menos aos olhos de muitos europeus, em questão nossa, ou problema e, para alguns, - em "ameaça"?» ... «Como é que esta Europa, libertada duas vezes com a ajuda dos americanos (e, não pouco, dos soviéticos), se encontra nos alvores deste enigmático século XXI, de "candeias às avessas", para usar a expressão que convém ao nosso arcaísmo, com os detentores da luz do mundo, convertidos, como no mais puro dos seus sonhos de domínio, em "super-men" da História?»

Eduardo Lourenço não nos dá uma explicação, apenas reconhece que «O Império não tem exterior. Também a Europa, nos seus impérios sucessivos, o não tinha. Nós não jogamos já (ou ainda) na mesma divisão. A América não nos vê como nós gostaríamos de ser vistos para crer que ainda contamos no mundo. A maior parte do nosso tempo útil - político ou culturalmente falando -, gasta-se a saber o que a América "quer" ou "pensa". Mas esta aparente distracção, ou distanciamento da América e, em particular desta de Bush, em relação às "Europas" é um engano cego e pouco ledo. A América encarrega-se de "pensar" a Europa e na Europa, até porque ela está nela, mas não como estava quando lhe servia de escudo na sua luta contra o império soviético (e vice-versa). Ela pensa na Europa, onde reinou desde 1945 a 1989, como pensa nela como pedra de xadrez ainda importante no tabuleiro mundial. E só isso lhe interessa.».

E conclui: «Vae Victis. Ninguém venceu a Europa. Foi vencida por si mesma.», adiantando que «Pode ressuscitar», mas sem dar qualquer pista como essa ressurreição poderá ocorrer. Aliás, o estilo da comunicação é mais o de um epitáfio descoroçoado, que um apelo para que, no Dies Irae, o Senhor se compadeça da Velha Europa e a albergue no seu seio.

Há dias, no Público, José Manuel Fernandes, no artigo Derrotados?, propõe uma mezinha para a ressurreição da Europa. Segundo JMF, talvez «não seja inevitável sentirmo-nos derrotados como europeus se percebermos que o que hoje parece afastar irremediavelmente uma América triunfante de uma Europa acabrunhada teve origem no mesmo Velho Continente. E se sempre demos mais relevo ao Iluminismo francês, porque não questioná-lo à luz dos outros dois Iluminismos? [ JMF contrapõe aquele ao Iluminismo britânico]Talvez haja muito a aprender».

José Manuel Fernandes, os Iluminismos franceses, ingleses e alemães, para não referir os seus parentes mais pobres, não têm diferenças tão substantivas que possam justificar a Deriva dos Continentes que aflige Eduardo Lourenço. Há todavia no iluminismo francês uma diferença cortante, que está ligada à cabeça, mas não aos conceitos: os iluministas franceses que sobreviveram até 1793 foram todos guilhotinados!

A herança da França, do pensamento francês, mesmo o da direita, é a Revolução, que é glorificada no hino, com a sua letra sanguinária, nas comemorações da tomada da Bastilha, com as sua imponentes paradas militares, e cujos aspectos mais sanguinários do Terror, todos os intelectuais franceses (e da Europa continental) tentam branquear, ou varrer para debaixo do tapete. Mas esse vírus do terror e da intolerância como armas políticas ficou sempre latente na Europa Continental, agudizando-se nas épocas mais conflituais, elevado ao paroxismo do terror e da carnificina beligerante.

É essa a grande diferença entre os “Iluminismos” da Europa Continental e do mundo anglo-saxónico. Não é uma diferença em si, mas na forma como as suas heranças foram, ou não, subvertidas.

Notas:
(*) Ler, por exemplo:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus escrito em 4-Novembro-2004
Unilateralismo e poder escrito em 23-Janeiro-2003

(**)Basta observar a diferença entre a evolução da América anglo-saxónica e da América Latina. As gentes que as povoaram e moldaram as respectivas sociedades tinham vivências sociais diferentes, apesar de terem igualmente oribem na Europa.

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novembro 07, 2004

Intolerância Congénita

... Ou de Dreyfus a M Moore, passando por Lukacs ...

Uma parte não despicienda do espectro político da esquerda portuguesa perdeu o sentido das proporções, perdeu a noção do significado prático dos valores democráticos e perdeu o espírito de tolerância e do respeito pelas opiniões que não sejam absolutamente coincidentes com as suas.

Provavelmente estou a ser lisonjeira. Provavelmente esta esquerda a que me estou a referir nunca teve o sentido das proporções, nunca praticou os valores democráticos e sempre foi intolerante e totalitária.

Mas enquanto a esquerda foi oposição, o fragor da luta contra regimes frequentemente retrógrados, intolerantes e despóticos, obscurecia todas aquelas facetas. Quando a peleja é extremada e sem quartel, é-nos impossível, por vezes, distinguir onde acaba a bravura e começa a crueldade e a malevolência; onde há ética ou onde há apenas facciosismo. Porém, quando a situação se inverte, as dúvidas desaparecem e os que eram, de facto, bravos na época de sofrimento e opressão, revelam-se gente honrada, tolerante e sensata e os outros, os apenas cruéis e facciosos, revelam-se indignos, intolerantes e émulos dos ex-opressores.

Sempre tive, e tenho, simpatia pelos dreyfusards e pela sua luta, que tanta influência teve na História. Reconheço todavia que a maioria deles pôs, nesse combate, tanta intolerância e desdém pelos outros, como a direita militarista. Zola foi tão intolerante quanto o general Mercier. A diferença é que o Ministro da Guerra estava envolvido, embora na altura não o soubesse, numa fraude que fundamentava uma acusação falsa, enquanto Zola defendia a verdade, embora na altura não tivesse provas disso. Isso não invalida que Zola estivesse no lado certo e Mercier no lado errado.

Nessa disputa que, embora hoje esquecida, marcou a evolução futura da França, e não só, a tolerância, a racionalidade e o heroísmo estiveram na parte sã do exército francês, no coronel Picquart, um conservador, com preconceitos contra os judeus, mas que quando começou a analisar as provas que tinham levado Dreyfus à Ilha do Diabo, descobriu que o documento incriminador era forjado e pôs a verdade acima das suas convicções políticas e sociais, lutou e sofreu por essa verdade (foi expedido para a zona de combate mais perigosa do norte de África e esteve preso algum tempo) e a ele se deve o deslindar do caso, embora, se não fosse a agitação promovida pelos dreyfusards, aquele caso tivesse provavelmente caído no esquecimento e Picquart nunca fosse chamado a analisar as peças do processo Dreyfus.

Mas esta luta marcou o declínio da época da prevalência da objectividade e da racionalidade na procura da verdade. No mesmo dia (13 de Janeiro de 1898) em que era publicada no Aurore a carta aberta a Félix Faure (J’Accuse), o grupo parlamentar socialista reunia-se e a maioria decidia, a alguns meses das eleições seguintes, que não deve ir contra a opinião pública para seguir Zola, que era apenas um escritor burguês. Dias depois os deputados socialistas assinariam uma resolução distanciando-se das «duas fracções rivais da classe burguesa», de um lado «os clericais» do outro, «os capitalistas judeus». «Na luta convulsiva das duas fracções burguesas rivais, tudo é hipocrisia, tudo é mentira. Proletários, não vos envolvais em nenhum dos grupos desta guerra civil burguesa ... ». Esta posição só mudou quando Jaurés percebeu os dividendos políticos que obteria se apoiasse os dreyfusards.

O terramoto pelo qual passou a Europa, a partir do deflagrar da 1ª Guerra Mundial e da Revolução de Outubro (que hoje faz 87 anos), acelerou a degenerescência da objectividade e do racionalismo. Ao contrário do que Lukacs escreveu, a Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft) não se deu apenas no pensamento alemão que, segundo ele conduziu de Schelling e Nietzsche até Rosenberg e Hitler, deu-se igualmente pela emergência e divulgação do marxismo soviético, na sua forma estalinista, à qual aquele livro, publicado no ano anterior à morte do Pai dos Povos constituía uma respeitosa elegia. O que houve de perverso é que a verdade deixou de ser matéria objectiva, para ser matéria operacional: a verdade era a interpretação (ou mesmo a deturpação ou a invenção) dos factos que servissem os interesses da classe que tinha por missão histórica derrubar o statu quo existente, e quem faria essa exegese sobre o que era a “verdade” seria a elite política que se atribuía a si mesma a direcção daquela classe.

Aliás, já na História e Consciência de Classe (Geshichte und Klassenbewusstsein), Lukacs se havia empenhado em demonstrar que as ideologias de classe não são equivalentes e que a ideologia da classe proletária é a verdadeira, porque o proletariado, na situação que lhe impõe o capitalismo, é capaz, e só ele é capaz, de pensar a sociedade no seu desenvolvimento, na sua evolução a caminho da revolução, e portanto na sua verdade. No mundo capitalista, o proletariado, e só o proletariado, pensa a verdade do mundo, porque só ele pode pensar o futuro para lá da revolução.

A perversidade teórica de que a verdade é aquilo que serve os nossos interesses, individuais ou de classe, e que os factos não passam de meros empecilhos, agiu como um vírus que já viciara a extrema direita e contaminou toda a esquerda que foi influenciada pelo marxismo. Como a extrema direita foi posta de quarentena a seguir à 2ª Guerra Mundial, coube apenas ao marxismo, na sua forma degenerativa corrompida pela praxis político-filosófica, colonizar o pensamento da maior parte da esquerda e não só.

A responsabilidade do combatente deve sobrepor-se aos escrúpulos do intelectual. A crítica ideológica joga, com naturalidade, em 2 tabuleiros. Ela é moralista contra uma parte do mundo, aquela a que nos opomos, mesmo que seja aquela onde vivemos, e em extremo indulgente perante os movimentos que querem destruir esse mundo. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a “contra-revolução” ou é ministrada por um movimento radical ou revolucionário (ou terceiro-mundista, ou islamista ...). A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre aqueles que os querem destruir.

Basta citar o lamentável poema de Aragon no regresso do Congresso de Kharkov (1931), para nos apercebermos como o vírus da perversão da verdade e dos valores democráticos havia minado a base moral da nossa civilização:

O som da metralha acrescenta à paisagem
Uma alegria até então desconhecida
Estão a executar médicos e engenheiros
Morte aos que ameaçam as conquistas de Outubro
Morte aos sabotadores do plano quinquenal

A toda esta lamentável evolução se referiu então Julien Benda na La Trahison des Clercs, onde se dá conta daquela rotura. O intelectual era anteriormente o campeão do eterno, da verdade universal. «Os intelectuais de outrora afastavam-se da política pela ligação que estabeleciam com uma actividade desinteressada (Vinci, Malebranche, Goethe), ou então pregavam, em nome da humanidade ou da justiça, a favor de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas (Erasmo, Kant, Renan) ... Graças a eles pode dizer-se que, durante dois mil anos, a humanidade praticava o mal, mas honrava o bem. Essa contradição era o ponto de honra da espécie humana e constituía a brecha por onde podia passar a civilização».

Para Benda, os intelectuais contemporâneos dele (e os que lhe sucederam, digo eu) colocaram-se ao serviço das paixões políticas, tornaram-se intelectuais de fórum:«O nosso século deve ser realmente o século da organização intelectual dos ódios políticos»

Esta doença degenerativa da espécie intelectual, que afectou sobretudo, no mundo ocidental, os países onde a consciência cívica estava menos disseminada por toda a sociedade: França e países do sul da Europa, criou o estatuto do intelectual comprometido, do jornalista de causas. Sartre (na apresentação dos Temps Modernes) teorizou essa degenerescência, elevada por ele a postulado teórico. Quer se queira quer não, «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também ... as palavras são pistolas carregadas».

Este vírus tem sido endémico em toda a intelectualidade e jornalismo portugueses e tem vindo a condicionar, não apenas o discurso estritamente individual do plano ético, mas ainda e de forma excessiva o debate ideológico e político. Vejamos, a propósito disso, o comportamento dos nossos intelectuais da “verdade à medida dos nossos desejos”, face às eleições americanas. Comportamento aliás que não diferiu significativamente do que sucedeu no resto do Velho Continente.

George W. Bush foi permanentemente apresentado como um imbecil, ignorante, burro, em suma, um idiota chapado. Mas não será esta imagem excessiva? Pior, não é isto que os nossos doutos intelectuais têm pensado de todos os presidentes americanos. Carter, quando apostrofou a URSS devido à intervenção no Afeganistão e promoveu o boicote às Olimpíadas de Moscovo, foi igualmente alcunhado de imbecil e idiota. E a redenção do seu QI só começou a ocorrer quando ele se dedicou a missões “politicamente correctas”. De Reagan nem vale a pena falar. Milhões de pessoas desfilaram centenas de vezes, nas avenidas do Velho Continente, protestando coléricas contra a sua política de contenção da URSS, chamando-lhe os nomes mais ofensivos que encontraram nos seus dicionários. Bush pai teve sempre a fama de débil mental, ainda era Vice-presidente. Quanto a Clinton foi objecto das maiores zombarias, pela sua vida privada, e das maiores contestações, pelas suas decisões em matéria de política internacional (ex-Jugoslávia, bombardeamentos no Sudão e Afeganistão, etc.).

E Kerry seria melhor? Jon Stewart, o apresentador do Daily Show e ferrenho anti-Bush, perguntava há meses «porque será que uma mentira de Bush parece muito menos idiota que uma verdade de Kerry?». Kerry, que ao longo da sua vida política se tem notabilizado por uma completa incoerência e pelas cambalhotas mais inesperadas, não seria tentado, se fosse eleito presidente e para mostrar a sua “virilidade presidencial”, a tomar alguma atitude mais drástica que o seu antecessor?

Michael Moore e o seu Fahrenheit 9/11 tornaram-se, até à derrota de Kerry, um ícone para a intelectualidade “de combate e de causas”. Cannes deu-lhe a Palma de Ouro, a distinção máxima. Como é possível premiar aquele acervo de manipulações grosseiras, de omissões intencionais, de colagens forjadas? Leni Riefenstahl também ganhou a medalha de ouro da Exposição Mundial de Paris (1937), mas o seu Triumph des Willens (1935) é uma obra-prima e o seu efeito propagandístico não resulta de colagens forjadas ou de manipulações grosseiras: resulta do poder das imagens e dos acordes musicais, habilmente filmados e montados. Há manipulação pela arte de obter e coordenar as imagens e não pela fraude de colagens forjadas. O Triumph des Willens continuará a ser uma obra-prima do filme propaganda, enquanto o Fahrenheit 9/11 já está no caixote do lixo da História e da arte cinematográfica. Aliás, o Fahrenheit 9/11 estará mais próximo do Der Ewige Jude (1940) que do Triumph des Willens. Aqueles que o elogiavam interrogam-se agora se o filme não teria condensado «um dos erros políticos crassos da "intelligentsia" liberal americana e também da opinião pública europeia, a desconsideração de Bush em termos do chamado "dumb factor": que o homem é ignorante, burro e por aí adiante», como escreveu hoje um dos mais façanhudos «opinativos» (Augusto M. Seabra) e paladinos da “verdade que temos que transmitir”.

E este paladino da verdade “instrumental” mostra-se apreensivo porque se «quis atacar "Fahrenheit" em termos de "verdade" quando, suponho, a questão cinematográfica e ética que se coloca em cada documentário é o modo como interpela o real, para além da mais imediata visibilidade da qual não se deduz uma "verdade" imanente». Esta frase é o grau zero da racionalidade. Mais baixo que isto não se pode descer no totalitarismo informativo. Portanto a verdade não interessa, nem deve ser a medida da validade de um «documentário» ou «exposição de um facto». O que interessa «é o modo como se interpela o real», leia-se «como se distorcem os factos», para deduzir uma «verdade imanente», leia-se «a verdade do “intelectual de causas” liberta do empecilho incómodo dos factos». É esta a gente que defende a liberdade de expressão e verbera a alegada censura dos outros.

Entre a intelectualidade europeia (e portuguesa) o tom em que se fala da derrota de Kerry é o de um desastre civilizacional, não o de um acto em que os mecanismos políticos da democracia representativa funcionaram normalmente. Os jornalistas perguntam angustiados: John Kerry tinha o apoio esmagador dos mídia, ganhou os três debates televisivos com George W. Bush e, no entanto, perdeu. Será que televisões, imprensa e rádio estão a perder influência?

A resposta é simples: a opinião dos jornalistas tem uma influência poderosa. Infelizmente, para eles, influencia sobretudo a própria opinião dos jornalistas. O comportamento do eleitorado português é disso um exemplo paradigmático: em todos os referendos votou sempre contra a opinião dominante nos meios de comunicação.

Infelizmente os paladinos da “verdade a que acham que temos direito” nunca reconhecerão isso. Só após todo o lastro do irracionalismo induzido pelas ideologias que se digladiaram no século XX for destruído, e com ele o pensamento instrumentalizador desses paladinos, é que será possível regressar ao intelectual «campeão do eterno e da verdade universal ... de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas».


Ler ainda, sobre este tema:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus
O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (22) | TrackBack

novembro 03, 2004

O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Nunca, desde F.D. Roosevelt, houvera uma tão grande mobilização eleitoral. Nunca um candidato fora tão demonizado e acirrara tantos nomes sonantes contra si: Intelectuais, agentes culturais, actores e actrizes de Hollywood, cantores e bandas musicais (até Bruce Springsteen!), apresentadores das televisões, os principais jornais de referência e quase todos os políticos e intelectuais europeus se congregaram numa campanha maciça em favor de Kerry, ou melhor, contra Bush. Os jovens foram incentivados a recensearem-se e a votarem massivamente, para evitarem a possibilidade do regresso ao serviço militar obrigatório. Introduziram-se inovações: o swing eleitoral. Desde o multimilionário Georges Soros aos deserdados e oprimidos da sociedade, todos foram municiados, ou se municiaram a si próprios, com razões poderosas para afluírem às urnas e votarem responsavelmente. Nada foi descurado. E o resultado foi óbvio: votaram mais 15 milhões de eleitores em 2004 que em 2000. O trabalho de todos esses generosos activistas teve assim um merecido êxito. Estão de parabéns!

E o triunfo do candidato diabolizado também foi óbvio. O excesso de activismo no campo de Kerry deveu-se a uma esquerda fundamentalista para a qual Bush é a incarnação do mal. A esquerda fundamentalista tem uma enorme capacidade mobilizadora: empolga-se a si própria, pelo seu alarido e por nunca abdicar de trazer toda a sua tralha conceptual a terreiro (aborto, casamentos de homossexuais, etc.), elevando-se na exibição dos seus ícones ao êxtase ideológico mais absoluto e, simultaneamente, intimida, alerta e mobiliza os pacatos cidadãos que vêm ser postos em causa, de uma forma truculenta, definitiva e irrecusável, os seus valores e a sua mundividência.

E foi assim que toda a mobilização eleitoral, fruto de tanto empenho, conduziu a que Bush contasse, quando estão escrutinados 99 por cento dos distritos eleitorais, com cerca de 3,5 milhões mais que o seu rival democrata John Kerry. Bush obteve 58.640.799 de votos (51 por cento dos sufrágios escrutinados) e Kerry 55.101.702 (48 por cento). Bush, que tinha tido menos votos que Gore em 2000, inverteu a situação de forma substancial.

Igualmente o partido republicano conseguiu eleger, até ao momento, 231 representantes (ganhando 4 lugares) e os democratas 200, no total dos 435 lugares da câmara dos representantes, reforçando a sua actual maioria (há um congressista independente e estão 3 lugares por decidir). O Partido republicano reforçou também o controlo no senado. As projecções actuais indicam que os republicanos conseguiram eleger 55 dos cem lugares no senado, mais 4 do que já tinham. Os democratas ficam pelos 44 senadores (há um senador independente). O G.O.P. ficou pois com uma maioria substancial nas duas câmaras.

E tudo isto aconteceu após um mandato que foi desempenhado de forma muito discutível. Na condução da política externa americana, Bush cometeu diversos erros. A guerra do Iraque foi apresentada como preventiva face à existência das ADM. Ora não se verificou a sua existência. Em democracia, uma guerra não se deve basear numa hipótese falsa, mesmo que essa hipótese fosse considerada, a priori, credível. Após a queda de Saddam, os EUA têm gerido a situação de forma desastrada. Poucas forças no terreno, dissolução precipitada do exército e das forças de segurança iraquianas, saques, raptos, baixas militares e civis elevadas e caos generalizado. O panorama é pouco animador e não se prevê que melhore, com o os xiitas radicais e a quase impossibilidade de se realizarem eleições livres e justas. Entrar no Iraque foi muito mais fácil do que vai ser sair de lá. A guerra do Iraque também não parece ter contribuído eficazmente para a «guerra ao terrorismo». Teve um ponto em seu favor: enviou uma mensagem clara ao mundo político islâmico sobre os riscos que corriam, se tentassem desenvolver armas de destruição maciça. E essa mensagem foi, por exemplo, entendida pela Líbia. Igualmente a política económica de Bush (admitindo que teve uma política económica) não conduziu a bons resultados: agravamento monstruoso do défice externo, desaceleração económica apesar da queda do dólar, etc.

Outro erro, embora se trate de um erro partilhado, foi a clivagem introduzida nas relações entre os EUA e a UE. Todavia, essa clivagem não pode ser apenas levada a crédito do unilateralismo da administração Bush, mas também da nostalgia de grande potência de que sofrem alguns países europeus, mormente a França, que em matéria de situações como as do Iraque, ex-Jugoslávia, etc., não fazem nem deixam fazer ... e provavelmente já nem sabem, nem são capazes de fazer.

Se Bush revelou alguma incompetência na sua política externa e interna, embora se reconheça que o seu mandato viveu uma situação muito complexa (como o ter enfrentado um brutal ataque terrorista aos EUA), que exigia grande capacidade de decisão e uma grande determinação, o opositor que os democráticos escolheram como alternativa não augurava nada de bom. Kerry revelou-se um personagem errático, incoerente, de uma patente inabilidade em fazer passar as suas mensagens e com uma absoluta inconsistência de posições sobre os mais variados assuntos. Uma campanha eleitoral não poderia circunscrever-se em martelar permanentemente Bush. A campanha não poderia ser um filme de Michael Moore. A raiva, o ódio e a zombaria não servem para motivar um eleitorado, apenas para deliciar os próprios correligionários.

Assim, vitória de Bush não foi a derrota de Kerry. Kerry foi pouco mais que um títere submerso perante a militância furiosa dos seus activistas que lhe “roubaram” a campanha. A derrota foi da esquerda fundamentalista americana que parasitou o Partido Democrático; foi de todos os intelectuais bem pensantes que sempre olharam com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que tinha ascendido ao cargo de presidente contra a vontade da nação e mediante batota eleitoral; foi da comunicação social (americana e europeia) que, na sua maioria, amesquinhou Bush daquela maneira vil com que os detentores das verdades absolutas tratam os ignaros mortais; foi dos políticos franceses, nostálgicos das glórias napoleónicas; foi da velha Europa, achacada de reumatismo, que julga resolver os seus problemas com os outros, acenando apenas com o rol dos seus bens e o saldo da sua conta bancária.

Pirro teve vitórias que lhe foram mais custosas que derrotas. Mas os derrotados de 2 de Novembro são insensíveis aos custos, são menos clarividentes que Pirro: a esquerda fundamentalista (americana ou outra qualquer) continuará a não saber distinguir o essencial do acessório e a espavorir o eleitorado fora do seu círculo ideológico restrito; os intelectuais bem pensantes continuarão a olhar com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que ascendeu ao cargo de presidente em virtude da ignorância e imbecilidade do eleitorado americano; a comunicação social (americana e europeia) amesquinhará sempre Bush porque está na natureza dos detentores das verdades absolutas tratar os mortais ignaros com desdém; os políticos franceses continuarão nostálgicos das glórias napoleónicas; e a velha Europa só piorará os seus achaques de reumatismo ... a idade não perdoa.

Portanto, a única diferença será na forma, não no conteúdo. Alguns dirão que esta vitória concederá a Bush uma legitimidade acrescida. Improvável. A anterior vitória também era legítima, ainda que discutível e penosa ... levou mais de um mês a contar e recontar votos. Mas fora legitimada pelas instituições adequadas e reconhecida pelo adversário. Apenas, em vez da batota eleitoral, alegarão agora a estupidez do eleitor americano.

Publicado por Joana às 11:28 PM | Comentários (47) | TrackBack

setembro 09, 2004

Kerry arrasa Bush

As sondagens realizadas em 36 países dão uma vitória esmagadora a Kerry. Na Europa o desequilíbrio é mortífero: 74 por cento na Alemanha (onde apenas dez por cento votariam em Bush); 64 por cento em França, 63 por cento na Holanda, 58 por cento em Itália, 45 por cento em Espanha. Em todos estes países Bush recolheria apenas cerca de 10%. Mesmo no Reino Unido, fiel aliado da política Bush, este consegue unicamente 16 por cento, enquanto 48 por cento dos inquiridos prefere Kerry.

No Canadá, o desastre é enorme. Na Rússia, dois terços das intenções de voto vão para Kerry. Nos países muçulmanos, Bush é igualmente cilindrado.

No mundo ocidental somente a Polónia, onde Bush leva vantagem ao seu rival democrata (31 por cento para o primeiro, 26 por cento para o segundo), e os EUA, onde Bush têm uma vantagem algo mais significativa (11%), dão a maioria a Bush. Fora do mundo ocidental, apenas a Nigéria e as Filipinas dão vantagem a Bush.

Infelizmente para Kerry, os votos do resto do mundo não irão contar em Novembro. É injusto, pois a eleição do presidente americano interessa a todo o mundo. As decisões dos presidentes americanos afectam todo o globo. Não faz sentido que não sejamos chamados às urnas para escolher o presidente dos EUA. É uma das falhas mais dramáticas da democracia americana. Não percebo como esta lacuna antidemocrática passou despercebida a Tocqueville – provavelmente vivia ainda na ilusão que a França tinha peso nas decisões da política mundial.

Por isso temos todos que nos empenhar para, em próximas eleições, sermos chamados a participar na ida às urnas para a escolha do presidente americano. A actual discriminação é injusta e tem que ser eliminada.

Nos EUA, Kerry está atrás de Bush, porque os americanos receiam a sua política titubeante, que num dado momento apoia uma medida e, tempos depois, a sua contrária. Mas agora Kerry foi definitivo: prometeu, sem ambiguidades, retirar as tropas americanas no Iraque. E, para mostrar a sua determinação e comprometimento com o eleitorado, até fixou um prazo: 4 anos.

Podemos estar tranquilos: Se Kerry ganhar, os americanos vão retirar em 4 anos. Promessa sólida e firme.

Esta promessa faz-me lembrar a história da adolescente que deu guarida a um colega de estudo, com a condição de este dormir no sofá. Ela foi definitiva sobre isso e prometeu, com absoluta firmeza, que ficaria alerta contra eventuais segundas intenções do colega.

Durante a noite, o colega, quebrando a promessa, insinuou-se, subtilmente, debaixo dos lençóis. Mas a nossa adolescente estava alerta e prometeu a si própria continuar alerta. Minutos depois as mãos dele começaram a percorrer, lentamente, lascivamente, o corpo da vigilante adolescente. Todavia esta não se intimidou e permaneceu alerta como havia prometido. Assim, quando ele, acabados os preliminares, passou a vias de facto, ela ameaçou-o, inflexível, com dureza, intimando-o:

- Tens meia hora para tirar isso daí!

Publicado por Joana às 10:11 PM | Comentários (24) | TrackBack

julho 29, 2004

Clinton, Kerry e Churchill

Clinton, anteontem, na cimeira dos estadistas na situação de reforma, dirigindo-se aos que estariam preocupados com a actual direcção da política americana, citou Churchill:

«Os EUA fazem sempre aquilo que está certo, depois de esgotarem todas as outras alternativas

A capacidade de Churchill de sintetizar conceitos complexos em frases curtas, conjugando o rigor, o espírito e a subtileza oratória não tem paralelo na retórica política. Churchill respondia àqueles que, nos dois primeiros anos da 2ª Guerra Mundial, se inquietavam sobre qual iria ser a posição americana e se os EUA iriam intervir militarmente.

A frase de Churchill é admirável pela forma como espelha os avatares da política americana, quer nesse período terrível, em que o Reino Unido resistia sozinho à monstruosa máquina de guerra nazi, quer a generalidade das acções políticas americanas no após guerra, nomeadamente nos erros cometidos ao dirimir a questão iraquiana.

Clinton portou-se nessa cimeira como grande estadista que é, mostrando porque foi um dos maiores presidentes americanos, sabendo que ali deveria ser um político americano acima das dissensões internas, e guardando as críticas à administração Bush para o discurso que proferiu, nesse mesmo dia, na abertura da convenção do Partido Democrático. Mas mesmo aí criticou pela positiva, abstendo-se de palavras que pudessem pôr em causa os objectivos mais genéricos da política americana e da luta contra o terrorismo. Criticou os métodos, não os objectivos.

Todavia aquela frase de Churchill é de uma complexidade demasiada subtil para ser tranquilizadora. Quantas alternativas irá ainda esgotar G W Bush antes de acertar? E se Kerry ganhar, quantas alternativas irá ensaiar até acertar?

E será que o povo americano considerará Kerry uma alternativa viável a Bush? Bush tem perdido popularidade pela forma como tem conduzido a guerra contra o terrorismo e a intervenção no Iraque. A questão que se coloca é que Kerry não tem dado ao eleitorado americano, até agora, uma imagem de firmeza e segurança.

O eleitorado americano vê-se assim perante duas alternativas muito pouco motivadoras. O popular apresentador do Daily Show, Jon Stewart, ferrenho opositor de Bush, reconhecia há semanas, desolado: «Porque será que uma verdade proferida por Kerry parece mais idiota que uma mentira de Bush?».

Publicado por Joana às 12:21 AM | Comentários (10) | TrackBack

abril 07, 2004

Crise da Democracia ou Crise da Velha Europa?

A polémica sobre o recente livro de Saramago, e as suas declarações públicas, levantou a questão do valor e da legitimidade da democracia representativa. Não vou abordar aqui as raízes totalitárias em que normalmente se filiam as dúvidas que se levantam sobre esse valor e essa legitimidade. E não vou abordar porque considero redutor reduzir essas dúvidas a uma perversão totalitária. Essa perversão pode existir em quem questiona essa legitimidade, existe certamente nas consequências que a ilegitimação da democracia representativa normalmente acarreta, mas não existirá na generalidade das pessoas que possam aderir a esse conceito.

Há uma crise no nosso sistema político. As expectativas criadas pelo estabelecimento do modelo social europeu, e os seus desenvolvimentos subsequentes, estão a ser postergadas pela evolução de um conjunto de variáveis – declínio demográfico, emergência dos «Novos Países Industrializados», etc. – e pela incapacidade da classe política de adoptar uma estratégia capaz, coerente e constante, e conseguir explicá-la e obter a adesão das populações. Esta crise não tem directamente a ver com a Direita, o Centro ou a Esquerda. Existe em França, com um governo de direita e existe na Alemanha com um governo de esquerda.

Os governos da maioria dos estados europeus não conseguem gerir satisfatoriamente as respectivas economias, não conseguem reformar, de forma satisfatória e sustentada, o Estado Social, e não conseguem compaginar as necessidades de um e de outro e, perante o desconforto que sentem pela dificuldade das medidas, protelam-nas, titubeiam, tomam meias medidas incoerentes e causam danos a ambos sem resolverem os respectivos problemas.

Rosas assegura que a Europa está em crise, uma crise drasticamente agravada pela lógica essencial da globalização capitalista. Esta afirmação, aplicada à Europa, é um perfeito disparate. Quanto mais uma economia é desenvolvida, mais globalização lhe é benéfica. O mercado aproveita aos mais aptos. Por isso, os países mais avançados na lógica do mercado criaram, para a sua população, mecanismos de transferências sociais e instrumentos reguladores para compensarem as assimetrias introduzidas pelo funcionamento do mercado. Como no mercado internacional esses mecanismos não existem, são incipientes ou pontuais, os países mais pobres podem ver a sua balança de trocas com o exterior degradada e empobrecerem ainda mais. Mas a Europa (como um todo) não.

Outra tese do radicalismo de esquerda é a da existência de uma alegada «tensão autoritária e centralista contraditória com a democracia política e que está, paulatinamente, a esvaziá-la de conteúdo, a transformá-la numa burocracia ritualizada, cada vez mais distante dos cidadãos e com menos poder real, que pretende a destruição de mais de um século de conquistas sociais do mundo do trabalho». Essa «tensão autoritária» seria a tentativa dos governos democraticamente eleitos (de esquerda ou de direita) conseguirem reformular o modelo social de forma a adequá-lo às novas situações.

Porém, nunca como hoje, nas nossas sociedades, os cidadãos tiveram tantas possibilidades de participarem na vida pública. A difusão dos meios de comunicação aumenta incessantemente, as pessoas exprimem as suas opiniões em cada vez mais diversificados meios públicos (por exemplo, na net, fóruns, blogs, etc.). Basta ver como as manifestações em Espanha, na noite da véspera eleitoral foram convocadas pela net e telemóveis. Portanto, nunca, como hoje, o autoritarismo teve tão poucas possibilidades de se exercer. E os resultados das eleições espanholas são disso o exemplo mais recente e flagrante.

O problema do Rosas, Saramago, e de outros radicais de esquerda é que, nas urnas, as pessoas, maioritariamente, não têm escolhas idênticas às suas e que os governos não mudam de opinião ao acaso das manifestações de rua. São essas as «tensões autoritárias».

Portanto, a crise do nosso sistema político não tem a ver com «tensões autoritárias», nem com a globalização, nem com uma alegada conspiração para destruir as «conquistas sociais do mundo do trabalho». Tem a ver com a previsível falência do nosso modelo social (ou de toda a economia) que os políticos, quando na oposição, pretendem afincadamente defender, para angariarem votos, e, quando no governo, tentam desesperadamente reformar para evitar a bancarrota.

E tem a ver, e muito, com a falta de líderes capazes de mobilizarem as pessoas para essas reformas. É fácil, e dá dividendos políticos no imediato, distribuir dinheiro. É difícil, face a uma situação complicada e a previsões que apontam para a bancarrota, dizer as verdades, congeminar medidas eficazes e adequadas, e saber obter a adesão das pessoas .

Francamente não estou a ver, na Europa actual, um líder político, no dia do voto de confiança na sede da representação nacional, declarar «Não tenho nada para vos oferecer senão sangue, trabalho insano, lágrimas e suor» ("I have nothing to offer but blood, toil, tears and sweat."). Infelizmente também não vejo qualquer motivação quer da restante classe política, quer da população em geral em dar esse voto de confiança sem reservas mentais.

Também não estou a ver qualquer saída para a crise política actual. Esperemos que ela não surja apenas em desespero de causa, com custos muito superiores ao de soluções planeadas com tempo e discernimento.

Não há crise da democracia. Há uma crise da Europa que chegou ao fim de um ciclo e não atina com um novo modelo para encetar um novo ciclo. A Europa tornou-se numa «tia» de meia idade, ainda próspera, mas avessa a qualquer risco, e que vai deixando as suas economias serem corroídas pela inacção, por essa aversão ao risco.

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março 30, 2004

Uma Mulher de Armas

Ségolène Royal é uma mulher perante a qual não se fica indiferente. Magra, fotogénica, com um permanente ar estudantil apesar dos seus 50 anos, é bastante mais mediática na campanha directa, de rua, do que em debates televisivos, onde lhe escasseia o traquejo. A direita critica o seu «killer instinct» e o seu «populismo demagógico»; a esquerda ... a esquerda tolera-a porque lhe traz, inesperadamente, dividendos, além de ser casada com o 1º Secretário do PS, François Hollande. Aliás, Ségolène recusou na campanha eleitoral o apoio da velha guarda socialista, como o de Laurent Fabius ou de Dominique Strauss-Kahn, que também fizeram campanha na sua região, nas eleições cantonais. Apenas não recusou o apoio do seu marido.

Ségolène Royal é uma mulher que não abdicou da sua condição feminina para estar na política. Há anos foi criticada por se ter deixado fotografar, pelo Paris-Match, na maternidade, na cama com o seu quarto filho, recém nascido, misturado com os dossiers do Ministério do Ambiente, cuja pasta então sobraçava. Também a criticaram então por não se ter deixado substituir durante a gravidez. Ségolène Royal pretendeu mostrar, com aquele gesto, que uma mulher grávida pode conciliar a maternidade, a vida afectiva e a vida profissional ou política. Uma lição para aquelas que julgam que se extraem dividendos políticos, ou apoio popular, protestando contra a pretensa tutela estatal sobre o seu útero.

Enquanto ministra (ela foi sucessivamente ministra do Ambiente, do Ensino Escolar e da Infância e da Família) foi uma defensora acérrima da família, dos direitos da maternidade e contra a exploração sexual da publicidade, a pornografia e aquilo que considerava os abusos das imagens televisivas. Proibiu um anúncio da campanha contra a SIDA por considerar que continha imagens sexualmente ofensivas. Foi atacada por praticar a censura e pelo seu conservadorismo comportamental. Alcunharam-na de «mère pudeur».

Também impôs uma lei contra as praxes e os vexames inerentes a essas práticas, o que demonstra que tem uma coragem política que falta aos políticos portugueses (não falo do Pacheco Pereira que é um político falante, mas não actuante).

Nunca se deixou levar pelo politicamente correcto, mas apenas por um populismo de esquerda, muito ao estilo de Mitterand.

Ségolène Royal concorreu à região de Poitou-Charentes, onde se situa Deux-Sèvres, por onde tinha sido eleita. Poitou-Charentes tem uma área semelhante à do Alentejo e pouco mais de um milhão e meio de habitantes. O mundo rural é conservador, mas as capitais departamentais são socialistas. La Rochelle foi durante mais de um século o bastião da reforma protestante em França. Poitou-Charentes era o feudo do “Premier” Raffarin que abandonou o cargo, há 2 anos, pelo Matignon, deixando lá a sua sucessora, Elisabeth Morin, uma trânsfuga da esquerda. Foi esta a derrotada por Ségolène Royal. A sua vitória, que lhe valeu entre os socialistas o cognome de “la Zapatera”, teve retumbância por ser, por interposta pessoa, uma vitória contra Jean-Pierre Raffarin.

De facto, entre as eleições regionais de 1998 e as de agora, em Poitou-Charentes, houve um deslocamento de cerca de 10% de votos . Agora a esquerda teve 55,1 % dos votos (46,3% na 1ª volta) e em 1998 a distribuição tinha sido a seguinte: Esquerda Plural (36,02%), RPR-UDF (35,39%), FN (9,89%), Chasse-Pêche (6,58%), Direita diversos (4,12%), Esquerda diversos (3, 5%), Extrema esquerda (2,64%), Verdes (1,42%). Não foi um terramoto, mas foi uma vitória saborosa, por ter sido obtida sobre Raffarin.

Mais do que partidária, a vitória de Ségolène Royal, numa região algo difícil para a esquerda, foi uma vitória pessoal. Foi uma vitória que a tornou, de um dia para o outro, presidenciável.

Todavia, a vitória de Ségolène Royal tem os seus limites. Ségolène Royal afirmou que os resultados das eleições mostram que os franceses recusam o fim do sistema social francês. É um facto que alguns dos votos terão sido contra as reformas que Raffarin está a tentar introduzir no sistema social francês. Todavia esse sistema é financeiramente insustentável e terá que ser reformado e se não for a direita a fazê-lo agora, será a esquerda a partir de 2007, se conseguir suceder à direita. Poderá até acontecer ter de ser Ségolène Royal a fazer essa reforma.

Schroeder é socialista e está a braços com uma enorme contestação popular devido às reformas que está a tentar introduzir no sistema social alemão. Reformas que vão no mesmo sentido do das francesas. A única diferença entre um caso e outro é que quando a oposição é de direita, esta normalmente não contesta as reformas, e quando a oposição é de esquerda, esta tenta mobilizar a população contra as reformas.

Ségolène Royal, na sua passagem pelo governo, apenas sobraçou pastas em que se distribuem fundos. Distribuir fundos é fácil, às vezes fácil de mais. Falta-lhe a prova de fogo do exercício do poder em tempo de crise. Se a sua estrela a continuar a acompanhar, talvez a possa vir a ter a partir de 2007. Veremos então.

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março 25, 2004

Arafat e Sharon

Enquanto a demonização de Sharon é diária, implacável e furibunda, a Arafat tem-se perdoado todas as barbaridades cometidas, como se fossem pequenos erros de um herói sitiado e não a estratégia violenta e irresponsável de um líder cego pelo ódio e sem grandeza.

Não entendo, por exemplo, que se possa julgar Sharon por crimes contra a humanidade e não se queira julgar Arafat, à mão do qual se fez executar toda sorte de crimes, indiscriminados, sem nenhuma piedade e sem tremer. Desde sempre e até hoje mesmo.

Já não se trata somente do terrorista responsável pela chacina nos Jogos Olímpicos de Munique ou que aterrorizava as linhas aéreas instaurando o conceito do terror total, senão do homem que teve várias vezes nas mãos as chaves da paz e as rechaçou todas, empurrando o seu próprio povo para um processo permanente de destruição.

Falemos do Arafat de hoje, quando diariamente são ceifadas vidas de tantos civis que vão de transportes públicos para o trabalho, ou estão sentados em cafés, homens, mulheres e crianças, indiscriminadamente, sem lógica militar, apenas para instaurar um clima de terror.

Vítimas que não existem, porque no universo jornalístico europeu temos decidido que as vítimas só são palestinas e que os judeus mortos, no melhor dos casos, são pura contingência. Fala-se do massacre de Jenin e comparando-o ao Holocausto, mas nada se disse do facto de que os combates se reduziam a um espaço de 100 metros por 100 metros e que uma ONG tão pouco suspeita como a Human Rights Watch contabilizou os mortos: 52 palestinos e 23 soldados israelitas, além de 65 feridos. Quer dizer, foi um combate e não um massacre.

Pergunta pertinente: se os 52 mortos palestinos permitem equiparar Jenin com Auschwitz, com o quê se deveria comparar o milhão de mortos no processo de islamização do Sudão, ou os 100.000 mortos do integrismo argelino ou as 20.000 vítimas trucidadas por Hafez al-Assad na sublevação islamita de Hana? E os mortos palestinos do Setembro Negro?

As denúncias de corrupção financeira de Arafat, publicadas inclusive na imprensa do Kuwait não tiveram nunca repercussão significativa na imprensa europeia. E também não se disse nada do facto de que Mohammed Atta (um dos terroristas que pilotava um dos aviões sequestrados no dia 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos e arremessado contra as Torres Gémeas do World Trade Center, em Nova York) já havia perpetrado atentados em Israel e que, encarcerado em Israel, foi libertado graças aos acordos de Oslo e graças também à pressão do governo de Clinton.

O facto real é que a informação se converteu numa arma de guerra. Inclusive nas mãos de teóricos pacifistas.

Por isso me parece pertinente explicar porque o considero um líder nefasto. Primeiro, é um líder para a guerra, única linguagem que entende e não para a paz. Foi ele que alimentou a segunda Intifada e não contra Sharon, senão contra o trabalhista Barak, depois de haver recusado as propostas de Camp David.

Arafat não somente sabotou os acordos, mas também propiciou uma cultura do ódio nas escolas e permitiu que os imãs nas mesquitas pedissem o "extermínio dos judeus" . É certo que condenou alguns atentados, mas em inglês e para os meios de comunicação ocidentais. Só há pouco mais de um ano, perante a pressão americana, condenou em árabe uma acção terrorista. Arafat expressa realismo político quando fala em inglês. Em árabe, recorre a um populismo incendiário.

Arafat é um líder da guerra. Teve diante de si líderes israelitas, falcões e pombas, e sempre optou pela mesma via - a sistemática destruição de toda via de acordo. E um profundo desprezo pela vida humana, a vida de sua própria gente. Parece-me o pior dos líderes para uma causa que deveria ter estratégias de mais altura e maior sentido de justiça. Arafat não serve à causa palestina. Arafat perverte-a.

Adicionalmente, Arafat é um político corrupto. «Um relatório interno afirmou que a corrupção, a malversação de fundos públicos e a ineficiência no governo atingia níveis preocupantes e que quase a metade dos 800 milhões de dólares do orçamento fora desperdiçada. A comissão chegou a recomendar que três ministros fossem submetidos a julgamento, porém Arafat confirmou os três na reforma do gabinete».

Um relatório do FMI, sobre as contas bancárias palestinas, entre 1997 e 2003, cita que cerca de US$ 900 milhões dos fundos da Autoridade Palestina, financiados em parte por países doadores, teriam sido desviados para contas secretas em outros lugares, por gente de Arafat. E este relatório cita também que não se têm notícias do destino dado por Arafat a US$ 74 milhões, que estavam em suas mãos. Apesar de Arafat ter negado todos esses casos de corrupção dentro da Autoridade Palestina, mais de uma centena de membros da Fatah renunciaram colectivamente, exigindo mais democracia dentro do partido e dentro da Autoridade Palestina, como também exigindo o fim da corrupção naquelas instâncias.

Recentemente a justiça francesa abriu uma investigação sobre transacções multimilionárias relativas a contas bancárias de Suha Arafat, mulher de Yasser Arafat. Membros do governo francês disseram terem sido contactados pelo Banco da França, que teria descoberto que quase US$ 1 milhão por mês estava sendo transferido da Suíça para as contas de Suha Arafat. As translações totalizariam 9 milhões de Euros e teriam sido realizadas entre Julho de 2002 e Julho de 2003.

Sharon é um falcão e um belicista. Mas foi posto no lugar que ocupa pelo voto popular e sairá desse lugar pelo mesmo voto. Arafat está há cerca de 40 anos na direcção da OLP e só sairá de lá pela acção da natureza. Arafat já passou por meia dúzia de presidentes americanos e sobreviveu a inúmeros atentados e a dirigentes históricos de Israel, como Menachem Begin e Yitzhak Rabin. E sobreviverá, certamente, a Sharon.

E o que há de perversão na nossa sociedade é que é politicamente correcto diabolizar Sharon e santificar Arafat. Ora entre os dois ... venha o diabo e escolha. E que o diabo escolha de preferência Arafat, porque, se o fizer, o eleitorado israelita se encarregará, em seguida, de mandar Sharon para o diabo. Escolhe um, fica com dois e livra o mundo de um quebra-cabeças.

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Ódio e humilhação

Inúmeras têm sido as iniciativas que promovidas em todo mundo relativamente ao conflito no Oriente Médio. Desde os “Acordo de Oslo” em l993, até ao último plano americano, o Road Map, têm havido diversas iniciativas de paz. Todas tiveram um objectivo comum: a paz. Todos tiveram um obstáculo comum: o ódio.

Enquanto isto, milhares de vidas foram perdidas nestas quase 6 décadas de conflitos e o abismo entre o avanço social e económico dos israelitas e o atraso dos palestinos foi-se aprofundando.

Apesar da maioria da população dos dois lados ser, em teoria, favorável ao diálogo, qualquer acto de violência dos suicidas palestinos bem como a ampliação dos colonatos ou construção de novos, ou o avanço do muro de contenção israelita eliminam de imediato qualquer avanço conseguido.

Nas escolas, os jovens palestinos são doutrinados no ódio aos israelitas. Basta ler os manuais escolares subsidiados pelos dinheiros da UE. Recentemente uma cadeia de TV libanesa começou a apresentar uma novela síria baseada no “Protocolos dos sábios de Sião”. O "Os Protocolos dos Sábios do Sião" é uma fraude feita na Rússia pela Okhrana (policia secreta dos Czares), com o intuito de culpar os Judeus pelos males do país. Foi publicado privadamente em 1897 e tornado público em 1905. É copiado de uma novela do século XIX e afirma que existe uma cabala secreta Judaica conspira para conquistar o mundo. A base da história foi criada por um novelista alemão anti-semita chamado Hermann Goedsche que usou o pseudónimo de Sir John Retcliffe. O seu propósito era politico: reforçar a posição do czar Nicolau II apresentando os seus oponentes como aliados de uma gigantesca conspiração para a conquista do mundo. Hitler usou este livro na sua campanha anti-semita.

Destila-se assim a forma mais letal de anti-judaísmo nas populações que deveriam estar recebendo uma orientação em prol da paz e do entendimento.

A primeira intifada recebeu as simpatias gerais no mundo ocidental e levou ao triunfo dos moderados nas eleições israelitas e aos acordos de Oslo. Mas a primeira intifada não se baseava no terrorismo e constituía de facto a imagem da luta de David contra Golias. O exército israelita sentia-se pouco à vontade a lutar contra miúdos e adolescentes que atiravam pedras. Foi o momento alto da causa palestina.

Com avanços e recuos, o processo foi avançando até Ehud Barak, mesmo com as contrariedades resultantes do assassinato de Rabin. Barak prosseguiu a política de Rabin: transferência de mais territórios para a AP; retirada do sul do Líbano (24-05-99); negociações de Camp David (15-20 Julho 2000).

Em Camp David, a proposta de Clinton previa a criação de um estado palestino com 95% da Cisjordânia e toda a Faixa de Gaza. Os palestinos também teriam soberania sobre regiões árabes de Jerusalém e parte do local conhecido pelos judeus como Esplanada das Mesquitas e pelos muçulmanos como Monte do Templo, embora Barak afirmasse que não entregaria aos palestinos toda a área do Monte do Templo, considerada sagrada tanto por judeus como por muçulmanos.

Outro entrave à aprovação da proposta norte-americana foi o destino dos refugiados palestinos. Segundo os planos de Clinton, apenas uma pequena parcela deles poderia voltar para as cidades onde viviam (eles ou os seus antepassados) antes da criação de Israel, posição contestada pela AP.

Enquanto se discutia uma maneira de retomar o diálogo, o líder do Likud (partido de direita), Ariel Sharon visitou a Esplanada das Mesquitas (28-09-00), acto considerado como uma violação de um local sagrado do islamismo, o que serviu de pretexto para a nova intifada. Esta intifada foi aproveitada por Arafat, para obter dividendos políticos. Todavia, essa estratégia redundou em fracasso.

Para começar, Arafat nunca tentou impedir a militarização do segundo levantamento. A primeira Intifada em 1987 foi um movimento popular durante o qual a violência se limitou ao lançamento de pedras contra as forças ocupantes. Foi essa a sua força, pois era uma força moral. Na segunda ocasião as pedras foram substituídas por pistolas e metralhadoras. Arafat optou por usar a violência como ferramenta de negociação, recusando as mais favoráveis condições que já haviam sido até então propostas para obter a independência palestina num contexto de paz. Todavia, apesar das armas, os combatentes palestinos não podiam fazer frente ao poderio muito superior do Exército israelita.

Adicionalmente, os movimentos radicais Hamas e Yihad e depois as Brigadas dos Mártires da Al Aqsa recorreram a outros tipos de armas, perpetrando ataques suicidas em território israelita. Com essa nova estratégia, os palestinos não apenas perderam o apoio que ainda recebiam de movimentos pacifistas como também de toda a comunidade internacional. Os palestinos perderam a força moral da primeira intifada e não tinham meios para ganharem pela força das armas.

Porquê a sua recusa? O que Arafat realmente queria? Como ele nunca declarou explicitamente o que queria, resta especular sobre algumas possibilidades:

1) Arafat não conseguiu reunir coragem ou vontade para vencer as pressões dos grupos palestinos mais radicais, que recusam a paz e a convivência com Israel. Mesmo percebendo a oportunidade, não quis arriscar o que Barak arriscou: enfrentar sua própria gente e convencê-la de que só com concessões mútuas poder-se-ia construir uma solução que fosse o início de um processo de paz verdadeiro. A partilha de Jerusalém como capital, o estabelecimento do Estado palestino, a cooperação económica, seriam o máximo de concessões exigíveis de Israel já no início do processo de convivência pacífica.

2) Arafat não quis aceitar uma solução a não ser em seus próprios termos e com a satisfação de 100% de suas exigências. Diante de uma proposta de conciliação irrecusável, as únicas alternativas são aceitá-la ou romper a negociação, exactamente para não ter de aceitá-la. A exigência de última hora de Arafat, que ele sabia muito bem não poder jamais ser aceita por Israel, foi a "volta de 3 milhões de refugiados" palestinos, não ao futuro Estado palestino, mas para dentro do Estado de Israel (Yaffo, Haifa, Tel Aviv, Bersheva, etc).

3) A AP nunca quis realmente uma paz definitiva com Israel e, na verdade, nunca teria abandonado seu objectivo estratégico de acabar com Israel como Estado judeu. Para isso, como está definido na Carta Palestina, as negociações e o Estado palestino seriam apenas uma etapa. A possibilidade de um Estado palestino com compromissos de paz e reconhecimento de Israel seria uma ameaça a esse princípio. O imigração de mais de 3 milhões de palestinos para um estado que tem 4,5 milhões de judeus e 1 milhão de palestinos seria o imediato desequilíbrio demográfico de Israel e a sua descaracterização.

Desmoralizado e sem apoios dentro do próprio partido ou dentro da coligação que o apoiava, Barak perdeu a eleição de 6 de Fevereiro de 2001 para Sharon, que fez a sua campanha atacando os acordos de Oslo. O prémio Nobel da Paz, Shimon Peres, tradicional adversário trabalhista de Sharon, aceitou ser seu ministro dos Estrangeiros num governo de coligação. Seria uma força de moderação dentro do governo, afirmou. Acabou por fazer o papel de ramo de salsa no leitão da Bairrada.

Depois dos atentados de 11 de Setembro, o primeiro-ministro Ariel Sharon tentou convencer o presidente Bush, de que a luta contra Arafat era idêntica à luta contra Osama bin Laden, passando por cima da diferença entre a resistência nacional palestina contra uma ocupação ilegal e a guerra santa declarada por um extremista muçulmano. Nesta argumentação Sharon foi ajudado pelos radicais palestinos que, pelas suas acções terroristas, ajudaram a mostrar que afinal não haveria diferenças entre eles e bin Laden. As organizações palestinas que se dedicavam a actos terroristas foram classificadas como organizações terroristas, quer pelos EUA, quer, depois, pela UE.

Após alguns sangrentos atentados palestinos, o governo norte-americano deu luz verde para uma praticamente total reocupação israelita da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, assim como o isolamento de Yasser Arafat. Com isso se desmantelou definitivamente o acordo de Oslo.

Passaram-se mais de 3 anos de conflito e foram perdidas mais de 4 mil vidas com 10 mil feridos e, entretanto, um novo ataque teve como motivo o mesmo local. Dessa vez, o pretexto para a violência foi a visita de um árabe muçulmano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egipto, que viera a Israel em missão de paz. Ahmed Maher recebeu, na ocasião, a mais humilhante agressão a um árabe, segundo a tradição da região, quando dezenas de sapatos foram atirados em seu rosto enquanto iniciava suas orações na mesquita de Al Aqsa. Aos gritos de traidor, radicais palestinos atacaram o visitante que teve que ser transportado para um hospital israelita.

Este episódio demonstra quão cego e profundo é o ódio reinante nas massas palestinas. Os atacantes são moradores da Jerusalém Oriental, onde os mentores do “Acordo de Genebra” propõem instalar a capital do futuro Estado palestino. Fica difícil imaginar o avanço desta proposição nas actuais condições.

Arafat está entretanto politicamente queimado perante a comunidade internacional. Condena formalmente os actos terroristas, mas não impede na prática que eles se façam; tirou o tapete debaixo dos pés de Abu Mazen, considerado um interlocutor válido para levar o processo de paz a bom termo e levou-o à demissão.

Quanto a Sharon, foi uma criação dos radicais palestinos. É o terrorismo destes que o sustenta. Se for apeado do governo, sê-lo-á por outro mais radical, como Benjamin Netanyahu.

E assim continuaremos, enquanto a melhor oferta de uma das partes nunca for suficientemente boa para a outra.

Publicado por Joana às 07:50 PM | Comentários (15) | TrackBack

março 23, 2004

Israel e Palestina - A Questão dos Refugiados

As fronteiras de 1948/9 entre Israel e a Palestina decorrem da guerra que os países árabes fizeram a Israel, por não concordarem com a resolução da ONU, e na qual foram derrotados. Essa conflagração fez com que 600.000 palestinos se tornassem refugiados, como foi escrito no texto anterior.

Comparemos o problema israelo-árabe emergente da guerra de 1948, com a questão alemã resultante da derrota de 1945.

No início de 1949 estava estabelecido o estado de Israel, dentro de fronteiras aceites pelo armistício imposto pela ONU e assinado pelos estados árabes vizinhos.

Não reconhecer estas realidades tem, objectivamente, o mesmo significado que os alemães não reconhecerem a anexação da Posnânia, Silésia, Pomerânia Oriental e Prússia Oriental após a 2ª Guerra Mundial, em 1945.

Com a agravante que os alemães têm razões de queixa muito mais poderosas. Não ficou praticamente um alemão dos cerca de 10 milhões que habitavam aquelas terras, ao passo que na parte da Palestina que coube a Israel vivem hoje mais de 1 milhão de árabes.

Para além disso, houve a expulsão de 3 milhões de alemães dos Sudetas ao abrigo de uma lei promulgada por Benés, um democrata certificado pelas potências ocidentais. Os alemães dos Sudetas foram punidos em bloco, pela anexação resultante dos acordos de Munique.

Podemos discutir a legitimidade dos tratados e das leis que levaram à expulsão de 13 milhões de alemães e concluir que, hoje em dia, tal não deveria ser possível. Todavia as fronteiras actuais de Israel datam de 1948, uma data contemporânea dos tratados e leis que legitimaram o êxodo alemão e, portanto, dos conceitos que estiveram na sua base.

A diferença, na década de 40, entre os alemães e os árabes, é que aqueles auxiliaram os refugiados, aceitaram-nos, criaram-lhes empregos, integraram-nos na sociedade e permitiram que tivessem uma vida digna, enquanto os árabes mantiveram-nos, desde sempre e na maioria dos casos, em campos de refugiados, em condições sub-humanas, tentando utilizar o seu desespero como arma de “revanche”. Os refugiados palestinos são deixados pelos seus irmãos palestinos, e árabes em geral, em campos miseráveis, com o intuito de serem usados como arma contra Israel - quer como terroristas, aproveitando o seu desespero, quer para comover a opinião pública.

Várias gerações nasceram, cresceram e muitos morreram nestas condições. Em 1948 eram 600 mil e hoje estima-se que sejam cerca de 3 milhões.

O que se diria se os refugiados alemães vivessem em campos miseráveis, junto às fronteiras com a Polónia e R. Checa, desesperados e incentivados a fazerem ataques suicidas no outro lado da fronteira? Seriam apelidados de "revanchistas" e acusados de serem da extrema-direita.

Uma das chaves para a solução da questão israelo-árabe passa por encontrar uma solução alternativa ao regresso daqueles refugiados a Israel; regresso que nunca será aceite pelos israelitas pois alteraria drasticamente a demografia do estado, sem falar nas questões logísticas: Onde ficariam? que fariam? etc.. As casas dos seus antepassados já não existem, a paisagem urbana e rural alterou-se completamente.

Aliás, falar em regresso não faz sentido, porquanto a quase totalidade dos refugiados não nasceu no actual território de Israel.

Foi essa a principal razão que levou à ruptura das conversações de Ehud Barak com Arafat sob o patrocínio de Clinton. Ruptura que conduziu, directa ou indirectamente, à segunda Intifada e à espiral de horror dos últimos quatro anos. Arafat tentou pressionar Barak através da intifada, mas o que conseguiu foi o óbvio - a eleição de Ariel Sharon e a subida ao poder dos falcões israelitas.

Enquanto os refugiados forem usados como arma política, não haverá solução.

Publicado por Joana às 11:01 PM | Comentários (24) | TrackBack

março 18, 2004

Zapatero

Não levo muito a sério as declarações de Zapatero sobre a retirada espanhola. Ele aliás teve a prudência de dizer que vai mandar regressar as tropas espanholas do Iraque se não houver "novidades" na situação interna daquele país até ao dia 30 Junho, data prevista para a transferência de soberania. E a sua «prudência» foi não ter especificado quais as «novidades» que seriam necessárias para que os 1300 soldados que Espanha tem no Iraque, desde o Verão de 2003, regressassem a casa.

Sabe-se da pouca firmeza que Zapatero tem mostrado ao longo do seu percurso político. Sabe-se que foi essa falta de firmeza que fez com que o PSOE, apesar da questão do Prestige, apesar do apoio à intervenção no Iraque, muito impopular em Espanha, apesar da arrogância de Aznar, aparecesse abaixo do PP nas sondagens anteriores ao atentado. O tempo dirá se Zapatero vai levar à letra o que disse na noite da vitória eleitoral.

A sua estatura política revela-se contudo nas declarações que fez. Ao fazê-las na noite da vitória, sublinhando ainda que George W. Bush, e Tony Blair, "devem fazer a sua autocrítica" sobre a guerra no Iraque, deu um claro sinal à Al-Qaeda de que o atentado tinha sido um triunfo. Tudo indica que o eleitorado espanhol deslocou o seu voto do PP para o PSOE, exasperado pelas mentiras e pelas tentativas de manipulação da informação dos dirigentes do PP e não por causa da presença espanhola no Iraque. As palavras de Zapatero permitem todavia à Al-Qaida uma interpretação diferente e perversa e Zapatero deveria sabê-lo.

Zapatero tem toda a legitimidade para ter as opiniões que proferiu sobre Bush e Blair e tem toda a legitimidade para mandar retirar as tropas espanholas do Iraque. Mas ao dizer uma coisa e a outra na noite da vitória deu um evidente sinal de triunfo à Al-Qaida. Um político com estrutura dorsal, e com as opiniões de Zapatero, evitaria, na noite da vitória, trazer aqueles assuntos à colação e centraria a sua condenação no terrorismo. E, quando o clima emocional se apaziguasse e não fosse tão clara a ligação entre uma coisa e outra, tomar a decisão pública de repatriamento das tropas do Iraque e dar conselhos públicos a Bush e Blair.

Ora Zapatero deu a chancela do triunfo à Al-Qaida e fez uma promessa ambígua de retirada, que só o futuro dirá se irá ou não cumprir. Aumentou a apetência da Al-Qaida por atentados na Europa Ocidental, nomeadamente próximos de actos eleitorais e para os influenciar, a troco de nada, ou de quase nada. Zapatero deu mostra pública das razões pelas quais o eleitorado espanhol tinha muitas dúvidas sobre a sua capacidade e convicções.

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março 17, 2004

A Situação Actual, a História e as suas Lições

Não foi apenas para registar efemérides que nestes últimos dias, e não só, escrevi diversos textos sobre acontecimentos que precederam a Segunda Guerra Mundial.

Se esses textos forem lidos com atenção, verificar-se-á que escrevi-os tentando pôr-me no papel de um observador contemporâneo desses acontecimentos, interpretando-os à luz do que tinha ocorrido até então, evitando que essa interpretação fosse afectada pelos acontecimentos posteriores. E várias vezes chamei a atenção que muitos dos factos ocorridos, se hoje em dia os julgamos de grande malevolência, na época poderiam ter, e tiveram, uma leitura muito diferente e apaziguadora.

Ora hoje em dia, como então, o nosso julgamento tem apenas como premissas os factos recentes e passados. Não sabemos o que se vai passar no futuro, nem somos capazes de julgar as nossas acções actuais com o entendimento dado pelos factos subsequentes, que sobrevierem até ao fim deste processo.

Aliás, o próprio Julgamento de Nuremberga, ao trazer à colação factos ocorridos antes do golpe de Praga (Março de 1939) e incriminando diversas personalidades políticas devido a eles (von Papen e von Neurath, por exemplo) deu uma imagem de «Vae victis!» ao seu juízo. Na verdade, todos aqueles actos foram aprovados pelas potências ocidentais e o próprio acordo de Munique e os seus signatários foram acolhidos em delírio pelas massas das democracias ocidentais. Portanto, repito, os juízes de Nuremberga, ao trazerem à colação os factos ocorridos antes do golpe de Praga, deveriam igualmente ter constituído arguidos todos os políticos ocidentais que tinham dado o seu assentimento às sucessivas exigências de Hitler e as populações de Paris e Londres que se manifestaram com tanto entusiasmo à chegada de Daladier e de Chamberlain. Não foram apenas Daladier e de Chamberlain que capitularam em Munique perante Hitler – foram as populações francesa e britânica, principalmente a primeira, foram os políticos do Front Populaire que, enquanto a Alemanha se rearmava a grande ritmo e de uma forma clara, deixaram que o exército francês se tornasse obsoleto perante o alemão e que a sua força aérea se tornasse uma arma de segundo plano, tudo em nome de valores que então tiveram grande acolhimento e respeitabilidade.

Mas o entendimento então não era, de forma alguma, que tinha havido capitulação, nem na ocupação da Renânia, nem no Anschluss, nem sequer em Munique. Tinha havido apenas uma vitória da paz e da concórdia sobre a guerra. As forças da paz tinham vencido as forças da guerra. Só alguns detractores se atreviam então a falar de capitulação.

A situação actual terá que ser vista com mais discernimento do que a geração de então, que assistiu aos acontecimentos entre 1933 e 1939 e permitiu que tudo aquilo ocorresse. Temos no mínimo a obrigação de ter aprendido alguma coisa com esse passado. Não estou a tentar estabelecer mecanicamente qualquer ligação entre as duas situações, nem insinuar que bin-Laden é o equivalente de Hitler e Zapatero poderá ser a reencarnação de Daladier. Estou apenas a afirmar que se nos enganarmos agora e formos vítimas desse erro, não seremos nós que daqui a alguns anos ou décadas iremos fazer a análise histórica das tragédias que ocorrerem. Serão outros, e provavelmente tanto ou mais cáusticos e acusadores relativamente a nós e aos políticos actuais, como nós temos sido relativamente aos políticos ocidentais e ao espírito pacifista e capitulacionista do período entre as duas guerras.

Transigir julgando obter uma paz com honra, não é solução. Não haverá honra na transigência, nem se conseguirá a paz, antes maior pertinácia e sobranceria na agressão. Foi assim então, será assim agora.

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março 16, 2004

A Espanha e o Terrorismo

A sequência dos últimos acontecimentos em Espanha tem tido várias leituras.

No que respeita à acção terrorista há uma unanimidade formal na sua condenação. Todavia, adjectivo-a como formal, porque não sei em que medida alguns sectores ou comentadores não a condenarão por tal ser o “politicamente correcto”.

No que respeita aos resultados eleitorais, a opinião mais veiculada, idêntica à que escrevi aqui na noite eleitoral, é a de que a vitória do PP é a punição, pelo eleitorado, pela forma desastrada como o governo espanhol geriu a informação sobre o massacre do 11 de Março, entre esse dia e o dia das eleições.

Não sei, com certezas, o que levou o governo espanhol, nos dias 12 e 13, a adoptar aquela postura, pois não estava por dentro do seu pensamento; mas, em política, o que parece, é. E a leitura objectiva das suas acções foi que, por motivos de obtenção de dividendos eleitorais, apostou em força na «pista ETA». E mesmo quando essa pista se começou, rapidamente, a revelar improvável, e a «pista islâmica» assumia relevância, o governo espanhol continuou a apostar publicamente na «pista ETA», talvez convencido que as informações contrárias só viriam a público depois de terminado o acto eleitoral. Ora numa sociedade aberta esta convicção é de uma tremenda ingenuidade. É certo que ninguém, a não ser ele próprio, poderá afirmar que ele usou deliberadamente essa estratégia. Todavia a sequência dos factos transmite essa imagem, inexoravelmente.

Uma outra leitura afirma que o PP foi punido pelo seu envolvimento activo na política de Bush no Iraque. Não partilho dessa opinião embora reconheça que o eleitorado espanhol não era favorável àquela política. Basta ver que, apesar do caso “Prestige”, onde o governo de Aznar teve um comportamento miserável, a raiar o desinteresse e a insensibilidade, e do apoio à intervenção no Iraque, bastante impopular em Espanha, o PP havia recuperado bastante, quer pela gestão económica, quer pela falta de convicção da figura de Zapatero, e, nas vésperas do atentado, estava ligeiramente acima do PSOE.

Estive em Espanha durante a primeira semana da guerra e fiquei surpreendida com o tom dos meios de comunicação. Quem lesse os jornais, ouvisse a rádio, ou visse a TV ficava com a convicção que Aznar, contra vontade do povo, havia empenhado importantes efectivos beligerantes na guerra do Iraque. Os edifícios das câmaras do PSOE estavam repletos de propaganda contra a guerra. Longos paramentos anti-Aznar e anti-Bush pendiam nas fachadas dos edifícios camarários. Eram as próprias câmaras que produziam aquela propaganda, uma situação que seria impensável no nosso país. Em Madrid havia batalhas campais.

A questão é que, embora o eleitorado espanhol estivesse maioritariamente contra a intervenção no Iraque e contra outras políticas de Aznar, deveria provavelmente lembrar-se que a anterior governação socialista havia caído no meio da maior das corrupções e marasmo económico e que a governação do PP tinha trazido à Espanha prosperidade económica e importância geo-política.

Portanto, antes do atentado, o envolvimento da Espanha no Iraque não constituia motivo para deslocamentos significativos dos votos.

Todavia o cúmulo da questão iraquiana com as omissões, ou mentiras, dos governantes espanhóis no que toca ao atentado, poderia ter potenciado o efeito dessa inábil gestão da informação e ter levado à deslocação de parte do eleitorado para o PSOE. Nessa medida, indirectamente, é possível que tenha havido uma punição pelo envolvimento no Iraque. Após as legítimas dúvidas sobre quem mentiu acerca das ADM do Iraque, mais este chorrilho de mentiras ou, no mínimo, omissões, fez transbordar a taça.

Mas aqui entronca uma questão perversa. Se o atentado favoreceu, ou pode ter dado a imagem de ter favorecido, uma mudança da política espanhola, então a Al-Qaida, ou qualquer um de nós, pode concluir que o atentado teve dividendos políticos, que a intromissão do terror no funcionamento da democracia conduziu a uma espécie de cedência à chantagem terrorista. Por esta leitura, seria a primeira vez que o terror islâmico, baseado na matança indiscriminada, conseguiria esse desiderato. A Al-Qaida pode concluir que votou, com um peso significativo e determinante, nas eleições de um país em terras de infiéis.

Mas isto leva a colocar outra questão igualmente perversa. Se nas vésperas de uma próxima eleição num país igualmente envolvido no Iraque, e há 33, houver um atentado deste género, a quem a opinião pública respectiva irá pedir responsabilidades: ao seu governo, por ter apoiado Bush, ou aos eleitores espanhóis alegadamente acusados de capitularem perante o terrorismo e de lhe mostrarem que o crime compensa?

Portanto, transformar a vitória do PSOE numa bandeira da oposição à guerra do Iraque, pode ser tentador para muita gente. Mas é desonesto, porque o dado novo foi o atentado e não a intervenção militar. E é perverso, porque premeia objectivamente as intenções dos que fizeram os atentados e põe o labéu de cobarde a um eleitorado que certamente não o merece, pela forma como nunca capitulou perante o terrorismo da ETA.

É que faz toda a diferença ser-se contra a guerra do Iraque porque não a consideramos legítima, ou porque temos medo que o nosso apoio seja cobrado com a própria vida, nossa e dos nossos.

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março 14, 2004

O Terrorismo

A forma como nos estamos a comportar perante a ameaça terrorista vai moldar a nossa sociedade no futuro.

Em primeiro lugar tem que se reconhecer que nada justifica o terror. Nem em Madrid, nem em Nova Iorque, nem em Israel. E igualmente no Iraque, nada justifica os ataques terroristas contra a ONU, a Cruz Vermelha, a polícia, as filas de civis à espera de emprego, as mesquitas, etc.

Esta afirmação não deve porém escamotear que o fenómeno terrorista tem causas e que essas causas têm que ser tomadas em consideração, no processo de erradicação do terrorismo. Todavia, o terrorismo tem uma característica que é geral – mesmo quando ele se inicia como uma tentativa de lutar contra um poder mais forte, com as armas “possíveis”, ganha progressivamente autonomia ideológica e material. As motivações iniciais passam a ser meras referências sem densidade material – País Basco, Palestina, os novos cruzados, os infiéis, etc.. O terrorismo cai nas mãos dos operacionais, sem conteúdo político, cujo único objectivo é o terror, pelo terror.

O Vietcong ganhou a guerra do Vietname sem basear a sua acção no terrorismo. Usou a guerra convencional e a guerrilha, rural ou urbana, mas não o terrorismo. Ganhou a guerra política e militarmente. Aliás, a sua vitória política foi a alavanca para a vitória militar: esta não teria sido possível sem aquela. Portanto não é possível sustentar que o terrorismo não passa da "resistência ao opressor". Mesmo que remotamente tenha tido essa origem, perdeu-a depois, pela sua própria lógica interna de funcionamento.

A estratégia do terror é a da manipulação de consciências e das vontades através da espada de Damocles da matança indiscriminada, do morticínio em larga escala, do holocausto. Ao terror não se pode responder pela capitulação ou tentando passar desapercebido – o terror é cego e absurdo. Da lógica de um alvo preciso a abater, passou-se para a lógica da massa humana indiferenciada: Os alvos do terrorismo serão cada vez mais imprecisos e indetermináveis. O terrorismo precisa disso, dessa lógica cega e absurda, para implantar o terror absoluto e minar a vontade e as consciências.

Não ... não é inteiramente verdade o que acabei de escrever. Há alvos privilegiados do terrorismo: os que querem promover a paz. Frequentemente há uma lógica do “quanto pior, melhor”. Foi essa lógica, utilizada pelos terroristas palestinianos, que levou Sharon ao poder. Foi essa lógica que tem concorrido para minar o movimento independentista basco, desacreditando as forças nacionalistas.

O terrorismo é uma guerra de nós todos, porque pode atingir qualquer um de nós.

O PP perdeu as eleições porque persistiu na publicitação da “pista ETA”, quando os próprios serviços secretos já haviam enveredado pela “pista islâmica”. Num regime “fechado” poderia ser uma táctica frutuosa; num regime aberto, revelou-se um desastre. Veio a lume e, ao saber-se, passou para o eleitorado a ideia de que o PP preferia a “pista ETA” porque lhe traria dividendos políticos, enquanto a “pista islâmica” poderia acarretar-lhe prejuízos. Todavia a mentira, ou a omissão, causou-lhe certamente prejuízos muito maiores.

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dezembro 15, 2003

Nós e a nossa Negação

Há um espectro que assombra a nossa civilização: o espectro da sua negação, da negação dos seus valores.

Todos os grupos e facções radicais de esquerda e de direita, extensas áreas da esquerda alegadamente não radical, democratas participativos, adeptos da antiglobalização, altermundialistas , estalinistas, trotsquistas, comunistas, ex-comunistas e comunistas "renovadores", ecologistas anticapitalistas, socialistas Ana Gomesistas, Ferristas e Santos Silvistas, adeptos de José Bové e da Confédération paysanne, vítimas masoquistas da dieta assassina dos MacDonalds, etc., etc., se aliaram na protagonização deste espectro e no fornecimento dos respectivos adereços – os lençóis, os 2 tenebrosos orifícios oculares, as correntes de ferro fundido arrastando-se no empedrado, os sons lúgrubes, as paredes de granito sulcadas pela erosão dos séculos, os uivos lamentosos, etc., etc..

A negação dos nossos valores, o vilipêndio da nossa cultura tem tomado expressão, desde longa data, no apoio aos ditadores terceiro-mundistas desde que eles se proclamem, na sua retórica, como anti-imperialistas ou, ultimamente, antiglobalização. Esse apoio compreende a sua justificação, a sua desculpabilização e, inclusivamente, o enaltecimento dos seus valores culturais, face à nossa cultura colonialista, imperialista e globalizadora. Só os ditadores patrocinados pelos USA são diabolizados e execrados. Os outros, se aparecerem nos Fóruns Mundiais Sociais, a fumarem havanos, bramando contra o imperialismo norteamericano, são aclamados como libertadores e têm lugares de honra nas tribunas.

Sharon tem feito uma política belicista e condenável. Mas Sharon foi eleito, em eleições livres, embora seja lícito pensar que a vontade dos eleitores israelitas foi influenciada pelo medo provocado pelo ressurgimento de uma intifada mais vocacionada para o terrorismo indiscriminado do que para o protesto cívico. Todavia, Sharon pode não ser reeleito, está sujeito às regras democráticas. Arafat está à frente da OLP há mais de 3 décadas, tem uma fortuna pessoal, estimada entre 800 e 3.000 milhões de dólares, parte depositada em bancos israelitas, obtida através dos monopólios que detém de importação para os territórios ocupados, é líder, tudo indica que vitalício, de um regime corrupto. Ele e o seu regime são responsáveis por inúmeras acções terroristas que mataram milhares de civis inocentes.

Todavia, Arafat é dos bons e Sharon é o diabo. Nas manifestações que constituem a parte lúdica dos Fóruns Mundiais Sociais, Sharon aparece em travesti de Belzebú e Arafat como vítima. Que aconteceria, nesses fóruns democráticos e participativos, se algum manifestante suicida aparecesse com um cartaz elogiando Sharon e execrando Arafat? Ou, ao lado dos cartazes do Bush com um ricto maléfico, escorrendo-lhe sangue dos dentes e agitando na mão algo intermédio entre um supositório e uma bomba nuclear, esse manifestante aparecesse a agitar um cartaz vitoriando Bush? Seriam mesmo actos suicidas!

Estas personagens ao criticarem assim os USA, Israel, ou a Europa, omitindo ou desculpando os actos de terror e a perturbadora filosofia deste culto da morte e suas consequências futuras, demonstram uma terrível e perigosa deformação moral. Os fins não justificam os meios e há tácticas que não são aceitáveis ou moralmente legítimas. O intelectual que passa ao lado deste mandamento torna-se cúmplice daqueles que rejeitam este baluarte civilizacional. É o intelectual sem consciência. É o intelectual que, no fundo, deixou de pensar. Que o deixou de ser.

A reacção dos apologistas da negação dos nossos valores teve um largo campo de expansão no caso do Iraque. Nunca afirmaram claramente que Saddam fosse um libertador anti-imperialista, mas atribuíram-lhe o papel de vítima dos acontecimentos. Mostraram claramente preferir um ditador como Saddam, carniceiro do seu próprio povo, a um Bush, por muito incapaz que este seja.

Dizer isto não implica defender a guerra que foi feita contra o Iraque de Saddam Hussein, ao arrepio das leis internacionais. Uma das razões da força das nossas sociedades é a da prevalência do direito, mesmo quando lidamos com monstros sanguinários. É, por exemplo, a de ter dentro de nós gente que apoia ou justifica esses monstros sanguinários, e desdenha dos valores que permitem a essa mesma gente ter e defender publicamente essas opiniões.

Todavia implica, em face da situação entretanto criada, termos o dever, não por subserviência com os EUA, mas por necessidade de sobrevivência própria, de apoiar os EUA, lutando para que se encontrem as melhores soluções. Essa necessidade foi reconhecida pela própria ONU através da sua resolução a 1511.

No Médio Oriente, a luta é contra concepções que já no fim da Idade Média tinham sido abolidas da Europa. É uma luta da sociedade laica contra sociedades teocráticas; é uma luta de uma sociedade que respeita direitos, liberdades e garantias, contra sociedades que desconhecem esses conceitos, assentes numa relação sexual de dominação total dos homens sobre as mulheres; é a luta da tolerância contra a intolerância e, o que é mais grave, contra uma intolerância que se afirma como valor universal e que pretende impor os seus valores ao resto do mundo. A intolerância do fundamentalismo islâmico é a actual frente de resistência contra a democracia, contra o Estado laico. A vontade por parte dos homens de manter uma opressão social das mulheres é, provavelmente, um dos factores mais poderosos de resistência do mundo islâmico a qualquer modernidade.

Os apologistas da negação dos nossos valores vaticinaram a derrota das forças da coligação face à resistência patriótica e anti-imperialista dos soldados de Saddam; vibraram emocionados com as informações de Saïd al Sahhed, o impagável Ministro da Propaganda que falava de um Iraque que só existia na imaginação dele; comoveram-se, excitados, com a retórica das chefias iraquianas e islâmicas; quando a resistência militar iraquiana começou a esboroar-se, multiplicaram-se em imprecações, lançando apelos lancinantes à resistência dos iraquianos e à guerrilha; após a queda de Saddam, e passados alguns momentos de piedoso recolhimento, têm exultado com cada soldado da coligação que é morto.

Alguns nicks da net mudaram para patronímicos árabes, tal como Saulo fez, na Estrada de Damasco, quando renegou as suas anteriores convicções e se tornou Paulo, o novo apóstolo de Cristo. A sede de apostasia era total. Eram os arautos de uma nova civilização. Infelizmente de uma civilização onde não quereriam viver e onde dificilmente sobreviveriam muito tempo. Dificilmente os estou a ver a exigirem que namoradas ou esposas andassem de véu ou burka ou, sendo do sexo feminino, a vestirem aqueles trajes e a viverem sob a opressão masculina.

Este ritual da negação não vai parar apenas pelo facto de Saddam ter sido capturado em traje de arrumador de automóveis da Grande Lisboa. Ele vai continuar enquanto houver ditadores com retórica anti-imperialista ou antiglobalização que enfrentem corajosamente os USA, embora precisem do sistema imperialista para terem as suas pingues contas bancárias a cevar tranquilamente; vai continuar enquanto os fundamentalistas e os terroristas da Al-Qaeda continuarem a ameaçar o ocidente com o apocalipse.

E vai continuar porque faz parte da nossa cultura. Toda a formação social contém em si a negação da sua existência (a negação ou as negações). Hegel e Marx concordaram nisso. Quem sou eu para discordar. E é neste exercício de tentar manter e tentar destruir, que reside o segredo do nosso aperfeiçoamento, da nossa prosperidade. Construímo-nos a nós próprios lutando contra os factores da nossa destruição. Adestrámo-nos na superação dos factores de aniquilamento. Nos momentos decisivos, ganhámos. Fizemos uma revolução que libertou o mundo da servidão feudal, e salvámo-la no Thermidor, quando parecia irreversível que ela iria tombar na barbárie e no totalitarismo; derrotámos o nazismo, quando a Europa jazia inerme, destinada a mergulhar nas trevas das ditaduras fascistas; derrubámos o totalitarismo comunista, quando se julgava que o seu rolo compressor continuaria a subjugar povos, rumo ao universo orwelliano do 1984.

E havemos de triunfar do fundamentalismo islâmico, a actual frente de resistência contra a democracia e contra a tolerância.

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outubro 03, 2003

A questão David Kelly não é da nossa civilização

A questão David Kelly é claramente matéria que não nos diz respeito:

1 – O Sr. David Kelly era uma homem que prezava a sua honorabilidade, sabia que devia lealdade à instituição de que era funcionário e apercebeu-se que as suas eventuais declarações a Andrew Gilligan, bastante amplificadas segundo se depreende das afirmações que produziu no parlamento no âmbito da sua audição, o colocavam numa posição com a qual a sua honra, e o respeito que devia a si próprio, não podiam continuar a conviver.

Em Portugal, os detentores de cargos da Administração Pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. E isto é mais grave que um atropelo de ética – é uma violação grosseira da lei.

2 – A BBC, pode ter feito um mau jornalismo mas, em face da situação que se gerou, soube assumir as suas responsabilidades e revelar a sua fonte.

Em Portugal, os meios de comunicação portugueses não fariam declarações públicas, como as que a BBC fez, revelando a sua fonte. Para os jornalistas portugueses, ou parte significativa deles, a sua liberdade informativa está acima das instituições e sobrepõe-se a quaisquer questões de ética, respeito pela dignidade e privacidade da pessoa humana, atropelos à lei, etc.

3 – O Parlamento Britânico foi firme perante as fugas de informação e fez uma audição em que as questões relativas à obrigação de lealdade do servidor público prevaleceram sobre disputas partidárias ou opiniões divergentes sobre a questão das razões da guerra. O Parlamento Britânico sabe separar as instâncias e as situações em que se devem discutir uma e outra questão e que as eventuais razões, ou ausência delas, numa, não justificam o comportamento na outra.

Os parlamentares portugueses, ou parte significativa deles, não têm nem coragem política, nem autoridade moral para tomar uma atitude idêntica. Aliás, mesmo que alguns o quisessem fazer, e ao invés do acontecido no Parlamento Britânico, as querelas partidárias prevaleceriam sobre questões éticas e o debate afundar-se-ia na esterilidade sem futuro em que decorre a nossa vida política.

21-Julho-2003

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outubro 01, 2003

Lei de Talião

O vício da tese que se os outros são totalitários, nós respondemo-lhes da mesma moeda é um terrível engano.

Foi a América do Mcarthysmo que perdeu o respeito da Europa e facilitou a propaganda dos movimentos de esquerda, intelectuais e artistas, o apelo de Estocolmo, etc., que promoveu o modelo soviético, o “esquecimento” das purgas estalinistas, dos processos de Praga e que justificou o esmagamento da Hungria no quadro de uma luta contra a conspiração do capitalismo americano. A Black List fez mais pela propaganda do regime soviético e por denegrir a imagem dos USA, do que “salvou” os USA de uma imaginária conspiração soviética.

Fidel Castro está sustentado em Cuba pelo boicote americano. É esse boicote que obscurece as razões da decrepitude da economia cubana e facilita a manutenção de um totalitarismo visto como tentativa de defesa de Cuba contra o inimigo exterior.

Foi a abertura USA-URSS no fim da era Reagan, que facilitou a rápida evolução soviética e a implosão do seu regime. O que não foi conseguido pela guerra fria e por uma política ameaçadora, aconteceu com o degelo das relações.

É o nosso regime democrático, a nossa sociedade tolerante, que constitui a nossa superioridade e tem permitido o nosso desenvolvimento e a nossa prosperidade.

Mas ao escrever isto, não significa que pactue com a visão da esquerda “bem pensante” de que “se é branco e rico, é culpado, se é de cor e pobre, é inocente”, de que há sempre desculpa para o ditadorzeco que rouba os seus concidadãos e reclama indemnizações pelo tráfico de escravos de há mais de 150 anos e de que nós teremos que estar sempre com “má consciência” perante o terceiro mundo.

Também não pactuo com atitudes como as dos sete países da União Europeia que se abstiveram na votação para a presidência do Comité das Nações Unidas para os Direitos Humanos, para a qual foi eleita a Líbia, para não “ofenderem” os estados africanos, a quem competia indicar o candidato à presidência do comité dos Direitos Humanos. E muito menos com os 33 países que votaram a favor da Líbia.

E não posso deixar de apoiar os USA que, com o Canadá, votaram contra.

23-Janeiro-2003

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