novembro 02, 2005

Censura ou Coragem Política?

A posição tomada por Rui Rio relativamente às relações do executivo camarário com a comunicação social criou algum burburinho. Ora, pelo que li, Rui Rio não fechou a porta ao fornecimento de informações e de respostas aos jornalistas. Apenas pretendeu estabelecer regras que assegurassem que as informações ou as respostas veiculadas pela autarquia fossem aquelas que efectivamente apareceriam na comunicação social. Para atestar essa conformidade haveria suportes escritos ou em vídeo e nunca interpretações jornalísticas, por vezes mais que duvidosas.

O que Rui Rio afirmou, segundo a imprensa, foi que "recorrerá, preferencialmente, a mensagens escritas através da publicação no site oficial da Câmara e de difusão pelos media"; que as entrevistas serão "acordadas" com a Imprensa, mas apenas por escrito, "com regras previamente definidas". Isto porque, segundo Rui Rio, "os entrevistadores são donos das perguntas e os entrevistados são donos das respostas".

A comunicação social tem-se inebriado por protagonizar o que designou por 4º poder. Os políticos tiveram muita culpa na génese desta situação, pois usaram a comunicação social para criarem factos políticos frequentemente baseados em falsidades ou em meias verdades. Acabaram por ser vítimas da sua própria insídia. A sua relação perversa com a comunicação social e a sua progressiva incompetência tornou-os vulneráveis à comunicação social e acobardou-os perante o monstro que haviam ajudado a gerar.

É verdade que uma notícia que tenha um suporte escrito documentável não evita a manipulação da informação através de títulos que são contraditórios com o corpo da notícia. É uma técnica vulgarmente utilizada, não necessariamente por motivos partidários ou ideológicos, mas as mais das vezes pela simples ambição de aumentar as audiências através de títulos sensacionalistas.

Reportando-me à parte factual da notícia, sem entrar em motivações obscuras ou em teorias da conspiração, considero corajoso um político dizer não ao poder de manipulação dos factos em que a comunicação social se especializou. E de o dizer claramente e não através de pressões camufladas que podem ter o objectivo de salvaguardar o rigor mas outrossim o de falsificar os factos.

Todos teríamos a ganhar com esta acção pedagógica aberta e transparente. Principalmente a comunicação social que pretende ser de referência. Escusava de cair, como acontece às vezes, no pecado da gula ... da falsificação das notícias para atrair leitores ou telespectadores.

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outubro 13, 2005

Prescrever Morfina ao Estado Terminal

Os próceres dos partidos políticos com assento na AR mostraram ontem uma enorme preocupação pelas candidaturas independentes e “pela emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito”, pois que “constituem um factor de desconfiança nas instituições”. Os partidos com assento na AR não mostraram preocupações pela situação de descrédito a que chegaram os políticos, a Justiça e as instituições. A sua preocupação é que as candidaturas independentes possam avivar essa situação de descrédito. Os próceres políticos devem ter desistido de curar as maleitas do Estado. Limitam-se a prescrever morfina para iludir o sofrimento.

As intervenções de ontem na AR mostraram duas tentações que se complementam. Uma, é a de tentar assegurar aos partidos o monopólio de intervenção política. Essa tentativa é feita em nome dos imortais princípios de evitar a “emergência de um populismo autoritário que provoca o Estado de direito” e a “desconfiança nas instituições”. Outra é “aprimorar o regime de inelegibilidades e impedimentos” para “devolver a credibilidade à acção política”, impedindo o aparecimento de candidatos que “não cumprem as suas obrigações com a justiça”.

A primeira tentação filia-se na hipocrisia da classe política e no seu receio de perder o monopólio dos empregos políticos que todos usufruem, sem excepção, embora num grau que depende dos lugares que ocupam no poder central e autárquico. Perca de monopólio que iria acarretar a prazo uma perda de influência política e um eventual reordenamento do espectro partidário. E os “insiders” querem, a todo o custo evitar que tal possa ocorrer.

A segunda tentação pode revelar-se perversa porque conduz à instrumentalização da justiça com objectivos políticos. Os ziguezagues do processo Casa Pia, provocados pela interferência da classe política, é o caso mais recente. Mas existem numerosos exemplos, nas últimas décadas, em que processos judiciais foram utilizados como armas de arremesso político. Por outro lado, pessoas podem ser constituídas arguidas nas vésperas de actos eleitorais, por denúncias não fundamentadas, falsas, ou interpretadas cavilosamente por agentes judiciais, denúncias que depois não têm sequência, mas que numa primeira fase podem impedir essas pessoas de se candidatarem.

E a perfídia desta tentação de instrumentalização política através da justiça é que ela se refere apenas aos candidatos independentes. Os candidatos do sistema estão fora desta fúria justicialista. Por exemplo, a candidata PSD por Leiria e a candidata BE por Salvaterra estavam constituídas arguidas, mas ninguém se ralou com isso, tirando uma intervenção apenas destinada, infrutiferamente, a meter na ordem a obsessão predicante do BE. A “crise profunda de valores” resulta apenas de candidatos independentes a contas com a justiça. São estes que têm que ser impedidos de concorrer para “devolver a credibilidade à acção política”. Os candidatos partidários constituídos arguidos não provocam qualquer “crise profunda de valores”, nem falta de “credibilidade da acção política”.

Publicado por Joana às 06:53 PM | Comentários (131) | TrackBack

outubro 12, 2005

E agora, Sócrates?

O recuo autárquico do PS face à sua derrota humilhante de 2001 e o desmoronar das expectativas criadas pelos resultados das legislativas têm sido interpretados em numerosos quadrantes, com especial ênfase entre os comunistas, que apostaram forte no voto de protesto, como a rejeição eleitoral da política do Governo de Sócrates. Este raciocínio linear é um erro e a sua aceitação como bom seria perversa e poderia revelar-se calamitosa para o futuro do país. Pelo menos mais calamitosa que a continuação da actual política.

Em primeiro lugar, e como já referi aqui várias vezes, estas eleições eram para as autarquias e as derrotas foram, essencialmente, dos candidatos escolhidos ou que se escolheram. Isto é evidente em muitos casos, com especial relevo para MM Carrilho, João Soares, Rui Barreiro (Santarém) e outros. No caso dos dois primeiros constituiu mesmo uma vitória “interna” de Sócrates sobre dois potenciais adversários que caminham irreversivelmente para a liquidação política.

O grande derrotado do PS foi Jorge Coelho. Ele era o coordenador autárquico e das escolhas dos candidatos e foi ele o responsável pelas expectativas delirantes criadas nas hostes socialistas e amplificadas pela comunicação social. Mas a derrota de Jorge Coelho, ao fragilizá-lo, também é positiva para Sócrates, na correlação de forças dentro do PS. No Governo houve uma derrotada – a Ministra da Cultura, cuja empáfia antipática e obtusa deve ter trazido muitos dividendos a Rui Rio (para além da própria fragilidade de Assis).

Em segundo lugar uma legislatura é para durar quatro anos. Um Governo, nomeadamente quando tem que tomar medidas duras por via da situação financeira e económica em que o país se encontra, não pode ser despedido ao fim de 6 meses, porque as pessoas não estão a gostar do incómodo que essas medidas causam. O Governo tem que ser julgado pelas medidas que toma e pelo resultado dessas medidas. Para isso é necessário tempo.

A política de Sócrates, até à data, tem-se pautado pelo ataque às mordomias e às situações de privilégio de sectores da função pública, ataque que tem em comum a exasperação dos sectores atingidos, o concitar o apoio generalizado do resto do corpo social e ter efeitos diminutos sobre a Despesa Pública e sobre o funcionamento do sector público. Ou seja, tem havido muita pirotecnia, mas pouca substância. A queda de popularidade do Governo não é por tomar medidas difíceis. É por tomar medidas insuficientes e ter um comportamento desastrado quer na implementação das medidas, quer na sua ânsia de distribuir sinecuras por amigos, compadres e clientela política. Um Governo que gere uma situação de crise tem que dar um exemplo de contenção. Infelizmente não é isso que tem acontecido.

Os problemas da Justiça são gravíssimos, mas não têm a ver com a questão das férias judiciais, embora essa ideia tenha sido transmitida, de forma subliminar, à opinião pública. Muitos dos problemas nem sequer têm a ver com o próprio (péssimo) funcionamento da Justiça, pois resultam de legislação complexa e contraditória e de procedimentos legais que só servem para dilação dos prazos. Ou seja, o Governo tem que agir sobre o funcionamento daquele sector e sobre o edifício legal.

Na questão do ensino, a obrigatoriedade da permanência dos professores na escola, a exemplo do que sucede nos outros países, é uma medida justa mas que se for aplicada de forma atrabiliária arrisca-se a tornar-se letra morta. A maioria das escolas não tem, de momento, condições logísticas que permitam que os professores permaneçam na escola a exercer uma actividade útil. Não é fácil passar de imediato de 22 horas (sem falar dos professores com redução de horário) para as 35 horas. Também bole com os compromissos pessoais e familiares dos professores. Muitos tinham a sua vida organizada em face de um determinado horário e, de um momento para o outro, tudo é alterado. Parecia-me preferível que esta alteração fosse faseada em dois anos, de forma a permitir que escolas e professores se adequassem à nova situação. Provavelmente é isso (ou muito pior) que vai acontecer na prática. Todavia, os problemas do ensino não se resolvem apenas com estas medidas. Nós temos dois problemas: um ensino que é o pior da Europa e um ensino que é um dos mais caros da Europa.

Não se conhece a política de contenção de despesa no sector da saúde (se é que ela existe), um dos maiores sorvedouros de dinheiro do Sector Público. Portugal tem um sector de saúde completamente ineficiente, de que uma parte importante da população não se serve, dada a sua má qualidade (com algumas, poucas, honrosas excepções), mas que consome uma parte substancial da riqueza pública. O Governo está emparedado entre o ícone ideológico da estatização da Saúde e a realidade prática de um sistema em roda livre, ineficiente e financeiramente descontrolado. O Ministro da Saúde, que na oposição era um comunicador nato, eclipsou-se entretanto.

Os dados que existem sobre a evolução da despesa pública e das nossas contas com o exterior são assustadores. Felizmente que, ultimamente, não têm vindo dados a lume – o Governo não deve ter querido preocupar os portugueses enquanto estes estavam empenhados na campanha e pré-campanha para as autarquias. Cada coisa de sua vez. Mas agora vão ser disponibilizados dados mais recentes, porquanto o OE 2006 é apresentado na próxima 6ª feira. Pelos dados existentes, a nossa conta com o exterior (corrente e de capital) entre Janeiro e Julho agravou-se, face ao ano anterior, 52% (-4 343 milhões de euros para -6 619 milhões de euros) e tudo indica que se tenha continuado a agravar. Segundo a DGO, o défice da Administração Central até Agosto teria aumentado 24,6%. Como o défice da Administração Local deve ter aumentado, por influência da fúria “obreirista” das vésperas eleitorais, é de esperar o pior no que respeita à evolução da Despesa Pública.

Portugal não pode dar-se ao luxo de aumentar os impostos. Os países da Europa do “nosso campeonato” têm uma carga fiscal menor que a nossa. A Espanha é um deles. Apesar disso, o governo espanhol já anunciou que vai reduzir os impostos para as empresas e para os contribuintes individuais no Orçamento de 2006. Os países do Leste da Europa enveredaram por sistemas simplificados de impostos, como a flat-tax, por exemplo, que lhes está a permitir acelerar a competitividade, enquanto nós estagnamos.

Portanto nós temos que reduzir a Despesa Pública. Todavia essa redução é um problema complexo. Há a administração central, mas também há a administração local e regional. O emagrecimento da administração central (em paralelo com a sua requalificação) é urgente, mas não é possível esquecer a administração local cuja necessidade de emagrecimento é porventura maior. Essa tarefa incumbe às autarquias, mas elas não estão dispostas a fazê-lo, a menos que sejam obrigadas a isso através do corte do financiamento central.

Outra vertente é a das compras e fornecimentos de terceiros. Têm que se estabelecer procedimentos que assegurem que as aquisições são mesmo necessárias, são aquelas e se fazem ao melhor preço. Esses procedimentos só são viáveis com uma administração requalificada e eficiente. Outra vertente a rever é a política de outorga de subsídios. O país gasta generosamente o dinheiro dos contribuintes para subsidiar artistas que produzem espectáculos para se verem entre si. Quem é juiz sobre se os espectáculos têm qualidade e/ou interesse é o público e não o Estado. Mesmo que se ache que o público possa não ser um bom juiz, o Estado será certamente pior, pois não resiste ao compadrio sob diversas formas.

O Governo tem muito que trabalhar se quiser equilibrar as contas públicas e criar as condições para melhorar a competitividade do sector privado. Essas condições criam-se com um sistema fiscal de melhor qualidade e menos oneroso, mas também com menor intervenção do Estado. O Estado tem que alienar algumas empresas públicas que ainda detém e imiscuir-se menos na actividade económica. Tem que regular a actividade no sentido de impedir estratégias anti-concorrenciais, mas não deve assumir o papel de “segurador” dos agentes económicos. Esse papel perverte as mentalidades empresariais, distorce a concorrência e prejudica a economia globalmente.

A ideia que este Executivo dá, ao fim de quase 8 meses de governação é que não tem uma estratégia definida, não tem uma ideia do que pretende para o país, e vive à mercê da evolução das contas das Finanças Públicas, retocando o défice com medidas avulsas, com muita pirotecnia mas sem grande substância. É este estilo que tem que ser invertido, sob pena do Governo continuar, até ao fim da legislatura, a tomar medidas impopulares, sem resultados visíveis e com o país em empobrecimento contínuo.

Publicado por Joana às 11:26 PM | Comentários (131) | TrackBack

outubro 11, 2005

Curiosidades Lisboetas

Houve em Lisboa um fenómeno interessante: A votação em Carmona Rodrigues foi muito superior à do PSD para a Assembleia Municipal e para as Assembleias de Freguesia. Tomando a votação para a AM como a votação mais “partidarizada”, numerosos votantes do PS (2.767), do PC (4.315), do BE (4.092), do PP (977) e do MRPP (924), votaram em Carmona Rodrigues para a Presidência da CML. Um em cada 8 votantes do PC e um em cada 6 votantes do BE votou Carmona. Este fenómeno é curioso pelas explicações que permite aduzir como causas, como pelo significado que tem. A diferença entre a votação para a Câmara e para as Assembleias de Freguesia ainda é mais significativa, mas aí há elementos locais que podem explicar o fenómeno. Em qualquer dos casos, em cada 3 votantes comunistas nas Assembleias de Freguesia, um votou Carmona Rodrigues!

Uma explicação linear seria considerar que os lisboetas foram seduzidos pela imagem de competência e pelo carisma de Carmona Rodrigues. Não me parece suficiente esta explicação. Carmona Rodrigues é tecnicamente competente, mas não sei se essa imagem foi muito evidente, nomeadamente se se tiver em conta a gestão autárquica anterior. Também não tem carisma político. A explicação mais lógica parece-me ser a de que o eleitorado lisboeta se mobilizou para barrar o caminho a MM Carrilho. MM Carrilho provoca um efeito de “pele de galinha” nos circunstantes. Ou mesmo urticária em algumas epidermes mais sensíveis. A capacidade de auto-dissuasão eleitoral daquele filósofo é aniquiladora.

Um dado muito curioso foi o facto de um em cada 6 votantes do BE ter votado em Carmona, em vez de ter votado no empata-obras, o advogado fracturante que é a “besta negra” de todas as entidades que pretendem lançar obras importantes (as que não são vultuosas não têm importância mediática e não são contestadas). Mesmo que se admita que parte do desvio dos votos fosse para evitar a eleição de Carrilho, é interessante verificar que uma parcela apreciável do eleitorado do BE não se deixou seduzir pelo fundamentalismo ambiental de Sá Fernandes. Isto apesar de Sá Fernandes ter considerado, em afirmações públicas, Carmona «pior» que Santana.

Finalmente, estas transferências de votos, pela sua escala, indiciam que os partidos são, cada vez menos, os “donos dos votos". O eleitorado lisboeta (como noutras autarquias) mostrou que quando vota, as suas convicções pessoais têm prevalência sobre as suas opções políticas. O anátema de mudar o voto da esquerda para a direita, ou vice-versa, já não colhe. Aliás, esquerda e direita têm-se progressivamente esvaziado de conteúdo. Arriscam-se a voltar a ter apenas um significado geométrico.

Adenda: Em Sintra houve uma situação com bastantes semelhanças, embora não tão evidente. Um em cada 5 votantes do PC e um em cada 4 votantes do BE votou em Fernando Seara. A votação do PS para a AM e para a Câmara foi praticamente igual. Portanto, também em Sintra o eleitorado do PC e do BE deu o seu voto útil a Fernando Seara, para evitar a eleição de João Soares. Este comportamento eleitoral deveria fazer reflectir aqueles que se comprazem em aritméticas eleitorais quando propõem alianças eleitorais ou entregar os seus votos a outrem. Os eleitores não são elementos inertes do conjunto dos números inteiros.

Em eleições, 5+5 podem ser 8, ou 12, ou sabe-se lá quanto. Raramente são 10.

Adenda 2: Em Oeiras sucedeu um fenómeno muito curioso. A luta renhida foi para a Presidência da Câmara, entre Isaltino e Teresa Zambujo e todos os outros partidos carrearam votos para essa disputa. Se considerarmos como o “eleitorado autárquico de ontem” os votantes para a Assembleia Municipal, o PS (2.899 – 19% do total), o PC (1.304 – 18%), o BE (1.659 – 31%) e o PP (635 – 37%) votaram ou no Isaltino (+ 2.661) ou na Teresa Zambujo (+ 3.383), ou seja, houve mais transferências de voto para o PSD que para o Isaltino, embora a diferença entre elas não fosse grande. PS, PC, BE e PP associaram-se, parcialmente, àquela refrega.

De notar que 31% dos votantes do BE (na AM) votaram, para a Câmara, quer no Isaltino, quer no PSD. No caso do PS ou PC foi perto de 20%, o que é muito significativo.

Publicado por Joana às 05:59 PM | Comentários (141) | TrackBack

outubro 10, 2005

Vitórias e Derrotas para todos os gostos

Objectivamente os resultados das eleições de ontem trouxeram poucas alterações quando comparados com os resultados de 2001. É certo que o PS teve um pequeno saldo negativo na transferência de câmaras entre ele e a CDU e um saldo negativo ainda menor, na sua conta-corrente com o PSD. É certo que o PP perdeu 2 câmaras, mas eram resultados esperados. Quanto ao BE continuou a ser aquilo que era expectável: um partido com fraca implantação autárquica. Todavia soaram fanfarras pela noite dentro; sedes de campanha tornaram-se velórios lúgubres; líderes tentaram eclipsar-se da comunicação social, etc.. Houve de facto vitórias retumbantes e derrotas calamitosas mas face às expectativas que cada um criou para estas eleições. Objectivamente ficou quase tudo na mesma.

A conta-corrente entre o PS e a CDU explica-se facilmente. Após uma gestão cinzenta e sem ideias estratégicas da CDU, o eleitorado aposta no PS que responde com o caos organizativo e uma gestão com fumos de corrupção. Numa eleição seguinte (não necessariamente a seguinte) o eleitorado volta a apostar na CDU e o ciclo prossegue. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Barreiro. Em Setúbal, Mata Cáceres deve ter alienado as possibilidades do PS nas próximas décadas, com a gestão ruinosa que fez. O PS perdeu as eleições em 2001 e passou agora para 3ª força (a própria CDU perdeu a maioria absoluta). V. R. de Santo António tem sido a alternância entre a incompetência e a corrupção. É dos exemplos mais calamitosos de má gestão autárquica. Desta vez o eleitorado de VRSA, farto daquela alternância inútil, resolveu apostar numa alternativa diferente. Veremos se tem melhor sorte.

Em Lisboa, não foi Carmona quem ganhou, mas Carrilho que teve uma derrota estrondosa. Carmona Rodrigues tem o perfil típico do não-político: tímido, de poucas falas, sem dom de palavra. Tecnicamente muito competente, mas sem experiência de gestão. Além disso, Carmona Rodrigues não tinha obra a apresentar – a gestão de PSL foi errática e muito perturbada pelo facto de estar em minoria na Assembleia Municipal, o que se tornou um obstáculo incontornável. Valeu a Carmona Rodrigues a antipatia de Carrilho e o efeito “pele de galinha” que provoca por onde passa.

A vitória de Rui Rio foi retumbante face às expectativas alimentadas pela comunicação social. A dinâmica da vitória (virtual) de Assis teve o zénite na 6ª feira, quando Pinto da Costa o apoiou publicamente. Nem PS nem Pinto da Costa aprendem com a experiência. Sempre que Pinto da Costa aposta num “cavalo” político, este perde. Coube igualmente a Rui Rio o discurso de vitória mais bem conseguido da noite. Rui Rio confirmou-se como um líder político nacional.

Em Sintra, Fernando Seara contrariou, sem margem para dúvidas, as expectativas igualmente criadas pela comunicação social. Como pessoa, Fernando Seara é um sujeito diferente do que aparenta na TV. É duro, obstinado, seguro de si e muito determinado. Ganhou com maioria absoluta na CM e na AM. Teve pela frente um João Soares, muito apoiado pelo PS e pelo clã do papá, mas que se tem revelado um perdedor nato.

Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. Tornou-se a morada de muitos dos proprietários das grandes casas agrícolas da região e de uma elite que lhes procurou copiar o estilo de vida sem ter posses para tal. Criou-se uma camada social proeminente, extremamente fechada, mesquinha, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Santarém cristalizou há muitas décadas. Como corolário disso só tem eleito autarcas incompetentes. Surpreendentemente, os escalabitanos apostaram numa mudança. Estou curiosa em ver se será Moita Flores que transfigura Santarém, ou se é Santarém quem inutiliza Moita Flores.

Os “candidatos bandidos” ganharam nos municípios em que tinham obra. Os munícipes votaram na obra e foram imunes às questões de uma justiça que perdeu credibilidade e aos apelos dos políticos nacionais, cujas imagens estão muito desgastadas. Avelino perdeu apenas porque cometeu o erro de concorrer noutro município. Os fundamentos destas vitórias deveriam ser cuidadosamente estudados, em vez de se soltarem imprecações estéreis contra os vencedores. O discurso de Fátima Felgueiras foi outro dos pontos altos da noite de ontem, pelas razões que indiquei no post anterior. Que ninguém tenha dúvidas que foi um discurso muito forte e com grande poder de penetração. Só há duas alternativas: ou amordaçá-la ou eliminar os factores que dão impacto àquelas palavras. A primeira alternativa, sugerida por JPP, não me parece saudável para a democracia e criaria um mártir do regime. Tentar denegrir os “candidatos bandidos”, como o tem feito a comunicação social, é contraproducente, como se viu. Aumenta e mobiliza a sua base de apoio e torna-a mais determinada. Estamos perante uma questão de regime e é como questão de regime que terá que ser resolvida.

A questão dos “candidatos bandidos” introduz o facto do BE ser um dos grandes derrotados nas eleições de ontem, não face ao que seria exigível, mas face às expectativas que o BE imaginou. O BE está a transformar-se no sapo de Esopo.

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outubro 09, 2005

Duas Reflexões

Numa abordagem rápida e sumária, julgo que estas eleições vieram provar duas coisas. Uma, a progressiva municipalização do voto. Ou seja, a influência da política nacional está a diminuir progressivamente nas escolhas políticas locais. Isso foi visível mesmo em municípios em que anteriormente o voto político era forte, como o de Lisboa.
A segunda coisa que se provou é que o regime está doente. Fátima Felgueiras falou com palavras poderosas e vibrantes. Ela já não se dirige apenas a Felgueiras. Dirigiu-se ao país. E o que ela disse deve ter calado fundo em muita gente. Quando alguém com os problemas com a justiça que FF tem, se sente com poder para fazer aquele discurso e ter adesão às suas palavras, é porque algo está muito mal.
JPP, com o seu comentário inepto e pseudo-moralista confundiu a doença com os sintomas. Indignou-se contra os sintomas e ignorou a doença. O discurso de FF constitui um sério aviso à classe política e a todos os portugueses. Não para extrair as consequências que ela porventura pretenda. Não para a calar, como gostaria o intelectual auto-iluminado JPP. Mas para nos apercebermos qual o ovo que cria a serpente e que seiva alimenta a pestilência que corrói o corpo enfermo da nossa democracia.

Publicado por Joana às 11:20 PM | Comentários (67) | TrackBack

outubro 08, 2005

Louçã, Estátua de Sal?

Quando alguém se decide lançar nas lides políticas tem que escolher um modelo, um papel para protagonizar. E escolhe-o ponderando diversos factores, quer pessoais quer das circunstâncias que o rodeiam.

Foi isso que fez Louçã. Com o seu espírito buliçoso e ambicioso, quando encetou a sua carreira decidiu protagonizar uma originalidade forte. Olhou à volta e que viu? Um povo descrente de si mesmo, queixando-se de tudo e de todos, mas incapaz de tentar remediar fosse o que fosse, mais dado à inveja que à ambição. Viu clientelas fidelizadas a partidos políticos mais por hábito que por opção racional. Clientelas que votavam em partidos, mas que desprezavam os políticos. Na essência o mesmo problema com que se confrontaram Hitler e, mais tarde, Paulo Portas.

Louçã imediatamente compreendeu que perante esse espectro eleitoral e político, o seu papel teria que ser idêntico: assanhar-se contra os políticos em objurgatórias escorrendo fel, fulminando os corruptos e protagonizando o papel do anjo exterminador, o Alfa e Ómega das virtudes políticas, que haveria de fazer cair a Babilónia que dera a beber às gentes o veneno da sua prostituição.

Todavia Louçã não se apercebeu de uma diferença. Os anjos vingadores cujas trombetas clamavam pela destruição da Babilónia prostituída não tinha densidade material. Sem matéria não há vícios. Louçã e a equipa que arrebanhou com as suas prédicas são realidades materiais. São de carne e osso. E todos sabemos como a carne é fraca. A tentação espreita ao virar da esquina, no trocar de um olhar, duas mãos que se encontram, cheques ao portador que passam imprudentes sob os nossos olhos, eu sei lá ... Satanás é tão hábil ...

Mas os frades predicantes contam sempre com a protecção do Senhor. Foi assim que Louçã criou a figura do Candidato-bandido. Foi genial. Era a 4ª versão de cow-boy, depois do cow-boy mosqueteiro, que fez as delícias dos nossos avós, do cow-boy em depressão psicológica, que mobilizou os nossos pais para a causa dos índios e do cow-boy spaghetti que liquidou cinematograficamente todos os cow-boys anteriores.

E com que ferocidade Louçã percorreu o país agitando a figura do Candidato-bandido. Foi tema de todos os seus discursos, dos seus gritos, dos seus apartes, das suas glosas, dos seus suspiros. Os outros partidos tinham Candidatos-bandidos! O país tinha que se erguer contra os Candidatos-bandidos. O Candidato-bandido era a grande descoberta eleitoral do BE. O Candidato-bandido era o paradigma do esterquilínio autárquico onde chafurdavam os outros partidos.

Veio a lume ontem que, algures, na lezíria ribatejana, a única presidência autárquica do BE era também uma Candidata-bandida. Ao que parece, a Candidata-bandida procurara incriminar os seus adversários do PS (que entretanto haviam sido presos), com a ajuda de um agente da GNR, favorecendo em troca a entrada do filho deste na câmara. A Candidata-bandida e o agente da GNR foram constituídos arguidos.

Confrontado com esta situação, Louçã nem pestanejou. Nós somos os bons, os outros é que são os bandidos. É assim que está no argumento e não é boa política desviarmo-nos do argumento a meio da rodagem. Os bandidos são os 3 autarcas PS anteriormente incriminados com provas, segundo se lê, forjadas pelo agente da GNR e pela candidata-anjo.

Quando alguém escolhe como táctica política meter esterco no ventilador da comunicação social, nunca deve dar como adquirido que não seja um dos atingidos pela esterco que ventilou. E quanto mais verrinosas e desbocadas são as prédicas e as excomunhões mais o opróbrio cai sobre quem as produz. A corrupção da virtude vingadora torna-se hipocrisia abjecta.

Louçã parece ter escolhido como opção a fuga para a frente. Talvez receie que se olhar para trás fique transformado numa estátua de sal. Talvez conte com a habitual benevolência da comunicação social. Na realidade os bloquistas surgem na comunicação social mais como comentadores do que como políticos, e nem outra coisa seria de esperar, tendo em conta a lama que têm lançado sobre os políticos.

Todavia, a Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos (a única presidência de câmara do BE) não pode passar por analista política – ela é uma política. E este é um dado que Louçã não conseguirá ignorar, por muito que olhe noutra direcção. O primeiro (e até agora único) bloquista a exercer um cargo de direcção política, foi constituído arguido.

Publicado por Joana às 01:40 PM | Comentários (131) | TrackBack

outubro 02, 2005

Populismo Filosófico

Ou o Cão Social Grátis para Idosos

Nos nossos meios de comunicação os labéus que pesam sobre os políticos baseiam-se naquilo que os jornalistas pensam deles, ou que nos querem fazer pensar, e não no que realmente eles são, pelo menos em termos relativos, quando comparados uns com os outros. Fátima Felgueiras e Avelino Torres, por exemplo, são obviamente populistas. Todavia a nenhum deles passaria pela cabeça fazer tantas e tão inovadoras promessas como o professor universitário MM Carrilho. A carreira docente dá-lhe um perfume mais suave e charmoso que o longínquo cheiro às estrebarias dos quartéis por onde o Major Valentim fez o seu tirocínio.

MM Carrilho ainda não conseguiu atingir os píncaros merecidos de populista, apesar do trabalho insano que tem desenvolvido na perseguição daquele desiderato, desde o seu mediático casamento com a Barbie Guimarães. Os jornalistas são muito injustos. Provavelmente foi o respeito reverencial pela docência universitária que pesa, de forma insustentável, sobre a iliteracia jornalística; ou talvez o facto de MM Carrilho estar matriculado num partido de esquerda, pois todos sabemos que o populismo é uma pecha da direita ou de pseudo-esquerdas rurais, como a Fatinha.

Foi uma total imprevidência Santana Lopes não se ter munido de uma docência universitária (há universidades lá fora que conferem diplomas fáceis, credíveis e rápidos) antes de se abalançar a uma política mais evidente. Uma pesquisa rápida na net ter-lhe-ia evitado passar por populista rasca e desprezado pela comunicação social e pelo PR.

A enxurrada de promessas com que Carrilho nos encandeia a cada cruzamento é obsessiva: Táxis sociais grátis para idosos; alargar os passeios da cidade; videovigilância em áreas inseguras; reduzir para metade os carros que entram em Lisboa; criar oito novas praças na cidade (o equivalente às 8 rotundas com que qualquer autarca rural sonha); saúde e segurança nas escolas; criação de centros de acolhimento de animais; estacionamento para os residentes; um jardim em cada bairro; fazer mais passadeiras; aumentar o tempo de atravessamento, etc., etc.

O seu cérebro privilegiado está numa irrequietude constante. A sua capacidade imaginativa é transbordante. Visitou o Canil municipal e imediatamente surgiu mais uma ideia: cão social grátis para idosos! E outras, que resultam da combinação linear das ideias que jorram permanentemente do seu cérebro, já devem estar na calha: Um cão em cada jardim; Um canil pedagógico em cada escola; Um cão em cada passeio; Um jardim em cada canil; estacionamentos para canídeos, etc., etc.

Sabe-se que existem numerosos prédios devolutos e degradados em Lisboa, muitos dos quais de propriedade municipal. Qualquer reputado filósofo aristotélico sabe igualmente que a natureza tem horror ao vazio. A pertinente conjugação do facto lisboeta e do conceito aristotélico permitiu a ideia fecundíssima de “criar cerca de 8.500 empregos e um volume de negócios de 100 milhões de euros”. É prova da nossa falta de genialidade, ninguém ainda se ter lembrado disso. Basta disponibilizar aqueles espaços até agora esquecidos e desprezados, para surgirem “500 empresas ligadas à criatividade” ocupando filosoficamente o vazio espacial e gerando por simples impulsos cerebrais carrilhistas «8.500 empregos e um volume de negócios de 100 milhões de euros em quatro anos». É a união do espaço vazio e do horror atávico da Natureza por esse vácuo. Tão simples e tão genial. E obviamente que terão que ser “empresas ligadas à criatividade”. Ocupam o espaço e ficam à espera que ocorra alguma ideia criativa.

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setembro 25, 2005

Apocalipse Now

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse já não são a Peste, a Guerra, a Fome e a Morte. A partir da última semana passaram a ser Fátima Felgueiras, Avelino, Isaltino e Valentim. Eleitores que se precatem, pois se caírem na tentação de votar neles, desencadearão a fúria do Apocalipse. Todavia uma imensidão separa os furiosos politólogos de agora, do “Águia de Patmos” de antanho. A fúria do apocalipse destinava-se a varrer da face da Terra a “Babilónia prostituída”. Quem agora esconjura os 4 Cavaleiros do Apocalipse não percebeu que eles não são (nem serão) a causa da “Babilónia prostituída”, mas o seu efeito. Nunca a prostituirão mais do que ela se encontra actualmente. Esta fúria apocalíptica da comunicação social e dos políticos não passa de hipocrisia.

Quer políticos, quer agentes da justiça, estão desprestigiados junto do eleitorado. Para um eleitor genérico, as figuras de Avelino e dos outros poderão estar mais desprestigiadas que a média dos políticos, mas para os eleitores aos quais eles se dirigem, não o estão. Em contrapartida têm obra feita, mesmo que essa obra possa ser, em alguns casos, mais ilusória que real. Para os eleitores a que se dirigem não representam nada de pior quando comparados com os políticos “centrais”. Bem pelo contrário, estão mais próximos, souberam granjear relações de confiança e as acusações de que são alvo são frequentemente tomadas por mentiras postas a correr pelos políticos distantes por mesquinhez ou inveja, com o apoio de uma justiça facciosa e que só funciona quando quer. Ou mesmo que essas acusações sejam consideradas como tendo algum fundamento de verdade, resultam de acções tomadas em defesa da terra, enquanto os políticos distantes são vistos como igualmente corruptos e, pior que isso, incapazes e deinteressados das questões locais.

Sempre houve corrupção nas Câmaras. Corrupção directamente proporcional à importância do urbanismo e das obras. Era uma corrupção generalizada e ao nível dos serviços. A emergência do “Poder local democrático” traduziu-se na camuflagem dessa situação em nome desse ícone sagrado. O poder autárquico foi, durante muitos anos, a jóia da Coroa da Revolução de Abril. Eram visíveis as ineficiências das Câmaras e os desperdícios de fundos públicos a que deram origem. Mas eram ícones e é blasfémia duvidar das excelências das coisas sagradas. Foram décadas em que a comunicação social se preocupava apenas em denegrir a imagem dos políticos “centrais”. Os políticos locais foram preservados em nome do “Poder local democrático”. Os serviços, esses, continuaram a agir com o despudor com que sempre haviam feito.

Subitamente as coisas mudaram. As empresas municipais, que estavam sendo criadas para agilizar processos em áreas onde os municípios tinham dificuldade em agir com rapidez, tornaram-se afinal entidades para prover empregos políticos ou mesmo para bombear fluxos financeiros para fora dos circuitos normais. Empresas Multimunicipais, criadas para acabar com o escândalo dos desperdícios camarários em investimentos em ETARs, ETAs, etc., que depois ficavam inactivas por incompetência dos serviços, tornaram-se centros de negócios que conseguiam lucros adicionais que enchiam os bolsos dos partidos. Era notável a unanimidade e o consenso com que os partidos partilhavam desses bónus, por muito irreconciliáveis que fossem as suas diferenças políticas.

Ou seja, entidades criadas quer para contornar uma estrutura legal burocrática e anquilosante, ou para melhorar a eficiência dos serviços prestados a nível local, tornaram-se, em muitos casos, centros de empregos políticos ou bolsas de financiamento partidário ou pessoal. E isso começou a trazer-lhes notoriedade pública. E os políticos locais caíram sob a lupa da comunicação social e da justiça. Mas apenas os políticos, porquanto os serviços continuam a agir, imperturbavelmente, como sempre fizeram.

Esse efeito causou um terrível tumulto. Descobriu-se agora que foi um tumulto apenas ao nível da comunicação social. A comunicação social andou estes meses a terçar armas contra monstros que ameaçavam tragar a democracia, perante o olhar irónico e algo indiferente dos portugueses. O Isaltino tinha uma conta na Suiça? Um riso escarninho ... e os outros? E as reformas chorudas de cargos semi-políticos, políticos e políticos e semi?

O Público, na edição de 6ª feira passada, conta a história de uma indemnização de 12 milhões de euros à Eurominas em que estiveram envolvidas figuras gradas do PS, como Alberto Costa, José Lamego, Vitalino Canas, José Junqueiro, Narciso Miranda e ... António Vitorino, que agiram, ao longo de todo o processo, quer como representantes do Estado quer como representantes da Eurominas, consoante os avatares eleitorais. Foi uma história em que ninguém mais pegou, apesar de envolver um actual ministro e um permanente candidato a qualquer cargo político importante no país ou no estrangeiro.

Tratava-se de um caso complexo, incapaz de ser reduzido a uma frase estentórica jorrada pela boca da MM Guedes e comentada com o sangue a escorrer pelas comissuras dos lábios de MS Tavares. Ao nível mental em que o país se encontra, já só têm interesse cenas boçais, de faca e de alguidar. Tudo o que extravase a boçalidade, o mediatismo circense e o voyeurismo não serve as audiências.

Nós temos o país que criámos ao longo destes anos. Queixamo-nos dos autarcas. Mas se nós os divinizámos durante décadas como uma das conquistas mais sólidas do 25 de Abril? Os políticos queixam-se dos interesses corporativos que agora impedem as reformas. Mas se foram eles que os criaram e os alimentaram para obterem os seus votos? Queixamo-nos da partidocracia. Então não nos tem sido repetido, desde há mais de 30 anos, que os partidos são a base da democracia? E não temos que acreditar nisso, sob o opróbrio de se ser salazarista, no caso de alguma dúvida sobre aquele conceito minar as nossas mentes? Queixamo-nos do laxismo da nossa sociedade. Mas não fomos nós que aprovámos e aplaudimos esse laxismo nas escolas que nos têm educado no último terço de século? Queixamo-nos dos políticos que nos têm governado. Acaso temos feito por merecer melhor?

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse não vão modificar as coisas na “Babilónia prostituída”. E se modificarem será, mau grado eles e os seus detractores, no sentido de uma menor hipocrisia e de uma maior clarificação da coisa pública.

Se desbabilonizarmos e desprostituírmos secaremos a seiva que nutre aqueles cavaleiros e outros que se prefigurem no horizonte político. Esse é que deveria constituir o nosso objectivo, e não invectivas inúteis e farisaicas.

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setembro 20, 2005

Assimetrias Regionais

As contas regionais do INE referentes a 2003 mostram um país com profundas assimetrias. Mas são assimetrias já conhecidas e que permanecem há décadas apesar das contribuições líquidas entre as regiões mais ricas e as outras. Há apenas uma região que “fugiu” a essa assimetria homotética e tem crescido a um ritmo muito superior à média nacional, tornando-se, de uma das regiões mais atrasadas do país, na segunda região mais rica, atrás de Lisboa: a Madeira. Alguns sugeriram que essas assimetrias teriam que ver com a existência de poder político em Lisboa (e na Madeira). Curiosamente algumas dessas sugestões provieram de áreas que consideram despiciendo, ou mesmo prejudicial, o papel do Estado.

Há um ponto, todavia, que justifica parte do enviesamento de Lisboa: um peso maior da administração central. É certo que o funcionalismo público está distribuído com alguma equidade pelo país (professores, pessoal da saúde, efectivos da segurança, pessoal autárquico, etc.). Todavia os ministérios e diversos institutos públicos estão sedeados em Lisboa. Ora como se sabe, o sector público é, excepto nos escalões mais elevados, melhor remunerado que o sector privado, para a mesma qualificação. Essa remuneração adicional pode justificar uma parte, provavelmente pequena, das assimetrias (Ver adiante quadro com PIB per capita e Produtividade para as Nuts III em 2003).

Há diversos factores que podem igualmente ser explicativos. Um deles é o facto da indústria de mão-de-obra intensiva e de baixa qualificação se ter implantado preferencialmente no norte do país. Esta situação tornou mais frágil o tecido industrial daquela zona e mais sensível às flutuações dos mercados internacionais. Esta é uma situação que dura há décadas. Estima-se que o nível de remunerações dos sectores exportadores de baixo valor acrescentado tenha subido menos que a média nacional, para manter a competitividade internacional.

Entretanto, a abertura dos mercados mundiais e o aparecimento dos novos gigantes asiáticos estão a degradar os rendimentos daquelas populações. Tem havido numerosos despedimentos e as estatísticas mostram que, quando se arranja um novo emprego, a média da remuneração é cerca de 10% inferior. Este factor poderia adicionar-se ao anterior. Para experimentar esta hipótese construí um quadro que apresento abaixo, onde calculei as variações anuais de diversos parâmetros entre 1995-2003, 1999-2003 e 2001-2203, justamente para ter em conta crescimentos diferenciados naqueles períodos. Verifica-se que, por exemplo, a diferença entre o crescimento de Lisboa e do Norte se vai atenuando à medida que o período é mais próximo. Ora esta constatação contraria a hipótese formulada. Em contrapartida, essa aproximação poderia ter a ver com o congelamento dos salários da função pública. Todavia, se se observar as variações das outras Nuts II, essa conclusão não parece tão evidente. Não é pois possível tirar conclusões sobre o efeito da crise dos têxteis e do calçado. Contudo 2003 ainda não é um ano significativo no que respeita aos efeitos dessa crise nas contas regionais. As estatísticas de 2004 e 2005 talvez possam permitir conclusões mais consistentes.

Outra explicação terá a ver com a mentalidade das populações. O desenvolvimento do capitalismo operou-se com lutas laborais, sociais e políticas, que atingiram grande intensidade. Essas lutas constituíram um ensinamento para todos, quer do ponto de vista teórico, quer prático. Foram escolas onde se forjaram sociedades mais adultas e com espírito cívico e de cidadania mais desenvolvidos. A sociedade minifundiária e mais tradicionalista da metade norte do país permaneceu arredada dessas pugnas, mais que a metade sul e, principalmente, Lisboa. Essa diferença de mentalidades é importante na forma e estilo de abordagem e de condução dos negócios e no profissionalismo dos trabalhadores.

Vou citar 2 exemplos:

1 – Tenho, por experiências pessoais, verificado que os autarcas do sul têm, em geral, um espírito de solidariedade maior que os do norte e são capazes de terem uma visão mais equilibrada dos interesses mútuos das diversas autarquias empenhadas num dado projecto. Os autarcas do norte mostram-se muito unidos a exigirem as comparticipações e financiamentos, mas logo que os obtêm, surge frequentemente a intriga, com cada um a puxar para seu lado e as coisas emperram e protelam-se desnecessariamente.

2 – Estive há uns 3 anos a almoçar com um sujeito que tratou da liquidação de uma empresa mineira de Aljustrel e de outra na Urgeiriça. Foram processos longos e morosos. Segundo ele, as negociações com os sindicatos em Aljustrel eram terríveis, levavam a discussões acaloradas e prolongadas mas, quando chegavam a um acordo, ele era cumprido por todos. O assunto estava encerrado e passava-se adiante. Na Urgeiriça o acordo era facílimo de obter, mas quando se chegava ao seu cumprimento, cada pessoa era um caso. Ninguém estava de acordo com “o acordo”, porque o seu caso era especial. Depois do acordo é que negociação se tornava num inferno insolúvel.

Estes exemplos valem o que valem. Por outro lado, o próprio desenvolvimento social e a educação tende a modificar lentamente essas mentalidades. Acredito todavia que parte do atraso de zonas como o Tâmega, Beira Interior, Alto Trás-os-Montes pode ter esta explicação como causa.

O extraordinário progresso da Madeira terá algo a ver com a autonomia, mas não só. Os Açores tiveram essa autonomia e só há pouco tempo se começaram a desenvolver com algum vigor. Na Madeira houve claramente um projecto que apostou no desenvolvimento das suas vantagens comparativas e que concitou a adesão da sociedade civil. O Algarve, que tem vantagens semelhantes às da Madeira, não as soube aproveitar tão bem, embora se possa queixar de ser, juntamente com Lisboa, o único contribuinte líquido inter-regiões. Se houvesse lá um AJ Jardim talvez não o fosse ...

É incontestável que a excessiva centralização da decisão em Portugal tem servido para emperrar o desenvolvimento. A questão é que emperra o desenvolvimento de “todo” o país, e não apenas das zonas periféricas. A burocracia cria tantos problemas a quem mora nas traseiras do Terreiro do Paço, como a um agente económico de Vinhais. Por outro lado, se exceptuarmos parte do litoral do país, há uma escassez gravíssima de massa crítica. Não é possível estabelecer indústrias minimamente qualificadas em quase todo o país, por falta dessa massa crítica. Não há gente qualificada ou, quando a há, é em quantidade muito insuficiente. O complexo de Sines, por exemplo, quando precisa de gente qualificada, tem que a importar de Lisboa ou de outras partes do país. Portanto, se exceptuarmos alguns pólos urbanos do litoral, a centralização é má, mas a descentralização é, actualmente, impossível. O interior do país entrou numa espiral de subdesenvolvimento que terá que ser combatida. Uma descentralização só poderá ser feita promovendo simultaneamente a criação de pólos urbanos com massa crítica adequada.

Aliás, se observarmos o quadro das NUTs 3, verifica-se que as profundas assimetrias se mantêm dentro das NUTs 2. Há uma diferença abissal entre o Grande Porto e o Tâmega. Provavelmente, dentro do Grande Porto existirá igualmente uma forte assimetria entre a cidade do Porto e os concelhos mais periféricos. A região Norte é a mais pobre, mas o Grande Porto está ao nível do Algarve e do Alentejo Litoral (região atípica, de baixa densidade populacional, onde o complexo de Sines e o turismo têm um peso importante).

Estas assimetrias são difíceis de corrigir, mesmo em países bastante descentralizados e com um forte poder regional. Há a experiência dos milhões recebidos pela ex-RDA e dos resultados pouco convincentes da aplicação desses fundos. A Alemanha saiu da 2ª Grande Guerra arrasada. O seu único capital eram os alemães, o seu know-how, a sua disciplina e o seu profissionalismo. Em menos de 20 anos tornaram-se na primeira potência económica da Europa. A mentalidade de dependência do Estado instilada durante mais de 4 décadas aos cidadãos da RDA foi muito mais destrutiva que as bombas dos Aliados. Passaram-se 15 anos e continua a não conseguir ultrapassar o atraso.


Tivemos igualmente a experiência recente, nos EUA, das assimetrias que o Katrina trouxe para a ribalta, entre Estados como a Louisiana ou o Mississipi e os Estados da costa Leste, Grandes Lagos ou costa do Pacífico. Vimos a diferença de reacção perante uma catástrofe, de habitantes de Nova Iorque e de Nova Orleães.

As assimetrias não têm apenas a ver com investimentos. Têm também a ver com mentalidades, grau de instrução e de cidadania. Apesar da sua escassez, mobilizar fundos é o mais fácil. Usá-los bem, é que é complicado.

PIBregionalpercapita.jpg

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Nota: PPC = Paridade de Poder de Compra. Quando os valores são negativos, significa que se está num processo de divergência com a média comunitária (UE15 e UE25)

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abril 25, 2005

O Princípio de Pedro

Quando ganhou a Câmara Municipal de Lisboa, muitos pensaram, e ele talvez mais que todos, que só o céu seria o limite. Todavia, quanto maior a nau, maior a tormenta. E a tormenta foi extrema: a nossa mesquinhez intelectual e a nossa ânsia pelo bota-abaixo uniram-se em bloco contra um personagem que tantos anti-corpos havia criado. E Santana Lopes revelou-se um timoneiro cada vez mais inábil à medida que a nau crescia e a tormenta aumentava.

Santana Lopes ganhou a CML com duas ideias emblemáticas. O Casino e o Túnel do Metro. O Casino do Parque Mayer, uma obra normal numa comunidade que não fosse intelectualmente bacoca e culturalmente provinciana , foi inviabilizada pelo facto de Santana Lopes estar em minoria na AML. Em contrapartida o Túnel, uma obra cara e não prioritária no balanço das carências de Lisboa, começou e tem progredido com altos e baixos, num torvelinho de paixões, onde tem sobejado a irreflexão e faltado o rigor técnico.

Santana Lopes não soube lidar com uma situação obviamente complexa. Mas é isso que se espera de um político com ambições. Carmona Rodrigues, que nunca havia sido um político e cujo perfil é fundamentalmente técnico, acabou por ter uma prestação mais aceitável que um político profissional para o qual só o céu parecia o limite.

Finalmente veio o Verão quente de 2004. Durão Barroso após dois anos de um governo penoso, sem vislumbres de imaginação, sem ousadia para tomar as medidas que o país precisava, rodeado de ministros cuja média de competências deixava a desejar e sem coragem para remodelar o gabinete, aproveitou a oportunidade dada pela escolha para Presidente da Comissão Europeia para abandonar um barco de que já não conseguia ser timoneiro. Pela ordem natural da normalidade democrática, seria Santana Lopes a suceder-lhe.

Todavia, Santana Lopes nunca deveria ter aceitado a indigitação. Como eu escrevi aqui, nessa altura, tal foi um presente envenenado. Sampaio indigitou-o apenas por duas razões: 1) não se atreveu a inviabilizar a ida de Durão Barroso para a Comissão Europeia; 2) o PS não tinha então líder capaz.

Santana Lopes formou governo numa situação de grande desvantagem. O PR arrastou a indigitação, sujeitando-o a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política – caso Marcelo, artigos de semanários, demissão de um ministro, etc..

Santana Lopes agiu durante esse tempo como um «patrocinado» do PR, um seu protegido, um seu cliente (no sentido romano do termo), sem perceber que Sampaio apenas o havia indigitado como solução interina enquanto o PS não fosse uma alternativa política credível. Era uma estratégia clara. Foi-o para mim, que estou muito longe destas andanças, e certamente seria mais óbvia para Santana Lopes, que calcorreava quase diariamente o caminho para Belém para ouvir mais uns remoques do PR. PSL ao aceitar aqueles meses de contínuas humilhações, numa postura que lhe não é habitual, perdeu toda a credibilidade política.

Durante esses meses, Santana Lopes não mostrou a coragem política que o seu passado sugeria ter. Capitulou perante o vampirismo da comunicação social e a hipocrisia das manobras presidenciais. Ficou uma sombra do enfant terrible que era anos atrás. Cada vez mais se produzia perante as câmaras em estado de compungida penitência, olhando os algozes com a humildade de quem teme pela punição dos pecados que terá, segundo o que o braço secular presume, cometido. A sua prestação tornou-se cada vez mais errática, de derrotado à partida, de vencido antes do jogo começar.

A estatura de um político revela-se nos momentos difíceis. A estatura dos políticos que ficaram na história revelou-se tanto maior quanto mais críticas foram as situações com que se confrontaram. Santana Lopes falhou lastimosamente, quando foi confrontado com condições adversas. E quanto mais adversas eram essas situações mais a sua prestação era humilde, submissa, errática.

Após o seu desgaste político no exercício do cargo de 1º ministro, a atitude mais razoável deveria ser a de fazer aquilo que se designa em política como a “travessia do deserto”, esperando que a imagem que criou (e lhe criaram) nesses 6 meses se desvanecesse e os eventuais erros do actual governo servissem de contraponto para uma reavaliação da sua capacidade governativa e da justeza ou não das críticas que lhe foram dirigidas. E aqui verificou-se que o problema de Santana Lopes não era apenas uma questão de imagem – era também uma questão de estatura política.

Santana deveria ter abandonado a presidência do PSD pela porta grande e evitar frases inúteis e pretensiosas, como “vou andar por aí”. Inúteis, porque com certeza que ele continuaria “por aí”, visto não abandonar o partido; pretensiosas porque não correspondiam à força política que ele efectivamente dispunha então. Saber estar calado, também é uma virtude política.

A última humilhação foi a questão da CML. O regresso à CML é discutível, mas pode ser interpretado como uma tentativa de mostrar que não quereria que se continuasse a dizer que ele nunca terminava nenhum mandato. O mesmo não se poderá dizer da candidatura à presidência da CML. Santana Lopes deveria ter sido o próprio a renunciar à recandidatura a Lisboa e nunca pôr isso nas mãos de Marques Mendes. Ao fazê-lo sujeitou-se a mais uma humilhação desnecessária e deu mais um sinal de fragilidade política.

Numa hierarquia empresarial tende-se a subir até atingir o seu nível de incompetência. É o Princípio de Peter. Na política, a situação é mais fluida. Sobe-se até se atingir o nível de incompetência e, se não houver prudência, continua-se o percurso, errático, até se atingir o nível do descrédito. Foi o que aconteceu com Pedro Santana Lopes. É o Princípio de Pedro.

Ler sobre o percurso de Santana:

A Desmagnetização de Santana
Estaturas Políticas
Belém pariu um rato
Um de nós mentes ...
O Tiro no Pé de Santana
O Túnel pela culatra
Patchwork mal cerzido
... E o óbvio aconteceu
Obviamente, Demito-me
Sampaio escreve direito por linhas tortas

E as ligações neste post relativas a textos sobre a crise da sucessão de Durão Barroso.

Publicado por Joana às 07:25 PM | Comentários (40) | TrackBack

março 17, 2005

A Desmagnetização de Santana

Em primeiro lugar, como providência cautelar, queria exprimir a minha opinião que julgo que teria sido preferível para o próprio e para os interesses do partido a que ainda preside, que Santana Lopes renunciasse a regressar à CML. O seu desgaste político no exercício do cargo de 1º ministro foi enorme. Ele pode alegar, com justiça, que foi objecto da mais abjecta e orquestrada campanha de maledicência movida pela comunicação social e pelo marulhar das “fontes de Belém” de que há memória na democracia portuguesa. Mas também deveria reconhecer que reagiu a essa campanha de forma canhestra, cada vez mais errático, e que acabou capitulando (ver aqui e aqui) perante ela, demonstrando uma frágil estatura política.

Em face desse desgaste a atitude mais razoável deveria ser a de fazer aquilo que se designa em política como a “travessia do deserto”, esperando que a imagem que criou (e lhe criaram) nestes 6 meses se desvanecesse e os eventuais erros do actual governo servissem de contraponto para uma reavaliação da sua capacidade governativa e da justeza ou não das críticas que lhe foram dirigidas. Todavia, Santana Lopes preferiu escolher a via mais perigosa e regressar à CML.

Num país politicamente saudável essa decisão deveria ser apenas discutida do ponto de vista da oportunidade e das (des)vantagens políticas, como JPP o fez, por exemplo. Porém, Portugal não é um país politicamente saudável. Assim sendo, a comunicação social entreteve-se duas semanas a tecer mais um rosário de trapalhadas, criando e desfazendo alegados factos políticos, construindo um sólido boato, para a seguir o demolir com fragor, e assim sucessivamente. Que Santana estava a fazer um “tabu” sobre o seu regresso; que Carmona Rodrigues iria recusar permanecer como vereador e abandonar o município; que com ele também Fontão de Carvalho cessaria funções; etc., etc. A posse do novo governo foi a 12 de Março, mas a 13, num domingo, os jornais escreviam que se ignorava na autarquia se ele ia, de facto, regressar, uma vez que o ex-primeiro-ministro nada havia dito sobre o assunto a Carmona Rodrigues (sempre me admirei da ubiquidade dos jornalistas, capazes de saberem de todas as conversas privadas que precisam para fazerem as notícias).

Como se ignorava na autarquia, se era domingo? Que se passaria por detrás daqueles sólidos portões de ferro, naquela tarde soalheira de domingo? Andariam os espectros dos vereadores e funcionários deambulando tresmalhados, desnorteados por aqueles corredores e aquela escadaria, interrogando-se angustiados sobre o regresso do PSL?

E esta situação calamitosa ocorrera porque não tendo renunciado ao cargo, Santana Lopes voltara a ser, formalmente, presidente da Câmara de Lisboa; mas como não delegara competências nos seus vereadores, as competências que neles tinha delegado Carmona Rodrigues já não se manteriam válidas, pelo facto de o ex-primeiro-ministro não ter renunciado ao cargo de presidente da autarquia. Portanto, segundo aquela teoria, naquele fatídico domingo à tarde os lisboetas teriam estado em completa anarquia, pois Santana Lopes tinha passado a ser o único eleito do município com poder para assinar despachos e outros documentos. O que, segundo a imprensa, significava que a CML estaria, naquele fatídico domingo à tarde, em autogestão. Em autogestão? Mas se não estava lá ninguém? E se houvesse uma emergência? Qual o problema, se o PSL poderia assinar eventuais despachos domingueiros? Fácil: Santana é por definição comunicacional, a anarquia absoluta.

Finalmente a cidade descansou quando as agências de informação informaram pressurosas que Pedro Santana Lopes e Carmona Rodrigues haviam entrado anteontem juntos na Câmara Municipal de Lisboa, pouco antes das 11h00. Questionado pelos jornalistas sobre se deve ser tratado como presidente da Câmara, Santana Lopes respondeu apenas: "Chamem-me o que quiserem". Semíramis, que também estava no local, registou que os jornalistas agradeceram e garantiram que se haviam antecipado e já utilizavam aquela autorização (a de Chamem-me o que quiserem) há alguns anos e que a tinham exercido abundantemente.

Mas há forças que velam, dada a tradição que têm de defesa das instituições democráticas. Considerando que a atitude de Santana Lopes representou "um desrespeito pela Constituição", o Bloco de Esquerda defende que "não se pode pôr em causa o funcionamento do Estado". Nesse sentido, o BE solicitou ao presidente da Assembleia Municipal de Lisboa a convocação de uma conferência de representantes dos grupos municipais com o objectivo de debater esta questão. E informaram ainda ter dado conhecimento ao PR, "do não funcionamento de um órgão constitucional, a Câmara Municipal de Lisboa".

Porque será que tudo o que se relaciona com Santana Lopes assume foros do ridículo mais desconchavado? Porque será que comunicação social, os partidos contrários e o próprio partido elaboram sobre ele as hipóteses mais absurdas e disparatadas? E finalmente, porque cai tudo, depois, sobre ele?

Só há uma explicação. O magnetismo pessoal de Santana Lopes aumentou exponencialmente, com tal vigor, que o seu campo magnético atrai todo o ferro velho e sucata política. Cai tudo sobre ele.

O homem deveria mesmo fazer a tal travessia do deserto e aproveitá-la para uma desmagnetização total.

Publicado por Joana às 08:57 AM | Comentários (16) | TrackBack

dezembro 30, 2004

Punir o Bota-abaixo Obstrucionista

Em 5 de Dezembro escrevi aqui (cf. O Túnel pela culatra) que o causídico das «causas populares» José Sá Fernandes deveria ser cauteloso e evitar passear-se por aquela zona, enquanto os moradores e comerciantes locais não esquecessem o sofrimento por que têm passado. Muitos comentadores desdenharam então dessa afirmação e auguraram uma promissora carreira a uma das mais proeminentes figuras do «não deixar fazer nada» à portuguesa.

Hoje soube-se pelos jornais que um grupo de moradores e comerciantes que se sentem prejudicados pela interrupção de sete meses das obras do túnel do Marquês, em Lisboa, constituíram a "Comissão de Lesados por Sá Fernandes", e admitem avançar para tribunal para exigir indemnizações pelos prejuízos que sofreram pela paragem da construção do túnel em Abril. Segundo um dos impulsionadores da comissão, esta já reúne cerca de uma centena de pessoas, residentes e comerciantes da área afectada pelas obras e mesmo gente que não sendo da zona, a utilizava e que sofreu graves transtornos.

Não me parece que essa acção tenha pernas para andar. Afinal de contas quem ordenou a paragem das obras foi o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa. Sá Fernandes apenas interpôs a «acção popular» que se veio a revelar uma «acção muitíssimo impopular»! Provavelmente a intenção dos moradores é que aquela comissão constitua uma espécie de providência cautelar contra futuros delírios cívicos daquele advogado

Todavia é bom que Sá Fernandes saiba que o seu protagonismo em impedir a realização de obras sob a epígrafe revolucionária de «acção popular», só é popular entre os amigos dele e os meios de comunicação social. E nestes, apenas até concluírem que a população está irada, assestando então baterias em sentido contrário ... audiências oblige.

Em Portugal, quando se pretende fazer qualquer coisa, seja a nível do governo, seja a nível autárquico, seja mesmo a nível de grupos de cidadãos para fazer um simples parque de estacionamento subterrâneo, levanta-se imediatamente um coro de protestos dos quadrantes mais inesperados. Tudo serve para tentar impedir a realização de qualquer empreendimento: a mentira ou as meias-verdades insidiosas, a calúnia mais torpe, a chicana, a intriga, a gritaria, providências cautelares, manifestações, etc.. Todos os meios possíveis são mobilizáveis na cívica e patriótica tarefa de impedir que algo seja feito.

Se exceptuarmos o futebol, que foge a esta regra por estar dominado por gente despicienda do ponto de vista intelectual, Portugal atinge o máximo da sua exaltação patriótica e cívica quando os intelectuais p.c. (politicamente correctos) e os órgãos de comunicação social, colonizados por eles, mobilizam as forças vivas da Pátria para a ingente tarefa de não deixar fazer nada.

É esta mentalidade obstrucionista que tem que acabar. Ela não corresponde à vontade do povo português, mas apenas a uma fina camada urbana arrogante e convencida que detém a verdade absoluta, verdade que parece ser a vontade do país, apenas porque controla a informação.

Há cerca de 3 anos fui a Évora em serviço, no preciso dia em que se realizava uma manifestação ambientalista para protestar contra a Barragem do Alqueva, exigindo a cota 139. De início não me apercebi de nada. Reparei apenas que muitas árvores das praças da cidade tinham fitas pretas atadas ao caule. Quando ia a chegar à Praça do Geraldo, uma adolescente com uns ramos entrançados encimando a cabeça, lembrando a coroa de espinhos, distribuía uns prospectos, perante a indiferença, e mesmo hostilidade, da população.

Já estava eu na Praça do Giraldo quando esse pessoal se reuniu no centro da praça e clamou repetidamente o refrão «Cota 139». Não deveriam ser mais de 30. Dezenas de repórteres, com apoio de vários carros de exteriores, afadigavam-se à volta daquele grupo, tentando obter as imagens mais favoráveis. Quando acabaram as imprecações, o pessoal subiu para o autocarro que o tinha levado até àquela cidade alentejana e foi-se embora. Os eborenses ignoraram completamente aquela incursão dos «bem pensantes» de Lisboa.

E de facto, o plano de rega que faz parte do projecto do Alqueva, que ultrapassa Ferreira do Alentejo e Odivelas, só é possível com uma cota que permita o transporte por gravidade até zonas tão distantes, minimizando o custo de energia em Estações Elevatórias. É a cota 152 que permite esse plano de rega e a população interpelada pelos excursionistas ou sabia isso, ou apenas estava farta de intromissões estúpidas e arrogantes nas suas vidas.

Mas não é apenas nestes níveis que o não fazer nada prevalece, ou tenta prevalecer. O principal cuidado de qualquer gestor público que se preze e que pretenda singrar nas sinecuras estatais, é evitar tomar decisões. Tomar uma decisão é o acto mais atrevido e arriscado que um gestor público pode fazer. Um gestor público pode ser punido ou enxovalhado publicamente por tomar uma decisão. Passará completamente desapercebido se evitar tomar decisões. O gestor público é premiado, não pelas decisões que tomou, mas pelo patriótico empenho em não tomar qualquer decisão.

Essa mentalidade, muito arreigada no nosso país, e, hoje em dia, curiosamente sustentada primordialmente por aqueles que se arrogam de progressistas e de terem o futuro nas mãos, tem que ser erradicada porque é, desde há séculos, um dos maiores obstáculos, senão o principal, ao desenvolvimento do país.

É esse dever cívico de contrariar aqueles que não deixam fazer nada, que se impõe presentemente ao povo português. Era imperioso que o povo português se consciencializasse, ganhasse voz (não a voz daqueles que se arrogam permanentemente de serem as suas vanguardas conscientes) e se organizasse para pressionar para se fazerem coisas, em vez de assistir, nas TVês, à proliferação de pseudo-organizações do apostolado da inércia, que não representam ninguém, e cujas dezenas de membros estão igualmente filiadas em centenas de outras pseudo-organizações que não passam de emplastros emolientes.

É essa recusa à mudança e à inovação, misturada com a mesquinhez e a inveja, que constitui a amálgama mortífera que se opõe ao nosso desenvolvimento. Contribuir para a sua erradicação é o dever de todos nós.

Publicado por Joana às 07:55 PM | Comentários (52) | TrackBack

dezembro 05, 2004

O Túnel pela culatra

O Túnel do Marquês foi a obra emblemática da campanha de Santana Lopes à CM Lisboa. Nunca me pareceu, todavia, uma obra prioritária para Lisboa. O cruzamento desnivelado com a Rua Artilharia 1 era, sim, prioritário. Porém o Túnel do Marquês é uma obra muito complexa do ponto de vista estrutural, e portanto dispendiosa, o que me faz supor que outras obras teriam para a capital um rácio benefício-custo provavelmente mais elevado.

Todavia achei vergonhosa a campanha histérica e obstrucionista movida pela oposição e pelas associações «cívicas» que brotam do nada e não representam nada nem ninguém, a não ser os que protagonizam aparições televisivas. O advogado Sá Fernandes, especialista em acções populares na área ambiental, não perdeu a ocasião para adquirir mais protagonismo social e conseguiu uma forma legal de bloquear o prosseguimento da obra.

Essa vitória das «forças cívicas» portuguesas produziu então um enorme entusiasmo na comunicação social. Nos ecrãs televisivos só se viam rostos felizes zombando do fracasso do play-boy da política. Há dias, uma decisão do STA deu provimento ao recurso da CML e anulou as decisões dos tribunais das instâncias inferiores – as obras podem prosseguir.

Não houve manifestações de dor. O causídico das «causas populares» titubeou umas frases sobre o sentimento do dever cumprido e ficou-se por ali. Entrevistas a alguns comerciantes e moradores da zona mostravam a enorme satisfação por entreverem uma luz ao fundo do túnel do seu calvário. Foi com suspiro de alívio que os lisboetas e os suburbanos que demandam Lisboa por aquele eixo receberam a notícia do recomeço das obras e de haver um epílogo anunciado do seu sofrimento diário.

Mudam-se as situações, mudam-se as vontades. Os promotores da campanha sentiram o vazio à sua volta; a comunicação social sentiu o vazio à volta dos promotores da campanha; a população lisboeta e, principalmente, os utentes daquele eixo, começaram a sopesar a realidade face aos mitos, a comparar o empecilho dos factos com os inebriantes estouvamentos «cívicos» ... e o que parecia ser uma verdade irrefutável meses atrás, tornou-se um incómodo obstáculo a remover com urgência.

E o protagonismo mediático do advogado Sá Fernandes só lhe vai servir para ser cauteloso e evitar passear-se por aquela zona, enquanto os moradores e comerciantes locais não esquecerem o sofrimento por que têm passado.

No tempo da vereação de João Soares construíram-se túneis e parqueamentos subterrâneos e estes nunca precisaram de estudos de impactes ambientais. O parque subterrâneo da Praça do Município foi inclusivamente construído sem licenciamento municipal. Os serviços não se despachavam e João Soares procedeu à sua construção na mais completa ilegalidade. Se alguém protestou, não transpareceu para o público. E se eu critico João Soares não é por ter construído o parque, que foi uma obra útil para a cidade, mas por não pôr os serviços camarários a funcionar – porque, para além da presidência da CML, há muitas centenas de munícipes que esperam anos a fio por licenciamentos camarários ... sem mencionar os milhares que as realizam clandestinamente para evitarem aborrecimentos.

Pelas razões que invoquei inicialmente, nunca considerei esta obra prioritária. Todavia não partilho da ideia que tornar mais fáceis os acessos a Lisboa seja prejudicial, porque traz mais tráfego à capital. Essa tese malthusiana conduziria a não construir alternativas para as estradas estreitas e sinuosas que existiam, e ainda existem, no nosso país. Desincentivar o uso do automóvel não se faz mantendo as rodovias em estado precário. Faz-se fiscalizando severamente o estacionamento público, melhorando os interfaces com os transportes públicos e utilizando estes de uma forma mais integrada e adequada aos interesses dos utentes. Não basta investir na qualidade e quantidade do material circulante, esse investimento tem que ser complementado com uma mais eficiente organização do seu funcionamento e adequação às necessidades dos utentes. E faz-se, se tudo o mais falhar, impondo portagens nos acessos à cidade, ou a algumas zonas dela.

Resumindo: não a julguei nem a “melhor decisão”, nem uma “má decisão”.

Há uma questão, certamente do escopo metafísico e transcendental, que rodeia as decisões de Santana Lopes: estas provocam excitações frenéticas, histerismos fanáticos, emoções exaltadas. Qualquer decisão que ele tome, por mais elementar e comezinha que seja, provoca os arrebatamentos mais desmedidos. Enquanto ele permaneceu na Figueira, protegido dos olhares da capital pelo sistema Montejunto-Estrela, decidia numa obscuridade tranquila; mas assim que veio para a capital foi objecto de permanente linchamento público, quer como Presidente da CML, quer quando se atreveu a deixar-se indigitar como PM.

Foi o que aconteceu no caso do Túnel do Marquês. Nada do que se escreveu ou disse sobre esta matéria teve qualquer conteúdo racional, mas apenas emotivo. A obra é complexa do ponto de vista estrutural, mas o estudo de impacte ambiental não tem nada a ver com o rigor dos cálculos estruturais; se do ponto de vista da fluidez do tráfego a obra não for uma boa solução, tal não é matéria do EIA, mas dos estudos de tráfego. A necessidade do EIA foi apenas uma manobra política para protelar a obra e adiá-la o tempo suficiente para trazer dividendos eleitorais. O EIA nunca iria condenar a obra e evitar a sua realização, apenas iria protelá-la mais de um ano – o tempo necessário para executar o EIA, para a audiência pública e para a sua aprovação. O tempo suficiente para minar a credibilidade eleitoral do PSL no que respeita a uma então possível reeleição para a CML.

Quando a emotividade prevalece sobre a racionalidade, acontece disto ... há o fluxo e refluxo. As emoções não têm consistência para fundamentarem soluções. É como construir castelos na areia – a maré alta fá-los desaparecer sem deixar rasto.

Publicado por Joana às 09:32 PM | Comentários (25) | TrackBack

agosto 08, 2004

A Maldição de Santarém

Santarém foi o resultado de um erro e da sua correcção por parte do Criador. Depois de ter criado aquelas sete colinas magníficas sobranceiras a um rio largo e vagaroso, rodeadas por uma lezíria ubérrima que se estende por dezenas de quilómetros, mas sem se perder de vista, tal a proeminência da colina principal, amuralhada há milénios, concluiu que tinha sido extremamente injusto na distribuição das benesses divinas e resolveu remediar a injustiça e equilibrar o balanço, com o povoamento que fez brotar daquelas terras.

Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. A própria ninfa Calipso, entediada por reter sete anos o adorado Ulisses na sua ilha, levou-o, numa escapadela turística, às plagas lusitanas, subiu Tejo acima, até àquelas amenas e formosas paragens, e aí desovou o fruto da sua paixão, o príncipe Ábidis.

Mas as forças vivas daquela terra sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. O rei da terra mandou que Ábidis fosse lançado numa cesta às águas do Tejo, para servir de alimentação da fauna piscícola e aparecer mais tarde, nas ementas regionais, sob a epígrafe de «açorda de sável».

Mas o que os homens fizeram, os animais desfizeram, e também nas margens do Tejo, à semelhança do Tibre, uma loba salvou, amamentou e criou um futuro rei. E assim, escapando à voracidade do sável, Ábidis passou a patrono de pastelarias e hotéis do burgo multi-milenar.

E todos foram rendendo tributo à sua importância: Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Visigodos, Muçulmanos, etc. Essa importância geo-estratégica e económica de Santarém tornou-a um dos locais preferidos das cortes portuguesas e um dos povoados em que mais tempo permaneceram os nossos monarcas até ao acidente equestre ocorrido nos arredores de Santarém que causou a morte do infante D. Afonso, filho do rei D. João II.

Mas foi ainda em Santarém que D. António Prior do Crato se aclamou rei de Portugal, em 1580, na tentativa falhada de impedir a perda da independência de Portugal. Foi em Santarém que, durante a Guerra Civil entre liberais e absolutistas, D. Miguel estabeleceu o seu último reduto de resistência aos liberais e foi de lá que D. Pedro IV dirigiu a liquidação final das forças miguelistas.

Massena escolheu Santarém para a sua posição militar chave, na tentativa frustrada de romper as Linhas de Torres, atrás das quais estava o último reduto da Europa Continental que se opunha às águias napoleónicas. Se, em vez do «filho querido da vitória», tivesse vindo o próprio Napoleão, este teria certamente proclamado aos seus soldados, para lhes avivar o entusiasmo: «Do alto daquelas muralhas trinta séculos vos contemplam». Felizmente tal não aconteceu. Não apenas por Napoleão ser um adversário mais temível que Massena, mas também porque se Napoleão tivesse reeditado a ordem do dia «burros e sábios ao centro», geraria longa e penosa controvérsia sobre quem seriam os sábios e quem seriam os burros.

Durante séculos todas as vilas e burgos do Ribatejo renderam tributo a Santarém. Era um tributo natural pela sua posição geográfica e por os serviços administrativos, o liceu, etc., estarem aí situados. Os proprietários das grandes casas agrícolas da região também procuraram essa colina sobranceira ao Tejo para olharem, sobranceiros, os íncolas que labutavam ao longe, sol a sol, pela lezíria.

Todo este enquadramento geográfico e histórico criou uma camada social proeminente, extremamente fechada, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Todavia, as circunstâncias que permitiram ao longo dos séculos a sua criação modificaram-se nos últimos 30 anos. Houve descentralização dos equipamentos culturais e educacionais. As cidades e vilas ribatejanas conheceram um grande dinamismo e começaram a ficar mais próximas dos centros de decisão de Lisboa, sem passarem pela intermediação de Santarém. Quem conheça bem a região não deixará de notar que nas duas últimas décadas Santarém tem tido uma modernização menos significativa que a da maioria dos aglomerados ribatejanos que a rodeiam (Cartaxo, Almeirim, Rio Maior, etc.). Tudo se modificou, menos a mentalidade daquela camada social.

Há semanas o governo pôs a hipótese de transferir a Secretaria de Estado da Agricultura e da Alimentação para Santarém. Os dirigentes escalabitanos comportaram-se então com o elevado sentido da importância que a si próprios se atribuem. O presidente da autarquia da ínclita cidade estava tranquilamente em férias e o vice-presidente, do alto das suas sobranceiras muralhas, declarou ao CM (30-07-2004) que a «autarquia não tem imóveis preparados para receber uma estrutura deste género» e que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores».

Como escrevi acima, as forças vivas de Santarém sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. Portanto, desvalorizar essas alegadas benesses, seria um passo imprescindível e necessário para um autarca puro-sangue escalabitano, antes de as aceitar. Seria Santarém a fazer o favor de aceitar ... assim é que estava certo e mandava a tradição

Todavia aconteceu algo que seria inverosímil décadas atrás, e que continua a sê-lo para as mentalidades escalabitanas: O presidente da Golegã, perante o que ele qualificou de «inércia e inépcia de Santarém» disponibilizou junto do governo um magnífico palácio do século XVII, interiormente modernizado, apto para utilização imediata e mesmo no centro da terra.

O presidente da CMS ficou de tal forma siderado que interrompeu as férias. Criticando a CM Golegã por ter feito aquela proposta insidiosa (“mau tom” e “deselegante”) e que violava os direitos de vassalagem devidos pela Golegã, o presidente da CMS propôs, apressadamente, o que viu mais à mão, de relance: a EZN (que não é da CMS, mas do próprio Ministério da Agricultura) e o CNEMA (cujo accionista maioritário é a CAP, em cujo Conselho de Administração a CMS só tem 1 representante, entre 6, e que tem tido relações péssimas com a autarquia). Isto é, a CMS «disponibilizou» ao governo instalações de outrem e que, para cúmulo, se encontram ocupadas.

A Golegã não tem bons acessos na direcção de Lisboa. A estrada Santarém – Golegã é um caminho de cabras. A melhor solução é ir na direcção do Entroncamento e tomar a A1 no nó de Torres Novas. Mas as localizações que, tardiamente, a Santarém sugeriu, para além de serem de outrem e de estarem ocupadas, são muito periféricas relativamente à cidade: 2,5 kms (CNEMA) e 8 kms (EZN), bastante distanciadas do tecido urbano.

Neste processo, os autarcas de Santarém mostraram o lado mais negativo do carácter «puro-sangue» escalabitano e o porquê da estagnação relativa da cidade. Sobranceiros perante a «oferta», quando julgaram que não havia concorrência, coléricos perante o vassalo (Golegã) que renegou os seus deveres de fidelidade, arranjando apressadamente soluções de recurso insensatas quando se viram postergados.

Se a CMS achava que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores», deveria manter essa posição até ao fim. Teria sido mais digno e, sobretudo, coerente, que arranjar soluções de recurso insensatas e criticar Golegã por haver disponibilizado uma solução alternativa.

E o mais curioso é que ambas as autarquias são socialistas e que a Golegã nem sequer tem qualquer vereador do PSD, de tal maneira o PSD é uma força minoritária no concelho. Até 1997 Golegã foi uma Câmara CDU. O PS ganhou em 1997 e esmagou literalmente a CDU em 2001.

Publicado por Joana às 11:48 PM | Comentários (20) | TrackBack

abril 29, 2004

Debates Vazios, País Adiado

O debate social e político em Portugal está sobremaneira empobrecido.

Vem isto a propósito dos meus dois últimos textos sobre a questão do túnel do Marquês e de alguns comentários com que fui mimoseada quer aqui, quer no Expresso on-line. Mas não só, todo o debate sobre essa matéria foi inquinado.

Em primeiro lugar disse, e sublinhei várias vezes, que, no meu parecer, não julgava aquela obra prioritária, principalmente pelos custos que seguramente acarreta, dada a sua complexidade. Tem algumas vantagens – desnivela o cruzamento com a Rua Artilharia 1 e retira bastante tráfego da rotunda do Marquês de Pombal. Em contrapartida, ao facilitar os acessos a Lisboa, pode, eventualmente, conduzir a um aumento diário do número de veículos no centro da cidade.

Acho todavia bastante primitiva a teoria de que não se devem melhorar os acessos à cidade para evitar a entrada de mais veículos. Esta tese é absolutamente estúpida. A entrada dos veículos no coração da cidade combate-se com a melhoria da oferta dos transportes públicos, em quantidade e em qualidade, principalmente o transporte ferroviário – comboios, metropolitano, eléctricos rápidos, etc., aumentando e diversificando os eixos radiais e densificando a malha. Eventualmente, como medida desmotivadora, poderão estabelecer-se portagens ou passes que autorizem, mediante pagamento, a circulação em determinadas zonas, nunca colocando obstáculos à fluidez do tráfego.

Sintetizando, não considero a obra prioritária porque as suas inegáveis vantagens não compensam, segundo julgo, os respectivos custos, e isto tendo em conta projectos alternativos de que a cidade está carenciada. Mas isto é apenas uma opinião baseada em estimativas pessoais, porque desconheço os custos exactos da obra, os estudos de tráfego (calculo que tenha havido), etc..

Em segundo lugar assistiu-se a uma tentativa de baralhar o debate trazendo à colação assuntos que não tinham nada a ver com o que estava em causa. O TAFL apenas deu provimento à alegação que pedia a realização de um EIA. Não deu provimento às restantes alegações. Ora o pessoal dissertou abundantemente sobre os declives, sobre a insegurança do troço, sobre a falta de projecto, etc.. Ora o EIA não tem nada a ver com isso. Tal é matéria da engenharia e não do ambiente – rasantes, geologia, geotecnia e mecânica dos solos, hidrologia, estruturas etc.. São matérias do âmbito dos projectistas.

Outro disparate foi a afirmação de que não havia projecto. Uma obra pode ser adjudicada sem projecto de execução. O que não é possível é começar qualquer parcela da obra, sem que essa parcela tenha um projecto de execução. Tomemos o exemplo de um hotel. Posso adjudicar a construção de um hotel baseada num anteprojecto, estimativas de quantidades e séries de preços. Posso iniciar as escavações para os pisos enterrados, sem projecto de execução. Todavia só posso começar com as fundações após ter o projecto de estruturas. E assim sucessivamente. Os projectos de execução relativos às especialidades (electricidade, ar condicionado, elevadores, etc.) também podem começar posteriormente. Com este faseamento conseguem-se grandes ganhos nos prazos, mas obriga a uma coordenação extremamente rigorosa. É assim que no estrangeiro se fazem as obras importantes que se querem em prazos curtos. É assim que em Portugal já se fazem muitas obras. Veja-se a rapidez com que foi executado o Estádio da Luz.

Depois alguns aprendizes de feiticeiro apareceram a citar o Decreto-Lei n.º 69/2000, Mas apenas citaram o título. O Público foi mais longe e hoje citou uma parcela do anexo 1 que diz que « b) Construção de auto-estradas e de estradas destinadas ao tráfego motorizado, com duas faixas de rodagem, com separador, e pelo menos duas vias cada…», mas esqueceu-se de continuar !? O texto completo é: « b) Construção de auto-estradas e de estradas destinadas ao tráfego motorizado, com duas faixas de rodagem, com separador, e pelo menos duas vias cada, e c) Construção de itinerários principais e de itinerários complementares, de acordo com o Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho, em troços superiores a 10 km».

Este texto não é muito claro e permite mais que uma leitura. Todavia, e adicionalmente, a obra em questão é uma via subterrânea e não de superfície. Por outro lado, e eu chamei a atenção para essa circunstância logo de início, este próprio decreto dispõe, no artigo 3º que «Em circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, o licenciamento ou a autorização de um projecto específico pode, por iniciativa do proponente e mediante despacho do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e do ministro da tutela, ser efectuado com dispensa, total ou parcial, do procedimento de AIA.». Ora só hoje começaram a aparecer referências nos jornais a essa possibilidade e por efeito das declarações dos políticos envolvidos neste caso. Os jornalistas não estudam nada. Limitam-se a contar o que ouvem, aqui e acolá.

Portanto grande parte das diatribes jornalísticas e dos comentaristas da net fundava-se apenas quer na ignorância, quer na necessidade imperiosa de utilizar qualquer coisa, como arma de arremesso político.

A minha tentativa de caracterizar os factos em questão, com a objectividade e o rigor de que fui capaz, sofreu tratos de polé. Como não coloquei imediatamente o baraço ao pescoço do PSL, fui acusada de Santanista. Quem me invectivava não estava interessado no apuramento dos factos, estava apenas interessado no canhoneio político. Os factos eram apenas um empecilho incómodo e despiciendo.

O pessoal da net que discute estas matérias com ligeireza e falta de rigor, não é inteiramente culpado por o fazer. Há uma escola portuguesa de falta de rigor e de falar sem saber o que se diz. E os jornalistas são o exemplo mais lídimo dessa escola e têm sido os docentes por excelência dessa Universidade «das Bocas». Se os jornalistas começassem a abordar estas questões com rigor, isso seria pedagógico para toda a sociedade e, por arrastamento, mesmo para os comentadores da net mais relapsos.

Teríamos então debates mais consistentes e uma maior sensatez na abordagem dos problemas que nos afligem. A continuar como estamos, só temos gritaria sem conteúdo e um país permanentemente adiado.

Publicado por Joana às 08:09 PM | Comentários (37) | TrackBack

abril 28, 2004

O Túnel da Ignorância

A nossa ignorância é um espanto. Os nossos profissionais (e amadores) da comunicação social escrevem sobre matérias, frequentemente complexas, sem ter previamente feito qualquer estudo nem obtido uma informação rigorosa, e peroram sobre elas com total superficialidade, muita ignorância e uma auto-convicção notável. Por sua vez, e cada vez mais, os nossos políticos vão resvalando para a mesma superficialidade e ignorância. A ausência de profissionalismo na nossa sociedade é enorme e esconde-se atrás do biombo das frases feitas, dos grandes chavões e da dramatização verbal.

As questões emergentes da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa são um exemplo paradigmático disso.

O Secretário de Estado do Ambiente tem razão quando afirma que «este não é um projecto que esteja na listagem taxativa dos anexos do decreto-lei que em Portugal transpôs a legislação europeia sobre avaliação de impacte ambiental». Mas isto tem sido o entendimento do Ministério, neste e no anterior governo, e do Instituto do Ambiente, relativamente ao Anexo 1 do Decreto-Lei que regula a avaliação do impacte ambiental.

Por outro lado, o próprio Ministério, de acordo com o mesmo decreto, pode dispensar a avaliação do impacte ambiental, quando tal for requerida e se a fundamentação desse requerimento tiver parecer favorável do próprio ministério. Todavia esqueceu-se que existe um instrumento legal – a acção popular – que pode ser interposta para exigir um EIA (Estudo de impacte ambiental). Cabe então aos tribunais dar ou não provimento a essa acção. Ora, a partir da altura em que estas questões estão sob a alçada dos tribunais, como a experiência recente tem mostrado, tudo pode acontecer: os juizes podem decidir «A», «não-A» ou nem uma coisa nem outra. E essas decisões podem ser revogadas e repostas nas instâncias sucessivas.

Ontem escrevi aqui que «… Santana Lopes deveria ter-se rodeado de todas as cautelas. Numa obra na rede viária (referia-me à rede viária urbana), como num parque de estacionamento subterrâneo, não é, em princípio, preciso um estudo de impacte ambiental. Todavia a legislação prevê, como matéria geral, que pode ser interposta uma acção popular a exigir um estudo de impacte ambiental. Qualquer obra viária tem algum impacte ambiental – pó, ruídos, alterações nas circulações viárias, etc. – cujas medidas mitigadoras fazem parte do próprio caderno de encargos, mas cuja eficácia pode ser posta em causa por essa acção popular e obrigar a um estudo independente. Santana Lopes deveria ter previsto isso. O facto de João Soares ter feito a maior parte das suas obras públicas sem licenciamentos, e sempre sem estudos de impacte ambiental, não colhia. João Soares é dos «bons», é fixe

Portanto, o Secretário de Estado do Ambiente apenas parcialmente tem razão. Esqueceu-se, infelizmente para ele, para SL e para os utentes do eixo Oeiras-Lisboa, de outras possibilidades que a lei confere aos cidadãos recalcitrantes.

Adicionalmente o Fernando Madrinha, jornalista de créditos reconhecidos, deveria ter-se informado melhor antes de vir para o Expresso on-line desfiar um rosário de banalidades cujo único mérito pode ser o de entreter o apetite das piranhas do on-line.

Os regimes democráticos, no sentido de aperfeiçoar a cidadania, dotaram-se de instrumentos para defender legalmente os direitos dos cidadãos. Todavia, onde a mesquinhez impera, o uso desses instrumentos legais pode levar à completa paralisia e o que foi imaginado para defesa dos cidadãos pode ser pervertido para tornar a generalidade dos cidadãos vítima dos seus efeitos.

No caso em apreço, a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa cria um precedente que pode paralisar a gestão urbana, já de si embaraçada por diversas peias administrativas. Basta observar as declarações proferidas ontem pelo vereador Vasco Franco (PS), que detinha o pelouro das obras na vereação anterior. Apesar de ser contrário àquela obra, admitiu que não era hábito exigir-se um EIA em circunstâncias semelhantes (teria dificuldade em admitir outra coisa, visto que nas obras municipais sob a sua direcção não houve nenhum EIA) e deu a entender que aquela decisão poderia abrir um precedente embaraçoso. Isto apesar de ter dito que, à cautela, teria sido preferível mandar fazer previamente um EIA (noblesse oblige).

Não sei quem irá ganhar com esta decisão. Quem perde são os cidadãos da zona de Lisboa, que irão esperar mais 10 a 12 meses pela conclusão da obra (é duvidoso que o EIA venha a inviabilizar o empreendimento). Quanto a dividendos políticos, o PSL vai, com toda a certeza, explorar a dicotomia «os que querem fazer obra» versus «os que só sabem criar empecilhos». Não sei quem angariará mais votos com esta controvérsia. Os meios de comunicação e os kamikazes da net estarão, na maioria, contra PSL. Porém a população em geral está farta de empecilhos e quer ver obra (qualquer que ela seja). Basta observar o descrédito com que a população vê os ambientalistas, que apenas têm audiência, e muita, junto dos meios de comunicação e alguma entre os políticos fragilizados pela incompetência e vulneráveis pela falta de coragem. O futuro o dirá.

E o que é paradoxal é esta controvérsia surgir acerca de uma obra que não é prioritária, pelo menos segundo o meu entendimento, e cujo rácio benefício/custo me parece bastante duvidoso.

Publicado por Joana às 08:20 PM | Comentários (32) | TrackBack

abril 27, 2004

Democracia e Mesquinhez

É difícil fazer algo em Portugal. É certo que ninguém gosta das coisas como elas estão. Todavia isso tornou-se no desporto nacional de que poucos querem abdicar, face à escassez das infra-estruturas para outros tipos de desportos. O desporto nacional é dizer mal do que está. Serve para anedotas, chistes, motejos, sarcasmos, facécias, boatos, risotas, má-língua, escárnio, etc.. Parte dos comentaristas nacionais vivem de dizer mal – se as coisas se começassem a endireitar, onde iriam eles buscar matéria para entreter a sua ociosidade?

Porém pretender fazer qualquer coisa desencadeia a tempestade. Como assim, estão a pretender destruir o manancial que fecunda a nossa inesgotável verve? E gera-se como que um conluio social para embaraçar, obstruir, impedir, sabotar, etc., o que se pretende fazer.

Há 3 ou 4 anos, tive, indirectamente, por via familiar, uma experiência interessante e elucidativa sobre como funciona em Portugal o «não deixar fazer».

Um grupo de moradores pretendera construir um parque de estacionamento subterrâneo. Essa pretensão teve apoio entusiástico da vereação lisboeta e da Junta de Freguesia. Tudo indiciava que o empreendimento iria correr célere, sobre rodas. Puro engano! Durante 7 anos os processos arrastaram-se pelos diversos serviços camarários. E os mais recalcitrantes e impiedosos foram os arquitectos dos «Espaços Verdes», com permanentes e absurdas exigências que iam encarecendo o projecto e fazendo subir as estimativas da obra.

Numa das audiências com o presidente da edilidade lisboeta, e perante o desespero da associação, João Soares, sempre bonacheirão, sugeriu:

- Façam a obra mesmo sem estar licenciada! Têm todo o apoio da CML. Não levantaremos problemas e a polícia municipal será avisada para não pedir as licenças. Vejam ali o Parque da Praça do Município que foi feito sem licenciamento. Os serviços nunca mais aprovavam e eu fiz as obras clandestinamente. Se eu estivesse à espera dos serviços a obra ainda estava por fazer. Façam como eu fiz!

O presidente da associação, advogado experiente, redarguiu:

- O senhor é o Presidente da CML. Nós estamos sujeitos a que qualquer um meta uma providência cautelar baseada no facto da obra não estar licenciada e depois ficamos com a obra embargada. E quem paga os custos da imobilização do estaleiro?

O presidente da associação tinha razão. Havia gente que estava contra a obra, obra que durante alguns meses iria causar alguma incomodidade. Outros apenas por mesquinhez. E o mais surpreendente é que quem contestava a obra tinha imediata audiência nos meios de comunicação social. O próprio órgão da freguesia, cuja Junta apoiava unanimemente a obra, trouxe um artigo «revelando» que se tratava de um parque para ricos, cujos lugares custavam mais de 8 mil contos cada um (custaram, no cômputo global, cerca de 2.100 contos cada).

A obra acabou por arrancar, após um laborioso licenciamento. A meio do seu curso e perante os protestos indignados de alguns moradores, fez-se uma reunião no auditório da Junta. Umas avós, em crise de histerismo, gritavam que as suas casas já tinham fendas onde «cabiam mãos». Os prédios circundantes ameaçavam a ruína mais definitiva! Em face de tamanha catástrofe, a Junta, o representante da vereação e um técnico do LNEC prometeram uma vistoria rigorosa.

Um parênteses para referir que qualquer obra deste género obriga a que todas a edificações circundantes sejam previamente vistoriadas e que às fendas existentes sejam aplicados extensómetros para que as vistorias a efectuar no fim da obra possam avaliar se houve danos e qual a gravidade destes.

Foi portanto feita uma vistoria por técnicos do LNEC cuja conclusão foi que todas as afirmações catastrofistas produzidas durante a reunião magna eram absolutamente falsas. Nunca mais ninguém falou na derrocada iminente dos edifícios!

A obra chegou finalmente aos arranjos exteriores. O projecto licenciado pela CML previa ajardinar dois baldios existentes nas traseiras dos prédios. Quando se aperceberam disso a fúria dos moradores protestantes não teve freio. Pois quê! Um sítio tão perfeito para estacionar ser outorgado para habitação de seres vegetativos sem inteligência e inúteis? Esta pretensão de ajardinar baldios era a prova óbvia que o parque era uma obra de ricos e que a CML estava bandeada com a classe possidente!

Então deu-se uma coisa curiosa: João Soares, a Vereação, a Junta, os arquitectos dos Espaços Verdes, todos os que tinham tido as exigências mais fundamentalistas nos ajardinamentos, que durante 7 anos tinham andado cheios de legalidades, a encanar a perna à rã, capitularam em poucas semanas perante a ânsia de betão dos moradores protestantes. O projecto dos jardins foi rasgado e a própria CML fez um projecto com estacionamento à superfície, com meia dúzia de árvores exiladas em sítios em que não causassem quaisquer incómodos aos carros. A CML pagou inclusivamente a diferença, pois embora o estacionamento fosse ligeiramente mais barato que o ajardinamento, houve um sobrecusto pelo facto da obra estar interrompida cerca de 2 meses.

Vem isto a propósito das obras do túnel do Marquês. Nunca me pareceu que fosse uma obra prioritária, tendo em atenção as carências de Lisboa. Seria igualmente uma obra cara e com uma forte probabilidade de deslizamento de custos e prazos, como acontece com frequência em obras, em Portugal, que metam túneis, ainda por cima um túnel debaixo do “X” do Metro. Em Portugal poupa-se, quase sempre, nas sondagens geotécnicas e depois há surpresas. Mas uma coisa é discutir a sua prioridade e a sua complexidade técnica, outra é andar, desde que ela foi lançada, a semear empecilhos.

Por outro lado Santana Lopes deveria saber, pela experiência que já tinha da questão do Casino que ele é persona non grata dos “tugas politicamente correctos”. Por isso Santana Lopes deveria ter-se rodeado de todas as cautelas. Numa obra na rede viária, como num parque de estacionamento subterrâneo, não é, em princípio, preciso um estudo de impacte ambiental. Todavia a legislação prevê, como matéria geral, que pode ser posta uma acção popular a exigir um estudo de impacte ambiental. Qualquer obra viária tem algum impacte ambiental – pó, ruídos, alterações nas circulações viárias, etc. – cujas medidas mitigadoras fazem parte do próprio caderno de encargos, mas cuja eficácia pode ser posta em causa por essa acção popular e obrigar a um estudo independente.

Santana Lopes deveria ter previsto isso. O facto de João Soares ter feito a maior parte das suas obras públicas sem licenciamentos, e sempre sem estudos de impacte ambiental, não colhia. João Soares é dos «bons», é fixe.

Carmona Rodrigues é um técnico de reconhecido prestígio na área da engenharia hidráulica e ambiental. Mas neste caso também havia necessidade de engenharia política. Esta não era uma obra normal. Era uma obra de Santana Lopes, a Némesis da intelectualidade portuguesa.

Os regimes democráticos munem-se de cautelas para defender legalmente os direitos dos cidadãos. Nos países onde a mesquinhez impera, o uso desses instrumentos legais pode levar à completa paralisia e o que foi imaginado para defesa dos cidadãos pode ser pervertido para tornar esses cidadãos vítimas dos seus efeitos.

E agora? Um estudo de impacte ambiental demora no mínimo 3 meses. Feito por uma entidade independente obriga a um concurso. Elaboração do processo de concursos, prazos para apresentação de propostas, apreciação, audiência prévia, etc., nunca menos de 2 a 3 meses. Depois do estudo feito, há o período obrigatório de discussão pública. Depois a apreciação pelo Instituto do Ambiente, etc., etc.. No cômputo geral será um processo que demorará no mínimo 10 a 12 meses.

É claro que eu não conheço o teor do despacho e pode haver formas agilizadas de desembaraçar esta questão. Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.

Quem entra na cidade por aquele eixo que se prepare para sofrer.

Publicado por Joana às 08:57 PM | Comentários (34) | TrackBack

março 03, 2004

Basta Avelino Basta!

O Avelino é um desordeiro
O Avelino pontapeou um equipamento electrónico
O Avelino disse que pontapeava três desconhecidos
O Avelino pediu explicações
O Avelino gritou
O Avelino gesticulou
O Avelino não gosta de árbitros
O Avelino ainda gosta menos de juizes de linha
O Avelino levantou várias vezes as mãos
O Avelino rebelou-se contra a GNR
O Avelino é um desbragado
O Avelino é um descomedido
O Avelino veste-se mal

O Avelino é um impudente
O Avelino dá pontapés de raiva
O Avelino deveria ter calma quando dá pontapés
O Avelino tem génio, mas mau
O Avelino é um arruaceiro
O Avelino é um dissoluto.
O Avelino é um vândalo
O Avelino é um visigodo
O Avelino é um ostrogodo
O Avelino é um díscolo
O Avelino é um CDíscolo
O Avelino é um DVDíscolo
O Avelino é um indisciplinado
O Avelino é um brigão
O Avelino é um dissidente
O Avelino bate na avó
O Avelino é um Ferreira
O Avelino é um Torres
Um concelho que consente deixar-se representar por um Avelino é um concelho de indigentes;
Subsídio de reinserção social já para os habitantes do Marco!
O Avelino não é de confiança
O Avelino apresenta sinais exteriores de boçalidade
O Avelino é o descrédito dos políticos
Os políticos são o descrédito do Avelino
O Avelino é um fanático clubista
O Avelino tem mau carácter e mau temperamento
O Avelino tem mau hálito
O Avelino é um vociferador em delírio
O Avelino é um espalhafatoso
O Avelino é um pantomineiro
O Avelino comporta-se no futebol como quem está no seu quintal
O Avelino comporta-se no seu quintal como quem está no futebol
O Avelino é o retrato fiel de um certo Portugal rasca
O Portugal é o retrato fiel do Avelino rasca
Se o Avelino é português, eu quero ser ribatejana e o Miguel Sousa Tavares bielorrusso
Se o Miguel Sousa Tavares for bielorrusso o Santana ganha a presidência
O Avelino não é fácil entrevistar na televisão
O Avelino usa óculos
O Avelino quer emprestar os óculos à Manuela Moura Guedes
O Avelino é mau
O Avelino é péssimo
O Avelino é pior que péssimo
O Avelino é quase tão mau como a Manuela Moura Guedes

Publicado por Joana às 11:21 PM | Comentários (19) | TrackBack

dezembro 05, 2003

Um Sátrapa de Sucesso

Desde menina e moça que me habituei encarar com desdém o Alberto João Jardim. Ele tinha tudo para merecer o meu menosprezo: um populismo folclórico, declarações provocatórias contra os “cubanos” continentais, chantagem independentista, etc.. Era o Idi Amin da Madeira.

Aliás, num texto publicado aqui em outubro 23, 2003, “Oráculo de Belém”, eu apelidava-o, em tom picaresco, “de um bárbaro ignaro, que vivia a expensas do tesouro da anfictionia e cuja proximidade da Ásia lhe dava mais a aparência de um sátrapa do que a de um dirigente de uma pólis”.

Ele tem, na verdade, um estilo insuportável. Todavia, numa república que caiu no cinzentismo mais pantanoso, com políticos sem coragem para tomarem medidas, quando estão no governo, e com demagogia hipócrita quando estão na oposição, a incontinência verbal de Alberto João Jardim acaba por surgir como algo de diferente que, no nosso intelectualismo urbano poderemos achar bacoco e folclórico, mas que poderá começar a colher, se a situação política nacional não sair do ramerrão em que mergulhou e que é tanto ou mais insuportável, quanto a incontinência verbal do Alberto João Jardim.

Esta antinomia entre o insuportável "politicamente correcto" que esteriliza a vida nacional, e o folclorismo incontinente e populista do Alberto João Jardim, faz lembrar a antinomia entre as duas metades do "Visconde Cortado ao Meio" do Calvino, que glosei uns textos atrás, em 24 de Novembro. A certa altura não se sabe como escolher entre o muito mau e o péssimo.

Porque, para além do folclorismo do Alberto João Jardim, há um caso de sucesso que se tem que reconhecer. O PIB da Madeira tem vindo a crescer nos últimos anos com uma taxa superior ao dobro da média do país. Há 30 anos a Madeira era das regiões mais atrasadas do país. Em 2000, o índice de disparidade do PIB per capita da Região Autónoma da Madeira e de outras regiões (NUTS III), em relação à média nacional, era a seguinte:

Grande Lisboa........173
Madeira..................119
Grande Porto..........107
Algarve...................101
Alentejo Litoral.........97
Pinhal Litoral............97 (Leiria-Pombal)
Baixo Mondego.........94
Baixo Vouga.............93
Lezíria do Tejo.........93 (Ribatejo Sul)
Médio Tejo...............91 (Ribatejo Norte)
Beira Interior Sul.....90
..............................
Açores.......................78
..............................
Beira Interior Norte..56
Serra da Estrela........56
Tâmega.....................49

A Madeira só é ultrapassada pela Grande Lisboa, mas está claramente à frente do Grande Porto e do Algarve, as únicas regiões com um PIB regional superior ao PIB português.

Dir-se-á que a Madeira tem sido favorecida na outorga dos dinheiros públicos. Todavia o Alentejo tem sido mais favorecido e, se exceptuarmos o Litoral (por causa de Sines), o seu PIB é menos de 65% do da Madeira.

A convergência madeirense relativamente aos valores nacionais, nos últimos anos, foi a seguinte:

1995.....1996.....1997.....1998.....1999.....2000
...97.......98........104.......109.......110.......119

O PIB da Madeira era em 1995, 97% da média nacional e em 2000, 119%. Em preços constantes, manteve uma média de crescimento de 7%, que é notável.

É evidente que este crescimento também é influenciado por factores específicos, entre os quais o off-shore da Madeira não será de forma alguma despiciendo.

Por outro lado, a baixa qualificação da população activa e o tipo de modelo de desenvolvimento não me parecem muito promissores em termos de desenvolvimento sustentado. É provável que este ritmo de crescimento não se mantenha a médio prazo e que a longo prazo, se o modelo de desenvolvimento não for alterado, possam ocorrer alguns problemas.

Mas para já, o crescimento económico da Madeira é um caso de sucesso e certamente a popularidade de Alberto João Jardim está sustentada nesse êxito económico.

O sátrapa madeirense estará refém da sua ilha e do seu popularismo insular como alguns pretendem? É provável que sim, e que não consiga criar um estatuto de líder nacional. Mas atenção, há muito de calculismo na incontinência verbal do nosso sátrapa. Esse calculismo não se dirige aos intelectuais urbanos “blasés”, dominantes nos meios de comunicação, blogoesferas, etc., mas à população em geral. Os intelectuais urbanos já tiveram muitas surpresas desagradáveis sobre a sua falta de sintonia com o resto da população, sendo a maior, provavelmente, o resultado do referendo sobre o aborto.

Se o país continuar no pântano em que se encontra, dominado por políticos sem coragem para tomarem decisões e pelo insuportável “politicamente correcto”, estarão criadas as condições para a emergência dos Albertos Joões Jardins, o madeirense ou outro que possa emergir, porventura menos “queimado” por um regionalismo redutor.

Publicado por Joana às 08:01 PM | Comentários (9) | TrackBack