Como já escrevi anteriormente, não existe no espectro político português um projecto liberal sólido e coerentemente assumido. Há razões que têm séculos: a nossa aversão ao risco e à inovação e a inveja mesquinha que se instalou na nossa sociedade, em vez do incentivo pela afirmação pessoal. Outras têm a ver com a génese do actual sistema político.
Como se sabe, da nossa história dos últimos dois séculos, cada regime que se instaura cria o seu próprio espectro político, que, com pequenas flutuações, se mantém invariável até ao seu próprio aniquilamento. A III República foi instaurada sob inspiração dos militares da ala da esquerda radical, que a obrigaram a votar uma constituição estatizante, via ao socialismo, e a tutelaram durante os primeiros anos. Essa parto político modelou o arranjo do espectro político subsequente. Com este figurino, o pensamento liberal era diabolizado por todo o espectro político como condição da sua própria sobrevivência. O CDS/PP foi apenas a direita consentida.
É difícil presumir o que teria sido o percurso do CDS/PP se não fosse a morte prematura de Amaro da Costa. Em vez de um político sólido, o CDS/PP ficou sob a liderança de um político errático, de uma Maria-vai-com-as-outras e órfão de líderes com estatura política, acabando dominado por um populismo de direita sem qualquer consistência ideológica. Tornou-se o Partido do Táxi.
A emergência de Paulo Portas deu maior solidez ao populismo de direita, mantendo no partido alguns históricos, com qualidade, mas aglutinados num todo sem uma estrutura ideológica coerente. Actualmente vemos um social-cristão, Bagão Félix, que de liberal tem pouco, coexistir com um populismo radical, que foi menorizado durante a governação e nesta campanha, em contrapartida de uma postura de Estado, e um pensamento liberal que não consegue afirmar-se devido à pequenez do partido e à necessidade de apostar numa imagem populista para se manter no palco político.
Assim, apesar da prestação dos ministros do CDS/PP e da postura de Estado do partido nos últimos 3 anos, o CDS/PP continua confrontado com a busca de uma identidade e de uma imagem de marca que lhe permita ocupar um espaço político onde consiga sobreviver e afirmar-se. Paulo Portas buscou essa imagem num populismo de direita, que lhe pode render algum espaço político, mas que lhe dificulta a ascensão ao governo, como se viu aquando da formação da coligação e da celeuma que esta levantou dentro do PSD. Nestas eleições tentou apostar na imagem de postura de Estado e de distanciamento face às fragilidades do governo. Não o conseguiu: se ganhou alguns votos ao PSD, perdeu muitos mais para a esquerda, nomeadamente para o pregador Louçã, que apostou forte nas feiras. A história tem mostrado que o radicalismo de direita e de esquerda são vizinhos eleitoralmente. Foi entre os radicais de esquerda que Hitler, nos primeiros tempos, pescou eleitoralmente e a quem deveu a sua subida e a arrigementação dos SA. É sabida a flutuação eleitoral entre Le Pen e a extrema-esquerda francesa. Portugal não foge esta regra.
Que se perspectivará para o CDS/PP, fora da área do governo? Uma nova aposta no populismo? Uma aposta numa imagem social-cristã? Um partido de índole marcadamente liberal?
Muito depende dos resultados da governação de Sócrates. Suponhamos que Sócrates aplica as medidas correctas e as reformas certas, o que me parece difícil, mesmo descontando a oposição interna do PS, porque a reforma da administração pública exige gente de elevada competência a geri-la, e não vejo que Sócrates disponha dessa matéria prima. Nesse caso, o espaço do CDS/PP reduzir-se-á e P Portas, ou quem lhe suceder, terá que regressar às feiras e manter a feição populista radical.
Suponhamos que Sócrates falha. Ora um falhanço agora, na nossa situação actual, é uma catástrofe económica. Nesse caso será a própria III República que estará condenada a curto prazo e a sua ruptura conduzirá a um novo arranjo do espectro político, como é habitual em Portugal. Nestas circunstâncias só o futuro dirá que novas formações poderão emergir da implosão de uma parte significativa do nosso actual espectro político. As eleições em Portugal, desde Cavaco Silva, têm mostrado um centrão cada vez mais amplo que flutua, ao sabor dos acontecimentos e ressentimentos governativos. O alargamento desse centrão pode ser a rastilho que promova aquela ruptura.
Mas o CDS/PP tem, ao lado, um partido catch-all, o PSD, que vai desde os liberais aos sociais-democratas, tudo amalgamado sem qualquer coerência ideológica, mas que tem uma grande capacidade de captação dos despojos políticos. Pretendeu ingressar na Internacional Socialista, já foi da união europeia dos reformistas e liberais e agora é da união europeia dos conservadores e democratas-cristãos e da união mundial dos conservadores. Todavia, o PSD ficou com uma imagem degradada e levará tempo a reencontrar um líder ganhador, ou pelo menos não-perdedor, que nas actuais condições políticas já se viu que pode ser o suficiente. Se Sócrates não chegar ao termo da legislatura, ou chegar com a nossa economia em estado calamitoso, todo o centrão pode levar a uma implosão do espectro político e a um novo arranjo das formações políticas. Neste novo arranjo, nem o radicalismo chique do BE, nem o radicalismo jurássico do PC teriam margem de manobra, pois o país tenderá a verificar que a aposta no projecto de empobrecimento em aparente segurança social não tem qualquer futuro.
Mas a área do CDS/PP só poderá aproveitar este eventual terramoto político, se estiver preparada para o fazer. Pese embora a boa prestação de Paulo Portas como ministro da Defesa, ele não tem imagem política para o protagonizar, pois está demasiado ligado a um populismo que a maioria do eleitorado rejeita e continuará a rejeitar. Também não se vê, entre os que o rodeiam, quem, a curto prazo, o possa protagonizar.
O futuro do CDS/PP está dependente do desempenho do governo de Sócrates, da evolução do PSD e de encontrar um líder que permita a chamada refundação da direita. São três restrições muito fortes e que fazem de qualquer previsão sobre o seu futuro uma aposta arriscada.
A estatura de um político revela-se nos momentos difíceis. A estatura dos políticos que ficaram na história revelou-se tanto maior quanto mais críticas foram as situações com que se confrontaram. Santana Lopes falhou lastimosamente, quando foi confrontado com condições adversas. O último e paradoxal episódio desse seu percurso errático foram as declarações que proferiu anteontem à saída do Palácio de Belém.
Santana afirmou "É isso que revela o resultado das eleições. Com certeza que o povo disse que o sr. Presidente tinha decidido bem.". Ora esta frase é completamente contraditória com a tese anterior que uma legislatura não deveria ser interrompida a meio, porquanto ela deve ser avaliada pelo seu todo e não pela primeira metade, onde normalmente são tomadas as medidas mais impopulares, destinadas a repor o equilíbrio dos parâmetros macroeconómicos. Neste entendimento, a dissolução da AR, a meio de uma legislatura, é a introdução de um factor de instabilidade e de incerteza, de consequências imprevisíveis para o futuro do país. Isto independentemente do juízo que se faça sobre a qualidade governativa e, no caso em apreço, as críticas dirigiam-se mais sobre fait-divers que propriamente sobre a qualidade das decisões governamentais, o que se tornou evidente com a decisão do PR sobre a aprovação do OE 2005.
Esta tese é independente do resultado das eleições. Aliás, a derrota de Santana Lopes poderia inclusivamente ser interpretada como uma confirmação dessa tese. Portanto, quando Santana Lopes afirma que a sua derrota é a confirmação da boa estratégia do PR, tal significa uma de duas coisas:
1 Santana Lopes andou a defender, durante a campanha eleitoral, uma tese em que não acredita, pois afinal é favorável a intervenções presidenciais, postergando, para segundo plano, a estabilidade política e governativa que tanto gabou em campanha;
2 Santana Lopes defende essa estabilidade, mas tem uma ideia de tal forma desfavorável da sua governação, a que tinha feito até à data, e a que se perspectivava, que entende que a sua continuidade seria muito mais instável que o factor de instabilidade introduzido pelo PR.
Portanto, não foi o povo que deu razão à decisão do PR ... foi o próprio Santana Lopes ao proferir aquelas palavras. Santana Lopes mostrou, com aquelas afirmações, que não estava à altura do cargo que exercia.
Em 2-12-2004, escrevi aqui (Patchwork mal cerzido):
Santana Lopes formou governo numa situação de grande desvantagem. O PR arrastou a indigitação, sujeitando-o a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais da política portuguesa; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política caso Marcelo, artigos de semanários, demissão de um ministro, etc.. Sampaio apenas indigitou Santana Lopes para o grelhar em fogo lento, à espera que o PS fosse uma alternativa política credível. ...
Santana Lopes tem agido nestes quatro meses como um «patrocinado» do PR, um seu protegido, um seu cliente (no sentido romano do termo). O PSL tem sido um peão nas mãos do PR, que decidiu agora dá-lo a comer, para conseguir uma estratégia vitoriosa para o PS. O gambito Sampaio destina-se a promover Sócrates a Dama (honi soit ...). Mas era uma estratégia clara. Foi-o para mim, que estou muito longe destas andanças, e certamente seria mais óbvia para Santana Lopes, que calcorreava quase diariamente o caminho para Belém para ouvir mais uns remoques do PR. PSL ao aceitar estes quatro meses de humilhações, numa postura que lhe não é habitual, certamente não vai recolher quaisquer dividendos políticos.
Estas declarações de Santana mostram que ele continuou, à saída de Belém, a ser um peão nas mãos do PR, embora um peão já fora do tabuleiro, vítima do gambito Sampaio.
Santana Lopes mostrou assim que não tem estatura para assumir o confronto político em circunstâncias adversas, pois perante elas prefere o acomodamento e a capitulação. Julga porventura que o acomodamento lhe permite ressarcir os estragos. Se a sua ambição for apenas a de se manter à tona na política, talvez esteja certo. Se queria elevar-se acima da mediocridade, falhou redondamente.
Hervé Gaymard, ministro das Finanças francês, que sempre tentara dar de si mesmo uma imagem pública de modéstia, alugou um luxuoso apartamento, com 600 metros quadrados, junto aos Campos Elísios, com uma renda mensal de 14 mil euros, paga pelo erário público. As obras de remodelação do apartamento, para permitir a instalação do casal e dos seus 8 filhos, também pagas pelo Estado, custaram 150 mil euros.
Hervé Gaymard não cometeu nenhuma ilegalidade. Todavia cometeu dois erros políticos calamitosos. Numa época de austeridade em França, com uma taxa de desemprego que atingiu 10% e com uma enorme crise nas finanças públicas, que obriga a medidas severas de contenção da despesa, e quando, perante a UE, a França não cumpre os limites do PEC e argumenta que esse incumprimento resulta das reformas necessárias para pôr a economia a funcionar de forma a tornar as suas finanças saudáveis e sustentáveis, é uma machada na credibilidade da política francesa, no quadro europeu, e da política do governo, no quadro interno, um gasto tão exorbitante, feito pelo próprio ministro das Finanças.
O 1º Ministro Raffarin apressou-se a estabelecer regras para a despesa com alojamento de ministros: o Estado não poderá a seu cargo um alojamento que exceda uma superfície de 80 m2, mais 20m2 por menor a cargo (que aliás, também não serviriam para Hervé Gaymard, pois apenas tem 8 filhos ...). Hervé Gaymard apresentou hoje a sua demissão, após 3 meses no cargo. Mas o mal está feito. Não é possível praticar uma política de austeridade sem os promotores dessa política mostrarem continência nos seus próprios gastos, quando pagos pelo erário público. Não é possível pedir compreensão nas instâncias europeias, se se dá um exemplo de um gasto sumptuário.
Para agravar a situação e tornar o caso mais caricato, soube-se que, entre os bens do casal, figura um apartamento de 200 m2, no boulevard Saint-Michel, em Paris.
Chirac terá agora que nomear um novo ministro das Finanças. Será o quarto no espaço de um ano. A vida não está de feição para os ministros franceses das Finanças.
A protecção da propriedade e do cumprimento das obrigações contratuais é essencial para o funcionamento de uma economia. Aliás, um dos entraves ao nosso desenvolvimento, como eu aqui escrevi por diversas vezes, é a morosidade e ineficiência da nossa justiça.
Na sociedade actual, a protecção da propriedade é contra terceiros. Mas nem sempre foi assim. A mercadoria em certas situações tem vontade própria ... e perigosa. O jovem Marx garantia que ela se erguia como entidade exterior, um poder independente. Era o fetiche da mercadoria. Mas segundo ele, a vítima dessa surpreendente vontade da mercadoria era quem a fabricava, o trabalhador alienado, e não o seu proprietário. Concentremo-nos portanto apenas na potencial relação conflituosa entre a mercadoria e o seu proprietário.
Em Roma o escravo era uma mercadoria, transaccionável em mercado. No início do Império, nos tempos da dinastia Júlio-Claudiana, cerca de um terço da população da cidade de Roma era escrava. Em todo o império a percentagem era bem menor e estima-se que, para a população total (que variou entre 70 e 50 milhões de habitantes), a percentagem de escravos seria cerca de 15%. Com a Pax Romana e a diminuição das importações provocadas pelas guerras, e com as libertações, quer em vida do proprietário, quer por disposições testamentárias, o número foi-se reduzindo e o seu preço aumentando. Isto fez com que muitos sectores económicos deixassem de utilizar escravos e outras formas de relações de produção se estabelecessem durante o baixo império.
Ora o escravo é uma mercadoria que se pode revelar pouco segura para o proprietário, quer por vingança contra maus tratos, quer apenas por aspirar a ser livre, pondo fim ao seu estado de servidão. O Direito Romano, sempre previdente, havia por isso instituído uma lei, ainda no tempo da república, que condenava à morte todos os escravos que estivessem sob o mesmo tecto, na ocasião do assassinato do proprietário.
Nos primeiros anos do reinado de Nero, em 61, o Prefeito de Roma (praefectum urbis), Pedanius Secundus, foi morto por um dos seus escravos por, segundo Tácito (Anais, Livro 14, 42-45), ou por se ter recusado a libertá-lo, após a transacção ter sido combinada e o preço definido, ou por ciúmes ... do mesmo homem, e o escravo ter ficado encolerizado por não poder competir com o amo por aquela afeição, em virtude do seu estatuto (servus ipsius interfecit, seu negata libertate, cui pretium pepigerat, sive amore exoleti incensus et dominum aemulum non tolerans).
Segundo aquela lei antiga, que aliás havia sido alargada e agravada por diversas leis, em particular por um senatus consultum promulgado no 2º consulado do próprio Nero, todos os 400 escravos (Pedanius Secundus era um dos homens mais ricos de Roma) que estavam na sua mansão, entre os quais mulheres, adolescentes e crianças, deveriam ser enviados ao suplício.
Esta condenação desencadeou um grande movimento popular de emoção e piedade por tantos inocentes que iriam ser punidos injustamente, que tomou contornos de sedição. No próprio Senado formou-se um partido que era contra tamanha severidade e pedia clemência. A maioria, fanatizada pelo discurso de Caio Cassius, o mais reputado jurisconsulto da época, votou porém a favor das mortes.
Disse Caio Cassius: Decretai agora a impunidade: quem entre nós encontrará na sua dignidade de senhor a salvaguarda que o prefeito de Roma não encontrou entre os seus? Quem poderá confiar no número dos seus servidores, quando 400 não salvaram Pedanius Secundus? e terminou dizendo que embora reconhecendo que havia inocentes qualquer punição rigorosa que se destina a servir de exemplo, contém sempre algo de injusto, e a utilidade pública é uma compensação pelo mal que os particulares sofrem.
Cumprir a decisão do Senado foi mais complicado, face à sublevação popular. Nero teve que mobilizar as tropas para fazer um cordão protector no caminho que conduzia ao local do suplício.
Esta decisão parece-nos hoje de uma crueldade abominável, e mesmo naquela época, em que a escravatura era admitida como normal, ela foi considerada bárbara. Nero cumpriu a decisão senatorial, embora tudo levasse a crer que ele e os seus conselheiros não fossem favoráveis a ela, por não querer entrar em conflito com o Senado. Todavia anulou o decreto senatorial que ordenava que fossem deportados da Itália os libertos que também se encontravam naquela casa, aquando do assassinato.
As palavras de Caio Cassius, de que só transcrevi pequenos excertos, são de uma frieza cruel. Mas a sua lógica cruel decorre do desvio do poder inerente ao facto de usar o rigor e a crueza da lei para servir de exemplo à sociedade. Quando, para além de punir o culpado, se pretende dar um exemplo à sociedade com essa punição está a cometer-se um erro. O caso Pedanius Secundus é apenas o limite odioso a que essa perversão legal pode conduzir.
O que é aflitivo no panorama actual do PSD é a sua pública indigência política. Todos os protagonistas que se produzem na ribalta, desde Menezes a Marques Mendes, passando por JP Pereira, o intelectual que atira (no próprio pé) mais rápido que a sombra, não mostram ter qualquer projecto político para a governação do país, para além da (óbvia) necessidade de remodelar o aparelho do partido para se afirmar como alternativa ... para ganhar as próximas eleições. Pior, sugestionados pelas ilusões falanstéricas vendidas pela esquerda quando na oposição e durante a campanha e que julgam terem sido a causa do vendaval eleitoral, falam no regresso à visão social-democrata portuguesa, ou seja, em pescar nas mesmas águas turvas da política da ilusão consumista, no projecto da segurança medíocre e sem futuro, que tem caracterizado a nossa vida económica e social na última década.
Li algures, não me recordo onde, que a vantagem do liberalismo é estar sempre na oposição. Nada mais verdadeiro. Todas as medidas de liberalização do tecido económico, e que têm permitido diversos países ultrapassarem situações de estagnação, foram tomadas sob a premência inadiável dessas situações e eram contrárias às promessas eleitorais feitas pelos respectivos governos, antes de eleitos, quando em campanha. E este fenómeno tem acontecido com governos socialistas, sociais-democratas, centristas, democratas-cristãos, etc.. Todo o leque político português (e, até certo ponto, o europeu) está colonizado pelo pensamento pretensamente social que está nos genes da esquerda. E pretensamente social, porque sob o álibi do igualitarismo e justiça social, conduz à estagnação económica e ao nivelamento pela mediocridade.
Muitos políticos reconhecem, na intimidade, que a eficiência da economia depende da eficiência dos mercados, e que esta só existe removendo os entraves à liberalização desses mercados. Todavia, em público, prometem mezinhas sociais que normalmente consubstanciam violações das condições estruturais de funcionamento eficiente desses mesmos mercados. São como o médico que, para conservar o paciente que precisa de uma intervenção cirúrgica complicada para obter a cura, lhe vai ministrando analgésicos e mescalina, para o manter feliz.
A revitalização do país exige um projecto economicamente viável, ideologicamente sólido, socialmente coerente e politicamente corajoso. Não se compraz com politiquices sem conteúdo, que vêem as disputas políticas como desafios da Liga de Clubes. A esquerda pode prometer um discurso de facilidades e de ilusões. É o que costuma fazer antes de chegar ao poder. Mas quem quiser modernizar a sociedade portuguesa e tornar Portugal num país próspero, não pode alinhar nesse jogo de embustes.
Estes 3 anos mostraram que não havia esse projecto alternativo. Apenas existiam paliativos revestidos de palavras sonantes. Em 16-12-2003 escrevi aqui: «o governo está cheio de razão ao regozijar-se pela sua visão política. Só não faz aquilo que julga que está a fazer. Isto é, tem razão no que diz, mas não no que faz
ou deixa fazer. Mas continua ... arrebatado pelo entusiasmo de estar a fazer uma obra meritória, que só existe na sua imaginação, garantindo entretanto que a sua política está já a dar frutos. Mas que política? A enunciada em teoria, ou a que está a acontecer na prática?
Por sua vez, a oposição ataca o governo por ele estar a fazer coisas que de facto não faz e pretende que ele faça coisas
que de facto estão a acontecer na prática. A oposição ataca a obra meritória do governo, que também só existe na imaginação dela, considerando-a sem mérito e errónea, propondo uma teoria oposta, mas que corresponde, afinal, à prática quotidiana. ... nada mudou. O país continua a viver acima das suas posses, continua a ser incapaz de reformar os seus serviços públicos, continua a ser incapaz de saber o que está a acontecer.»
Esta comédia de enganos conduziu à situação actual. Aparentemente o PSD não aprendeu nada com ela. É catastrófico ... mas não é inquietante. Afinal, actualmente, não se ganham eleições ... basta esperar que o adversário as perca.
Na abertura da reunião Comissão Política do PS que aprovou a sua escolha para indigitação como 1º ministro, Sócrates revelou precaução ao falar do futuro, ao afirmar que vêm aí "tempos difíceis", e que por isso, é preciso ter noção da realidade e não embarcar em optimismos.
Obviamente que não se referia à situação económica do país, porquanto um dos leit-motiv da sua campanha foi justamente a afirmação que havia sido o discurso da tanga que tinha paralisado a economia, ao criar a desconfiança nos agentes económicos. Neste entendimento, e para ser coerente com a campanha, aquele discurso de apreensão pelos "tempos difíceis" não se destina ao exterior mas ao interior do partido, ao aparelho, ou porventura, aos circunstantes. Talvez por isso as suas primeiras palavras tenham sido "Espero que daqui a quatro meses estejamos todos tão unidos como agora".
Ou seja ... Sócrates foi advertindo que o festim, agora, vai ser muito mais parco que o foi nos tempos de Guterres. Tenham paciência, camaradas e amigos ...
Terão?
Se a campanha de Sócrates não for um chorrilho de mentiras, resta-nos entregarmo-nos à protecção da Virgem Maria, da Nª Sª de Fátima e da irmã Lúcia.
Luís Paixão Martins, responsável de marketing da campanha eleitoral do PS, explicou a campanha do PS: «Começámos por fazer esta investigação, depois criámos argumentos, imagens e peças de comunicação que foram sendo testadas em "focus group", em painéis de cidadãos que foram sendo confrontados com ideias» e acrescentou que «Nos estudos de opinião o desemprego apareceu destacado como a grande prioridade, enquanto uma questão como a justiça foi remetida para segundo plano» ... «Aliás os portugueses não querem as tão faladas reformas políticas se elas trouxerem instabilidade à sua vida».
Comecemos pelo justiça. Há tempos, um estudo sobre o sector da Justiça, concluiu que Portugal era o país da UE que tinha, de longe, mais juízes e funcionários judiciais, e era aquele onde a justiça era pior, mais ineficiente e mais morosa.
Anteriormente, um trabalho da investigadora Célia Costa Cabral baseado num inquérito junto dos empresários portugueses sobre o funcionamento da justiça portuguesa, concluiu que a justiça é "muitíssimo lenta e que a sua "morosidade leva a uma natural contracção do investimento em Portugal e funciona como um obstáculo ao crescimento do País", pois "os empresários não arriscam investimentos, se não estiverem absolutamente seguros do cumprimento dos contratos". Célia Costa Cabral estimou que "um melhor desempenho do sistema judicial levaria a um crescimento da produção de 9,3 por cento, o volume do investimento cresceria 9,9 por cento e o emprego 6,9 por cento", o que tudo conjugado se traduziria num acréscimo de 11% na taxa de crescimento do PIB. Ou seja 13 mil milhões de euros.
As pessoas de quem Sócrates queria o voto não percebem destas coisas. Só sentem que a economia não funciona, que as empresas não se desenvolvem pois receiam envolver-se em compromissos de cuja solvência não estão seguras. Mas não percebem porquê. Portanto, a justiça não constitui uma prioridade para Sócrates. Espero, sinceramente, que Sócrates tenha mentido, com absoluta desfaçatez, em campanha.
Outra posição interessante decorre da descoberta de que «os portugueses não querem as tão faladas reformas políticas se elas trouxerem instabilidade à sua vida». Os portugueses não querem instabilidade na vida deles. Os portugueses estão a empobrecer em paz, em segurança, asilados. Não era isso que pretendiam, mas é isso que estão a conseguir com aquela aversão ao risco e à mudança. E consegui-lo-ão, seguramente, a menos que Sócrates tenha mentido, com total desaforo, em campanha.
O paradoxo é que os portugueses estão preocupados prioritariamente com o desemprego, mas tomam as opções que levam ao seu aumento pois «não querem as tão faladas reformas políticas» porque lhes traz «instabilidade à sua vida». Isto a menos que Sócrates tenha mentido descaradamente em campanha.
Esperemos que Sócrates seja um mentiroso em campanha ... mas apenas em campanha.
Decreto Barère de 23-Agosto-1793
Embora a França republicana tivesse conseguido restabelecer a situação militar face às ameaças exteriores, facilitada aliás pela falta de empenho das potências da Europa Central, mais interessadas na liquidação e divisão da Polónia que numa guerra para repor uma dinastia que Valmy havia mostrado ser então detestada pela maioria da população, os excessos revolucionários, como a execução dos girondinos e as missões sanguinárias que a Convenção Nacional, dominada pelos radicais, enviava aos departamentos mais relutantes, revoltaram a população da província e levaram, por exemplo, à execução de Chalier, o Marat de Lyon, e à sublevação desta cidade, assim como de Nantes (e a Vendeia) e de outras cidades importantes, como Toulon que se entregou aos ingleses.
No exército as coisas não corriam melhor. A ingerência dos comissários políticos, como o demagogo Saint-Just, o Anjo da Morte, irritava os militares. Dumouriez, o vencedor de Valmy, desertou. Outros generais e figuras de relevo da República, como Lafayette, também desertaram ou abandonaram o país, por temerem pela própria vida. Nas fronteiras do Reno, da Flandres e dos Pirinéus, as tropas estrangeiras, pouco resolutas, mas perigosas face à situação interna da França, constituíam uma ameaça permanente.
No esforço de salvação da república, na crise de 1793, dois nomes merecem atenção:
Lazare Carnot por ser o extraordinário organizador dos exércitos franceses, da sua mobilização, da sua logística. Um homem exemplar que reunia a coragem militar e a coragem cívica, a honestidade, a sobriedade e uma enorme capacidade de trabalho.
Barère, subtil, pouco fiável, mas especialista em grandes tiradas, de resultados nulos ou incipientes, mas que aqueciam o coração, faziam vibrar os espíritos e acelerar a circulação sanguínea. O Decreto cuja fotocópia se apresenta aqui, é o famoso decreto da levée en masse, da mobilização total, que na época apenas conseguiu acrescentar 300.000 homens aos 480.000 já mobilizados (numa população de 25 milhões), mas que constituiu um precedente da concepção monstruosa da militarização de toda uma nação, utilizada posteriormente por Napoleão e pelas potências europeias nas guerras do século XX.
Este decreto é notável pela grandiloquência da linguagem. Os 4 primeiros parágrafos (e não só) do Artigo 1º, e único, são um paradigma do totalitarismo revestido de romantismo revolucionário. Define o retrato exacto do radical de todas as épocas, inebriado pela própria linguagem e criando um mundo virtual tanto mais portentoso, quanto mais forte são as suas palavras.
Barère decretou uma França virtual, sublime, guerreira ... mas inexistente. Este decreto foi aprovado em delírio, a 23 de Agosto, por uma Convenção dominada pelos Montagnards e cuja maioria dos convencionais (o Pântano) sobrevivia aterrorizada pelas manifestações de rua organizadas (e armadas) pela Comuna de Paris.
Na altura, não foi este decreto, mas Carnot quem salvou a França. Posteriormente este decreto tem servido para galvanizar o ânimo daqueles que acreditam no poder do Verbo e no totalitarismo político sob o álibi de populismo demagógico.
Uma das bandeiras da campanha de Sócrates foi a da recuperação do emprego. Não explicou como, para além de prometer colocar (a expensas dos contribuintes) mil licenciados em gestão e em tecnologia em PMEs. Não explicou, nem o conseguiria facilmente. Não é ao Estado que cabe criar empregos, mormente o Estado português que deveria, em vez disso, emagrecer substancialmente no que respeita ao volume dos seus efectivos, justamente para aumentar a competitividae da nossa economia. Ao Estado cabe implementar políticas que promovam o emprego.
E como promover o emprego? Há medidas a médio e a longo prazo que são necessárias e que já deveriam ter sido tomadas. Tornar eficiente o nosso sistema de ensino, apostar na componente profissional e tecnológica como alternativa à procura pelas saídas universitárias, muitas delas sem qualquer interesse no mercado de trabalho. Não é gastar mais dinheiro nele, pois já é o mais caro da Europa. É aplicá-lo melhor. Não é apenas criar cursos profissionais e tecnológicos, é torná-los atractivos, porque a fraca procura que há por esta alternativa, para além das suas deficiências, tem muito a ver com a mentalidade dos portugueses que continuam a ver o canudo como um seguro de vida.
Mas as medidas enunciadas no parágrafo anterior apenas terão efeito a longo prazo. No curto prazo outras terão que ser tomadas. O primeiro conceito a reter é que o factor trabalho é um bem sujeito à oferta (de quem busca emprego) e à procura (do empregador). Funciona portanto em mercado. E a eficiência do mercado do trabalho maximiza-se quando estão reunidas as condições de concorrência perfeita: transparência, atomicidade e independência dos agentes intervenientes , total liberdade de entrada e saída, racionalidade (minimizar o consumo de um dado factor para o mesmo nível produtivo) e mobilidade perfeita dos factores de produção (*).
O mercado do trabalho em Portugal tem-se aproximado, no que respeita a algumas daquelas condições, do modelo concorrencial. A transparência tem aumentado e o Estado tem tido algum papel nisso através dos seus serviços (Instituto do Emprego, por exemplo) (**). A atomicidade e independência dos agentes tem aumentado no sector privado, pela diminuição drástica da influência sindical, fruto aliás do protagonismo inicial excessivo dos sindicatos e das situações de impasse a que esse protagonismo conduziu os trabalhadores. A racionalidade na utilização do factor trabalho cabe aos empregadores. Em teoria, o próprio funcionamento do mercado expulsaria as empresas que não fizessem escolhas racionais neste campo. Na prática, a protecção estatal pode manter artificialmente no mercado empresas que não funcionem com racionalidade. É uma violação das condições estruturais que constitui um ónus para a sociedade e para os restantes agentes económicos.
Todavia a questão central, por ser a mais delicada e não estar resolvida , é a da mobilidade perfeita do factor trabalho. A experiência tem mostrado que enquanto numa economia liberal, como a dos EUA, uma retoma económica obtém níveis mais elevados e o pleno emprego se atinge rapidamente em iteração com o crescimento económico, em economias com maior rigidez laboral, como as europeias, essa rigidez acaba por se tornar um travão ao próprio desenvolvimento económico.
Tomemos o caso português. Em Portugal coexistem duas situações um mercado de trabalho absolutamente rígido, e um mercado completamente flexível, baseado nos recibos verdes e nos contratos precários. A existência deste último mercado tem sido a principal responsável pelo crescimento económico português. Quando as expectativas sobem, os empresários não têm dúvidas em aumentarem o nível do emprego, porque sabem que se essas expectativas se gorarem poderão reduzir os seus efectivos. Sucede que, na maioria dos casos, essas admissões acabam por se tornar permanentes porque a economia estimulada pelas decisões desses empresários cresceu o suficiente para assegurar a manutenção desse nível de emprego.
É por isso que Portugal, tendo embora uma legislação laboral mais rígida que no resto da Europa, tem tido taxas de desemprego menores. A nossa legislação protege os «insiders», incluindo os que têm emprego e não querem trabalhar. Mas existe um mercado paralelo, embora legal, completamente liberalizado, com uma mobilidade porventura superior à americana, e que tem servido de impulsionador ao nosso crescimento económico. Sem ele, a nossa situação actual seria certamente muito mais calamitosa.
Todavia, não é possível construir uma economia sã, com uma mercado rígido coexistindo com um mercado selvagem. É uma situação socialmente injusta e prejudicial do ponto de vista da inovação e qualificação. Quer o trabalhador asilado, quer o trabalhador que subsiste em completa precaridade têm poucos incentivos à melhoria da sua qualificação profissional e à inovação.
São estes conceitos que Sócrates e a sua equipa terão que interiorizar se querem criar empregos. A aposta na qualificação e formação profissional é necessária, mas não é suficiente, e no curto prazo terá mesmo efeitos muito diminutos. O governo anterior considerou que a reforma das leis laborais tinha carácter de urgência. O resultado foi tíbio. Sócrates, se quer dinamizar o mercado de emprego, terá que ir mais além. Conseguirá ultrapassar os preconceitos ideológicos dos seus pares? É uma questão de pôr os olhos no seu correligionário alemão, que tem conduzido reformas laborais e sociais muito mais profundas do que a coligação de direita portuguesa alguma vez tentou levar a cabo.
Sócrates tem porém uma vantagem. Se quiser fazer essas reformas, poderá contar com o humor corrosivo da direita, mas contará certamente com os seus votos, ou pelo menos com a sua abstenção.
Quanto a colocar (pagos pelo erário público) mil licenciados em gestão e em tecnologia em PMEs, não passa de um gesto inócuo, que só terá um simbolismo passageiro. As condições para a continuação do aumento do desemprego em Portugal não foram eliminadas. A hecatombe dos têxteis e da construção civil perfila-se no horizonte. Não é apenas necessário recuperar os empregos perdidos nestes últimos anos. É igualmente necessário encontrar empregos para os efectivos de diversas empresas têxteis que estão condenadas, e para o excesso de emprego na construção civil (quando comparado com a percentagem dos outros países europeus), emprego que tenderá a decrescer, fruto da retracção imobiliária e da diminuição das empreitadas de obras públicas.
Notas:
(*) O conceito de concorrência pura e perfeita é obviamente teórico. Por isso os economistas anglo-saxónicos introduziram o conceito do 2nd Best, ou da Workable Competition que consubstancia um conjunto de regras de validação da concorrência, em face das restrições ou violações das condições estruturais que dificultam, na prática, a concorrência pura e perfeita. O modelo teórico constituiria assim uma assimptota face a uma curva imaginária onde cada ponto fosse o resultado das combinações possíveis das diversas violações, em quantidade e qualidade, dos pressupostos de base.
(**)Aliás, o papel principal do Estado, numa economia de mercado é aumentar a sua eficiência e estabelecer procedimentos e legislação que impeçam as violações das regras da concorrência e assegurem a legalidade dos comportamentos dos agentes económicos. E sublinho isto, porque quando falo da liberdade de mercado, aparecem sempre aqueles que citam o tráfico de droga ou a prostituição como razões para limitar essa liberdade. Esquecem-se de uma coisa, a criminalidade vive num mundo paralelo, à margem da lei. Ao fazerem-se leis restritivas ao funcionamento dos mercados, elas aplicam-se apenas àqueles que vivem na legalidade, pois os criminosos já estão à margem da lei. Aquelas preocupações não passam assim de hipocrisia e de desonestidade intelectual.
Na cerimónia em que Chissano recebeu o doutoramento "honoris causa", onde estiverem presentes Jorge Sampaio e Mário Soares, e que coincidiu com a comemoração do 31º aniversário da Universidade do Minho, o reitor garantiu que, por causa do aumento das propinas, a Universidade havia perdido seis centenas de estudantes. "O efeito do aumento das propinas foi significativo, verificando-se uma redução no número de alunos inscritos, na ordem dos 600". É devastador!
E a consternação tomou conta dos presentes quando o reitor afirmou que o facto das propinas terem subido, entre o ano passado e este, de 640 euros para 740 euros, levou a que alguns estudantes, para evitarem pagar as propinas, decidissem fazer as cadeiras que ainda lhes faltavam para acabarem os respectivos cursos.
Inaudito. Vejam os malefícios do mercado. O aumento das propinas, com a conivência da nefanda e ubíqua Mão Invisível, induziu os alunos a fazerem aquilo que era suposto haverem feito até então: estudar. E a fazerem as cadeiras. E a deixarem lugares vagos para outros terem acesso. E a Universidade deixou de ser um local de asilo para matriculados decididos a prolongarem a juventude indefinidamente, para se tornar numa escola para estudantes decididos a terminarem a licenciatura.
Antes desse aumento, que fede a neoliberal, o corpo discente vivia tranquilo, espreguiçando-se indolentemente e saboreando o zéfiro matinal das 15H00 e um passeio pausado pela beira do Este, ao entardecer, na lenta expectativa pela febril actividade discente, a iniciar-se lá pelas 22H00 ou 23H00 e a prolongar-se até o sol raiar. A alteração dos preços produziu uma disfunção do mercado e a adaptação dos agentes económicos à nova estrutura de preços resolveram estudar e acabar os cursos.
E agora, ouve-se de quando em vez o dedilhar triste e plangente da guitarra, e uma voz dorida que se eleva e canta:
Estavas, Dux Veteranorum, posto em sossego,
De tantos anos colhendo doce fruito,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a propina não deixa durar muito,
Ias mergulhar no Este e enredaste-te no pego
Estes 3 últimos anos, que se iniciaram com a demissão de Guterres e acabaram com o desfecho eleitoral de ontem evidenciaram as razões profundas do atraso estrutural de Portugal e da sua incapacidade em enveredar pela via do desenvolvimento sustentado da prosperidade económica. Não existe no nosso país, nos meios políticos, culturais e económicos, um sistema coerente de ideias e valores sedimentado e suficientemente difundido e partilhado por largas camadas da população, relativo à liberdade do funcionamento da economia, à assumpção do risco, da inovação, da mobilidade e da requalificação permanente. A ideologia veiculada pelo nossa super-estrutura política, cultural e económica, tirando algumas excepções, é a do Estado asilo, do Estado de que todos, pelos mais diversos e desencontrados motivos, dependem.
O Estado patrão sustenta mais de metade da população. O Estado, agindo como Deus ex-machina da economia, tem posto entraves à transparência dos mercados, tem introduzido barreiras institucionais à entrada nos mercados e à mobilidade entre eles, tem agido como protector de empresários, pervertendo a livre iniciativa, pois enviesa o funcionamento normal da economia, protege empresários ineficientes à custa do erário público e incentiva uma mentalidade de dependência perante um anjo protector. Esta vivência de dois séculos nunca permitiu, salvo poucas excepções, que as empresas ganhassem maturidade, sentido do risco e da inovação e capacidade de sobreviverem sozinhas, pelo seu próprio esforço e engenho. Essa cultura da mediocridade e da tacanhez, fragiliza extraordinariamente o tecido económico português na actual era da globalização e da liberalização do comércio mundial.
Mas este modelo do Estado Providência (em todos os sentidos, nomeadamente no pior sentido) perverteu toda a sociedade. Na cultura, por exemplo: em Portugal não há Teatro nem Cinema porque estes apenas vivem da dependência dos subsídios. Isso fez com que não tivessem necessidade de obter o favor e a adesão do público. Bastava-lhes obterem os subsídios. A sua produção é em circuito fechado, pois o público é despiciendo. Em vez de promover a cultura, o Estado Providência meteu-a num asilo, com a conivência dos asilados. Para definir o nosso regime, melhor que Estado Providência, seria a designação de Estado Asilo.
Esta perversão do posicionamento do Estado na sociedade afecta toda a classe política e não apenas as áreas políticas cuja ideologia de base é, geneticamente, estatizante. As áreas políticas que se reclamam de uma visão não estatizante da economia e da sociedade, não interiorizaram essa visão, nem a modelaram numa doutrina coerente, num projecto capaz, ambicioso e mobilizador.
Neste entendimento, a derrota de ontem começou com a vitória de Durão Barroso, um político medíocre, sem capacidade de liderança e sem coragem para tomar decisões. Mas a sua vitória foi, sobretudo, a evidência de que aquela área política não tinha nem um corpo de doutrina coerente, sólido e rigoroso, nem gente capaz, ou interessada, em liderar o processo de transformação e modernização do país. Muitos dos ministros que Durão Barroso escolheu eram manifestamente incapazes e outros estavam em sítios errados. Manuela Ferreira Leite, por exemplo, tem perfil para secretária de Estado do Orçamento, nunca para Ministra das Finanças.
Durante dois anos, se se exceptuar um anémico pacote laboral, não se fez mais nada senão cortar nas despesas. Mas, numa empresa, quando se pretendem reduzir custos, o controlo de custos estabelece-se em paralelo com a reorganização da empresa em termos dos serviços produtivos e administrativos, procedimentos, etc. Tentar controlar apenas os custos não resolve nada, até porque os custos numa organização desorganizada têm uma característica singular: são sempre imprescindíveis e inadiáveis. Foi o que aconteceu com MFL. Ela cortou, congelou, restringiu ... mas a despesa cresceu sempre, inexoravelmente. O défice corrente, apesar das medidas restritivas, continuou assim superior ao limiar aceitável. É óbvio que a má conjuntura económica internacional ajudou a este mau desempenho das finanças públicas, mas só parcialmente. A razão primordial foi a ausência de reestruturação do sector público, foi a ausência de um projecto coerente e capaz.
Provavelmente por isso mesmo, Durão Barroso agarrou com ambas as mãos a oportunidade da Presidência da Comissão Europeia. O seu governo estava politicamente esgotado e ele não tinha coragem (nem provavelmente capacidade) de inverter a situação.
Santana Lopes nunca deveria ter aceitado a indigitação. Como eu escrevi aqui, nessa altura, tal foi um presente envenenado. Durante 4 meses o PR e a comunicação social frigiram-no em fogo lento. Se exceptuarmos um ou outro debate, ele portou-se sempre como prematuramente vencido, mendigando os avales do PR, sem chama nem vigor. A sua campanha eleitoral foi um desastre: cinzenta, sem ambição.
Aliás, não me parece que PSL tenha perfil para o projecto de modernização da nossa economia, tal como o enunciei acima. É certo que conseguiu formar um governo bastantes furos acima do de Durão Barroso, apesar da premência do tempo, mas não tem perfil para levar a cabo uma reforma tão profunda como aquela que o país necessita. Terá que ser alguém com uma imagem de sobriedade e de credibilidade profissional e científica. Cavaco tinha essa imagem. Infelizmente não tinha as ideias que preconizo como indispensáveis à inversão da caminhada de Portugal para o abismo. Lembremos que embora tivesse sido com o guterrismo que o despesismo atingiu as raias do absurdo e do desconchavo, esse despesismo já havia começado com Cavaco.
O PSD e o PP estão numa encruzilhada. Paulo Portas não tem perfil, credibilidade, nem envergadura, para criar e liderar o projecto que defendo. Nem ele, nem o PP. Todavia revelaram, nestes três anos, que são capazes de, eventualmente, exercerem o papel de sócios menores nesse projecto. Quanto ao PSD não vejo saída próxima. Santana não tem perfil para o fazer, e a sua prestação errática, de derrotado à partida, que ele teve nestes últimos 6 meses, degradou a sua imagem política. Santana terá que fazer uma travessia no deserto, à espera que o eleitorado veja que há outros muito piores que ele. Mas também não vislumbro, no leque dos actuais líderes visíveis, alguém suficientemente capaz. A sugestão de António Borges, a MFL, acho que é um disparate. Essa senhora tem uma boa imagem de merceeira honesta e conscienciosa e não de líder partidária de um partido da área de governo.
Todavia, tal como no xadrez jogado entre aprendizes, ganha quem faz a penúltima asneira. Acontece o mesmo na política portuguesa. A menos que o 1º Ministro Sócrates seja totalmente diferente do Sócrates que se tem produzido até à data, é muito duvidoso que o(s) seu(s) governo(s) dure(m) mais de dois anos. E se um líder frágil e sem coragem política, como Durão Barroso, herdou os despojos de Guterres, não custa nada admitir que o líder do PSD, mesmo a MFL ou o Marques Mendes, venha a herdar os despojos socráticos.
Simplesmente estas heranças são o remake da dança das cadeiras do estertor da monarquia. Não são vitórias, são a herança de derrotas. Não estão inseridas num projecto coerente e sustentável que modernize o país. Servem apenas de entretém ao Campeonato dos Partidos.
A derrota de ontem foi a rejeição pelos portugueses de um modelo que temem, porque constitui uma alteração à mediocridade, regulada pelo Estado, em que têm vegetado. Mas temem-no não apenas por isso. Temem-no sobretudo porque ele não aparece sob a forma de um projecto coerente, rigoroso e sustentável, liderado por políticos credíveis. O eleitorado mostrou que não quer trocar a actual mediocridade em vias de empobrecimento, por algo cujos riscos não consegue quantificar e em cujos protagonistas não confia.
as piranhas ...
Segundo consta, o PS deverá ter a maioria absoluta e o PSD não deverá chegar aos 30%. Isto, se os estatísticos não se enganarem ...
Quando nasceu Portugal? Uns utilizam a data em que Afonso Henriques foi proclamado rei pelos seus pares (alçado rei) a seguir à batalha de Ourique em 1139, típica aclamação numa monarquia fundamentada nos feitos de armas, como era tradicional entre os godos. Outros a data da Conferência de Zamora, 1143, com o acordo com o Rei de Leão, de quem Afonso Henriques seria teoricamente vassalo, que reconheceu a independência de Portugal. Ou seria a data do reconhecimento pela Santa Sé, em 1179?
Mas estas são datas oficiais da entrada de Portugal no concerto das nações independentes. Todavia, Portugal estava latente desde os fins do século IX.
A península, desde tempos remotos e com mais incidência após a conquista árabe, esteve sempre dividida entre a metade sul, mais aberta às influências externas, e a metade norte, muito refractária a essas mudanças (cf mapa da Península, com a divisão entre a Hispânia islamizada e a que nunca o foi). O actual território português estava, na época romana, administrativamente distribuído pela Galécia, a norte, e pela Lusitânia, a sul, que também incluía a actual Extremadura espanhola. Mas a linha divisória de que falei acima, e que passava sensivelmente pela bacia do Mondego, já existia nessa época. Por isso não é de estranhar que o norte se tivesse mostrado muito mais refractário à difusão inicial do cristianismo, que o sul, muito mais urbano e mais em contacto com o resto da România. Ou então por o cristianismo se ter inicialmente difundido muito mais nos meios urbanos que nas zonas rurais, donde o nome de pagãos (paganus - aldeão ou camponês).
Foram as disputas entre chefes romanos, no período da decadência final, que fizeram com que uma facção tivesse prometido instalar na Península Ibérica bárbaros a troco de apoio militar. Deste modo, Vândalos, Suevos e Alanos entraram na Hispânia. Na sequência dessas lutas o Imperador Honório estabeleceu um pacto, em 411, com os bárbaros já instalados. Atribuindo-lhes a Galécia, a Lusitânia e a Cartaginense. A partir dessa data, o território português ficou definitivamente fora do Império.
Em menos de uma década, com a derrota e o desaparecimento político dos Alanos (que se haviam fixado na Lusitânia) e a partida dos Vândalos de Genserico para África, onde constituíram um poderoso Estado que duraria cerca de um século, os Suevos ficaram sozinhos e constituíram um Estado que compreendia o noroeste da actual Espanha (Galiza e o ocidente das Astúrias e de Leão) e o norte e centro (até ao Tejo) de Portugal. A principal zona de fixação dos Suevos foi justamente a zona de Entre-Douro-e-Minho.
A partir desse ano, e até 585, o Reino Suevo manteve-se com alguma estabilidade, mas numa relativa obscuridade, exceptuando a acção de S. Martinho de Dume. Nos últimos anos teve que aceitar a suserania dos Visigodos, sendo finalmente anexado por Leovigildo. Durante esses anos os vínculos criados pela administração romana, os princípios da solidariedade entre os representantes da autoridade romana, o direito estabelecido, os costumes, a língua, a cultura material, tudo isso permaneceu aparentemente estável, embora a ingerência dos próceres bárbaros fosse um permanente elemento de dissolução de todo o edifício administrativo. Durante esses quase 2 séculos, a zona geográfica e étnica, que serviu de núcleo à formação de Portugal, manteve-se independente.
A invasão árabe não trouxe modificações importantes. A região de Entre Douro e Minho, e mesmo a região até ao Mondego, ficaram num vazio de poder político entre a queda da monarquia visigoda em 711 e as presúrias dos fins do século IX. O reino asturiano não tinha meios militares para ocupar aquelas terras que permaneciam numa dependência vaga do califado de Córdova. A sul situava-se o Garb-al-Andaluz (cf. mapa), correspondente à metade sul de Portugal, onde a ocupação árabe foi mais efectiva.
Por exemplo, segundo as crónicas árabes, em 192 da Hégira (807 segundo os cronistas cristãos) os cristãos do Guf de Espanha (nome genérico que os cronistas muçulmanos davam ao norte da península) invadiram e talharam os campos da Lusitânia e o emir Abderahman conseguiu expulsá-los e fazê-los regressar à fronteira da Galiza. Mas Galiza era o nome pelo qual os árabes conheciam a monarquia cristã do noroeste da península. Parece claro que mesmo nessa época a fronteira passaria sensivelmente pelo Douro, embora oscilando consoante as forças relativas dos dois contendores. Na zona entre o sul da bacia do Mondego e o Douro a dominação árabe fazia-se precariamente apenas por walis apoiados por destacamentos enviados pelo emir e fortificados em locais apropriados, ou por próceres moçárabes vassalos.
As presúrias, que ocorreram na última metade do século IX nas regiões de Entre-Douro-e-Minho e Entre Douro e Mondego corresponderam assim à instituição de um poder político e militar em zonas onde o domínio de Córdova era teórico. Os próceres locais assumiam a implantação de um novo poder convocando as populações apresentando as insígnias do novo poder e proclamando os deveres e direitos dos novos súbditos.
Segundo as crónicas árabes, em 254 (provavelmente 865), o emir Muhamad enviou uma frota ao NW da península, mas devido a uma tempestade naufragou quase toda. Esta desgraça (cito a crónica) deu ânimo aos cristãos da Galiza e nesse ano correram toda a terra da Lusitânia, ocuparam Salamanca e cercaram Cória.
Este desastre muçulmano animou os próceres cristãos. A presúria do Porto pelo conde Vimara Peres em 868, que foi seguida de uma série de presúrias entre 870 e 872, deu origem ao Condado Portucalense que durou até 1071, altura em que o conde de Portugal foi morto numa batalha contra o Rei da Galiza, que tomou posse do território.
A presúria de Coimbra pelo conde Guterres em 878 deu origem ao Condado de Coimbra, que foi destruído pela ofensiva de Al-Mansur em 987-990, no apogeu do Califado de Córdova). Em 1064 Coimbra foi reconquistada e o seu governo entregue ao conde Sesnando (ou Sesinando), um moçárabe.
O facto de todas aquelas presúrias ocorrerem num período muito curto é indício que existia naquelas regiões um vazio de poder que até então não tinha sido aproveitado por manifesta falta de meios da monarquia asturiana, mas que os próceres locais teriam atingido um poder suficiente para constituírem estados com autonomia própria. Portanto, a partir da última metade do século IX havia na actual metade norte do nosso país dois poderes autónomos (o Condado Portucalense e o Condado de Coimbra) que, com altos e baixos, foram subsistindo durante 2 séculos.
Citando cronistas árabes, Chegada a primavera de 384, Almançor partiu com uma poderosa hoste de cavalaria para a fronteira de Galiza, venceu as tropas dos cristão que se lhe opuseram, destruiu as suas fortalezas e queimou os seus templos, tomou grandes despojos dos povos e fez cativos moços e donzelas. Chegou aos sapais de Galiza e Burtecala e saqueou e queimou o templo de Santyac. ... e voltou a Córdova com muitos cativos e gados. .... No ano de 385 (995) Almançor voltou a atacar a fronteira norte e derrotou Garcia Fernandes, Rei de Galiza, que morreu na batalha. A chegada das chuvas impediu Almançor de prosseguir a ofensiva. O Califa Almançor morreria pouco depois, na sequência da batalha de Catalnasor, contra os cristãos.
Aquela crónica árabe é importante porque identifica pela primeira vez Portugal como entidade distinta da Galiza. Burtecala é a transcrição fonética para o árabe (no árabe não existe p e existem 3 letras com sons próximos do nosso g mas nenhum igual). Isto é significativo porque para os cronistas árabes, até àquela época, apenas existiam 2 entidades cristãs a Galiza, a noroeste, e o Afranc (França e as marcas cispirenaicas, como a Catalunha), a nordeste. É óbvio que a Galiza das crónicas árabes era o reino que também é identificado como Reino de Leão, que era a vila onde o rei residia com mais frequência.
Poucos anos depois, reportando-me às mesmas crónicas, entrou Almudafar (hagib do Califa Hixem, filho de Almançor) em terras de Galiza e por todas as partes destruiu os fortes que os cristãos haviam erigido ... Derrubou os muros de Ávila, chegou a Salamanca e passou ao interior de Galiza e Portugal, regressou pelas ribeiras do Douro ... e chegou vencedor a Córdova no ano 398 (1007). Mais uma vez, e esta foi a última incursão árabe antes do fim do Califado de Córdova e da sua divisão nos reinos taifas, o nome de Portugal é citado.
Estas crónicas reforçam a ideia atrás exposta que a linha entre o emirado (depois califado) de Córdova e a monarquia cristã passaria sensivelmente pelo maciço montanhoso que separa a bacia do Douro da bacia do Tejo. Acima dessa linha o domínio árabe foi episódico e quando existiu consistiu apenas em relações de vassalagem e tributárias. Aliás, a dominação árabe na península teve características similares à dominação normanda na Inglaterra. Era um reduzido núcleo dirigente, político e militar, que detinha o poder político e cultural, falado e escrito. Quando o emir (depois califa) de Córdova pretendia fazer incursões ao norte cristão recrutava quase sempre tropas em África, o que mostra o reduzido potencial demográfico próprio. O mesmo não aconteceu com a religião, pois o islamismo adquiriu uma forte expressão no sul da península Andaluzia, Valência e Algarve. Em Portugal, para além do Algarve, também o vale inferior do Tejo, a Balatha (Valada) árabe, tinha uma forte implantação da religião islamita, embora, como mostrou o relato da conquista de Lisboa, o elemento moçárabe fosse muito importante, e talvez mesmo predominante do ponto de vista demográfico.
Com o fim do califado e a cisão e decadência política dos árabes na península, a sua dependência de África ficou cada vez maior e tornou-se dependência política. As grandes tentativas muçulmanas de contrariar o avanço dos cristãos foram feitas por monarcas da África do Norte, primeiro os Almorávidas e depois os Almohadas. O Andaluz caiu na dependência dos reis do Magrebe.
Regressando às potências cristãs, a Galiza (e o norte de Portugal, até ao Mondego) passou entretanto a ser uma dependência do Rei de Leão e Castela, que constituiu o condado Portucalense 1096, com todas as terras a sul do Rio Minho (integrando portanto as terras do antigo condado de Coimbra), entregando o seu governo a D. Henrique, casado entretanto com D. Teresa, a sua filha bastarda. No início da sua constituição, o condado ia até ao Tejo, mas a queda de Sintra em 1109 e de Santarém em 1111 (ambas tinham passado para a posse dos cristãos em 1093, juntamente com Lisboa, entretanto reconquistada pelos árabes no ano seguinte) repôs a fronteira sul entre o Tejo e o Mondego. Foi a época do apogeu do poder almorávida que ditou este refluxo.
Em 1128 Afonso Henriques tornou-se conde de Portugal, após derrotar a mãe. Em 1139 proclamava-se rei e em 1143 a Conferência de Zamora reconhecia-lhe o título. Os territórios sujeitos ao novo rei não eram então mais dilatados que os territórios dos condados de Portucale e de Coimbra nos fins do século IX, pois só em 1147 Santarém, Lisboa e Sintra seriam reconquistadas e a fronteira sul regressaria ao Tejo.
Portanto, quando Portugal obteve o estatuto de reino, já há cerca de 270 anos que as regiões que o constituíam tinham um estatuto de semi-independência.
Oficialmente, Portugal tem perto de 9 séculos de existência como Estado independente. Mas do ponto de vista de existência autónoma e fixando 868, a data da presúria do Porto, como início dessa existência, terá mais de 11 séculos. A partir daquela data, apenas durante 25 anos, entre 1071 e 1096, o Condado Portucalense não teve existência própria e autónoma. E o mesmo para o condado de Coimbra, excepto entre 990 e 1064. Mas isso também aconteceu ao Reino de Portugal entre 1580 e 1640.
Pelo tratado de Alcanices (1297), a fronteira foi definitivamente fixada (com a excepção de Olivença).
Assim, a partir de 411, e provavelmente antes sob a administração romana, o futuro Condado Portucalense formou uma identidade própria, que os Suevos poderão ter impulsionado ao se fixarem principalmente na sua área, e cuja autonomia política só foi interrompida durante o século visigodo (585-711) e durante a vaga suserania do Emirado de Córdova (711-868). A partir daí, só esporadicamente essa autonomia se perdeu.
Nota: As transcrições das Crónicas Árabes foram extraídas da Historia de la Dominacion de los Arabes en España sacada de varios Manuscritos y Memorias, compilado por Jose António Conde, Paris, Baudry, 1840.
Os mapas foram extraídos da História de Portugal, Vol 1, dirigida por José Mattoso, Lisboa 1992.
As datas das presúrias e de alguns eventos relativos ao Condado Portucalense e ao Condado de Coimbra foram extraídas da Nova História Militar de Portugal, Vol 1, de Themudo Barata e Severiano Teixeira, Lisboa 2003.
Quando estiverem criadas as condições objectivas e subjectivas imprescindíveis e inevitáveis, os portugueses farão a escolha certeira e necessária:
... ou o vídeo-clip Sócrates
O que me impressionou inicialmente no discurso que J Sócrates tem tido nesta campanha foi o rosário de banalidades que tem desfiado. Não há nada no seu discurso que não sejam banalidades sem qualquer conteúdo prático. Sócrates tem fugido sempre a assumir quaisquer compromissos. Só proclama intenções muito genéricas. Mesmo os poucos números que tem apresentado, confessa seguidamente não passarem de meros objectivos, de metas indicativas.
O que me impressiona presentemente é que essas banalidades têm sido repetidas até à exaustão, sempre as mesmas e da mesma maneira. Sócrates afivela, em todas as ocasiões, expressão facial idêntica, idêntica linguagem gestual, e declama exactamente, textualmente e sempre as mesmas banalidades. Sócrates não é uma cassete ... é um vídeo-clip.
Têm sido desenvolvidas diversas teorias para explicar tamanha limitação banalística. A mais difundida é a de que Sócrates entrou no jogo com apreciável vantagem e espera que, se não disser nada de substantivo, faça vingar essa vantagem inicial. Se se ficar por banalidades inócuas evita controvérsias incómodas e desnecessárias. Teria sido por essa razão que Sócrates reduziu ao mínimo indispensável os debates televisivos. Ou seja, Sócrates não espera ganhar as eleições ... espera que os adversários as percam.
Eu tenho outra teoria. Sócrates não sabe que política vai ser constrangido a fazer no caso de ganhar as eleições. Se as ganhar com maioria absoluta, o seu leque de opções será determinado pela evolução da situação económica e financeira do país, pela evolução da conjuntura internacional, pela força dos lobbies sindicais e empresariais que têm sempre influência decisiva no comportamento do PS enquanto governo. Igualmente determinante vai ser a correlação de forças interna que poderá variar ao sabor de interesses internos ou induzida por variáveis externas, nomeadamente as sondagens. O espectro político do PS é muito amplo e os consensos só existem com objectivos muito concretos: ganhar o poder, distribuir sinecuras (às vezes), etc..
Se Sócrates ganhar sem maioria absoluta ficará dependente, para além dos constrangimentos acima enunciados, do estabelecimento de acordos com outros partidos políticos, ou seja, Sócrates ficará refém de maiorias pontuais na AR. Fazer maioria com o PCP (no caso desta ser numericamente viável) é impensável, não só pela actual liderança e evolução do PCP, mas também pelas relações históricas entre os dois partidos.
A aliança com o BE (igualmente no caso de ser numericamente viável) poderia causar menos engulhos internos, na medida em que a ala esquerda do PS tem gente que está no PS, e não no BE, apenas porque o PS é um meio mais viável de chegar a cargos públicos. Todavia essa aliança teria um efeito calamitoso na sociedade civil, no mundo económico e no nosso relacionamento externo, nomeadamente com a UE.
Neste entendimento Sócrates terá que estar preparado para tomar as medidas A, B, C, ... N, ..., ou não-A, não-B, não-C, ... não-N, ... ou quaisquer combinações daquelas medidas (e não-medidas) e todas as soluções intermédias entre uma dada medida e a sua não-medida. Em termos de análise combinatória, Sócrates tem um número infinito de medidas que poderá vir a tomar. Sócrates não tem uma política, ou melhor ... a política de Sócrates é chegar ao governo. O resto logo se vê.
Sendo assim não se pode comprometer. Se lhe perguntarem se irá tomar a medida A, ele responderá : O que está a perguntar é um pouco dar voz à propaganda dos meus adversários, eu quero um bom governo, um governo que restaure a confiança dos portugueses. Então estará mais inclinado para a não-A?: Não vou dar pormenores, não me peçam para fazer o regulamento, e não me deixo impressionar com a propaganda económica de direita que nos quer atrair sobre a discussão sobre um determinado ponto; o que país não tem é confiança, nunca teve desde o discurso da tanga. Mas ouvi uma sua declaração sobre a medida Z, que tem a dizer sobre isso?: Z não é uma medida mas uma meta indicativa. O meu objectivo é que a mudança não seja apenas de cor política, mas que seja uma mudança no estado psicológico do país. O que é preciso é restaurar a confiança.
Por fim, irritado com tanta pergunta supérflua, vem ao de cima o animal feroz: Qualquer general dirá: estratégia é escolher o sítio onde lutar. Os portugueses sabem do que é que eu estou a falar. Penso que já falei em tudo isto, mas não me importo de repetir: Eu quero um bom governo, recuperar a confiança dos portugueses, e introduzir a tecnologia.
Nestes apuros, os crentes entregam-se à providência divina, os católicos marianos rezam à Virgem Maria, os ateus resignam-se ao determinismo histórico, e os portugueses vão para a pastelaria chalacear sobre política.
Louçã é um político de sistemática má-fé, que apregoa virtudes próprias e enxovalha permanentemente os concorrentes. Tem todas as características dos pregadores fundamentalistas de certas facções religiosas americanas de extrema direita, sobejamente retratados na literatura e no cinema. No debate de ontem Louçã criou o que a imprensa, parcial e ignorante, designou por "caso" do debate denunciando uma suposta isenção fiscal concedida em Agosto passado pelo actual governo ao grupo Santander. Santana Lopes, em vez de aproveitar o intervalo para se municiar com o diploma legal que justifica essa isenção, municiou-se com referência a idênticas isenções, muito mais vultuosas, concedidas pelo governo de Guterres a grupos bancários, o que daria ao pregador de extrema-direita, com chavões de radical de esquerda, a possibilidade de o acusar de ser "muito feio falar-se do que os outros fizeram para justificar os nossos erros".
Ora aquela isenção é regulada pelo Decreto-Lei n.º 404/90, que o OE 2005 prorrogou até 31 de Dezembro de 2006. Sem isso as empresas portuguesas não poderiam beneficiar da isenção de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis, de Imposto do Selo, de emolumentos e de outros encargos legais decorrentes da prática de operações de reorganização empresarial, situação que seria extremamente prejudicial para a capacidade competitiva de grande parte do tecido empresarial português.
Para obterem essas isenções as empresas terão que provar que não haverá mais-valias resultantes desse processo de reestruturação. As empresas que pretendam essa operação terão que apresentar um requerimento à Direcção Geral dos Impostos com um estudo demonstrativo das vantagens da operação que pretendem realizar, um parecer do ministério da tutela da actividade da empresa relativo ao estudo referido, bem como um parecer da autoridade da concorrência sobre a compatibilidade da operação com a existência de um grau desejável de concorrência no mercado. Por outro lado, para beneficiarem destes incentivos, as sociedades envolvidas têm que exercer a mesma actividade económica, ou actividade integrada na mesma cadeia de produção ou distribuição desde que manifestamente complementares. Estas últimas obrigações foram introduzidas pelo OE 2005.
Portanto o que se verificou no debate foi má-fé do Louçã que, ao apresentar aquele papel e fazer aquela acusação, deveria ter-se informado antes das respectivas disposições legais, foi a demagogia saloia de Sócrates que se apressou a dizer que as explicações do PSL eram insuficientes. Quanto a PSL e P Portas, admite-se que, colocados de surpresa perante aquela acusação, não estivessem seguros do enquadramento da situação. Só omniscientes o estariam. O que já não se justifica é que, durante o intervalo, PSL em vez de ser informado do que era substantivo, se municiasse apenas de farpas contra o governo de Guterres/Sócrates.
Sócrates não insistiu a seguir ao intervalo. Provavelmente informou-se e viu o buraco em que se tinha metido.
Por outro lado só esquecidos ou desonestos intelectualmente ignoram as benesses que os governos de Guterres/Sócrates deram aos grupos económicos. Não fica mal meter aquelas farpas. Fica mal, sim, mostrar ignorância sobre o assunto.
As afirmações de Sócrates na entrevista que deu ao programa "Diga lá Excelência" são preocupantes, menos pelos objectivos enunciados, que são vagos, que pelo que significam de incompreensão relativamente aos erros cometidos pelo guterrismo e as suas consequências. Vejamos algumas afirmações:
António Guterres foi um bom primeiro ministro, fez um bom trabalho no Governo. Nesse Governo, nós sempre crescemos mais que na Europa. Sempre enriquecemos em relação à Europa... Não é verdade. Sócrates e os guterristas confundem crescimento do rendimento com crescimento da riqueza medida em termos físicos. Injectar dinheiro na economia aumenta o rendimento disponível, mas tarde ou cedo ter-se-á que pagar a factura. Distribuir dinheiro sem ter como contrapartida riqueza produzida, cria uma falsa sensação de prosperidade, falsa duplamente porque esse rendimento adicional induz outras actividades, e a ressaca retalia duplamente também, pois induz a redução das actividades entretanto criadas e aumenta o desemprego. Como escrevi no post anterior: Injectar dinheiro na economia é como consumir droga: quando acaba o efeito ilusório é preciso mais, cada vez mais. Considerando o exemplo doméstico, cada um de nós pode promover uma situação de bem estar em casa recorrendo ao crédito ao consumo. Porém, tarde ou cedo terá que pagá-lo. Com a agravante de que entretanto se criaram hábitos perdulários e se compromete o futuro com a obrigação de pagar os encargos das dívidas contraídas.
É muito triste chegarmos a este momento, três anos depois, e vermos um líder político cujo argumento que lhe resta é queixar-se da pesada herança. O problema é que é mesmo uma pesada herança, cujas causas estruturais não foram resolvidas, que transita para a próxima legislatura. Por exemplo, a construção das SCUTs que foi então uma importante fonte de receita (IVA das transacções, IRC das empresas que trabalharam directa ou indirectamente na sua construção, IRS e remunerações sociais dos trabalhadores envolvidos, e efeitos induzidos no restante tecido económico) só vai começar a ser ressarcida este ano. É um encargo para décadas. O excesso de funcionalismo público admitido naqueles anos não se resolve com despedimentos, pois a lei actual não o permite. É uma herança que continuará a transitar até se conseguir fazer uma reforma a sério na administração pública. Mas para a fazer vai ser necessário alterar (ou eliminar) algumas disposições constitucionais. Como Sócrates, pelo que disse, não revela que tenha a noção da gravidade da situação, é mais que provável que herança que irá deixar quando sair seja muito mais pesada.
Foi um erro concentrar todos os esforços da política económica apenas nas finanças públicas, porque o rigor nas finanças públicas, que é absolutamente essencial, apenas evita que se criem novos problemas na economia. Não resolve os problemas da economia. . ... Tem razão. A questão é que qualquer governo vive em estado de sufoco: o défice público rígido herdado de Guterres (e de Sócrates) e a quase impossibilidade de tomar medidas de fundo.
Vejamos porém como Sócrates se prepara para resolver os problemas da economia: Qual é a área estratégica na qual o país deve apostar ? É a área do conhecimento, da ciência e da tecnologia, a área da política educativa, da reorientação do nosso sistema educativo pondo-o ao serviço da maior competitividade país. Por isso as nossas propostas para o inglês, para a duplicação da frequência no ensino tecnológico e profissional.
Quando é que estas medidas, se forem tomadas e se conseguirem vingar, num sistema educativo que é o mais caro da Europa e o que produziu piores resultados, irão ter efeito? Daqui a décadas. E haverá país nessa época? O Estado não terá entretanto entrado em colapso? Não podemos desdenhar das medidas imediatas e prometer em troca medidas que só surtem efeito daqui a décadas. E até lá? Como resolvemos a situação difícil em que estamos?
Os entrevistadores entretanto fizeram umas contas: jovens nas empresas, mais prestações sociais para 370 mil idosos, aumento de 0,5 por cento do PIB no crescimento científico, aumento de 0,5 por cento no orçamento da cultura, mais 500 a 700 milhões de euros anuais para as SCUT. Tudo junto e somado isto corresponde a um agravamento do défice em muito mais de um por cento face à situação actual.
Eu não me resigno a essas contas de quem acha que não é possível fazer nada.
Isto é apenas matemática.
Não é apenas matemática. A maior parte dessas contas está mal feita porque não se trata de mais despesa. Trata-se de reorientar a despesa. Pô-la ao serviço de outros programas. O programa dos mil jovens licenciados em ciência e tecnologia em pequenas e médias empresas vai puxar pelo crescimento económico.
Mas reorientar como? Onde é que Sócrates vai buscar dinheiro? Ao orçamento de Estado? É natural que haja uma flexibilização do PEC, mas nunca para a despesa corrente. Sócrates apenas está a prometer aumentar a despesa pública. É a droga que referi acima. A droga que vicia. Sócrates e o seu séquito de guterristas continuam viciados na droga da injecção de dinheiro na economia. Seis anos de guterrismo e três anos austeridade não serviram de ensinamento nem de desintoxicação.
Quando os entrevistadores interrogaram se o Estado iria pagar parte do salário dos jovens licenciados e se 60% ou 70%, Sócrates refugiou-se no seu habitual não comprometimento e no panegírico estatizante:
Não vou dar pormenores, não me peçam para fazer o regulamento. Já faço um decreto-lei, genericamente. Isso não está definido. Eu não me resigno à ideia de que para combater o desemprego o melhor é esperar que passe. Para esperarmos um maior crescimento económico o melhor é sentamo-nos e esperar que o mundo melhore. Na saúde, serviços mínimos, na educação, quanto mais barato melhor. Eu não me resigno a isso. Acho que é preciso vontade e o Estado tem um papel a desempenhar.
Sócrates pode não se resignar a isso, mas arrisca-se a que os portugueses não se resignem a pagar a ineficiência do Estado. Primeiro saem (ou deslocalizam-se) as empresas e depois os trabalhadores (mas apenas os mais válidos e os menos resignados, que os outros ficarão cá a receber os subsídios). Depois veremos onde o Moloch estatal vai sacar dinheiro para saciar a sua voracidade.
Quando os entrevistadores falam na redução do peso do Estado na economia de 48 para 40% do PIB e do peso dos salários da administração pública de 15% para 11% (proposta do PSD) o pensamento estatizante de Sócrates é claro:
Nos últimos três anos foi feito um discurso ideológico contra tudo o que é público, que é negativo para o nosso país. Isso não tem o mínimo sentido. Nós precisamos do nosso sector público. Precisamos dele é mais eficiente. E remata dizendo que a matéria das finanças públicas foi uma questão ideológica!?
Claro que precisamos do sector público, claro que precisamos dele mais eficiente. Só não precisamos de um sector público que é 20% a 30% superior à média europeia e presta um serviço muito pior.
Finalmente afirmou uma coisa que é um completo disparate. A economia vive muito da confiança. E o que país não tem é confiança, nunca teve desde o discurso da tanga. Ora os empresários não ganham confiança pelas tretas que ouvem dos governantes. Os empresários, pelo menos aqueles que vingam, vivem da confiança que lhes inspira o clima económico, o enquadramento legal e administrativo em que laboram, o estado das carteiras de encomendas e a sua evolução, etc.. As conversas dos governantes sobre o país estar ou não estar de tanga, entram-lhes por um ouvido e saem-lhes por outro, excepto para aqueles cuja principal actividade são os contratos públicos (empreitadas e fornecimentos). Mas este caso é o que referi antes sobre as carteiras de encomendas. Todavia, mesmo que o Governo declame que o país está a avançar com firmeza, desde que eles não vejam concretizar-se esse pregão em encomendas sólidas, continuam sem confiança.
O resto, dizer que A nossa mensagem é de exigência, de rigor, de apelo ao trabalho, mas é também uma mensagem de ambição, de energia, de vontade de optimismo. O meu objectivo é que a mudança não seja apenas de cor política, mas que seja uma mudança no estado psicológico do país, não passa de banalidades que qualquer um poderia dizer. Da extrema-direita à extrema-esquerda.
Sócrates exaltou-se hoje porque não gostou das críticas feitas por empresários ao programa do PS na conferência promovida pelo Diário Económico, onde o acusaram de ser muito vago. E afirmou peremptoriamente: Quando tiverem insónias leiam o programa de Governo do PS. E tem razão. Se o reduzido conteúdo das suas propostas causa preocupações, a leitura de tantas páginas pejadas de banalidades apenas causa uma enorme sonolência.
Parece que nem sequer a conversa de Sócrates traz confiança aos empresários.
Parafraseando Churchill, o sistema da Economia de Mercado é o pior sistema económico, se exceptuarmos todos os outros. Todos os sistemas sociais e económicos alternativos já experimentados, começaram como utopias exaltantes e acabaram na miséria económica e no totalitarismo político. Todas acções dos aprendizes de feiticeiro que querem regular a economia, mesmo com as melhores intenções, levam invariavelmente essa economia ao desastre.
A ideia da política económica distributiva tem milénios. Os filósofos da Antiguidade e os escolásticos da Idade Média apenas se preocupavam com a repartição dos bens de forma a torná-la coerente com a moral que quer uns, quer outros, pregavam para a sociedade; para eles a produção era um dado adquirido. O lucro era considerado pecaminoso. O bom governo seria aquele que assegurasse a igualdade social. É certo que este discurso moralista nunca passou da elaboração de utopias, mas tem servido de suporte à ideologia que se intitula de esquerda, passado que foi o interlúdio do socialismo científico de Marx, tornado desvalido pelos infortúnios do socialismo real. E assim se regressou do socialismo científico ao socialismo utópico de sempre.
Foi Adam Smith que descobriu o motor do desenvolvimento económico da prosperidade social, que estivera sempre presente na sociedade, mas que nunca havia sido identificado: o indivíduo, e não o Estado, é o principal actor económico; a riqueza é real e não se confunde com uma ilusão monetária; o comércio internacional é apenas um comércio como outro qualquer e não um meio de entesouramento do Estado e da prosperidade de um país, como julgavam os mercantilistas.
Para Adam Smith «a opulência nasce da divisão do trabalho». A divisão do trabalho é a condição sine qua non do crescimento. Mas qual é o seu fundamento? A racionalidade dos indivíduos? O fruto de uma vontade colectiva? Não, é o gosto pela troca e pelo lucro. Não é à virtude moralista do dono da mercearia que devemos o nosso jantar, mas ao egoísmo com que ele cuida dos seus interesses. Não nos dirigimos ao seu humanismo, mas à sua ganância; não lhes falamos das nossas necessidades, mas das suas vantagens.
Este estado da natureza, o mercado, corresponde, além do mais e segundo se demonstra na microeconomia, ao óptimo colectivo. Em vez da providência divina, dos escolásticos, é a mão invisível que providencia o óptimo da colectividade.
Porém, para a economia funcionar tem que haver intervenção do Estado. Mas essa intervenção deve circunscrever-se à defesa e segurança pública e à tarefa de manter a concorrência a funcionar sem entraves, nem barreiras. A sociedade tem necessidade que ser protegida e ser liberta dos entraves que possam prejudicar a eficiência do seu funcionamento: suprimir as barreiras que limitam a liberdade económica: regulamentos e corporações no plano interno; restrições às importações e travões ao comércio livre no plano externo, porque a liberdade de comércio tende a maximizar a riqueza da sociedade. Isto desde que o outro país não prejudique, por proibições ou direitos elevados, as importações vindas do nosso país.
Além disso, outra ideia mítica foi destruída: A produção não é uma criação de matéria, mas uma criação de utilidade. O preço apenas quantifica a utilidade e a raridade dos produtos. Só há produção de riqueza quando houver criação ou aumento de utilidade. Quando se diz que os custos de produção regulam o valor dos produtos, isto apenas é verdade na medida em que um produto nunca pode ser vendido, de uma forma sustentada, a um preço inferior ao seu custo de produção. Todavia é a relação entre a oferta e a procura que fixa o preço. Os consumidores adequam as quantidades consumidas à utilidade que vêem na sua aquisição e os produtores adequam as quantidades produzidas à procura existente, tendo em conta a sua estrutura de custos.
O regresso ao mito milenar que a criação de riqueza é a criação de matéria, postergando a utilidade como elemento definidor do preço foi outro dos vícios do socialismo real. Vício que era aliás imanente à própria ideologia que o suportava. Sabe-se o resultado a que isso conduziu.
A economia de mercado é a base espontânea e natural das trocas e da fixação dos preços e quantidades. Ponham o capitalismo na rua que ele entra pela janela. Em todas as formações sociais, e nas áreas em que não há coacção extra-económica (escravatura, servidão, regulamentos corporativos, etc.), existe economia de mercado. Mesmo nos regimes comunistas o desenvolvimento de uma economia de mercado (aceite institucionalmente ou em mercado negro) acompanhou o aumento da planificação colectiva e a expansão do sistema de preços artificiais.
Todavia, a economia sem a sociedade é um jogo abstracto. A economia de mercado é um processo darwinista (aliás comum à evolução das espécies) que elimina os menos aptos. Mas quando falamos dos menos aptos estamos a referir às pessoas e à sua exclusão social. A sociedade terá assim que implementar mecanismos para organizar essa diferença: as desigualdades sociais e económicas devem permitir trazer aos mais desfavorecidos as melhores perspectivas e estas serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades. Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa que o rico se torne mais rico se o pobre se tornar menos pobre. Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, justiça, etc..
A perversidade foi que a implementação daqueles mecanismos levaram ao crescente poder e importância do Estado como regulador social, para além do necessário. Na Europa Ocidental, a prosperidade das 3 décadas de ouro parecia indicar que o Estado poderia aumentar indefinidamente a despesa pública para subsidiar o igualitarismo social. A esquerda ocidental que abandonara o marxismo, tornou-se keynesiana.
Mas da mesma forma como o mercado liquidou o socialismo científico, liquidou o keynesianismo e a sua aposta na despesa pública como motor da economia. As políticas públicas que pretendiam estabilizar a sociedade, revelaram-se destabilizadoras para a economia. Injectar dinheiro na economia é como consumir droga: quando acaba o efeito ilusório é preciso mais, cada vez mais. O socialismo, que havia ficado órfão de Marx, ficou agora órfão de Keynes, embora muitos ainda não se tenham apercebido disso.
E assim Hayek, que havia sido desprezado, foi repescado: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e pesa sobre o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Uma catástrofe, pois a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais e da defesa da concorrência.
Foram os países anglo-saxónicos que mais rapidamente se aperceberam da necessidade de mudança: Reagan, nos EUA, e Thatcher, no UK. A revolução thatcheriana, que o trabalhista Blair não repudiou, permitiu que a Grã-Bretanha esteja a atravessar esta fase complexa da economia mundial de uma forma muito mais satisfatória que a França e a Alemanha, cujas economias estagnaram, isto para não falar de países mais pequenos, como a Suécia, a viverem uma crise profunda.
O que Portugal precisa é da liquidação de todos os empecilhos que impedem que o mercado funcione com eficiência (justiça morosa e de desenlace duvidoso, burocracia administrativa, regulamentações obsoletas, rigidez laboral, etc.). Precisa igualmente que a máquina do Estado seja aligeirada e tenha um melhor desempenho, nomeadamente na educação e na saúde. Precisa que o Estado assegure a transparência dos mercados e que não haja barreiras legais ou artificiais à entrada nos mercados.
É essa a tarefa do Estado. Se o fizer, o tecido empresarial português fortalecer-se-á e aparecerão empresários de mentalidade cada vez mais aberta e dinâmica, mesmo que inicialmente sejam os empresários estrangeiros os primeiros a aproveitarem a melhoria do ambiente económico. E este dinamismo irá reflectir-se no volume de emprego e na sua qualificação.
Não cabe ao Estado ensinar aos empresários onde estão as melhores oportunidades de negócio ou incutir-lhes confiança através de declarações públicas. Os empresários sabem melhor que o Estado que oportunidades há e onde estão. Os empresários terão confiança se sentirem um clima de confiança e não por mera retórica.
É neste enquadramento que deve ser lida e avaliada a entrevista de Sócrates ao programa "Diga lá Excelência". Mas isso será objecto de um próximo post.
Transcrito dos Jaquinzinhos com a devida vénia
O António afiançara à Maria que a vida seria um mar de rosas e cheia de prosperidade. O casamento foi feliz e despreocupado. O António era um gastador compulsivo mas a Maria não queria saber nada dessas coisas de dinheiro. "A família não são números", proclamava o António a quem lhe chamava a atenção para os excessos. O que interessava era a qualidade de vida, as grandes festas e as aparências.
Quando um dia, repentinamente, o António fugiu de casa deixando apenas as prestações das dívidas por pagar, a Maria entrou em desespero. Estava de tanga. Atemorizada, casou com o Zé Manel, depois de um curto namoro. Afinal, o Zé Manel parecia ser bem mais ajuízado que o António e talvez trouxesse alguma ordem às finanças lá da casa.
Os rapazes sentiram logo algumas diferenças. As semanadas foram congeladas, o Zé Manel não lhes dava dinheiro para o autocarro e o discurso mudara: "Temos que poupar, não podemos gastar o que não temos", dizia o Zé Manel. Mas aquilo era só da boca para fora. Os costumes da família estavam bem enraízados e, no essencial, tudo continuou como no tempo do António.
Apesar das dívidas cada vez maiores, não se cortava na cozinha, nem nas férias, nem nas contas da água, da luz ou do telefone. Nunca se dizia que não a um livro, a um disco ou a uma ida ao cinema. Não se mexia em direitos adquiridos. Por vezes o gerente da Caixa telefonava, inquietado com o saldo do cartão de crédito. E de vez em quando vendiam algumas jóias antigas para acalmar os credores.
Até que um dia o Zé Manel anunciou que se ia embora. Arranjara um emprego no estrangeiro, muito bem pago. E disse à Maria: "Não te preocupes, eu vou-me embora mas arranjei-te marido novo. Casas-te com o Pedro. Ele cuida de ti."
A Maria assim fez mas o enlace durou pouco. O Pedro era um bocado estouvado e tinha alguns amigos pouco recomendáveis. O pai da Maria não gostava dele nem um bocadinho e fez-lhe a vida negra. E um dia, o Pedro chegou a casa e descobriu que tinha a mala nas escadas.
Agora a Maria vai casar com o José. Foi o pai dela que arranjou o casamento. O José faz-lhe lembrar o António, de quem era muito amigo. O José propõe-se gerir as finanças familiares de outra maneira. Quando a Maria lhe pergunta como é que ele vai fazer ele explica: "É fácil, o objectivo é sermos felizes."
O José já prometeu que as semanadas das crianças vão ser aumentadas, porque é uma vergonha que os nossos filhos tenham menos dinheiro que os filhos dos outros. Vai comprar um computador lá para casa e ligá-lo à Internet, em banda larga. Vai haver telemóveis para todos. "É um choque tecnológico", explica ele. E promete à Maria, que continua a ser a única a trabalhar lá em casa, que não vai precisar de lhe dar nem mais um tostão. O José vai gerir a casa com o que tem. E daqui para a frente, quem paga o café e os cigarros é ele. Essa mania do consumidor-pagador já era.
Soa a banha da cobra mas a Maria quer marido e os bons pretendentes não aparecem. A família da Maria gosta do José. Parece que vem aí um tempo novo e os rapazes já estão fartos de más notícias. O José é recebido lá em casa de braços abertos.
As más surpresas vão começar a chegar lá para o fim da Primavera. E um dia, alguém vai reparar que o título desta história é "Quatro Casamentos e Um Funeral".
Nota: Este conto foi transcrito também no Público de hoje. É interessante que um jornal de referência, para ter opiniões alternativas se tenha que socorrer de um ou outro colunista e da blogosfera.
Estamos perto da época em que 2 fenómenos vão ocorrer no país. As eleições legislativas e o abandono dos ninhos pela processionária. A sequência deste último fenómeno é conhecida. As lagartas descem o pinheiro em procissão e enquanto não se enterram e mudam de estado, os seus pêlos urticantes são mortíferos para animais e humanos. As alergias que contactos directos causam podem ser mortais, mas mesmo os pêlos que deixam pelos ramos, transportados pelo vento, podem causar alergias de gravidade variável.
A sequência das eleições não é ainda conhecida, mas a avaliar pelas promessas dos candidatos, a alergia de que padecem as nossas finanças agravar-se-á. Apenas a gravidade dessa alergia depende dos resultados. Pode ser a continuação da alergia moderada com tendência a agravar-se pela ausência de tratamento adequado. Pode ser a ingestão maciça de pêlos urticantes, a necrose dos tecidos e o colapso das finanças.
Têm ambos algo em comum. Os ninhos da processionária têm o aspecto de flocos de algodão macio, lá no alto, dependurados das extremidades dos ramos. Parecem de uma brancura diáfana inofensiva. Se não fosse a experiência vivida anualmente , ninguém acreditaria em tamanha nocividade. As promessas dos candidatos são igualmente atraentes quanto à forma, dependuradas lá no alto, na criativa imaginação dos nossos políticos. Quando abandonam o ninho e descem à terra é que se revela a sua nocividade. Nesta praga, o que é grave é que nunca se sabe como vão descer, que tipo de alergia irão produzir e como camuflarão a sua acção para que as vítimas não aprendam com a experiência.
Há nove anos assumiram a forma da construção de um país solidário, a caminho da prosperidade pela via do diálogo; afinal não passaram de uma praga de gafanhotos que devastou o erário público e deixou o país à beira da falência. Há três anos, assumiram a forma de um anti-alérgico vigoroso que liquidaria a praga: afinal era um produto frouxo, pusilânime, que deixou as causas da devastação praticamente incólumes e o país receoso do gosto amargo do remédio. Agora, após o país ter degustado o sabor amargo do remédio, o mais provável é o regresso dos gafanhotos para retouçar o pouco que deixaram, sob a camuflagem de que o país tem que mudar; e a alternativa é a continuação da administração de paliativos sem efeitos decisivos.
A alternativa mais provável tem contudo uma faceta que se pode revelar vantajosa: quando não houver mais nada para devorar, os gafanhotos desaparecem e o país ficará consciente que não tem qualquer alternativa senão tomar os remédios que forem necessários, sorver os eméticos mais repugnantes ao paladar e sujeitar-se às intervenções mais dolorosas. A menos que prefira o colapso como Estado viável.
E se acontecer o colapso das finanças públicas, o facto de Portugal estar na eurolândia vai permitir a ocorrência de uma situação paradoxal serão os mais endinheirados a sofrerem menos, pois a livre circulação de pessoas e bens assegura-lhes sempre o bem estar, ou pelo menos um relativo bem estar; e serão os mais desfavorecidos e os directamente dependentes do Estado, ou seja, aqueles cuja ânsia de se agarrarem às ilusões que lhes são vendidas é mais desesperante, que irão pagar a crise. Será a justiça imanente.
Para a semana aqueles dois fenómenos começarão a ocorrer. A processionária tem um período de nocividade limitado e a sua acção é conhecida. O mesmo não se pode garantir das próximas eleições e da duração e gravidade dos seus efeitos.
Acompanho com muito interesse as reportagens da Helena Pereira sobre a campanha de Santana Lopes. É curiosa esta relação. É a modos como se um assaltante de bancos fizesse a cobertura das conferências de imprensa dos banqueiros cujos bancos ele vai sucessivamente assaltando. Este processo de relatar publicamente os queixumes das próprias vítimas tem o perfume voluptuoso de uma perversão sado-masoquista.
Observemos o que a imaginativa criadora de realidades paralelas assinalou hoje como positivo e negativo da campanha do PSD:
Positivo Rui Rio que é vice-presidente do PSD, mas ultimamente parecia andar desaparecido, apareceu ontem.
Negativo O grito de revolta de Pedro Santana Lopes contra a comunicação social entusiasmou a assistência, mas não é a melhor estratégia para um dos maiores partidos do país se afirmar.
Portanto, o positivo é algo que era muito negativo, ter-se tornado menos negativo; o negativo é eles estarem sempre a falar de mim. Mas será que ninguém os cala? Ter que escrever que "Existe uma minoria [de jornalistas] que fazem trabalho político-partidário não isento e que quer enganar os portugueses"! Se este martírio continua assim, despeço-me, alegando justa causa. Alguma coisa se há-de arranjar ... talvez o Barnabé ou A Capital (se ainda não tiver falido) me dêem trabalho.
E a Helena bem lhes dá conselhos estratégicos, mesmo sem eles os pedirem, mesmo não sendo essa a sua missão. Mas eles ...
Ou como Plutarco entra em campanha
Nobre Guedes afirmou há tempos ao "Diário de Notícias" que Paulo Portas podia ser o nosso Malraux. O pretérito imperfeito português é dos tempos mais imprevisíveis, pois nunca se sabe se é um passado inacabado, um presente cortês, ou um futuro condicionado. Aliás, deveria designar-se por pseudo-pretérito imprevisível para acautelar os utentes do idioma pátrio. Nesta imprevisibilidade resta-me comparar P Portas e Malraux no passado, presente e futuro. Foi o que Plutarco fez com os varões ilustres gregos e romanos. E eu serei menos que Plutarco?
Para começar, a diferença de idades, pouco mais de 6 décadas, pode considerar-se dentro dos limites da razoabilidade, quando se comparam heróis gregos e romanos, ou Malraux (o grego) e Portas (o romano). Mas depois começam a aparecer pormenores que não encaixam. Malraux publicou livros com uma cadência notável, um dos quais, A Condição Humana, obteve o Prémio Goncourt em 1933. Paulo Portas já leva um atraso notável nesta matéria, visto Malraux ter publicado Os Conquistadores logo em 1928 e Portas, por enquanto, nada. Mas tenhamos esperança (e fé!) nas imperfeições dos nossos pretéritos verbais.
Malraux roubou umas estatuetas khmeres do Templo de Banteai Srey em 1923, que lhe valeu a prisão em Phnom-Penh. O processo não deu em nada por vício de forma. A justiça colonial francesa não devia funcionar nada bem. No que toca a Portas, temos o caso Moderna, cuja investigação não deu em nada. Mas há diferenças substanciais: o uso de um Jaguar de uma universidade não tem a estatura de um roubo de baixos relevos khmeres de um Templo, e ser-se investigado não confere as mesmas regalias que ser-se preso.
Também lançou um jornal, mas em Saigão, em 1925, LIndochine (juntamente com a então sua mulher Clara) onde denunciava a exploração colonial. Portas, n'O Independente, denunciou a degradação cavaquista. Não terá a mesma dignidade e expressão histórica, mas já é alguma coisa.
Quando regressou a França, Malraux colaborou em todos os movimentos de intelectuais anti-fascistas Frente de Defesa Anti-Fascista e o CVIA (1934), movimento contra a guerra na Etiópia (1935). E quando deflagrou a Guerra Civil em Espanha, em 1936, lá estava Malraux em combate. Cisneros, do PCE, escreveu dele: foi, à sua maneira, um progressista ... talvez pretendesse ter entre nós um papel semelhante ao que Lord Byron desempenhou na Grécia ... mas ... se a adesão de Malraux, como escritor célebre, podia ser útil à nossa causa, o seu contributo como comandante de esquadrilha revelou-se absolutamente negativo. Mas sabe-se como os comunistas são mal agradecidos. Malraux poderia ser um inábil, mas obteve da França o fornecimento de alguns aviões.
Quanto a Portas ... bem, os tempos são outros, e agora, tal como Malraux o fez após o fim da 2ª Guerra Mundial, a luta é contra o totalitarismo de esquerda. Aí tem-se mostrado muito aguerrido, mas não me parece que venha a ganhar algum Goncourt. Quanto a acções militares, temos que ser indulgentes para com Portas. As épocas são diferentes ... Mesmo assim há que reconhecer o denodo com que perseguiu o barco das holandesas pró-aborto. O barco não trazia munições bélicas, mas tinha um grande potencial desmoralizador.
Malraux, até se aliar a De Gaulle, apoiou os comunistas Tal como a Inquisição não atingiu a dignidade fundamental do cristianismo, os processos de Moscovo também não diminuíram a dignidade fundamental do comunismo. Mas os intelectuais de esquerda, naquela época, disseram tanto disparate de que depois se vieram a arrepender, que não me pareça que se deva lançar aquela frase a crédito (ou a descrédito) de Malraux (também os intelectuais de esquerda, da nossa época, dizem tanto disparate ... só que ainda não chegou a época de se arrependerem). Proponho que se neutralize esta frase nas nossas Vidas Comparadas.
À medida que Hitler se prefigurava como uma ameaça, Malraux tornou-se figura de proa dos amigos da URSS. Por isso não se pronunciou aquando do pacto germano-soviético. Preso durante a guerra foge, vai para a zona de Vichy e em meados de 1944, após a ocupação dessa zona pelos alemães, entra na clandestinidade. Devido a isso, quando a seguir à guerra adere ao RPF do general De Gaulle, passa a ser acusado de seguir o itinerário clássico do entusiasmo revolucionário à "amargura reaccionária.
Era uma erro de análise para Malraux o perigo já não vinha de Hitler, mas do totalitarismo soviético. A uma escala reduzida, mas, cuidado! ... temos que atender à diferença de escala entre os dois países, Paulo Portas também teve um momento de ruptura até 1982, Paulo Portas fez parte da JSD, Juventude Social-Democrata, mudando a seguir para o CDS. Paralelizando ... o perigo vinha agora do autoritarismo cavaquista.
Em 1958, após a tomado do poder por De Gaulle, Malraux torna-se um efémero Ministro da Informação. Infelizmente, P Portas nunca poderia comparar-se a Malraux neste pormenor, pois se nem uma Central de Comunicação o PR consentiu, quanto mais um Ministério da Informação! Cairia o Carmo e a Trindade ... e Belém antes!
Em 1959 Malraux tornou-se Ministro da Cultura. Há aqui um paralelo que, a estabelecer-se, seria muito divertido. Portas, como Ministro da Cultura, a lidar com os agentes culturais portugueses que só produzem para os amigos verem, que só sabem viver na subsídio-dependência e que temem qualquer êxito comercial, que os pode deixar, em definitivo, liquidados culturalmente junto dos seus pares. Uma de três coisas podia acontecer: 1) Ou a Cultura liquidaria Portas; 2) ou Portas liquidaria a Cultura; 3) ou liquidar-se-iam mutuamente. Qualquer das hipóteses 2 ou 3 parece-me um resultado deveras interesse. Para o País e para a Cultura.
Há todavia um paralelo que não consigo estabelecer. No barco que os trouxe da Indochina, Clara teria tido um affaire, que Malraux romancearia num capítulo dA Condição Humana. É bom ser-se casada com um escritor em vez de uma cena de pugilato caricata e burlesca, apanhar com um capítulo cheio de erotismo, numa obra premiada! Porém, neste episódio, não atino com qualquer paralelo ... todavia, talvez Nobre Guedes, que estabeleceu a comparação, saiba alguma coisa. Se souber, que o diga, pois não há qualquer problema, porquanto a má língua só é ignóbil quando se refere a alguém da esquerda. O pessoal da direita não sofre desses complexos ... teve que se habituar ...
Certamente por uma punição do destino (ou do patrão) coube a Helena Pereira a cobertura da campanha do PSD, ontem, em Bragança. E foi bom, se lermos o seu arrebatamento ao destacar que PSL se tinha insurgido contra a "realidade paralela" que é criada pela comunicação social. Helena Pereira julgava que tinha falsificado a realidade. Afinal teve a gratificante surpresa de ouvir, no extremo nordeste do país, em primeira mão e por uma das vítimas da sua inventona, que apenas criava realidades paralelas. Deve ter sido um momento alto da sua carreira, pois é enorme a distância que separa uma falsária de uma criadora de realidades paralelas. É a mesma que separa a delinquência, da arte.
É bom saber-se uma artista. É bom olhar-se ao espelho e poder exclamar com uma surpresa inebriante: Ecco una artista!
Apenas lhe desejo que não se veja na contingência de ter de saltar do parapeito da plataforma do Castel Sant'Angelo para o vazio, aos gritos de: O Santana, avanti a Dio!
... ou como a idade não perdoa.
Simone de Oliveira foi convidada para um jantar com o Presidente do PSD, em plena campanha eleitoral. Este jantar incluía uma série de pessoas ligadas ao meio da cultura. Simone de Oliveira chegou, viu e saiu ... alegando que não sabia que se tratava de uma acção da campanha.
Pergunta-se: De que estaria Simone de Oliveira à espera, tratando-se de um jantar a decorrer durante a campanha eleitoral e presidido pelo líder de um dos partidos que se digladiam pela conquista do poder?
Para mais um líder que, desde a questão dos violinos, passou a ser olhado de revés por tudo o que tenha pretensões a intelectual ou a ser admitido em círculos culturais. Um líder cuja companhia pode constituir uma nódoa curricular para qualquer aspirante a cinturão negro da cultura portuguesa. Em resumo, um líder que não constitui um cartaz cultural apelativo.
Resposta: Estava à espera das câmaras da Televisão para poder afirmar com empáfia e jactância que tinha ido ali por equívoco, pois não se queria misturar na campanha daquele partido ... ela que até era uma figura visível do partido contrário.
Conclusão: A idade não perdoa ... resta apenas a vertigem das câmaras, o mesmo que aconteceu a Gloria Swanson no Sunset Boulevard.
Recebi um esclarecimento do Director do Público sobre o meu post anterior. Não vou discutir o seu conteúdo, ou se discordo ou concordo (total ou parcialmente) com as razões nele aduzidas. Queria apenas sublinhar a cativante surpresa pelo gesto e pela maneira afável como esse esclarecimento foi redigido, contrastando aliás bastante com a fogosidade polémica do meu post. Se fui injusta, e eu não estou em situação de saber para além daquilo que é (e continua a ser) visível (e foi sobre isso que me pronunciei), peço evidentemente desculpas. Sendo assim, apenas O Público saberá se fui ou não injusta, e se o meu pedido de desculpas faz ou não sentido. Em qualquer dos casos, quando a questão se coloca nestes termos, é porque há algo de muito errado as notícias devem ser transparentes e assentarem em fontes claras e não estarem à mercê do crivo dos subentendidos ou das presunções (dos jornalistas e/ou dos leitores).
A Nota da Direcção do Público é o paradigma do farisaísmo mais abjecto e canhestro. Começa por reconhecer que a notícia era falsa (este [Cavaco] não fez "qualquer declaração ou comentário sobre o processo eleitoral em curso"). Depois confessou que andava a trabalhar há várias semanas naquela falsificação e que a notícia resultou do cruzamento de várias fontes (obviamente inexistentes e falsas, como havia confessado anteriormente). E acrescenta este mimo: Contudo, ao falar das intenções de Cavaco Silva sem que este tivesse tomado qualquer posição pública, a notícia permitia um desmentido nos termos do de ontem (!?). Leia-se: Contudo, pela notícia ser inventada e falsa, ela permitia um desmentido nos termos do de ontem.
Será que a Direcção do Público não tem vergonha na cara? Como é possível escrever seraficamente que andava há semanas a trabalhar no cruzamento de várias fontes e confessar em simultâneo que Cavaco não fez qualquer declaração ou comentário. Que jornalismo é este que cruza durante semanas informações inventadas para produzir notícias inventadas? Será que o jornalismo desistiu dos factos, esses empecilhos à criatividade de Eunice Lourenço, Helena Pereira e de toda a Direcção do Público?
O mais sórdido nesta nota é que o Público não se penitencia de ter falsificado uma notícia e de ter sido contumaz nessa falsificação. Apenas reconhece que fez uma má escolha do título de capa ao optar pela expressão "aposta em", expressão ambígua a meio caminho entre o "prevê" e o "apoia". O Público apenas errou por ter feito desta falsificação o título de primeira página. Se a tivesse escondido nas páginas interiores, como faz com os desmentidos das suas falsificações, estaria certo e imaculado.
Ontem eu havia escrito que É óbvio que este jornalismo sórdido não é produzido às escondidas da Direcção do Público. Ele terá que ter a conivência dessa Direcção, ou pelo menos de parte dela. Confesso humildemente que me enganei, ainda que parcialmente. Esta falsificação e a sua contumácia foi feita, como parece agora evidente, com a conivência de toda a Direcção do Público..
É uma Ignóbil Porcaria ... ou melhor ... Public(aria). Teria sido menos sórdido não ter escrito nada.
Adam Smith escreveu que o homem ao procurar que a produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer.. É a formulação clássica das virtudes da liberdade do mercado, que está na base da economia capitalista e da prosperidade das sociedades ocidentais. É a Mão Invisível dos neo-liberais.
Se naquele texto substituirmos o conceito de ambição ou da satisfação do seu próprio interesse, pelo conceito da inveja mesquinha dos outros ou do bota-abaixo, teremos a seguinte formulação ao tentar satisfazer a nossa inveja e mesquinhez promovemos de uma maneira mais eficaz a pauperização da sociedade, do que quando realmente o pretendêssemos fazer.
Mas mesmo neste caso a Mão Invisível continua a agir estamos a ser guiados por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das nossas intenções. Ou seja, guiados pela nossa inveja e mesquinhez estamos a conduzir o país para uma meta que não estaria nas nossas intenções, mesmo nas dos mais invejosos: a estagnação social e económica e o progressivo nivelamento pela miséria geral. É nisso que estamos a transformar a sociedade portuguesa
É a Mão Invisível dos que vivem invejosos do êxito, receosos de mudanças e apostando na mediocridade do statu quo. É a nossa Mão Invisível. É essa a Mão Invisível que nos tem guiado desde meados do século XVI e da qual não nos conseguimos livrar.
A relação da comunicação social com Santana Lopes faz lembrar a relação da madrasta cavernícola e autoritária com o enteado depois de o sovar, quando o miúdo se apresta num vago queixume, grita-lhe: e se choras apanhas mais! Não há nada a fazer primeiro sovam-no em todos os tons e sons; depois quando ele menciona os agravos, é sovado por se estar a vitimizar. Vem isto a propósito de uma jornalista do Público, Eunice Lourenço, que eu já citei mais que uma vez (aqui e aqui), pelas suas notícias absolutamente destituídas de rigor e ética, ter escrito ontem (em co-autoria com a colega Helena Pereira) um artigo em que afirmava peremptoriamente que Cavaco aposta na maioria absoluta de Sócrates.
É uma notícia escrita de uma forma absolutamente perversa, pois pela sua leitura se verifica que aquela afirmação, e outras de teor idêntico nela insertas, não provêm directamente de Cavaco, mas de alegadas fontes próximas. Aquela notícia foi imediatamente desmentida.
Hoje o Público traz, das mesmas autoras, uma notícia intitulada Ex-primeiro Ministro Incomodado com Notícia do PÚBLICO, onde as autoras sugerem que aquele desmentido apenas indiciava que Cavaco estaria incomodado. Ou seja, não era a primeira notícia daquelas jornalistas que era uma mentira, o mentiroso seria agora Cavaco que mentia (desmentindo) por estar incomodado ...
Agora o ex-primeiro-ministro enviou uma declaração à Lusa onde afirmou: "Ontem, dia de Carnaval, fui surpreendido com uma notícia no jornal PÚBLICO intitulada 'Cavaco Silva aposta em maioria absoluta do PS'. A notícia não tem qualquer fundamento". "Trata-se de uma total invenção da parte de quem a escreveu. Não fiz qualquer declaração ou comentário sobre o processo eleitoral em curso. Embora ausente de Lisboa, tive oportunidade de transmitir o meu protesto ao director do PÚBLICO".
Curiosamente esta informação aparece no Público on-line sob a epígrafe de Cavaco Silva recusa envolver-se em manobras eleitorais e nem está sequer assinada. Provavelmente a intenção será a de insinuar que se trata de mais uma mentira de Cavaco Silva para evitar envolver-se em manobras eleitorais. Conclusão, não vale a pena desmentir, pois a notícia continua lá, incólume, indiferente aos factos.
É óbvio que este jornalismo sórdido não é produzido às escondidas da Direcção do Público. Ele terá que ter a conivência dessa Direcção, ou pelo menos de parte dela. Um jornal como o Público pode errar uma vez, pois é natural que um chefe confie nas suas colaboradoras e não vá verificar a seriedade das notícias. Todavia é um indício terrível que publique os sucessivos desmentidos a esse erro metamorfoseados em mentiras piedosas. É o indício que é o próprio jornal que não é isento; é o indício que a falta de ética e a sordidez jornalística daquelas plumitivas têm a cobertura da Direcção do jornal.
Não vou discutir quais as intenções destas notícias. Santana Lopes está impedido de se queixar qualquer queixa dele não passa de vitimização. Cavaco Silva está impedido de desmentir qualquer desmentido dele é apenas mais uma mentira para disfarçar o seu incómodo. Não há pois nada a fazer quando a nossa comunicação social cria um facto político. Mesmo que não exista ... é um facto político!
Para mim, é justamente esse o incómodo: a fabricação pela nossa comunicação social e, mais grave, por um órgão de referência dessa mesma comunicação, de um facto político e a sustentação desse facto político para além de todos os desmentidos.
Chegámos ao Vale-Tudo.
... mesmo que o PS a obtenha
É ilusório pensar que uma eventual maioria absoluta do PS conduza a um governo estável com um projecto coerente. Em primeiro lugar, o espectro político dentro do PS é demasiado amplo para permitir tal suceda; em segundo lugar, Sócrates está na margem direita desse espectro político, tendo sido eleito para liderar o partido apenas por ser a hipótese mais viável para o aparelho socialista regressar às sinecuras do poder. A questão de fundo é que existe uma ambivalência genética no socialismo, que nasceu e tem vivido no seio de relações de produção, que originalmente detestava e pretendia eliminar, mas de cuja gestão, posteriormente, se tem, por diversas vezes, encarregado. Essa ambivalência moldou a teoria e a praxis política socialista nas últimas décadas.
Por isso não surpreende a actual campanha de Sócrates; campanha onde não existe um projecto, mas apenas alguns chavões cujo conteúdo não se conhece, admitindo que o tenham; campanha baseada em banalidades e na ausência de assumpção de compromissos. Por isso os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. Por isso gerem o sistema no papel do gestor pouco à vontade, contrariado por estar a administrar uma empresa num ambiente cujas regras do jogo detesta. Como solução de compromisso, revestem essa gestão com tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, porquanto não sabem desenvolver os mecanismos que permitem a sua criação.
E essa necessidade de compromisso interno é o resultado de um espectro político muito vasto, onde afluem diversas heranças políticas, do jacobinismo ao marxismo, passando pelo radicalismo pequeno-burguês, e económicas, de Proudhon a Keynes, passando pelos revisionistas alemães de Marx. Mas estas heranças, cada vez mais longínquas e esvaziadas de conteúdo, servem fundamentalmente de bandeiras nos conflitos internos, quando o aparelho partidário, depois de se ter apoderado do poder e distribuído entre si os almejados cargos públicos, se vê confrontado com a desilusão social provinda de todos os quadrantes.
Quando a experiência governativa chega a este estádio e a sua popularidade está em queda, a ala esquerda do partido, no interior, e os grupos radicais, no exterior, acusam o governo socialista de meter o socialismo na gaveta, de estar a perder porque fez uma política de direita. Obviamente que esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar essa perda pela alegação que o governo socialista teria feito uma política de direita?
A verdade é que o PS, face a uma realidade em mutação, plena de transformações e rupturas, carregando o lastro da sua ambivalência genética, não tem ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acaba, forçado pelas circunstâncias económicas, a aplicar receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sente pouco à vontade em aplicar essas medidas, fá-lo de forma incoerente e errática e tenta disfarçar essas contradições com políticas sociais de intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.
Sócrates não conseguiria resistir, internamente, a uma política reformista. Conhece certamente as maleitas que a sociedade portuguesa sofre. Talvez saiba que essas maleitas só se curam com uma política de ruptura face ao modelo actual, modelo que teve a sua expressão mais calamitosa no período guterrista, mas que já vinha de trás, e com o qual o próprio Cavaco pactuou, e mais acentuadamente na segunda metade da sua governação. Por isso é o cinzentismo da sua campanha e a contínua fuga aos debates, de forma a não ser obrigado a precisar as suas propostas programáticas. Limita-se a desfiar um rosário de banalidades pouco exaltantes nos comícios, deixando o aquecimento das plateias para a trauliteirice verbal do aparatchik Coelho.
Esta impossibilidade de maioria absoluta de Sócrates, mesmo que o PS tivesse maioria absoluta na AR, não significa que esse eventual governo possa cair na AR. Na AR prevalecerá a disciplina de voto, principalmente se a alternativa for a perca do poder. A questão põe-se ao nível dos conflitos internos que transbordam para a praça pública e corroem a imagem do governo e da estabilidade governativa. Todos estamos lembrados que, mesmo num período de vacas gordas, durante o consulado guterrista, como ex-membros do governo criticavam o governo na praça pública e com azedume inaudito: Sousa Franco, Fernando Gomes, Manuela Arcanjo, etc., etc.. Todos estamos lembrados como destacados parlamentares socialistas encetaram cruzadas mortíferas contra iniciativas governamentais.
Ora se numa época que, para os menos avisados, tudo parecia sorrir as taxas de juro baixas incentivavam o consumo e diminuíam os encargos com a dívida pública; as obras públicas eram feitas no sistema faça agora e comece a pagar daqui a alguns anos; a diminuição dos encargos com a dívida pública e as disponibilidades geradas pelo fazer de obras sem pagamento imediato, permitiam que o governo encontrasse meios para aumentar o emprego público; etc., etc. o que acontecerá agora, quando aqueles mecanismos já não estão disponíveis; quando chegou a época do pague depois; quando o emprego público criado nessa época se tornou num peso insustentável que suga o nosso sector produtivo e lhe diminui a competitividade?
Neste entendimento, se o PS chegar ao governo, mesmo com maioria absoluta, encontrará uma forte oposição dentro de si próprio. O erário público está quase vazio e o país exangue. A continuação do actual modelo significa a progressiva deslocalização (ou fecho) das empresas que tenderá a acelerar-se. A deslocalização das empresas, o aumento do desemprego e a diminuição do peso do sector privado fará diminuir a base de incidência fiscal. Primeiro sairão as empresas e depois emigrarão os trabalhadores cuja ambição e qualificação não se satisfizerem com o subsídio de desemprego. Na ausência de medidas de fundo, este processo é cumulativo mas não é sustentável mesmo que a sociedade portuguesa não se tenha entretanto mobilizado para evitar o colapso do país, haveria uma fase intermédia desse processo em que ocorreria o colapso do Estado.
Portanto é inevitável fazer qualquer coisa para, no mínimo, suster este processo. A partir do pântano guterrista, as alternativas que se colocam, e se continuaram a colocar, resumem-se à escolha entre tomar medidas impopulares, ou tornar-se impopular pela pauperização contínua do país, isto é, por não tomar essas medias. Confrontado com estas alternativas, um eventual governo PS estará em permanência sob o fogo das próprias hostes. Numa situação muito mais favorável, Guterres não conseguiu evitar a queda, mais provocada por factores internos que por uma oposição frágil, liderada por um político fraco e sem carisma, como Durão Barroso mostrou ser na oposição, no governo do país, e está a mostrar agora na presidência da Comissão Europeia. Numa situação muito mais complexa, como a actual, a questão é saber quanto tempo aguentaria Sócrates.
Há uma convergência muito maior no espectro político português à direita de Sócrates, incluindo a margem direita do PS, para um projecto de reformas sociais e económicas que travem esta descida aos abismos, que dentro do próprio PS. E isso pode ser mortífero.
Provavelmente os mais incautos julgariam que Portugal começou com Afonso Henriques, outros, mais politizados, pensam que Portugal começou em 25-4-1974, teve um ocaso injusto em 25-11-1975 e recomeçará quando as prédicas de Louçã tiverem êxito. Os mais nacionalistas assegurarão, todavia, que foi o Conde D. Henrique o primeiro soberano de Portugal. Erraram todos O primeiro soberano de Portugal foi Tubal, neto de Noé, conforme provou Frei Bernardo de Brito, ínclito historiador português, autor (parcialmente, pois a sua morte, em 1617, impediu-o de passar além dos 2 primeiros volumes) da história portuguesa, senão a melhor, pelo menos, e de muito longe, a mais cara!. E dedicou todo o primeiro volume (850 pgs) à história do nosso país até ao nascimento de Jesus Cristo, e o segundo volume (publicado em 1609) até ao aparecimento do Conde D. Henrique.
Basta ver o frontespício do 1º volume da obra:
Ela foi dedicada a Filipe, então rei de Portugal (1597).
Tubal era filho de Japhet, que era filho de Noé. Como documenta o Génesis 10:
1 Estas, pois, são as gerações dos filhos de Noé: Sem, Cão e Jafé, aos quais nasceram filhos depois do dilúvio.
2 Os filhos de Jafé: Gomer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque e Tiras.
3 Os filhos de Gomer: Asquenaz, Rifate e Togarma.
4 Os filhos de Javã: Elisá, Társis, Quitim e Dodanim.
5 Por estes foram repartidas as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua, segundo as suas famílias, entre as suas nações.
É na página 7 da sua obra que Tubal se achou numa «fermosa baya, por onde se lança no grande Occeano Occidental hum Rio, mayor em proveitos de pescarias & navegações, que em quantidade de agoas». Era o Sado e Tubal estava em vias de lançar os alicerces de Setúbal. Aqui está a prova que faltava:
A ideia bíblica de que Japhet e a sua prole foram para terras distantes está disseminada por toda a Bíblia. Por exemplo, Ezequiel 38:
2 Filho do homem, dirige o teu rosto para Gogue, terra de Magogue, príncipe e chefe de Meseque e Tubal, e profetiza contra ele,
3 e dize: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu sou contra ti, ó Gogue, príncipe e chefe de Meseque e Tubal;
Magog deve significar terra de Gog (irmão de Tubal), visto o prefixo ma significa lugar onde em diversas línguas semitas, como o árabe, por exemplo. As terras de Gog e Tubal seriam pois longínquas, face ao epicentro da história bíblica (o Médio Oriente). Quer na liturgia cristã, onde Gog e Magog personificam a união de todas as forças, terrenas e infernais, que lutam em permanência contra Deus e a Igreja ao longo de toda historia Cristã e que serão exterminados com a segunda vinda de Cristo, quer nos escritos dos historiadores árabes, onde são identificados como povos bárbaros e ferozes, ao norte do Cáucaso, ou com a terra dos invasores vikings (no caso dos historiadores andaluzes como Al-Idrisi), quer nos geógrafos cristãos do início dos descobrimentos, que identificam Gog e Magog como tribo bárbaras do norte da Ásia. Portanto, quer para a literatura medieval cristã quer para a islamita, Gog e Magog personificam o mal. Mas Tubal não, que se ficou pela Ibéria, nas areias de Portugal, à beira mar pasmado.
Foi em todo este acervo de informações, histórias imaginárias, fábulas, etc., que Frei Bernardo de Brito, ansioso por demonstrar a prevalência e as glórias da sua pátria, então sob um soberano estrangeiro, foi beber para escrever uma história magnífica, do ponto de vista literário, mas de um rigor mais que duvidoso, do ponto de vista da exegese histórica.
Debate sem criatividade, num formato que não permitiu que nenhum dos candidatos fosse questionado pelo outro sobre como implementaria as medidas apregoadas e à custa de quem. Portanto tudo demasiado asséptico. Ficou tudo muito vago, o que favoreceu Sócrates, que não se viu obrigado a concretizar um programa baseado em propostas vagas. Um empate sem golos.
Não percebo a razão que levou os jornalistas a repisarem o tema do «colo». Aparentemente parece serem os jornalistas os mais empenhados no baixo nível da campanha.
A questão que se coloca agora é saber se PSL, em campanha contra o PS e, principalmente, contra todos os meios de comunicação, consegue reeditar a surpresa Bush. Duvido ...
Os dois textos que afixei neste blogue, Marx Neoliberal e Marx Neoliberal-Educação Gratuita?, tiveram, obviamente, um intuito provocatório, mas não só. Pretendiam mostrar igualmente como a relação da esquerda com o Estado, não apenas da esquerda em geral, mas também da esquerda que se reclama de Marx, está nos antípodas do pensamento marxista original. A diferença mais substantiva reside no facto de que para Marx e para a esquerda marxista ou radical da época, o Estado era o inimigo que deveria ser destruído para, sobre os seus destroços, construir um mundo novo e mais perfeito, enquanto que, para a esquerda actual, keynesiana ou marxista, o Estado é o motor da economia e o distribuidor de empregos e de benesses. A esquerda de Marx era uma esquerda de combate por um mundo melhor. A esquerda de hoje, é uma esquerda de asilados, subsídio-dependentes, cujo mundo melhor se consubstancia no aumento das dádivas do Estado.
A esquerda que actualmente se reclama de marxista tem uma característica original: desconhece a obra de Marx. Frequentemente já nem sequer conhece os chavões marxistas que tão glosados foram décadas a fio. A esquerda está desideologizada. A esquerda vive no mito do Estado social e distributivo. A esquerda tornou-se uma adoradora do Moloch, ao qual sacrifica a riqueza que todos nós produzimos, o bem estar social, o nosso bem estar futuro e o bem estar das gerações vindouras. Tudo é sacrificado a esse novo ídolo da esquerda.
Este processo foi lento. O conceito da evolução social em Marx pode ser resumido nas célebres e lapidares frases do Prefácio à Zur Kritik der Politischen Ökonomie:
Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se alicerça uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. (1)
.... e, parágrafos adiante, um conceito fundamental e sempre esquecido:
Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais elevadas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade apenas coloca a si própria as tarefas que pode resolver, pois, observando mais de perto, vê-se sempre que essas tarefas só se colocam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a sua resolução.(2)
Este enunciado marxista do devir histórico foi completamente postergado com a tomada do poder pelos bolcheviques pela força e a construção de uma formação social saída directamente de uma Ideia e não resultante de uma evolução histórica (social, económica e tecnológica). A experiência histórica posterior mostrou que a formação social onde o capitalismo era o modo de produção dominante ainda não tinha desenvolvido todas as suas forças produtivas, isto é, não se tinha esgotado, como o tem provado neste último século, pela forma como se desenvolveu e ultrapassou as suas sucessivas crises, criando sociedades cuja prosperidade seria inimaginável nos tempos de Marx.
Em contrapartida, o modelo socialista baseado numa Ideia, e imposto a destempo e pela força, revelou-se frágil, inadequado e implodiu por não ser capaz de acompanhar o desenvolvimento de um modo de produção que ele postulava como obsoleto face a si próprio. O modelo soviético, o albanês e todos os modelos apregoados pela esquerda, nomeadamente pela esquerda radical, não se baseiam no materialismo histórico marxista, mas num idealismo histórico mecanicista, pois nem sequer é dialéctico, porquanto lhe falta a astúcia da razão de Hegel, a Razão que dirige a História e que utiliza os homens para através dos objectivos egoístas trazerem para a humanidade uma liberdade maior, um estado superior de civilização.
Foi o escolasticismo axiomático que tem trazido a esquerda ao esvaziamento de ideias e à sua actual incapacidade de compreender a realidade social e económica em que vivemos. É por isso que a esquerda não tem qualquer solução viável para os problemas com que nos confrontamos actualmente. Está presa dos seus mitos e dos seus preconceitos. Está presa da sua actual postura de adoradora do Moloch estatal, o que é uma absoluta contradição com os seus fundamentos ideológicos.
(1)In der gesellschaftlichen Produktion ihres Lebens gehen die Menschen bestimmte, notwendige, von ihrem Willen unabhängige Verhältnisse ein, Produktionsverhältnisse, die einer bestimmten Entwicklungsstufe ihrer materiellen Produktivkräfte entsprechen. Die Gesamtheit dieser Produktionsverhältnisse bildet die ökonomische Struktur der Gesellschaft, die reale Basis, worauf sich ein juristischer und politischer Überbau erhebt und welcher bestimmte gesellschaftliche Bewußtseinsformen entsprechen. Die Produktionsweise des materiellen Lebens bedingt den sozialen, politischen und geistigen Lebensprozeß überhaupt. Es ist nicht das Bewußtsein der Menschen, das ihr Sein, sondern umgekehrt ihr gesellschaftliches Sein, das ihr Bewußtsein bestimmt. Auf einer gewissen Stufe ihrer Entwicklung geraten die materiellen Produktivkräfte der Gesellschaft in Widerspruch mit den vorhandenen Produktionsverhältnissen oder, was nur ein juristischer Ausdruck dafür ist, mit den Eigentumsverhältnissen, innerhalb deren sie sich bisher bewegt hatten. Aus Entwicklungsformen der Produktivkräfte schlagen diese Verhältnisse in Fesseln derselben um. Es tritt dann eine Epoche sozialer Revolution ein. Marx Engels Werke Band 13, pg 8-9 Dietz Verlag, Berlim
(2) Eine Gesellschaftsformation geht nie unter, bevor alle Produktivkräfte entwickelt sind, für die sie weit genug ist, und neue höhere Produktionsverhältnisse treten nie an die Stelle, bevor die materiellen Existenzbedingungen derselben im Schoß der alten Gesellschaft selbst ausgebrütet worden sind. Daher stellt sich die Menschheit immer nur Aufgaben, die sie lösen kann, denn genauer betrachtet wird sich stets finden, daß die Aufgabe selbst nur entspringt, wo die materiellen Bedingungen ihrer Lösung schon vorhanden oder wenigstens im Prozeß ihres Werdens begriffen sind. Idem, pg 9
Duas notícias vindas ultimamente a público dão credibilidade e reforçam posições que tenho aqui defendido. A primeira foi o artigo da autoria de Medina Carreira, A Verdade Não Mora Aqui, publicado ontem no Público. A segunda foi um Manifesto elaborado por personalidades representativas das áreas financeira, universitária, empresarial e política onde se pede aos partidos a definição urgente de uma estratégia nacional e a eliminação dos "bloqueios constitucionais".
Medina Carreira afirma que O Estado é inoperante, insustentavelmente sobredimensionado, está em crescente desqualificação e perdeu poderes decisivos de intervenção económica (monetário, cambial, alfandegário e orçamental). A economia fragilizou-se no último quarto de século, só reagindo, ocasionalmente, com o impulso de ocorrências externas, muito favoráveis. O peso da despesa pública levará, em poucos anos, ao colapso financeiro do Estado, com pesadas consequências para todos mas, em especial, para mais de 4,5 milhões de indivíduos dele directamente dependentes. Medina Carreira prega obviamente no deserto, enquanto eu prego num blogue, o que ainda se tem revelado menos operacional que pregar aos peixes.
Medina Carreira continua. Fala na promoção do demérito e na inércia e a rotina; que os principais partidos políticos são hoje a melhor e a mais procurada agência de empregos para uma certa mão-de-obra" onde todos os mecanismos visam a obediência e a hipocrisia política. E conclui, após um diagnóstico económico e financeiro impressionante, pelo que tem de catastrófico, que a avaliação do mérito das propostas eleitorais dos partidos ... pressuporia a apresentação pelos mesmos, bem antes das eleições, de uma caracterização rigorosa e quantificada da nossa situação económica e financeira e formula um conjunto de questões que considera indispensáveis para aquela avaliação, e cuja resolução, acrescento eu, será imprescindível para a nossa sobrevivência colectiva.
É de leitura obrigatória e os seus pontos fulcrais deveriam constituir matéria de reflexão para a nossa classe política e para todos nós, que escolheremos, entre essa classe política, quem nos irá governar.
Quanto ao Manifesto de hoje, destinado aos partidos que andam em campanha, defende como tarefas imediatas do Estado "a eliminação de bloqueios que, como a Constituição da República de 1976, ou as forças corporativas, continuam a condicionar o desenvolvimento do país", advertindo que "A Constituição deverá sofrer um processo de revisão que permita rapidamente adaptar Portugal aos desafios do século XXI".
Até há poucos anos, a classe empresarial portuguesa convivia com o Estado e a política de forma ambígua: criticava e menosprezava os políticos, mas mendigava protecções ou chegava-se à mesa do orçamento para obter contratos de fornecimentos ou empreitadas. A classe empresarial portuguesa parece que, finalmente, resolveu atravessar o Rubicão. Ela apercebeu-se que o Estado está à beira do colapso e que a sua relação com esse Estado já não se pode fazer segundo aquelas linhas de força opostas, porque uma delas está esgotada, ou em vias disso.
A classe empresarial portuguesa terá concluído que, agora, a tarefa urgente e incontornável é a salvação económica e financeira do país, porque sem isso, ela própria não sobreviverá.
Quanto às minhas dúvidas, elas são muitas. Vejo o programa do PSD que, descontadas as metas aspiracionais de concretização difícil, senão impossível, numa legislatura, tem um conteúdo que indica que na base dele esteve gente que sabe como as estruturas organizativas funcionam e quais os procedimentos para as reestruturar, mas onde me interrogo onde vão encontrar gente competente e em número suficiente para liderar esse processo e como mobilizar o país para aquelas metas. O PSD aposta numa melhor gestão dos recursos afectos ao Estado, sem medidas que impliquem aumento dessa despesa, mas isso não é suficiente. O Estado tem que se tornar muito mais eficiente.
Leio o programa do PS, pejado de nobres intenções, mas carente de consistência a nível de concretização e continuando a apostar no Estado como motor da economia, papel que o Estado não sabe protagonizar, e que se salda sempre por despesa pública adicional, ineficaz e inútil. O plano tecnológico do PS é um flop, pois o choque tecnológico baseia-se no regresso do Estado a esse papel tutelar e no aumento da despesa pública sem retorno evidente. Aliás, no estado actual das finanças públicas não se percebe onde o PS vai encontrar fundos financeiros para aquele objectivo. Por outro lado, olho para a equipa de Sócrates, vejo um político competente, Vitorino, mas sem competências nas áreas económicas, e vejo uma equipa de economia liderada por Manuel Pinho, sujeito que me parece pouco capaz e cuja trajectória política se tem caracterizado pela volubilidade e pelo cheiro do poder.
Cadilhe diz que o país vive um filme de terror. O perverso é que os portugueses o vivem, julgando que estão na plateia, quando afinal são os principais protagonistas e não é seguro que não sejam as vítimas mais cruentas e que o filme não tenha um fim trágico para todos nós. A questão é que os portugueses querem reformas mas não estão dispostos a passar por um processo de reforma, a abdicar de hábitos adquiridos e a correr o risco de mudar. Os interesses corporativos sabem bem os custos da mudança, e sabem como agitar publicamente esses custos, e poucos portugueses têm a percepção clara dos seus potenciais benefícios.
Enquanto isso continuamos empenhados em discutir ferozmente o acessório.
Sábado passado, ao "colo" de mais de mil mulheres do distrito de Braga, que participaram num almoço de pré-campanha do PSD, o "sedutor" Pedro Santana Lopes teria dito O outro candidato tem outros colos. Estes colos sabem bem". Objectivamente, pelo seu valor facial, esta frase é inócua. Todavia, no plano das intenções, pode ser lida como proferida por um político eufórico por se ver rodeado de tanta mulher em êxtase e que as elogia, sentenciando que o opositor certamente não encontrará colos tão gentis como aqueles, ou, no pólo oposto, como uma torpe insinuação que pretende trazer para a ribalta pública, como arma de arremesso político, as alegadas preferências sexuais do candidato socialista. Entre uma e outra são possíveis dezenas de interpretações, umas mais maliciosas, outras mais inocentes.
Por isso mesmo, pelo leque de leituras possíveis, a sabedoria e o discernimento políticos aconselhariam a que aquela frase fosse ignorada e que se esperasse por eventuais sequelas. Se a intenção de Santana Lopes fosse a de trazer para a campanha questões do foro pessoal, certamente que ele repetiria essa intenção de uma forma mais explícita e então poderia haver matéria para acusar PSL de tentativa de enxovalhar a campanha política com matérias do foro pessoal. Se tal não acontecesse, o assunto morreria ali, e ninguém mais falaria nele. E há matérias que, pelo seu melindre, o preferível é deixá-las no silêncio, pois quem fizer a primeira jogada, perde o jogo.
Porque este caso é completamente distinto do caso Louçã-Portas. Neste debate, Louçã afirmou, de forma insistente e cara a cara, que Portas, pelo seu estilo de vida pessoal, não tinha direito a intervir e a ter voz em certas matérias.
No caso da frase do almoço feminino de Braga, ela não contém, objectivamente, nada de ofensivo para Sócrates, nem nada que ponha em causa a sua capacidade política. Por isso, quando Ana Sá Lopes a traz à colação afirmando que «A direcção do PS está "estupefacta com o nível a que a campanha está a chegar" e discute, neste momento, a melhor maneira de demonstrar o "repúdio" do partido ao actual clima vivido na campanha eleitoral, em que já é o próprio Santana Lopes a fazer insinuações relativamente a José Sócrates», duvido que tal corresponda a intenções dos mentores de campanha de Sócrates. Provavelmente não passa de um desejo de ASL, a quem o fanatismo político tira discernimento.
Estou a ver Santana Lopes com o ar mais ingénuo que conseguir afixar no rosto, a contestar: Eu? De forma alguma ... tratava-se apenas de um elogio dirigido àquele público feminino tão caloroso e amável que me rodeava com tanto entusiasmo! Não insista ... Aliás, se está a levar a conversa por essa via mal intencionada, tenho a dizer-lhe que sempre fui tolerante com as preferências sexuais dos outros e o meu percurso político mostra que nunca pus em causa as capacidades políticas de ninguém em virtude dessas preferências. Por exemplo, tenho liderado uma coligação em que o líder do outro partido foi objecto de um manifesto público, da autoria de um dirigente do PS, contestando, durante uma campanha eleitoral, a sua capacidade política devido a alegadas preferências sexuais. E tenho tido, como é visível, um entendimento excelente com ele. As preferências sexuais do Engº Sócrates são do seu foro íntimo e pessoal. Respeito-as, como sempre tenho respeitado tudo e todos, e reitero que essas preferências não constituem, na minha opinião, qualquer óbice à sua vida política.
.... e assim por aí fora ... PSL, o tolerante, a afirmar em todos os canais televisivos, no horário nobre, que havia apenas uma interpretação mal intencionada, que o facto do Engº Sócrates ser ... enfim ... ele lá sabe ... são questões pessoais que não devem ser trazidas para a política ... não calculam o repúdio que me merecem as pessoas que têm vindo a público com essas calúnias que ofendem o Engº Sócrates e a mim ... mas eu já estou habituado ... há décadas que todos os dias me caluniam...
Se a intenção de Santana Lopes fosse a de fazer desta questão uma arma de arremesso político, seria, para ele, ouro sobre azul ... fazer de vítima, enquanto a arma se disparava, sozinha, sobre Sócrates. Porque o pior para o PS seria que esta questão tivesse âmbito nacional. Enquanto ela se mantiver na franja do eleitorado que lê o Público e frequenta a net, não haverá estrago, bem pelo contrário, pois aí serão as alegadas insinuações de PSL que prevalecerão. Mas se ela transitar para o domínio público pela mão de estouvados jornalistas e políticos, então PSL será o favorecido.
Por isso, alguns dirigentes socialistas vão protestando contra o baixo nível da campanha, sem entrar em pormenores. Mas é difícil aumentar o nível do protesto, sem referir contra o que se protesta. Assim sendo, estes protestos poderão vir a ter um lado perverso, que é o de serem os próprios dirigentes do PS a trazerem a público questões do foro pessoal de Sócrates que lhe podem ser prejudiciais não apenas durante a campanha, mas também, se for eleito, na chefia do governo.
Quanto a Pacheco Pereira ... bem ... JPP anda a dar tiros no pé desde a indigitação de Durão Barroso para Primeiro-Ministro. Calculo que, actualmente, a extensa área do espectro político do PSD que ele representa seja a abarcada pelo seu volumoso bojo e nem mais um milímetro. Hoje em dia, JPP é fundamentalmente um bloguista. ... o Il Traviato da política.
Durante as últimas semanas os nossos jornalistas transmitiram-nos imagens dramáticas sobre o desastre que se perspectivava nas eleições iraquianas. As assembleias eleitorais pareciam bunkers cuja localização, segundo os jornalistas, quase ninguém conhecia. Falava-se em centenas de atentados programados para esse dia fatídico. Era óbvio e seguro que, nesse dia, os iraquianos iriam permanecer em casa, refugiados no recôndito mais sombrio do lar, trementes de pavor, até que o sol voltasse a refulgir no dia seguinte.
Eleições realizadas sob a ameaça de actos terroristas, em assembleias de votos impenetráveis, de localização desconhecida, com uma população sublevada contra o invasor que organizara o acto eleitoral, eram ingredientes mais que suficientes para que só alguns masoquistas e traidores à pátria fossem votar. Este era o quadro que os nossos enviados nos apresentavam sobre o Iraque. Os factos apresentados pelos nossos repórteres eram irrefutáveis.
Domingo, à medida que se conheciam os resultados da afluência às urnas, a estupefacção, e a irritação, dos nossos jornalistas não cessava de aumentar. Como era possível os iraquianos terem-lhes feito tamanha desfeita? Então os iraquianos não haviam tido a delicadeza e a curiosidade de verem as reportagens que eles com tanto rigor e afã faziam diariamente? Então os iraquianos não estavam informados que as assembleias eleitorais eram impenetráveis, eriçadas de blocos de betão e vigiadas pelo ocupante? Então os iraquianos não sabiam que a localização das assembleias eleitorais era desconhecida? Então os iraquianos não sabiam que o herói da resistência ao opressor, al-Zarqawi, lhes havia ordenado que permanecessem em casa?
Tamanha indelicadeza e desrespeito pelos factos relatados pelos nossos repórteres é detestável. Será que os Iraquianos não perceberam que os nossos repórteres reportam as suas opiniões no desejo seguro que elas se tornem factos? Porque foi que os iraquianos falsificaram os factos de forma a que não coincidissem com as opiniões rigorosas dos nossos repórteres?
Tamanha falta de deontologia profissional dos reportados merece ser investigada e denunciada. Não pode ficar impune. Fere profundamente a objectividade e a liberdade de imprensa, os reportados falsificarem os factos para eles não coincidirem com a realidade das opiniões dos jornalistas.
O primeiro passo no sentido de adequar os factos às opiniões já foi dado. Daniel Oliveira demonstrou que o censo populacional iraquiano estava errado. O censo de 2001, que contabilizava 23,4 milhões de iraquianos não passa de um facto. A opinião rigorosa indica 27 milhões. O mesmo censo contabilizava 13,6 milhões como tendo 15 anos e mais. Não passa de um facto. A opinião rigorosa indica 20 milhões de adultos. Portanto os 14,2 milhões de eleitores inscritos não passava de um facto, e como tal irrelevante, pois Daniel Oliveira decretou que a pirâmide etária dos Iraquianos era igual à da Europa Ocidental. E contra opiniões rigorosas não há factos.
Portanto a percentagem de afluência superior a 60% (semelhante à portuguesa, onde só há terrorismo verbal e as assembleias eleitorais têm as portas abertas e são de localização conhecida) é apenas um facto. Daniel já provou que 8 milhões são apenas 40% da dimensão do eleitorado definida por opinião rigorosa, sem o empecilho imperialista dos factos. O próximo passo será provar que aqueles 8 milhões não existiram. Não passam de efeitos especiais criados pelos computadores do exército invasor.
Aqueles 8 milhões não passam de uma apresentação em Power Point.
Nota: Não faço previsões sobre os resultados que irão emergir destas eleições. Tudo indica que houve uma menor afluência no triângulo sunita e afluência maciça no resto do país. Existe portanto o espectro de um triunfo esmagador dos partidos xiitas e de uma marginalização política dos sunitas, que já de si constituem uma minoria, o que poderá traduzir-se num foco de grande conflitualidade. Terá que haver muita sensatez da parte dos diversos protagonistas da cena política iraquiana.
Uma coisa é quase segura: a enorme afluência às urnas vai fortalecer as forças que pretendem uma solução democrática e isolar aqueles que pretendem a violência e o caos, para dominarem as populações por essa via.