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setembro 30, 2004

Eficiência-X

A diferença abissal na actuação e no desempenho entre a Compta (com um volume de negócios anual médio de 28 milhões de euros) e a ATX Software, ilustre desconhecida até ontem (tem um volume de negócios anual médio de 4,2 milhões de euros), sugere-me duas reflexões: uma de índole teórica e outra resultante da prática.

Em Economia, no estudo das fontes das economias de escala, designa-se por Eficiência-X (X-efficiency) a existência de uma eficiência, a nível de qualidade técnica e de desempenho e resultados, não explicável em termos de dimensão. Como aquela eficiência não era explicável, do ponto de vista da fundamentação teórica das Economias de Escala, apôs-se-lhe X, a incógnita matemática por excelência. O oposto, isto é, a causa que leva a que empresas de maior dimensão tenham a qualidade técnica, o desempenho e os resultados muito inferiores aos expectáveis em termos da sua dimensão, designa-se por Ineficiência-X.

Obviamente que tudo é explicável. O problema é que há explicações que são quantificáveis e adequadas para serem introduzidas em modelos matemáticos, e outras de contornos mais difusos e não quantificáveis. Normalmente a Eficiência-X aparece em empresas pequenas ou médias, especializadas em produtos (bens ou serviços) cujo processo produtivo se baseia num know-how muito específico detido pelos indivíduos que constituíram aquelas empresas. Há outras causas que têm sido igualmente propostas, mas ficamos pela que enunciei, a mais evidente e que mais nos interessa no caso em apreço.

À medida que os anos passam sucede com frequência que os sócios fundadores vão perdendo motivação (e enriquecendo) e 2 ou 3 décadas depois, a empresa, com os mesmos sócios, ou com outros que terão entretanto comprado a empresa, já não tem qualquer Eficiência-X. A cadeia hierárquica alongou-se, as motivações individuais perderam-se e entra-se lentamente na fase da Ineficiência-X. A Compta é agora o que poderá vir muito bem a ser a ATX Software dentro de 2 ou 3 décadas.

Saiamos agora da teoria económica e passemos à prática dos negócios informáticos. Empresas como a Compta, e outras com nomes sonoros, vivem à custa do aparelho de Estado e das empresas privadas com alguma dimensão, ou mesmo grandes, mas onde os directores informáticos ou não existem, ou são gente que foi provida no cargo, mais por serem da confiança da administração, do que por competência informática. Quando não se percebe de uma matéria, ainda por cima misteriosa, como computadores, servidores, redes e programas, a tendência dos responsáveis pela informática nessas entidades é protegerem-se, limitando as suas escolhas às firmas com “nomes sonantes”. Se der para o torto estão abrigados atrás da frase:

- Pois quê? A WXYZ, SA é uma firma de grande projecção e é um nome consagrado no mercado! Tive imenso cuidado na consulta ao convidar apenas firmas de reputação segura.

As empresas mais qualificadas, com quadros mais habilitados e cujos directores ou chefes dos serviços informáticos dominam a matéria, não recorrem a empresas tipo “Compta”, mas sim a empresas mais pequenas, mais especializadas no tipo de problema que querem resolver, mais ágeis na compreensão e solução desse problema e com custos muito menores, incomparavelmente menores. Como conhecem o negócio, sabem minimizar não só os riscos, como, em muito maior grau, os custos.

Os custos informáticos (equipamentos e software) suportados por empresas bem geridas e conhecedoras da matéria são abissalmente menores que os suportados pela administração pública e empresas mal geridas (às vezes de um para dez) com a vantagem de se ficar, sempre, mais bem servido.

E o mais espantoso, ou talvez não, é que cobrando incomparavelmente menos dinheiro, essas pequenas empresas, altamente qualificadas e muito mais dinâmicas, chegam ao fim do exercício com lucros, enquanto as “Comptas” vão acumulando prejuízos, mesmo ordenhando as vacas “Estado” e “empresas obesas”.

O que aconteceu no Ministério da Educação acontece invariavelmente em toda a administração pública, mas não é apanágio desta – também acontece em empresas mal geridas ou que sofrem de gigantismo ou obesidade gestora.

Publicado por Joana às 11:00 PM | Comentários (12) | TrackBack

Afinal era Simples

Um jovem hacker informático, meia dúzia de dias de programação, e umas horas a correr o programa e aí estão as listas de colocação de professores.

Um problema que trazia o país em suspenso há mais de 4 meses, que havia envolvido empresas topo de gama da informática, ministros, secretários de Estado e uma colecção de fósseis dos quadros do ministério que faria inveja ao Parque Jurássico, que ocupara o horário nobre de centenas de emissões de TV, que alastrara por milhares de noticiários, que parecia enorme, incomensurável, infinito, um buraco negro intergaláctico que ameaçava engolir o sistema solar e prometia sugar adicionalmente a 5 de Outubro e a 24 de Julho, foi resolvido por um jovem habilidoso em pouco mais de uma semana.

Louvemos o habilidoso informático por nos fazer saber que os problemas difíceis da administração pública se podem resolver em poucas horas e os impossíveis ... numa semana. Louvemos o habilidoso informático por nos fazer saber que a nossa administração pública não tem competência, nem diligência, nem expediente. Louvemos ainda o habilidoso informático por nos fazer saber que os gestores da coisa pública – ministros e secretários de Estado – não lhe são capazes de acrescentar qualquer valor, nem estão habilitados para ultrapassarem as suas carências.

Sobeja agora a questão dos cerca de 20% de professores que pediram destacamentos, a maioria dos quais com atestados médicos nos quais nem os ingénuos acreditam que não sejam falsos. No nordeste do país aquela percentagem atinge mesmo os 90%. É claro que os sindicatos vão fazer vista grossa. Aliás, um dos seus dirigentes sugeriu hoje que nos casos em que houvesse professores ultrapassados nas colocações e prejudicados por isso, que o ministério os deveria aceitar e, não havendo serviço docente, incumbi-los de outras tarefas pedagógicas.

Saberá este dirigente da FENPROF que há milhares de professores com horários zero? Saberá que, para além destes, há largos milhares professores efectivos sem serviço docente atribuído devido aos mais variados motivos - dificuldades de visão, de audição, de locomoção, de pensamento, etc. E sempre com atestados médicos de suporte? E não estou a falar das baixas pontuais (que às vezes se arrastam meses a fio). E saberá que são os nossos impostos que pagam todo esse desconchavo?

Saberá este dirigente sindical que Portugal é o país da Europa com menos alunos por turma, com mais professores por aluno, em que os professores, no topo da carreira, são os mais bem pagos da Europa? Saberá esse dirigente que Portugal é o país da Europa que, proporcionalmente ao PIB, mais gasta com a educação e onde os resultados são, de longe, os piores? Sabe certamente, mas finge que não sabe.

Aqueles professores estão a dar ao país e, sobretudo, aos jovens que vão ensinar, um exemplo desastroso de falta de ética, do recurso à falsidade e ao suborno para conseguirem passar à frente dos colegas. Aqueles professores estão a mostrar aos jovens que vão ensinar que o recurso à fraude, à artimanha, à habilidade dolosa, compensa. O crime afinal compensa: são os próprios professores que o provam pela sua prática fraudulenta e viciosa. Os professores e os médicos que passaram os atestados.

Mas a comunicação social procura fundamentalmente bodes expiatórios pontuais e mediáticos. Dez mil professores com atestados, em muitos dos casos, falsos, não cabem na pantalha do televisor. Não têm efeito mediático. Agora um ministro, um político do topo, esses sim – cabem no rectângulo televisivo e satisfazem o espírito de inveja nacional. Ninguém tem inveja de dez mil professores. É um número demasiado grande para a capacidade de inveja de cada um de nós.

David Justino e Abílio Morgado foram incompetentes. Pois foram. Mas foram-no também e sobretudo porque não souberam fazer agir o ministério com competência. Porém isso é de somenos importância. O que é importante foi David Justino, Abílio Morgado, e todos os governantes que se envolveram neste processo, tornarem-se no pano vermelho que a comunicação social e os sindicatos agitam perante a opinião pública para fazer desviar a sua atenção do cancro que alastra e corrói o país: a incompetência e o laxismo da função pública.

Publicado por Joana às 12:07 AM | Comentários (21) | TrackBack

setembro 29, 2004

O Gestor Contra Natura–Adenda

Em jeito de adenda e face a alguns comentários no meu post anterior, queria acrescentar o seguinte:

-A Social-democracia não deveria constituir um termo pejorativo para a esquerda. Engels pertenceu à social-democracia alemã e Lenine à social-democracia russa. Aliás os bolcheviques eram assim chamados porque constituíram a dada altura a ala “maioritária” do partido social-democrata russo, por oposição aos mencheviques, assim chamados por serem a ala “minoritária”. No caso francês foi algo diferente e as diversas facções socialistas uniram-se constituindo a SFIO (Section Française de l'Internationale Ouvrière) em 1905 (dissolvida sob pressão de Mitterand em 1969). As cisões deram-se na sequência das opiniões contraditórias sobre o carácter da Grande Guerra. Começou na Rússia e estendeu-se, também por influência da tomada do poder pelos bolcheviques, à Europa ocidental – O KPD, Partido Comunista Alemão, foi constituído em 1920, assim como o PCF, Partido Comunista Francês – ambos por cisão do SPD (alemão) ou da SFIO (francesa).

-A Social-democracia passou a constituir um termo pejorativo para a esquerda radical e ortodoxa quando esta pretendeu diabolizar as concepções reformistas dos socialistas da Europa do norte. É óbvio que houve anexações semânticas sem conteúdo. O PSD português não tem nada a ver com a social-democracia. Aliás o próprio PSL insiste muito na tecla do PPD, certamente um nome muito mais adequado.

- Eu, quando referi o comunismo, não estava a pensar numa sociedade ideal futura, mas nos partidos comunistas, nos seus ideários e nos modelos que estabeleceram na Europa do Leste onde tomaram o poder. Aliás Marx e Engels não tiveram problemas “teóricos” ao apelidarem uma obra escrita em 1848, destinada a ser panfletária, mas que se tornou numa obra teórica de relevo, como o “Manifesto do Partido Comunista”.

A terminologia marxista não me fere a sensibilidade, nem tenho pavor a citar “o nome de Deus em vão” nem o meu intuito foi substitui-la por “expressão mais civilizada”. A questão é que a noção marxista de classe é muito específica e eu, ao falar em classe social. poderia conduzir a alguns quiproquós. Afinal conduzi na mesma! Para Marx apenas existem, na verdade, 2 classes. Marx não nega que entre os capitalistas e os proletários, existam múltiplos grupos intermédios, artesãos, pequeno-burgueses, comerciantes, camponeses proprietários. Mas afirma duas proposições. Por um lado, à medida que o regime capitalista evoluir, tenderá para uma cristalização das relações sociais em apenas e só dois grupos, de um lado os capitalistas e do outro os proletários. Por outro lado, duas classes, e só duas, representam uma possibilidade de regime político e uma ideia de regime social. As classes intermédias não têm nem iniciativa nem dinamismo histórico. Há apenas duas classes capazes de imprimirem a sua marca à sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos e cada um serão obrigados a juntar-se ou aos capitalistas ou aos proletários.

Nada na história é eterno, nem eu me referi ao sistema capitalista e à economia de mercado como eternos, embora a economia de mercado, desde que as comunidades humanas deixaram de viver na fase da caça e da recolha, tenha sempre existido. Mesmo nas formações sociais em que o modo de produção dominante (escravatura, servidão, socialismo “científico”, etc.) impunha coacções extra-económicas, onde fosse possível haver trocas livres, havia mercado. Basta estudar a história, incluindo a dos mercados paralelos na ex-URSS. Fechem a porta ao mercado e ele entra pela janela.

Eu escrevi «Hoje em dia, o que está em causa é a gestão mais eficiente do actual sistema económico e social e não a sua alteração radical.». “Hoje em dia” e não “Definitivamente”.

Não é uma falácia escrever-se que não se pode “distribuir o que não há”. Há desigualdades sociais. Mas essas desigualdades são imprescindíveis ao desenvolvimento económico. Podemos ir ao espólio dos grandes empresários e distribuir o seu património pelos necessitados. E a seguir? Quem voltará a investir em Portugal? Para haver criação de riqueza tem que haver protecção aos resultados das actividades económicas. Sem essa protecção não há investimento e os capitais irão demandar locais mais seguros. Onde não há protecção à propriedade não há desenvolvimento económico, antes estagnação.

É evidente que tem que haver reafectação de recursos, transferências sociais para compensar as desigualdades excessivas introduzidas pela economia de mercado. É importante para combater a exclusão social e manter a coesão social. Mas essa reafectação tem que ser optimizada em face da necessidade de manter os incentivos à iniciativa privada.

Publicado por Joana às 03:46 PM | Comentários (9) | TrackBack

O Gestor Contra Natura

A actuação socialista, no governo e na oposição, as campanhas para secretário-geral e a vitória de Sócrates sugerem-me algumas reflexões.

O socialismo nasceu e formou-se na luta contra o statu quo económico e político. Nasceu e formou-se, no século XIX e início do século XX, nas lutas dos trabalhadores contra um sistema económico em que a sua vida era degradante e a sua subsistência precária. Pelas suas referências históricas e culturais, socialismo formou-se como um contra-poder. Mas não apenas como um contra-poder, pois o socialismo apresentou, desde Marx, duas vias: a via da luta pela reforma do sistema económico e social vigente versus a via da luta pela destruição desse sistema e estabelecimento de um novo modelo baseado noutras relações de produção. Essas duas vias foram progressivamente divergindo e deram origem, após a primeira guerra mundial, à cisão entre o socialismo e o comunismo. O segundo implodiu após se ter julgado, a si próprio, como o futuro ridente e necessário da humanidade e o primeiro passou de conta-poder a gestor ocasional desse mesmo poder.

Foi essa ambivalência, entre os genes que lhe deram a luz e a vivência no seio de relações de produção, que inicialmente detestava e que depois protagonizou a sua gestão, que modelou o comportamento socialista nas últimas décadas, principalmente nos países latinos, porque nos países do norte da Europa, quer na sua génese, quer na sua vivência, o socialismo esteve sempre muito mais apostado na reforma que na destruição do sistema.

É essa ambivalência que conduz à situação em que, após cada experiência governativa, os socialistas sejam acusados de “meterem o socialismo na gaveta”. É essa ambivalência que faz com que a ala esquerda acuse os governantes socialistas, quando a sua popularidade está em queda ou perdem as eleições, de perderem porque “fizeram uma política de direita”. Ora esta afirmação não tem qualquer coerência lógica: Se perdem para a direita, como é possível justificar a derrota pela alegação que os socialistas teriam feito uma política de direita?

A questão é que os socialistas, quando chamados a governar, não têm uma alternativa coerente e própria. A solução em que caem sempre é a de gerirem o sistema no papel do gestor contrariado e embalarem essa gestão contra-natura com um revestimento de tintas socialistas: distribuir dinheiro em subsídios, aumentos salariais desconformes da função pública; empolar o papel empregador do Estado, etc., etc.. Gerem mal duplamente: pela gestão em si, e pela distribuição de uma riqueza que não existe, pois que não a souberam criar.

A sociedade e o mundo mudaram muito na sequência da última guerra, com especial incidência nas últimas três décadas. Houve a globalização, com a emergência das economias de muitos países, os gigantes China e Índia em especial. Houve, nas sociedades ocidentais, importantes alterações das condições económicas, o aparecimento de novos segmentos e camadas sociais, com as suas aspirações e necessidades, houve importantes modificações nas correlações de força entre os diversos segmentos sociais (evito chamar-lhes classes sociais para evitar confusões com a terminologia marxista). Houve drásticas alterações demográficas. Houve imensas transformações e rupturas.

Os socialistas, como partido, ou não se aperceberam disso, ou não conseguiram encontrar respostas adequadas. Quando na oposição mantêm-se prisioneiros de um discurso reivindicativo classista e estéril. Quando no governo não têm ideias próprias em matéria de gestão da coisa pública, e acabam, forçados pelas circunstâncias económicas, a aplicar as receitas da direita, cujos valores foram sempre o objecto da sua contestação pública e firme. Mas, porque se sentem pouco à vontade em aplicar essas medidas, fazem-no de forma incoerente e errática e tentam disfarçar essas contradições com políticas sociais com intuitos meramente distributivos, sem acautelar a existência de recursos para tal.

A direita, nas sociedades ocidentais, tem tentado encontrar modelos de intervenção na esfera económica e social para tomar em consideração essas mudanças na estrutura e dinâmica dos grupos sociais, uma nova postura de afirmação da procura individual do sucesso induzida pelo aumento significativo das qualificações e pelo enorme crescimento da mobilidade social. A direita faz isso com a naturalidade de quem sempre defendeu os valores económicos e sociais que conduziram às modernas sociedades de economia de mercado. Ela nunca foi contra-poder ao sistema. Quando não estava no governo poderia criticar as decisões governativas, nunca o statu quo, nunca pôr em causa os fundamentos daqueles valores. A direita, quando governa, fá-lo sem complexos e com a naturalidade de quem pertence ao sistema, quer erre, quer acerte nas medidas económicas e sociais que toma.

Hoje em dia, o que está em causa é a gestão mais eficiente do actual sistema económico e social e não a sua alteração radical. A direita, errando ou não, gere sem complexos; os socialistas gerem com os complexos de quem, pela sua vivência histórica tem dúvidas sobre o sistema que estão a gerir, e portanto erram quase sempre e acabam sob a acusação, dos seus correligionários, de fazerem uma política de direita.

Ora os socialistas, em vez de proclamarem sistematicamente a sua fidelidade aos “imortais princípios” referidos a experiências históricas de há mais de século, e que a própria história demonstrou estarem mais que ultrapassados, precisam de redefinir as suas referências no quadro da sociedade actual, mas construindo um projecto próprio (e portanto alternativo ao da direita) de desenvolvimento económico e social viável, e sublinho viável, porque o que têm feito é uma mistura canhestra do projecto de direita desvirtuado pela subsidiarização excessiva, pelo empolamento do Estado, pela dependência face aos lobbies mais perigosos da sociedade portuguesa (os sindicatos da administração pública e congéneres, isto na douta opinião do socialista Silva Lopes), o que leva periodicamente o país à beira do abismo.

E nesse projecto alternativo, os socialistas não devem ter complexos em apostar na eficiência: na eficiência do aparelho do Estado, na eficiência do funcionamento do mercado (melhorando as práticas concorrenciais e a sua transparência), na eficiência social (mas também económica) na realocação dos recursos, no intuito de aumentar a coesão social sem menoscabo da eficiência económica, na eficiência da mobilização social e na afirmação da cidadania para a construção de um país mais próspero, com melhor qualidade de vida e onde seja mais gratificante viver

Ou os socialistas se afirmam no quadro da sociedade actual, acreditando sem reservas mentais nos valores da sociedade actual (na democracia representativa, no mercado livre, na liberdade de escolhas) com um projecto próprio, esvaziado das contradições em que se têm debatido, entre a contestação dos valores da sociedade e a gestão da mesma sociedade baseada nesses valores, ou não passarão de contra-poder.

E como contra-poder, os socialistas somente podem ambicionar chegar ao governo apelando ao populismo demagógico das quimeras distributivas. Mas chegados ao governo apenas se aguentarão o tempo suficiente para o eleitorado verificar que as suas propostas não têm qualquer consistência e a sua aplicação prática, a médio prazo, arruína o país.

Nota - Ler ainda
O Gestor Contra Natura–Adenda

Publicado por Joana às 12:42 AM | Comentários (12) | TrackBack

setembro 27, 2004

O Ministro Virtual

Já critiquei aqui, por mais de uma vez, o ex-ministro David Justino (*). Falava com grande fluência sobre os amanhãs que cantariam na educação, mas tinha, na prática, uma acção muito pouco consistente.

David Justino deu, há dias, uma entrevista à RR e RTP2 em que cometeu um erro grave: o ter faltado à promessa que, segundo ele, havia feito a si próprio – “levar até às ultimas consequências o meu silêncio”. Se tivesse cumprido essa promessa teria evitado uma prestação lamentável.

Uma entidade, pública ou privada, deve ser uma organização descentralizada onde cada nível hierárquico é responsável pelos serviços que gere: quer directamente, pelo nível hierárquico imediatamente inferior, quer indirectamente pelos restantes níveis hierárquicos tutelados pelo seu pelouro. A descentralização, implicando embora a responsabilização dos executantes directos, não inibe a responsabilização geral das chefias.

Ora o que é patente na entrevista é que o então ministro David Justino não sabia o que realmente se passava no seu ministério. Apenas sabia aquilo que lhe diziam. David Justino estava no ministério como se estivesse na caverna de Platão: só via imagens reflectidas. Há que reconhecer a lamentável e injusta posição em que David Justino esteve colocado durante 2 anos - sempre virado para a parede - e exprimirmos a nossa solidariedade pela punição que sofreu, mesmo reconhecendo que foi um óbvio caso de auto-punição e de masoquismo governativo.

David Justino assegura que “nunca falei com a Compta, nem nunca acompanhei o processo de adjudicação da programação do concurso de professores.” porquanto havia uma “competência delegada no secretário de Estado da Administração Educativa [Abílio Morgado] e na directora-geral dos Recursos Humanos da Educação [Joana Orvalho]”. Aliás o ex-ministro assegurou mesmo que nem sequer havia alguma vez lido o contrato da prestação de serviços adjudicada à Compta.

E isto porque David Justino “tinha informações, quer da directora-geral, quer do secretário de Estado da Administração Educativa, que os técnicos da empresa demonstravam competência no que estavam a fazer. O pecado original estava no interface entre quem concebe e sabe de concursos e entre quem sabe de programação e executa”.

Não, David Justino. O pecado original não foi esse, nem foi apenas um.

Comecemos pelo mais espantoso e original. A primeira coisa que qualquer gestor faz, em face do falhanço de uma dada prestação externa, é analisar o contrato que titula essa prestação para avaliar as obrigações dos dois outorgantes do contrato, as vulnerabilidades próprias e as do outro contraente e as possibilidades de se exigirem responsabilidades pelos falhanços. Mas David Justino nem sequer se dignou ler o contrato. David Justino apenas ouvia o que a sua “equipa” lhe contava e falava abundantemente à comunicação social sobre as excelências que se iriam abater sobre a educação. Nada o prendia à realidade. Flutuava algures no espaço virtual.

Continuemos pela resposta inconcebível à pergunta sobre se ele, após a constatação da imensidão dos erros detectados (36 mil reclamações), teria acompanhado o processo.

A sua resposta foi lapidar “Não, porque todo este processo é uma delegação de competências no secretário de Estado da Administração Educativa. Que desempenhou um trabalho excepcional.” E quando as entrevistadoras, sideradas, lhe perguntaram “Excepcional???” Justino respondeu com a candura de quem desconhece as pequenas misérias da assunção de responsabilidades: “Foi por isso que pedi uma auditoria e é por isso que acho que deve haver uma comissão de inquérito. Só assim, em vez de se estar a estabelecer suspeições de responsabilidade, podemos saber, de uma vez por todas, o que competia a cada um e que, eventualmente, não foi cumprido

Efectivamente, Justino não sabia nada do que um gestor tem obrigação de saber: quais as responsabilidades e o que competia a cada um. Precisava urgentemente de um inquérito, para que o relator lhe explicasse o que se passava no ministério.

Mas provavelmente Justino tem razão. Mesmo no Ministério da Educação, mesmo nessa instituição célebre pela incompetência que tem demonstrado e pelos erros que tem cometido ao longo de décadas na gestão da educação pública, tamanha enxurrada de erros era demais: foi excepcional! As entrevistadoras interpretaram a palavra “excepção” no sentido positivo; eu acabei de a interpretar pelo seu significado mais neutro e lato; Justino ... bem Justino, obviamente, não sabia o que dizia.

Justino fez ainda algo que deve pouco à dignidade: atribuir publicamente as culpas aos seus subordinados. É sabido que Abílio Morgado, secretário de Estado da Administração Educativa, foi o grande impulsionador deste projecto – mas não era o projecto que estava errado em si, foi a sua aplicação e foi a ausência de uma alternativa em caso de falha, que é obrigatória em situações destas; e aqui Abílio Morgado falhou claramente. Joana Orvalho reconheceu por escrito as suas responsabilidades, e ela era a responsável directa pela sua implementação. Mas um gestor não deve lavar a roupa suja na praça pública - são assuntos para serem resolvidos internamente, com ou sem inquéritos.

Mas isso não invalida a responsabilidade dos quadros do Ministério em todo este processo. E o coro de lamentações dos sindicatos logo que vieram a público as responsabilidades de Joana Orvalho é esclarecedor. Os sindicatos estão interessados em que continue esta incompetência e este laxismo no ministério. Atacam o ministro apenas por motivos políticos. E não querem que casos evidentes da incompetência e do laxismo no aparelho do Estado sejam discutidos na praça pública.

No fundo eles estão todos no mesmo barco. Os ministros vêm e vão; a administração pública permanece imutável: não muda, não se interessa pela mudança, e tem raiva a quem muda.


(*) Nota: ler o texto “Eles Governam (mal), eles Perdem” inserido em 16-Junho-2004 onde escrevi, a certa altura:
David Justino é um sedutor a comunicar, mas nada do seu discurso acaba por ter expressão prática. Esta nova reforma curricular, mais uma ..., vai ser mais um desastre. Por sua vez, os enganos na colocação de professores (esta última lista tinha “apenas” 14 mil erros) são uma trapalhada que não se vê como o ministério a vai resolver. Quando se muda um sistema, qualquer pessoa com experiência sabe que haverá uma fase em que os dois sistemas, o antigo e o novo, têm que coexistir. Seria suicidário não o fazer. As empresas fazem isso quando mudam os programas de gestão financeira e de pessoal. É incompetência absoluta dos serviços do ministério, e indirectamente do ministro, o não terem acautelado esta questão.

Publicado por Joana às 10:42 PM | Comentários (14) | TrackBack

setembro 26, 2004

A Vitória de Sócrates

A eleição para Secretário Geral do PS deu um resultado à primeira vista bastante surpreendente: uma votação muito pouco significativa em Manuel Alegre e em João Soares. José Sócrates teve assim uma vitória esmagadora. A votação pouco expressiva nos adversários de Sócrates foi claríssima no seu significado: a deriva esquerdista do PS de Ferro Rodrigues, que o trouxe a reboque do BE nos últimos 2 anos, dispõe de um apoio muito minoritário dentro do PS.

Como é normal nas facções radicais, a sua expressão mediática é muito superior à sua efectiva representação no corpo social em que se movem. A sua truculência e a forma como menorizam aqueles que não partilham as suas opiniões confere-lhes um peso comunicacional completamente desproporcionado em face do peso social das suas convicções. Os seus líderes ficam de tal forma empolgados pelo ruído que produzem, que se atribuem, a si próprios, uma aceitação social muitíssimo superior à que realmente têm.

E não são apenas os líderes radicais: os próprios fazedores de opinião acreditam nessa quimera. É normal, é sempre assim, foi sempre assim, mas a opinião “publicada” nunca acredita. Numa próxima vez, com os mesmos ou outros protagonistas, qualquer que seja o cenário, a opinião “publicada” voltará a atribuir às teses da esquerda radical um peso social muito superior àquele que ela tem efectivamente.

E, devido a isso, surgem depois acusações diversas sobre o porquê do “enviesamento” da votação. No limite, o próprio sistema representativo é contestado, atribuindo-se-lhe toda a espécie de vícios e de não reflectir “os sentimentos profundos das populações”, quando o que não reflecte é o excessivo ruído emitido pelos líderes radicais.

No caso destas eleições, Manuel Alegre, a “alma da esquerda socialista”, mostrou-se sempre convicto de um resultado muito superior, que lhe permitisse, no mínimo, fazer posteriormente valer, com o apoio dos votantes de João Soares, o pleno da alma esquerda socialista. Foi completamente esmagado mas, apesar disso, na sua declaração final, falou com a veemência, a convicção e a autoridade de quem tinha tido 49,9% ...

Todavia, a vitória de José Sócrates não foi apenas a recusa da deriva esquerdista do PS de Ferro. Foi também a vitória dos meios do PS que apostam na carta Sócrates única e exclusivamente para regressarem ao poder. Ora esse grupo que anseia pelo regresso ao poder já mostrou, durante o governo guterrista, que não tem competência, que não tem rigor financeiro, que governa vendendo ilusões e apostando no laxismo para anestesiar a opinião pública e se manter ao leme do Estado.

Sócrates cometerá um enorme erro se se deixar amarrar a essa gente. Mas terá, certamente, dificuldade em evitá-lo. O PS é um partido onde os quadros oriundos dos meios empresariais têm pouca expressão Os seus quadros vêm fundamentalmente do aparelho do Estado (incluindo as universidades) e do próprio aparelho interno e têm uma ideia escolástica ou livresca do funcionamento tecido produtivo português. E quando se tem uma ideia livresca é fácil construir mitos e perseguir ilusões. Não há critérios substantivos para validarem as opções.

Publicado por Joana às 11:51 PM | Comentários (14) | TrackBack

setembro 25, 2004

Quem nasce torto

A nova Lei do Arrendamento Urbano, até onde me foi dado entender, tem uma qualidade: quebrou um tabu. Tem um defeito: a sua eficiência na retoma do mercado do arrendamento, e no mercado imobiliário em geral, vai ser insignificante no curto prazo. Talvez no muito longo prazo venha a ter efeito, se a nossa veia legiferante (ou legiferoz) não a esvaziar entretanto, e se for complementada com legislação tornando expedito o despejo por não pagamento de rendas.

O problema é que, no que diz respeito à habitação, qualquer lei seria má ... embora melhor que a actual situação. E o mais perverso é que esta situação insustentável foi criada com a melhor das intenções sociais durante o consulado de Salazar, quando a inflação era inexistente, e cristalizada na sequência do 25 de Abril, quando se desencadeou um processo inflacionário que, durante alguns anos, atingiu valores superiores a 30% ao ano. O congelamento das rendas atingiu não apenas o sector habitacional, que seria eventualmente defensável como medida de filantropia social (embora o Estado reservasse essa acção de benemerência para os senhorios), mas também o sector do arrendamento comercial, o que era totalmente injustificável, pois o espaço ocupado por uma empresa para a sua laboração é um factor de produção, e o preço da sua utilização deve ser interpretado como um custo normal de produção.

Portanto a regulamentação do mercado do arrendamento teve diversos efeitos perversos e de ónus pesadíssimos. Em primeiro lugar as famílias foram, pouco a pouco, equilibrando os seus orçamentos domésticos mercê de rendas com valores reais cada vez mais irrisórios. Qualquer alteração significativa das rendas seria, a partir de certa altura, a subversão desses orçamentos familiares. Os senhorios, com rendimentos imobiliários insuficientes para fazerem obras de beneficiação, foram deixando degradar os imóveis até limites inimagináveis, em alguns casos até à derrocada. As lojas e espaços comerciais, pagando cada vez menos pelo espaço utilizado foram perdendo capacidade de inovação e habituaram-se ao ramerrão do comércio sem qualidade. Em resumo, fomos conduzidos à degradação do parque habitacional, à ruína dos centros históricos de Lisboa e Porto e das restantes cidades do país, à inexistência de um mercado de arrendamento eficiente, à opção pela aquisição de casa própria e ao endividamento exponencial das famílias para o conseguirem.

A questão que se põe é saber se a nova lei vem resolver esta situação. Mesmo sem conhecer a lei em profundidade, a minha resposta é parcialmente negativa.

Em primeiro lugar, a reforma da Lei do Arrendamento vai deixar de fora cerca de 227 mil famílias, segundo os dados divulgados pelo Ministério das Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional. Os fogos ocupados por estas famílias estão, na sua maioria, nos centros históricos degradados das cidades portuguesas. Correspondem seguramente aos senhorios mais idosos e descapitalizados. Como poderão ser recuperados?

Para além destes fogos, e por causa da nova Lei do Arrendamento, o Estado prevê apoiar cerca de 102 mil famílias de menores rendimentos com subsídios de renda. Mesmo apoiadas, serão rendas condicionadas com valores bastante inferiores aos do mercado.

Para além destes, os arrendamentos comerciais, relativos ao pequeno comércio, são objecto de um regime a longo prazo, de contornos pouco precisos.

A quase totalidade dos senhorios destes imóveis, certamente dezenas de milhares, alguns dos quais nem são conhecidos, pois quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os sucessivos herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis, não têm capacidade financeira para fazerem obras de reabilitação, cujo retorno só é expectável a muito longo prazo.

Para além de não terem capacidade financeira, não têm know-how para se abalançarem a obras tão complexas como a reabilitação urbana. E são complexas por várias razões:

1 – Será de manter a tipologia e a organização de espaço existente? Em Alfama e noutros bairros históricos de Lisboa e Porto há muitos fogos com 20 m2, ou menos, de área útil, e um fogo por piso. Estas áreas inviabilizam tipologias de acordo com os mínimos aceitáveis. Não faz sentido reabilitar um fogo mantendo uma tipologia completamente desadequada face à vivência actual. Mas se aumentam as áreas, alguns dos inquilinos terão que ser realojados noutros locais. Como é que o senhorio vai dirimir esta questão?

2 – Uma obra realizada num tecido urbano de arruamentos muito estreitos, com as exigências camarárias de manutenção das traças (às vezes das próprias fachadas) é muito mais cara que construir de raiz, nomeadamente no estado em que a maioria dos imóveis se encontra. Os senhorios desses imóveis, na sua maioria idosos e de baixa qualificação, não têm capacidade para gerirem empreendimentos destes. Arriscam-se a caírem nas mãos de empreiteiros pouco escrupulosos.

3 – Na sua quase totalidade, a lei não abrange estes imóveis ou, os que abrange, é em regime de renda condicionada, que não é suficiente para haver retorno do investimento, admitindo que os senhorios tivessem capacidade financeira e competência para promoverem a reabilitação.

Portanto a perversão que o congelamento das rendas provocou no mercado imobiliário (com a melhor das intenções sociais!) foi de tal forma profunda que não se descortina uma solução a curto ou a médio prazo. A reabilitação dos imóveis terá que passar, para além de um suporte legal mais adequado que este, pela acção conjunta do Estado, das autarquias e dos senhorios (os actuais, ou a quem estes os venderem, se se sentirem inabilitados para os recuperarem).

Há ainda outro factor para a queda do mercado do arrendamento urbano que permanece esquecida. Há meio milhão de fogos devolutos, mas a lei permite, desde 1990, arrendamentos em regime livre, pelo prazo de 5 anos, com a possibilidade de não serem renováveis. Porque é que continuam devolutos? Porque se instalou em Portugal o hábito dos inquilinos pagarem os 2 meses de entrada, com o contrato de arrendamento, às vezes mais um ou dois meses, e depois deixarem de pagar. O senhorio move uma acção de despejo e fica ano e meio a dois anos à espera que o inquilino seja despejado. A forma de segurar o pagamento das rendas seria uma garantia bancária de um ano de rendas. Mas os bancos não vão nisso, porque só passam garantias a clientes em que tenham confiança ou com bens que possam caucionar. Mesmo fiadores, ou não são fiáveis, ou o inquilino não os consegue apresentar.

Portanto, alugar uma casa em Portugal é uma situação arriscada. Para quê alugar uma casa se as rendas recebidas não chegarão para pagar os advogados, os processos judiciais e a reabilitação do fogo que normalmente é deixado em mísero estado? Como é uma situação de elevado risco, o senhorio tende a pedir um valor mais elevado para a renda para se precaver com uma espécie de seguro ou, pura e simplesmente, não aluga, ficando à espera de melhores dias.

Portanto, para dinamizar o mercado de arrendamento, mais importante que a nova lei, é encontrar procedimentos legais que permitam o despejo rápido, no máximo dois meses, por não pagamento da renda, e formas de execução sumária das rendas devidas e não pagas e dos danos provocados no fogo pelo inquilino.

Os únicos inquilinos que irão sentir os efeitos desta lei são os que pertencem à classe média. Será esta a única a pagar. E a punção que recairá sobre os seus rendimentos ainda não é definida: depende de uma negociação “dita” livre com o senhorio. Mas como é balizada? Se não forem estabelecidas balizas nunca será uma negociação livre, pois a alternativa é o despejo. O governo corre o risco de alguns locatários, pressionados pelos senhorios, resolverem a “negociação” adquirindo casa própria o que terá um efeito absolutamente contrário ao pretendido pela lei.

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setembro 23, 2004

Imagens em vez de Factos

Os jornais deram a lume, há dias, com estrépito e girândolas, a notícia que um estudo encomendado pelo Ministério do Ambiente à Universidade Nova de Lisboa havia concluído que a incineração do lixo (resíduos sólidos urbanos – RSU) era mais cara que separar o lixo e reciclá-lo. A opção mais barata seria a da deposição em aterro sanitário.

Imediatamente a Quercus defendeu que "face a estes dados, torna-se ainda mais evidente que o projecto de instalar um incinerador na ERSUC [sistema dos resíduos urbanos dos distritos de Aveiro e Coimbra] seria um grave erro não só ambiental mas também económico, penalizando as autarquias, que teriam assim de suportar elevadas tarifas para o tratamento dos seus resíduos urbanos".

E assim, com meias verdades se arquitectam pseudo-factos.

Na verdade está-se a falar de coisas diferentes. A incineração apenas precisa da remoção indiferenciada, que é a que está generalizada no nosso país. O lixo que pomos à porta é recolhido e enviado para a central de incineração onde é queimado e transformado em energia eléctrica. Há uma triagem, para vidros e metais, e sistemas de tratamentos dos fumos (para eliminar as dioxinas) e das cinzas, que são inertizadas. A energia eléctrica produzida é vendida à EDP e o país poupa nas importações de fuel. Uma central de incineração é uma central térmica cujo combustível é o lixo e tem os mesmos efeitos ambientais que qualquer central térmica, visto que os efeitos mais nocivos são eliminados.

A reciclagem precisa de remoção diferenciada. Precisa que toda a população deposite o lixo de forma diferenciada nos ecopontos, para haver uma recolha selectiva. Precisa que os produtores e vendedores produzam e embalem os produtos de forma que as embalagens sejam mais facilmente diferenciadas, recolhidas e triadas. Foi para isso que se constituiu a Sociedade Ponto Verde. E precisa que os produtos recolhidos sejam recicláveis. Ora isso só acontece com uma parcela do lixo urbano.

Portanto a reciclagem só poderá incidir sobre uma parte do lixo urbano. E isto quando quer a população, quer as entidades que têm a recolha selectiva a seu cargo, sejam capazes de terem o civismo e a organização para se reciclar tudo o que é reciclável. Até lá, e apesar da difusão dos ecopontos por todo o país, só uma parcela ínfima é reciclada.

Quanto ao lixo biodegradável, este não é reciclável. A solução será a compostagem, cujos produtos têm pouca ou nenhuma procura, e a digestão anaeróbia, que transforma parte do lixo em energia e o resto em composto, mas que é a solução mais cara.

Na Alemanha e na Holanda, onde todo este processo está bem organizado, onde a população colabora com elevado civismo, a reciclagem está bastante avançada, mas coexiste com uma centena de incineradoras. Isto é, apesar da elevada percentagem de produtos reciclados, apesar da colaboração da população em compostagens caseiras, parte significativa do lixo continua a ser incinerado. E estes países ainda têm um problema adicional: não conseguem consumir todos os produtos da reciclagem. Há uma parte que têm que exportar, ou doar, para outros países.

A vida útil de uma central de incineração será cerca de 25 anos. Se nos portarmos todos bem (a população e as autoridades), talvez dentro de 25 anos possamos atingir os níveis de recolha selectiva daqueles países e não necessitemos de construir incineradoras adicionais. Até lá não podemos estar a raciocinar sobre falácias e deixar o lixo a acumular nos depósitos ou a levá-lo a aterro, que é a solução, de longe, com maiores custos ambientais: as emissões de metano são, para a mesma quantidade, vinte vezes mais nocivas que as de CO2 no que respeita ao efeito estufa.

O lobby anti-incineradoras da Quercus vive de meias verdades e de falácias que tenta impingir à opinião pública mercê do acesso privilegiado que encontra nos meios de comunicação. É óbvio que temos que apostar na reciclagem e temos que tomar medidas para que as metas a que nos propusemos sejam atingidas nos prazos delineados. Para isso precisamos de eficiência das autoridades que tratam da remoção do lixo e do seu tratamento e valorização, e precisamos que a população, toda a população, adira à recolha diferenciada.

Mas este processo leva tempo e não podemos ficar com o lixo à espera que se consiga aquele desiderato.

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setembro 22, 2004

A Maldição do Estado

Finalmente o Estado português tomou o caminho que a sua qualificação e o seu destino fatal lhe apontava há meses: as listas de colocação de professores vão ser elaboradas à mão.

Este regresso às origens era óbvio. O Estado português está na pré-história do conhecimento. Informáticas, novas tecnologias, qualificações e empenhamento no cumprimento dos prazos e nos objectivos de qualidade, são vícios das empresas abertas à concorrência internacional e cujo dinamismo tem mantido Portugal à tona da água. O Estado português é o guardião das nossas virtudes ancestrais – do alto da pilha das 50.000 candidaturas de professores, 9 séculos nos contemplam.

Alguns pretendem que o Estado tem-se modernizado e apontam como exemplo os flamejantes automóveis que os directores de serviço têm atribuídos, em vez de seges puxadas por muares lazarentos trotando penosamente pelas calçadas lisboetas. Puro equívoco: basta ver que os motoristas desses veículos ainda não se aperceberam da diferença entre um BMW Série 7 Berlina e uma sege ou, no caso dos directores gerais, de uma caleche. Carregam no acelerador com o mesmo denodo e sentido das responsabilidades com que chicoteariam as alimárias.

E a ministra prometeu que, com o recurso ao trabalho manual, em menos de uma semana as listas estariam prontas. O que um programa comprado com alto discernimento tecnológico, avalizado por profundas reflexões ministeriais, assessorado pela nata dos técnicos de uma empresa topo de gama da informática, fertilizado pelo suor do imenso staff asilado no Ministério da Educação, não conseguiu fazer em 7 meses, propõe-se agora a ministra fazer, à mão, em 6 dias úteis ... porque ao sétimo descansará, como o Criador.

Louvemos a providencial ministra que diz conseguir que funcionários públicos do Ministério da Educação executem, em 6 dias, aquilo que nunca conseguiram executar em menos de 4 ou 5 meses, noutras ocasiões, e anos a fio, e sem ser apenas à mão.

Será que a ministra já se apercebeu das consequências da sua decisão e das suas promessas? Se o seu desiderato for conseguido, como explicarão depois os funcionários públicos porque razão costumam executar tarefas idênticas num prazo 20 vezes mais dilatado? Estarão os funcionários em questão dispostos a subirem, pelo próprio pé, ao pelourinho da opinião pública? Estarão dispostos a darem um tiro tão certeiro ... nesse mesmo pé? Hum ... Receio que não ... receio que a ministra nos fins de Setembro ainda se veja obrigada a mendigar mais um adiamento.

E, no entanto, o caso não seria virgem. Quando se pede um documento numa conservatória, notário ou repartição, dão-nos, de imediato e com voz peremptória, um prazo de 2 ou 3 semanas. Todavia, se for municiada com um advogado conhecido, a funcionária vai lá dentro, faz uma fotocópia, rabiscam uma assinatura, põe um selo branco e entrega a certidão ... 3 a 5 minutos. A proporção é a mesma.

Mas a ministra terá que ser prudente, porquanto a responsável será sempre ela. Os trabalhadores nunca têm qualquer responsabilidade. Quando pairou o boato que a primeira cabeça a rolar seria a de Joana Orvalho, directora-geral dos Recursos Humanos do Ministério da Educação, logo os sindicalistas se empenharam, com os olhos orvalhados pelas lágrimas, em entoar cânticos de louvor àquela dedicada funcionária que estava a gozar merecidas férias enquanto outros, dia e noite, andavam às marteladas ao programa para ver se punham aquilo a funcionar.

Não ... os trabalhadores do Estado nunca têm qualquer culpa dos maus desempenhos do aparelho do Estado: é sempre culpa dos ministros e secretários de Estado (e de algum assessor nomeado por aqueles). Isto é um postulado inatacável que só neoliberais empedernidos questionam. Os governos mudam e o mau desempenho continua – de quem é a culpa? Do governo ... do próximo governo ... do seguinte ... etc.. (e de todos os anteriores)

E de facto têm razão ... mas por motivos contrários: os sucessivos governos têm a culpa do péssimo desempenho da função pública porque sempre lhes escasseou a coragem de criarem mecanismos que a obrigassem a um desempenho melhor. Também têm a culpa de ela estar mal gerida, mas não por a gerirem mal: quem a gere é ela própria, através dos seus quadros superiores, mas por nunca terem tido a coragem de criarem mecanismos para promoverem os melhores gestores e implementarem os procedimentos para aqueles estarem obrigados a gerirem-na com eficiência.

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setembro 21, 2004

Novos Assessores de Imagem, Precisam-se?

O nosso primeiro-ministro contratou assessores de imagem para coordenar a sua produção pública. Foi uma decisão acertada. Num país em que os políticos estão a definhar em matéria de ideias; num país em que os meios de comunicação, quando pretendem abordar matérias políticas, não tratam dos assuntos que interessam às pessoas e apenas se entretêm com o insólito e com a coscuvilhice mais bacoca; num país em que não se abordam os fundamentos das coisas, mas apenas as suas imagens reflectidas em diversos ângulos e refractadas através sabe-se lá de quantos meios; em suma, num país com duas faces, uma real e ignota, outra aparente e mediática, apenas o que é mediático interessa. Portanto a contratação de assessores de imagem era não apenas um acto estrategicamente indispensável, como politicamente coerente.

A comunicação social lançou-se então num coro de protestos e lamentações, censurando com veemência uma decisão que punha políticos em concorrência com ela própria. E a concorrência é algo que todos aplaudimos para os outros, mas desdenhamos para nós.

Todavia, parece evidente que a comunicação social mais uma vez se empenhou no supérfluo e esqueceu o essencial. E o essencial não era discutir a contratação de assessores de imagem por PSL, mas saber se tinham sido contratados os assessores competentes ou não.

Uma análise mais superficial pode levar-nos a concluir que a maldição da função pública se teria abatido sobre as contratações: assessores capazes dos maiores deslumbramentos pirotécnicos na privada, pareceram revelar-se ineficazes e contraproducentes na pública. Vejamos se esta leitura dos acontecimentos não será precipitada. Em primeiro lugar, e contrariamente ao que é hábito na comunicação social, analisemos os factos:

Num dia Pedro Santana Lopes expõe a ideia de adoptar diferentes taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, no outro dia o Ministério da Saúde refere que não estava ao corrente dessas declarações, um ou dois dias depois Bagão Félix vem afirmar que a questão «tem que ser vista com sensatez», dias volvidos PSL já fala em taxas moderadoras diferenciadas, emendando a seguir para preços de actos médicos, e agora, depois de Sampaio, contra os seus hábitos, ter dito algo de concreto e, ainda por cima, um rotundo não, PSL afirma que quaisquer declarações do PR são sempre um factor de estabilidade. Penso que, em todas estas afirmações múltiplas e contraditórias, o empenho dos assessores de imagem foi determinante: uma pessoa sozinha não poderia produzir uma tamanha enxurrada de ideias tão radicais e contraditórias.

No caso do acidente no terminal de Leixões há um relatório de uma comissão coordenada pelo ministro do Ambiente, há o “despeito” do ministro Álvaro Barreto por não ter sido consultado previamente à publicitação do relatório, há a “aparência mediática”, badalada pela comunicação, que PSL havia retirado o “tapete” debaixo dos sapatos de Nobre Guedes, e, surpreendentemente, lê-se, dias depois, que o primeiro-ministro deu "orientação clara" ao ministro Álvaro Barreto para encerrar a refinaria da Galp de Matosinhos "num prazo tão curto quanto possível".

A Galp, a empresa proprietária da instalação, tem accionistas privados e a unidade de Leça tem 600 efectivos e um terço da capacidade de refinação da Galp. Por outro lado, há em Leça um importante emprego induzido pela existência daquela unidade. O seu encerramento coloca questões estratégicas vitais pois a Refinaria de Sines não tem, por razões logísticas, capacidade para garantir o abastecimento total do país, o que daria uma vantagem concorrencial importante à refinaria da Repsol na Corunha, cuja proximidade geográfica permitir-lhe-ia substituir Leça da Palmeira no abastecimento da região norte do país.

Portanto, uma declaração tão radical sobre matéria com tanto impacte na economia e no emprego em Portugal não poderia ser proferida de ânimo leve, ou seja, sem o aconselhamento dos assessores de imagem. Dias depois, sempre seguro de si, PSL explicou que o encerramento da refinaria do norte apenas está no domínio das intenções. Isto é, «é melhor esquecerem o que eu disse».

Na questão das taxas do IRC, enquanto PSL apostava no choque fiscal, Bagão Félix afirma que não é uma medida prioritária e que as actuais taxas de IRC já não destoam das europeias. Certamente assessores de imagem diferentes, ou défice de assessoria de imagem da parte de Bagão Félix.

Na questão das SCUT’s os governantes entraram com o mesmo ímpeto liquidatário do anterior executivo. Não sei se quando se aperceberem da triste realidade do ruinoso negócio que têm entre mãos (ver post anterior neste blog) não se darão também por esquecidos.

Quem teve a paciência de me ler até aqui perguntar-se-á: porquê tantas contradições? Que raio de assessores são esses? Como é possível serem tão incompetentes?

Seria imprudente que os meus leitores assim se precipitassem. A Marta, a Margarida e a Ana são assessoras com créditos firmados a nível da comunicação social. Não são elas que se equivocaram – nós é que não estamos a avaliar devidamente o alcance das estratégias mediáticas implementadas.

A estratégia daquelas assessoras baseia-se na dialéctica hegeliana e no princípio da contradição: num primeiro momento formula-se a tese; num segundo momento nega-se a afirmação anterior – é a antítese; finalmente haverá um terceiro momento, radioso, em que a contradição é superada – é a síntese. Esta síntese é, por sua vez, uma primeira afirmação no processo seguinte – uma nova tese ... e assim sucessivamente.

Portanto, é seguro que as assessoras estão a encaminhar a governação de PSL de forma a que esta constitua a realização progressiva da sua "ideia absoluta". Depois desta estar realizada, Hegel e Fukuyama prometeram-nos o “fim da história” e o aparecimento de uma sociedade superior e livre.

Se tal não acontecer, os responsáveis são Hegel e Fukuyama. O segundo que se precate, pois ainda está vivo.

Publicado por Joana às 11:32 PM | Comentários (18) | TrackBack

setembro 20, 2004

É Bom Não Estar na Política Activa!

Ou a entrevista do independente Silva Lopes

O ex-ministro das Finanças, ex-governador do Banco de Portugal e hoje presidente do Montepio Geral, o economista e socialista Silva Lopes foi entrevistado pela RR e RTP2.

O Prof. Silva Lopes é um economista respeitado, mas não foge à regra de que as verdades só aparecem quando se despem os trajes de político activo. Certamente quando Silva Lopes participou na campanha eleitoral ao lado de Ferro Rodrigues não se atreveria a dizer que: «Temos 30 por cento de professores a mais em relação à média e as turmas mais pequenas dos 27 países comparados. Temos o menor número de aulas para os alunos e as menores cargas horárias para os professores. Por fim, sobretudo no fim da carreira, temos alguns dos professores primários mais bem pagos da Europa

E certamente seria defenestrado do último andar do Largo do Rato se, em plena campanha, numa sessão de esclarecimento para os sindicalistas PS, tivesse declarado: «Os sindicatos da administração pública, das empresas públicas e das monopolísticas são os [lobbies] mais perigosos. Veja o caso dos médicos: podem andar a fazer greves sempre porque não perdem o emprego. Já na indústria têxtil e nos metalúrgicos, onde a seguir ao 25 de Abril havia sindicatos muito poderosos, hoje ninguém os ouve, porque aí perceberam que para manter os empregos dos seus associados tinham de baixar as suas reivindicações. É isso que sucede nas empresas sujeitas à concorrência, onde não tenho nada contra os sindicatos, que se têm portado muito bem. Os da função pública, que têm as costas quentes, podem fazer o que muito bem entenderem.» e que «que o peso dos salários dos funcionários públicos é excessivo e estes gozam de privilégios socialmente injustos face aos do sector privado

E o que teria acontecido se, durante um porta à porta, Silva Lopes tivesse sussurrado ao ouvido de Ferro Rodrigues: «O que verifico é que governos, sejam do PS ou do PSD, têm querido estar bem com os grupos económicos»? ... bem ... se fosse só um sussurro, provavelmente Ferro responderia: «cuidado, que ainda alguém o ouve, ó amigo Lopes!».

O que salvou Silva Lopes foi a impossibilidade, no decurso da entrevista, de inserirem comentários dos kamikazes da net ... nem num modesto rodapé. É bom saber-se a salvo de comentários ... que eu, por afirmações semelhantes às produzidas por Silva Lopes, mas incomparavelmente menos contundentes, li o que jamais pensaria ler sobre a minha pessoa!

Na generalidade partilho das opiniões emitidas por Silva Lopes na citada entrevista. Mas não todas, ou pelo menos de forma tão definitiva. Tomemos o exemplo dos incentivos fiscais: Silva Lopes afirma que «os PPR não contribuem nada para a poupança nacional. Só servem para desviar as poupanças de umas aplicações para outras, para as que dão benefícios fiscais.». Parcialmente tem razão, mas apenas parcialmente. Os planos de poupança incentivam ao aumento das poupanças das famílias. Uma parcela será, certamente, desviada de outras formas de poupança, mas haverá outra parcela que, sem esses planos, seria desviada para o consumo. Na minha opinião, é justamente no segmento inferior dos «30% mais ricos (ou menos pobres!)» onde o incentivo em sacrificar o consumo pela poupança induzido por estes planos é maior. No caso dos mais ricos, é indubitável que Silva Lopes tem razão.

É interessante que Silva Lopes havia declarado, há dois anos, na comissão parlamentar de Assuntos Sociais, no âmbito da discussão da proposta de Código do Trabalho, que «As alterações à legislação laboral não têm efeitos sobre a produtividade ou competitividade da economia ou sobre o emprego. O que explica a falta de produtividade nacional é a deficiente capacidade empresarial e o baixo nível de educação dos trabalhadores». Quem o ouviu agora e leu então pensará que são duas pessoas diferentes. E são-no, deveras. Então era o militante socialista a argumentar contra a legislação laboral de Bagão Félix; agora é o presidente do Montepio Geral e economista Silva Lopes a emitir uma opinião técnica e independente sobre a política financeira de Bagão Félix.

E isto porque o «baixo nível de educação dos trabalhadores» pode ser ultrapassado com a qualificação profissional e os incentivos a essa qualificação passam por permitir a mobilidade laboral. Um trabalhador «asilado» não tem incentivos a melhorar a sua qualificação. Haverá aqueles que, pelo seu brio profissional, o farão, mas não mais do que esses. E subjacente ao ataque de Silva Lopes contra os lobbies sindicais, na entrevista em apreço, está a luta contra a rigidez laboral.

Publicado por Joana às 10:31 PM | Comentários (14) | TrackBack

setembro 18, 2004

A Questão das SCUT’s

Periodicamente, desde Valente de Oliveira, responsáveis políticos afirmam que as SCUT’s vão acabar. Mas nenhuma iniciativa prática foi entretanto tomada: fala-se muito durante algumas semanas e depois ... silêncio. Este assunto voltou nestes últimos dias à baila com afirmações peremptórias sobre o seu fim inexorável. Há uma forte probabilidade de voltar a acontecer o mesmo que anteriormente, e isto porque a questão é muito complexa, não no que respeita às futuras concessões rodoviárias, mas no que se refere às SCUT’s já existentes.

As SCUT’s foram talvez a herança mais pesada deixada pelo governo socialista. A partir de 2006, inclusive, o Estado português vai pagar uma anuidade superior a 600 milhões de euros relativa às SCUT’s da Beira Interior (152 m€), da Beira Alta/Litoral (160 m€), do Interior Norte (109 m€), da Costa da Prata (84 m€), do Litoral Norte (53 m€) e do Algarve (44 m€). A partir de 2011, inclusive e durante os dez anos seguintes, aqueles valores aumentam entre 10% e 20% descendo a partir de 2021 e extinguindo-se a partir de 2032. Estes montantes não incluem os custos relativos a expropriações, indemnizações diversas e compensações derivadas de exigências ambientais. Como o PIDDAC do Ministério das Obras Públicas para este ano é cerca de € 860 milhões, é fácil de avaliar a monstruosidade dos montantes comprometidos.

Todo o processo de lançamento das SCUT’s foi de uma absoluta irresponsabilidade. Era evidente, logo à partida, que a situação calamitosa em termos de pagamentos futuros resultante das concessões rodoviárias em regime SCUT iria condicionar, de forma dramática, as opções de política orçamental e fiscal das próximas décadas. Só não parece ter sido evidente para os governantes de então.

O estabelecimento de parcerias público-privadas (PPP) em Project Finance (PFI) é um negócio que requer muitas cautelas e muita competência. De um lado está o Estado e do outro os concorrentes à concessão, bem municiados em advogados e economistas experientes, agrupados em consórcios que incluem bancos, grandes empreiteiros e entidades exploradoras. Perante este arsenal, o Estado contrapõe técnicos e advogados inexperientes, que são substituídos ao sabor das mudanças dos titulares das pastas (mesmo pertencendo ao mesmo partido), e um enorme desconhecimento dos dossiers.

Naquelas negociações nada foi acautelado:

Não se teve em conta que a necessidade de autorizações ambientais ou a morosidade das expropriações poderiam protelar a consignação das obras e assumiram-se, candidamente, cláusulas ou regimes indemnizatórios em que o Estado estaria sempre penalizado, porquanto o outro outorgante do contrato de PPP já sabia que o planeamento contratual nunca poderia ser cumprido: apenas o Estado desconhecia a sua própria vulnerabilidade. O Estado nem acautelou o cumprimento das obrigações prévias que cabem a qualquer Dono de Obra minimamente responsável, nem acautelou as cláusulas contratuais que o penalizariam por esse incumprimento.

Não se avaliaram os impactes anuais para o OGE das SCUT’s que foram sendo lançadas com entusiasmo mediático e empolgante; não houve um planeamento plurianual das verbas a cativar para pagar as SCUT’s, balanceando-as com as disponibilidades orçamentais; não houve uma avaliação sobre o impacte na competitividade da nossa economia e nas futuras políticas de rendimentos, pela punção orçamental desmedida ... nada. Guterres e Cravinho comportaram-se como Luís XV: depois de nós, o dilúvio.

Todavia a questão que se coloca actualmente é a de saber se não sairá mais dispendioso para o OGE introduzir portagens reais do que manter as actuais portagens virtuais. Analisemos as questões emergentes:

A introdução de praças de portagens significa um acréscimo dos custos de construção entre 15% a 20%. No caso da CREL a questão era pacífica, pois elas já existiam. No caso das SCUT’s actuais estamos perante um montante muito significativo. Para além dos investimentos nas praças de portagens haverá os respectivos custos de exploração em pessoal, conservação e manutenção, etc..

Mas, na minha opinião, o custo das praças das portagens não será o mais oneroso neste processo. A questão que pode revelar-se mais decisiva é a da alteração unilateral dos contratos por parte do Estado.

Em primeiro lugar, em cada SCUT, o concessionário foi escolhido por concurso público, “em mercado concorrencial”. A renegociação contratual já não é uma situação concorrencial, mas de monopólio, agravada pelo facto das alterações contratuais pretendidas se deverem a razões únicas e exclusivas de um dos outorgantes – o Estado – o que o coloca numa situação muito vulnerável perante o outro outorgante do contrato.

Em segundo lugar os valores calculados pelos concessionários e que serviram de base às suas propostas e aos contratos daí resultantes, fundamentaram-se em diversos estudos, nomeadamente estudos de tráfego. Ora estes estudos terão que ser completamente reformulados. Não haverá o mesmo tráfego com portagens virtuais ou com portagens reais. E o volume de tráfego com portagens reais dependerá quer do nível das tarifas a aplicar, quer de eventuais vias alternativas que entretanto forem construídas, ou pelo Estado, ou pelas autarquias locais.

Há por isso uma situação de risco muito elevado para o concessionário pelo facto de não ter agora qualquer domínio sobre as variáveis relacionadas com a procura com que será confrontado. Esses riscos são avaliados em termos estocásticos e traduzidos em custos adicionais que poderão ser vultuosos. Se as tarifas que forem calculadas se revelarem completamente incomportáveis para os potenciais utilizadores, o Estado teria que pagar uma parcela certamente muito pesada. Provavelmente mais que as actuais portagens virtuais.

Em terceiro lugar, a ideia peregrina de isentar os habitantes e entidades locais do pagamento de portagens é um factor adicional de encarecimento, pois implica mais serviços, mais pessoal, mais meios materiais, ou seja: mais investimentos e mais custos de exploração.

O meu “feeling” é que o montante que os concessionários das actuais SCUT’s do interior irão determinar para as portagens a pagar, no novo regime, seria de tal forma elevado que tornaria ruinosa para o Estado a mudança desse regime. Ora as já existentes concessões SCUT da Beira Interior, do Interior Norte e da Beira Litoral / Alta representam 70% do montante acima discriminado (421 m€ anuais). O meu parecer, em face dos poucos dados que disponho sobre aqueles casos particulares, mas baseada no conhecimento deste tipo de negócios, é que não há volta a dar.

Mesmo no caso da Via do Infante não me parece viável a modificação do actual regime, pois tem um tráfego muito sazonal. É duvidoso que os meses de Verão sustentem o negócio. Todavia a Via do Infante representa apenas 7% do montante em jogo.

Portanto apenas as SCUT’s da Costa da Prata e do Litoral Norte terão, eventualmente, viabilidade suficiente para mudarem de regime. Mas mesmo assim tenho algumas dúvidas, embora, como escrevi acima, se trate apenas de um “feeling”, pois não tenho dados precisos sobre estas matérias. Todavia, estamos apenas a falar em 23% do compromisso anual com as SCUT’s, ou bastante menos, porquanto a mudança do regime também acarretará custos não despiciendos para o Estado.

O que me parece fora de quaisquer dúvidas é que 70% a 77% (ou mesmo mais) dos montantes comprometidos nos próximos 25 anos, estão mesmo irremediavelmente comprometidos. É uma herança com que temos de viver, a menos que este governo tenha uma solução milagrosa que me esteja a escapar. Resta-nos a consolação de, sempre que mudar o governo, ver os novos governantes produzirem afirmações sobre como seria excelente liquidarmos as SCUT’s.

E o mais perverso entre os políticos é que eles podem tomar as decisões mais danosas e comprometerem o bem estar das gerações futuras com total displicência, sem que ninguém os consiga responsabilizar civilmente. Pior, às vezes nem sequer politicamente, pois aparecem posteriormente, com outro visual, recauchutados, pintados de novo, a escrever para os jornais e a aparecer em debates televisivos, sempre com críticas plenas de sabedoria e bom senso, com as vestes mais angelicais e com a total candura de quem não tem nada a ver com a situação que foi criada.

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setembro 17, 2004

A Incompetência do Estado é demais!

O que está a suceder com a colocação de professores é espantoso. Porém, não é caso virgem. Nos primórdios da informática, e ainda hoje para as menos conhecedoras, muitas empresas cometeram erros semelhantes. Mas aprenderam com os próprios erros e com os erros que viram as outras cometerem. Apenas o Estado não aprende nada.

Quando se pretende implementar uma aplicação informática destinada a gerir um conjunto de tarefas complexas e delicadas, mantém-se sempre o sistema anterior a funcionar em paralelo e só se abandona este depois da nova aplicação estar completamente testada e a funcionar sem erros (no delineamento dos algoritmos) e bugs (na execução dos programas). Isto é o que qualquer empresa faz quando instala um novo programa de contabilidade, gestão financeira, gestão de produção, etc.. Há mais de uma década, quando as administrações não tinham qualquer cultura informática, várias caíram na armadilha de instalarem aplicações de informática, vendidas com uma grande pirotecnia, e que depois se revelaram um desastre. Mas, agora, só empresas de vão de escada caiem em erros destes ... empresas de vão de escada e o Ministério da Educação.

O ministro anterior foi mal aconselhado, foi ingénuo e revelou completa ausência de cultura informática: um caso paradigmático da baixa qualificação dos portugueses. Ora a colocação dos professores é uma matéria muito delicada, que bule com a vida familiar de dezenas de milhares de docentes, com grande impacte na opinião pública e com incidências enormes no aproveitamento escolar dos alunos.

Acresce a isto uma série de situações típicas do nosso desconchavo e baixa qualificação:

Muitos professores enganaram-se a preencher os formulários. Depois apareceram a queixar-se na TV. O que é estranho é os alunos, que se candidatam ao ensino superior, terem igualmente que preencher formulários complexos, cujos enganos os põem fora dos ingressos no Superior, com a agravante de, no ano seguinte, terem de repetir as provas, pois as que fizeram perderam entretanto a validade, não aparecerem igualmente a queixar-se na TV, no horário nobre. Todos os anos mais de mil alunos são excluídos por mau preenchimento dos formulários. Será que os alunos têm a obrigação de serem mais competentes que os seus professores?

Paralelamente com as candidaturas ao serviço docente, muitos professores pedem destacamentos pelas mais variadas razões: colocação nos serviços centrais, colocações ao abrigo da lei dos cônjuges, etc., etc.. Estes destacamentos são normalmente despachados, se lhes for dado provimento, antes de terminar o ano lectivo. Este ano foram despachados entre Maio e Junho. Ora o que é hilariante em toda esta questão, é que todos os professores entretanto destacados foram igualmente colocados pelo processo geral, pelo famigerado “programa”.

Portanto há inúmeras escolas onde faltam dezenas de professores porque os que foram lá colocados pelo “programa” já tinham entretanto sido destacados para outros locais.

Vou citar alguns exemplos: Há uma escola básica e pré-escolar, no Bairro da Boavista, que precisa de uma dúzia de efectivos entre professores e educadoras de infância, onde só foi colocada uma (!) educadora de infância até à data. Enfim ... trata-se de um local que entusiasma pouco o pessoal docente. Todavia, diversas escolas “topo de gama” do centro de Lisboa (o filet-mignon para os professores) verificaram agora que 20 ou 30 professores que haviam sido colocados nelas só existiam no papel, pois haviam sido destacados para outras funções, etc., etc.

Isto é um sintoma que a própria aplicação informática que coloca os professores está incompleta, pois desconhece os destacamentos.

Isto é um sintoma da incompetência generalizada do nosso sistema de ensino.

Isto não invalida reconhecer que o "programa" em questão, quando funcionar devidamente, tem virtualidades e constitui uma melhoria muito significativa face ao sistema anterior

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setembro 16, 2004

Fogo sobre a Classe Média

A classe média é o sustentáculo da democracia. Onde a classe média é quantitativamente incipiente e financeiramente frágil, a democracia não consegue vingar ou, quando aparenta existir, coexiste com um enorme défice democrático e está permanentemente à beira do abismo. O poder económico foi durante séculos controlado por um reduzido grupo de empresários, banqueiros, burocratas, e antes de nobres, patrícios, etc. No último século descentralizou-se. A sociedade ocidental criou uma classe média numerosa e próspera cuja capacidade de consumo (dinamizadora da oferta) e de poupança (vital para o financiamento das empresas e do investimento público) tem que ser conquistada porque é a base desse poder económico. É essa classe média que é o sustentáculo da estabilidade social e da democracia.

Vem isto a propósito da comunicação ao país do ministro Bagão Félix. É certo que o ministro usou de um discurso didáctico, inteligível, com exemplos, perfeito na forma. Todavia, na substância, há que separar duas áreas em que as palavras do ministro merecem apreciação contrária: o diagnóstico e as medidas e estratégias correctivas.

No que respeita ao diagnóstico, Bagão Félix repetiu o que muitos economistas, alguns (infelizmente poucos) políticos têm dito e escrito. Neste blogue já escrevi tudo (e mais alguma coisa) o que o ministro diagnosticou. Apenas demagogos vendedores de ilusões fingem não acreditar e apenas alguns dos compradores dessas ilusões querem continuar a não acreditar. O país, a sociedade, o tecido produtivo não podem continuar a alimentar o Moloch estatal, esse sorvedouro da riqueza que o país penosamente produz. E essa situação é cada vez mais insustentável não só pela perversidade da injustiça que tal representa, mas também pela eventual “vingança” do mercado, porquanto com o incremento da livre circulação de pessoas e bens, as deslocalizações podem acelerar um processo em que o país fique reduzido à máquina estatal e a alguns parcos serviços, à míngua de empresas e trabalhadores para a sustentar.

No que respeita às medidas correctivas Bagão Félix deu algumas pistas. Algumas merecem a minha concordância: 1) o alegado fim da «obsessão orçamental», o que significa uma visão mais equilibrada de lidar com as variáveis financeiras e económicas e o abandono do recurso a receitas extraordinárias de forma indiscriminada para não infringir o PEC – como dizia PSL há dias, o Estado está a ficar sem anéis; 2) a regularização das dívidas permanentes do Estado aos seus fornecedores – um «Estado caloteiro» é incompatível com um Estado de Direito e com um eficiente funcionamento da economia e coloca a administração e os organismos públicos reféns dos credores, sem autoridade moral para exigir rigor no cumprimento dos orçamentos e prazos, como se verifica nas empreitadas de obras públicas e nos fornecimentos ao sistema da saúde.

Dou um crédito muito relativo a algo que ficou implícito nas afirmações do ministro e que muitos têm aplaudido: o redimensionamento do Estado. Em primeiro lugar Bagão Félix não foi muito assertivo nesta questão. Em segundo lugar ninguém, até hoje, teve coragem de mexer na função pública. Ou pior ... os que mexeram foi para a empolar em pessoal e em remunerações sem contrapartidas de melhorias de desempenho e nas prestações aos cidadãos. Ora a crise orçamental perpétua em que o país vive só se resolve mexendo profundamente na Administração Pública. Resolve a crise orçamental e, indirectamente, melhora a competitividade do tecido produtivo português. Desejaria que o aplauso desses muitos analistas se viesse a justificar. Permitam-me, todavia, que coloque muitas dúvidas.

O ministro, no seguimento das declarações de PSL, relacionou os aumentos salariais com aumentos da produtividade. Está obviamente a referir-se à função pública, pois o sector privado aumenta os salários num quadro de referência em que está implícita a competitividade de cada empresa. É certo que os aumentos percentuais da função pública constituem, muitas vezes, um ponto de referência, mas não mais que isso.

A questão da produtividade é muito complexa. A produtividade é uma medida macro-económica. Por exemplo, se a produtividade portuguesa tivesse aumentado por igual em todos os sectores, Portugal estaria falido há alguns anos, pois tinha deixado de exportar. O que se verifica é que os sectores exportadores têm aumentado a produtividade muito acima da média e são eles que têm aguentado o laxismo da função pública e a falta de inovação de muitos dos sectores virados “para dentro”. Neste entendimento, a primeira linha da batalha da produtividade tem que se travar na função pública e nos organismos e empresas dependentes do Estado. E, obviamente, terá também que ser incentivada em toda a economia e não apenas nos sectores actualmente exportadores. Aliás, um aumento da produtividade no sector público induz, ceteris paribus, um aumento de produtividade no sector privado: menos atrasos burocráticos, justiça mais rápida e ... menos impostos.

Mas onde o ministro foi mais claro foi na questão das receitas. É o mais fácil ... pois cortar na despesa tem sido, como se viu com Manuela Ferreira Leite, um completo fiasco. Vejamos primeiro o que é pertinente e consensual:

Estou de acordo em que a questão do regime fiscal da banca, nomeadamente nos «off shores», deverá ser reavaliada de forma a obter uma maior justiça fiscal, sem menoscabo da capacidade de atrair capitais que um «off shore» representa (ou de os afastar, se deixar de ser minimamente atractivo). Igualmente o agravamento do impostos sobre o tabaco é uma medida pacífica.

Deverá todavia ter-se em conta os efeitos perversos de medidas deste tipo: o aumento destes impostos induz um aumento do contrabando (ou de outras formas de evasão) e faz com que as receitas fiscais fiquem frequentemente estáveis. Isto não é novo: já há duzentos anos que J. B. Say descobriu este fenómeno, embora muitos políticos continuem a ignorá-lo. Há uma regra que se verifica sempre e em todas as circunstâncias: quanto maior é o peso da fiscalidade e a sua injustiça, mais incentivos há à evasão fiscal. Isto é uma característica do comportamento de qualquer agente económico: ponderar entre o risco da evasão e o pagamento integral das obrigações fiscais. Por isso também se verifica que, no caso de desagravamento de impostos, a queda das receitas fiscais é muito menor da que se poderia deduzir pelos valores anteriores: os agentes económicos preferem correr menos riscos, diminuindo os incentivos à evasão fiscal.

O que discordo em absoluto é de medidas que são selectivas e que atingem apenas a classe média, nomeadamente a classe média baixa, como o que foi designado pelo princípio do utilizador-pagador no Serviço Nacional de Saúde, uma medida que, a ser tomada, enferma de vários vícios:

1. Parece-me, salvo melhor opinião, tratar-se de uma medida inconstitucional, visto introduzir desigualdades no acesso dos cidadãos a um serviço público. Se os serviços de saúde tiverem preços diferentes de acordo com os rendimentos do paciente então passa a ser legítimo que todos os serviços públicos funcionem segundo a mesma lógica discriminativa. Nas escolas públicas, nas estradas públicas, nos transportes públicos, nos museus, etc., os utentes pagarão preços diferenciados consoante o seu rendimento.

2. Afecta fundamentalmente a classe média nos seus segmentos menos abastados, ou seja, aqueles que não conseguem provar que são pobres. Os ricos e a classe média alta não frequentam o Serviço Nacional de Saúde, excepto, e nem todos, no caso dos tratamentos (mas não das operações) do foro oncológico.

3. Os sobrecustos pagos pelos não-pobres configuram uma espécie de imposto que irá recair sobre uma parcela importante da população portuguesa, mas não sobre a população mais abastada: os cidadãos da classe média pagarão simultaneamente dois impostos: o do IRS e o do sobrepreço dos serviços públicos. Às taxas progressivas de IRS haverá que somar os preços diferenciados dos serviços públicos.

4. Como as declarações individuais de rendimento são pouco fiáveis, excepto no caso dos trabalhadores por conta de outrem, serão estes os mais prejudicados por essa eventual medida.

5. O controlo desta medida, que terá de ser periódico, pois as pessoas não usufruem sempre dos mesmos rendimentos, vai exigir mais pessoal, mais repartições, mais direcções, mais burocracia, mais custos.

Espero que prevaleça algum bom senso e que se deixe cair uma medida, aparentemente popular, mas que é um completo disparate!

Já no que respeita aos benefícios fiscais em sede de IRS a situação é diferente. As sucessivas alterações que têm ocorrido nos PPR e PPR/E tornaram-nos menos atractivos e a fluidez do mercado bolsista fez com que os benefícios fiscais dos PPA fossem anualmente consumidos pela queda bolsista. A questão aqui é a da diminuição das receitas que a banca e os seguros irão ter e saber qual a parcela do aumento das cobranças do IRS que será consumida pela diminuição do IRC daqueles sectores. Por outro lado o incentivo à poupança é benéfico para a economia. A poupança das famílias é injectada no mercado de capitais e melhora o desempenho económico. Ora aqueles benefícios eram um importante incentivo ao aumento da poupança das famílias.

Em qualquer dos casos, e embora estes benefícios tenham diminuído de interesse nos últimos anos, a sua extinção também atinge a classe média, nos seus segmentos mais abastados (pelo menos 30% dos contribuintes).

Estas medidas vão somar-se a outras que afectarão sobretudo a classe média. Tomemos o caso da nova Lei do Arrendamento Urbano a discutir proximamente e que tem vindo a lume aos bochechos, frequentemente desmentidos. O que parece transparecer das notícias, é que ela terá disposições que afectarão sobretudo a classe média.

No que respeita aos inquilinos, será a classe média a única que será afectada pelos aumentos das rendas habitacionais. Os mais pobres serão subsidiados ou não serão aumentados e os locatários comerciais terão “pena suspensa”. Os mais ricos e a classe média alta têm casa(s) própria(s).

No que respeita aos senhorios, serão os proprietários de casas degradadas, sem meios financeiros suficientes para vultuosas obras de reabilitação (classe média, pois claro!) que ficarão confrontados com inquilinos insolventes, que não serão aumentados ou terão aumentos insuficientes, e com o “comércio tradicional”, que paga rendas irrisórias, sendo portanto subsidiado há décadas por esses senhorios, o que o levou à falta de incentivos pela inovação, à estagnação e a tornar os centros históricos sem capacidade de atracção e a perderem terreno face a novas centralidades. E que tudo indica o vai continuar a ser. O que há de perverso na protecção ao “comércio tradicional” é que ele “precisa de ser protegido” porque estagnou mercê de ter sido “protegido”, anos a fio, à custa dos senhorios. Foi anquilosado pela protecção que teve ... e por ter ficado anquilosado, continua a precisar de protecção.

Portanto as distorções que irão constar da nova Lei do Arrendamento Urbano (curiosamente estabelecida para acabar com as graves distorções actuais) irão afectar primordialmente a classe média (inquilinos e senhorios).

A classe média é, convém relembrar, o sustentáculo de uma democracia sólida. É a classe média, convém lembrar à actual maioria, quem decide as eleições ...

Publicado por Joana às 11:35 PM | Comentários (18) | TrackBack

setembro 15, 2004

A Comunicação Social Enviesada

O relatório de inquérito às causas do acidente no terminal petrolífero de Leixões é o paradigma da absoluta incompetência da comunicação social portuguesa e da maioria dos políticos que têm proferido declarações sobre o assunto.

Analisemos as diferentes vertentes da questão:

1 – A questão das competências ministeriais

Independentemente de saber ou não se o ministro Álvaro Barreto teria ficado «desconfortável» com o relatório, ou com o “timing” da sua apresentação, o facto de Pedro Santana Lopes ter, segundo escrevem os jornais, entregue «ao ministro de Estado e das Actividades Económicas a gestão do dossier do inquérito ao incêndio nas instalações da GALP em Leça da Palmeira», corresponde a um procedimento normal.

Foi da competência do Ministério do Ambiente coordenar o inquérito a uma ocorrência que se saldou em graves prejuízos ambientais. Em face das conclusões do inquérito, cabe à empresa rever os seus procedimentos, se os seus manuais de procedimentos não estão adequados, ou rever a forma como o seu pessoal cumpre os procedimentos, no caso de estes serem os adequados. Como a GALP é uma empresa com capitais do Estado e é tutelada pelo ministério das Actividades Económicas, cabe ao detentor da pasta da tutela zelar para que as conclusões e recomendações do inquérito tenham o devido seguimento.

Portanto, não houve qualquer retirada de competências ao Ministério do Ambiente para as entregar ao ministro de Estado e das Actividades Económicas. Houve apenas a tramitação normal entre esferas de competências diferentes.

Isto não invalida que seja um facto que Álvaro Barreto tenha ficado desagradado quanto ao que designou por «oportunidade de divulgação do relatório» que considerou precipitada: "A forma de divulgação do relatório deveria ter sido discutida entre os dois", frisou adiantando que se o ministro do Ambiente "tivesse esperado mais dois ou três dias" não daria lugar a "sensacionalismos" e "especulações" na comunicação social.

Mas o desagrado de Álvaro Barreto (e eventualmente de PSL) é uma coisa; ser o ministro das Actividades Económicas e do Trabalho a coordenar a implementação das medidas correctivas é outra. Nunca poderia ser o ministro do Ambiente, pois este não tem competência para tal, nem no que respeita à GALP, nem no que respeita a qualquer outra empresa (a menos que seja uma empresa pública da área ambiental). Mas terá competência para agir em caso de eventuais futuras infracções ambientais cometidas pela GALP.

Isto parece-me claro e transparente. Não o foi para a comunicação social e políticos que, na sua maioria, só têm debitado disparates sobre o assunto. E o mais curioso é que a divergência dos ministros sobre o “timing” da apresentação do relatório poderia constituir matéria com bastante substância para a comunicação social e políticos. Será que Álvaro Barreto teria preferido que o relatório fosse “limado” em algumas das suas arestas mais “aceradas”? Mas se fosse essa a sua pretensão, deveria ter-se mantido ao corrente dos trabalhos da comissão de inquérito que, embora presidida pelo Instituto do Ambiente, teve elementos indicados por mais quatro ministérios, entre eles o representante do Ministério dos Assuntos Económicos, o director-geral de Geologia e Energia, Caldeira Antunes. Seria legítima aquela pretensão de Álvaro Barreto? Funcionarão adequadamente os canais de comunicação entre o ministro e os seus directores gerais?

Mas não. A comunicação social, e na sua peugada, os políticos, preferiram especular sobre o alegado “castigo” da retirada do dossier GALP a Nobre Guedes que não foi mais que um procedimento normal. E o que era relevante, o “desconforto” de Barreto, foi passado para segundo plano.

2 – A questão da incompetência da administração da GALP

As administrações das empresas certificadas pelas normas da qualidade são responsáveis pela coordenação da elaboração dos manuais de qualidade e procedimentos operacionais. A garantia do seu empenho em assegurar o cumprimento daquelas normas é a primeira cláusula desses manuais.

A responsabilidade do cumprimento dos procedimentos cabe aos diferentes graus hierárquicos de acordo com o que está definido nos manuais de qualidade. Haverá responsabilidade da administração se esta souber que os procedimentos não estão a ser cumpridos e não agir, ou se ela própria não cumprir os procedimentos que são da sua esfera de competências.

No caso dos procedimentos não serem os adequados, a questão é mais difusa: se não são adequados, como foi possível a entidade certificadora não ter verificado isso durante as auditorias de qualidade à GALP, normalmente anuais, que é suposto fazer? Quando são detectadas “não conformidades”, a empresa certificada tem um prazo para implementar as medidas correctivas e a entidade certificadora validará essas correcções. Como é possível «a gravidade dos erros detectados e atribuídos à GALP»? Como foi possível, numa empresa com as responsabilidades e a dimensão da GALP, tais erros ocorrerem?

Frequentemente as empresas portuguesas conseguem obter a certificação de qualidade, mas os procedimentos de qualidade são considerados pela maioria dos seus quadros mais como um empecilho do que como um instrumento útil. Vêem a qualidade como um conjunto de papéis que têm que produzir para “auditor ver” e não como um instrumento da sua própria actuação. Nas vésperas das auditorias há uma corrida desesperada aos dossiers para ver se está tudo conforme e em ordem. Aquilo que não for possível corrigir, tenta-se varrer para “debaixo do tapete”, para tentar que os auditores não notem, o que na maioria dos casos não conseguem. Na maioria dos casos, nomeadamente nas grandes empresas, com vários estabelecimentos, as administrações desconhecem estas “habilidades” das chefias intermédias.

Por isso falar-se imediatamente da incompetência de António Mexia parece-me, para além de muito prematuro, absolutamente demagógico. Provavelmente alguns dos que agora clamam pela incompetência de Mexia, poderiam ter colaborado em eventuais “varredelas”, se as houve.

Não pretendo com isto passar um atestado de bom comportamento à administração da GALP. Certamente terá responsabilidades. No mínimo as que resultam de ela ter obrigação de saber o que se passa na própria empresa. Mas a individualização das responsabilidades caberá a auditorias ao funcionamento interno que se espera sejam rigorosas e credíveis.

Estas questões devem ser tratadas com seriedade e rigor, e não com “bocas” jornalísticas, que só servem para obscurecer o que há de substantivo nos factos, criar ruído e facilitar que tudo continue na mesma. A confusão apenas serve aos pescadores de águas turvas.

Publicado por Joana às 07:18 PM | Comentários (16) | TrackBack

setembro 09, 2004

Kerry arrasa Bush

As sondagens realizadas em 36 países dão uma vitória esmagadora a Kerry. Na Europa o desequilíbrio é mortífero: 74 por cento na Alemanha (onde apenas dez por cento votariam em Bush); 64 por cento em França, 63 por cento na Holanda, 58 por cento em Itália, 45 por cento em Espanha. Em todos estes países Bush recolheria apenas cerca de 10%. Mesmo no Reino Unido, fiel aliado da política Bush, este consegue unicamente 16 por cento, enquanto 48 por cento dos inquiridos prefere Kerry.

No Canadá, o desastre é enorme. Na Rússia, dois terços das intenções de voto vão para Kerry. Nos países muçulmanos, Bush é igualmente cilindrado.

No mundo ocidental somente a Polónia, onde Bush leva vantagem ao seu rival democrata (31 por cento para o primeiro, 26 por cento para o segundo), e os EUA, onde Bush têm uma vantagem algo mais significativa (11%), dão a maioria a Bush. Fora do mundo ocidental, apenas a Nigéria e as Filipinas dão vantagem a Bush.

Infelizmente para Kerry, os votos do resto do mundo não irão contar em Novembro. É injusto, pois a eleição do presidente americano interessa a todo o mundo. As decisões dos presidentes americanos afectam todo o globo. Não faz sentido que não sejamos chamados às urnas para escolher o presidente dos EUA. É uma das falhas mais dramáticas da democracia americana. Não percebo como esta lacuna antidemocrática passou despercebida a Tocqueville – provavelmente vivia ainda na ilusão que a França tinha peso nas decisões da política mundial.

Por isso temos todos que nos empenhar para, em próximas eleições, sermos chamados a participar na ida às urnas para a escolha do presidente americano. A actual discriminação é injusta e tem que ser eliminada.

Nos EUA, Kerry está atrás de Bush, porque os americanos receiam a sua política titubeante, que num dado momento apoia uma medida e, tempos depois, a sua contrária. Mas agora Kerry foi definitivo: prometeu, sem ambiguidades, retirar as tropas americanas no Iraque. E, para mostrar a sua determinação e comprometimento com o eleitorado, até fixou um prazo: 4 anos.

Podemos estar tranquilos: Se Kerry ganhar, os americanos vão retirar em 4 anos. Promessa sólida e firme.

Esta promessa faz-me lembrar a história da adolescente que deu guarida a um colega de estudo, com a condição de este dormir no sofá. Ela foi definitiva sobre isso e prometeu, com absoluta firmeza, que ficaria alerta contra eventuais segundas intenções do colega.

Durante a noite, o colega, quebrando a promessa, insinuou-se, subtilmente, debaixo dos lençóis. Mas a nossa adolescente estava alerta e prometeu a si própria continuar alerta. Minutos depois as mãos dele começaram a percorrer, lentamente, lascivamente, o corpo da vigilante adolescente. Todavia esta não se intimidou e permaneceu alerta como havia prometido. Assim, quando ele, acabados os preliminares, passou a vias de facto, ela ameaçou-o, inflexível, com dureza, intimando-o:

- Tens meia hora para tirar isso daí!

Publicado por Joana às 10:11 PM | Comentários (24) | TrackBack

setembro 08, 2004

A Descoberta do Caminho Marítimo

Para Portugal

Portugal pode ter-se tornado o Eldorado ...
.......................................
Daqueles Activistas que foram dilatando
A Fé na Participação, e as costas viciosas
Da Lusitânia e da Figueira andaram devastando
E que por Desígnios e Causas valerosas
Se vão das leis do Estado libertando
Injuriando, vandalizarão por toda a parte
Se a tanto os ajudarem a Comunicação e arte.

O Barco do Aborto é a primeira chegada da frota imensa que já se perfila no horizonte e que promete salvar os íncolas da Lusitânia das trevas em que se encontram imersos. A civilização que, no século XIX, nos chegava penosamente pelo vapor do Havre, chegar-nos-á radicalmente, no século XXI, pelos vapores de Amesterdão, presididos por Rebeccas providas de autoridade proconsular, colocadas, mercê do seu avanço civilizacional, muita acima das leis desdenháveis e despiciendas dos aborígenes.

Os que mais proximamente se avizinham são os barcos dos casamentos intrasexuais, promovidos pelas organizações Gays on Waves e Lesbian on Waves. Os enlaces, com os necessários registos civis e marítimos, serão celebrados fora das águas territoriais, incluindo os copos de água. Para os convidados cujos estômagos delicados não aguentarem o baloiço marítimo, haverá um sistema de vai-vem com lanchas rápidas que permitirão o alívio em terra firme e o regresso para repor conteúdos.

Mais longe, no horizonte, recorta-se o barco da «Irresponsabilidade Social», que virá ajudar todos os delinquentes activos ou candidatos a delinquentes. A todos os que forem a bordo reclamar apoio, será concedido um certificado de inimputabilidade, repleto de alegações provando a total responsabilidade da sociedade como causa única e determinante da sua delinquência. O barco traz uma inventariação exaustiva de todos os traumas sociais infligidos pela sociedade cruel onde nos obrigam a viver, e a relação causal, necessária e obrigatória, entre cada acto delinquente e o trauma que o desencadeou, agravado pela violência repressiva das forças de segurança.

Na esteira deste, sulca entretanto as águas o barco da «Vitimização Rácica», mais especializado, destinado a proteger os direitos absolutamente prevalecentes de outras etnias e raças que se dediquem à delinquência. Quem demandar esse barco, e se enquadrar naquelas tipologias, receberá um certificado de permanente vítima inocente do racismo, da xenofobia e da violência policial.

Mais longe, na cola do anterior, virá o barco da «Desorçamentação Equilibrada». Prevê-se uma enorme adesão, pois estará dotado com o equipamento mais moderno e sofisticado de fabricação de moeda, papel e electrónica. Autarcas, funcionários públicos e corporações sindicais são o público alvo. Todos receberão de acordo com as suas necessidades e, de forma alguma, pelo injusto e obsoleto sistema de “segundo as suas capacidades”. Esta oferta marítima de moeda não contará para o défice, porquanto é emitida em águas internacionais. Em terra estão previstos seminários sobre a influência marítima na curva LM e os novos equilíbrios macroeconómicos emergentes.

Finalmente, para o indispensável remate, perfilar-se-á na barra do Tejo o barco de Nosferatu, sulcando as águas com a mesma sombria lentidão com que abordou o porto de Bremen. Nosferatu erecto no convés, sobraça o caixão, perscrutando a costa na ânsia incontida de se dessedentar na seiva já anémica dos aborígenes que sobraram das incursões anteriores.

Publicado por Joana às 06:46 PM | Comentários (29) | TrackBack

setembro 04, 2004

Um Filho

Uma mãe olha desolada para o corpo sem vida do seu filho, uma das centenas de vítimas inocentes do massacre da escola de Beslan, na Ossétia. A sua mão pousa, docemente, na testa gelada da criança morta injustamente no alvor de uma vida que se supõe sempre promissora e repleta de esperanças. Os seus olhos estão secos, já não tem mais lágrimas para chorar. Pelo seu olhar vazio perpassam, provavelmente, as imagens dos dias alegres e descuidados em que o seu filho, agora um corpo gelado, ensanguentado, sem vida, se agitava, travesso, estuante de vida, uma vida que ela lhe dera com tanto amor e devoção e que agora lhe fora roubada, de uma forma incompreensível, brutal, criminosa.

Mas na sua mente ainda não houve tempo para se formar um pensamento de revolta. A morte de um filho deixa sempre, como primeiro sentimento, instintivo, de uma fêmea pela sua cria, a convicção que talvez não a tivesse protegido como deveria, que naquele instante supremo, definitivo, havia falhado irremediavelmente. Lembra-se daquele dia fatal, que seria o seu primeiro e último dia de escola, e do que poderia ter acontecido em alternativa, as razões que poderiam ter sido invocadas para servir de escusa à sua ida. Tratava-se apenas do dia da apresentação, que necessidade havia de ter ido? Nenhuma. Tanta coisa poderia ter sido feita e ela não fizera nenhuma. Teria protegido o seu filho como era seu dever? Provavelmente não e ele era um ser tão pequeno ainda, tão inocente, tão frágil, tão dependente do apoio maternal.

Há uma canção dos Delfins cuja letra afirma «quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém». Quem escreveu esta letra nunca cuidou de um filho, nunca lhe deu o ser, nunca o transportou no seu ventre, nunca o viu nascer, nunca lhe deu o amor, a ternura e o carinho que esses seres tão dependentes carecem em absoluto para sobreviverem. Quem escreveu essa letra não sabe o que é uma criança. Quando alguém nasce, se não for de ninguém, não consegue sobreviver muitas horas. Um bebé é completamente dependente, nem é selvagem nem é livre: precisa desesperadamente de alguém que cuide dele, que o acarinhe e o proteja. Uma criança só se torna pessoa pela sua inserção familiar, primeiro, e familiar e social, depois. Até ao ano e meio nem sequer tem a noção do seu eu. Ele, a mãe, o pai e tudo o que o rodeia, são um todo sincrético.

Esta relação de dependência é um elo que une necessariamente a mãe e um filho e que só será resolvido, e sê-lo-á necessariamente, pouco a pouco. Enquanto ele dura, a criança sabe que pode contar com a família para a proteger, alimentar, vestir, conviver. Sabe, e precisa de estar perfeitamente segura e tranquila sobre isso, para bem da sua saúde psíquica e da sua formação equilibrada. E os pais, e a mãe em primeiro lugar, sabem que têm aqueles deveres para com o seu filho, e que se alguma coisa acontecer, eles se sentirão para sempre responsáveis, pois falharam.

Aquela mãe terá tempo de se revoltar contra as circunstâncias que lhe roubaram o seu filho querido. Terá tempo para se revoltar contra os terroristas, monstros horrendos e destituídos de qualquer sentimento humanitário, de uma moral repelente e tenebrosa. Terá tempo para se revoltar contra a incompetência e a frieza das forças de segurança russas. Terá tempo de se revoltar e pedir responsabilidades a todos os protagonistas deste drama.

Agora apenas se interroga: Porquê tudo isto? Que poderia ter feito para ter evitado este desenlace? Onde teria eu falhado? Como é possível o meu filho estar morto?

Publicado por Joana às 06:39 PM | Comentários (18) | TrackBack

setembro 03, 2004

Paradoxos dos Abortonautas

Paradoxo do Modelo Espanhol

Para mostrar o “atraso” legislativo português face à Europa invoca-se permanentemente a necessidade das mulheres portuguesas se terem de deslocar a Badajoz para aí abortarem com apoio clínico. O populismo tablóide de esquerda agita permanentemente Badajoz como a terra prometida para a libertação do “nosso corpo”. Ora o que é paradoxal é que ninguém se questiona sobre o facto desses abortos se fazerem em Espanha e não em Portugal apesar da legislação actual sobre a IVG ser, excepto em alguns pormenores de prazos, idêntica à espanhola.

Quem ouvir os furiosos do “direito ao nosso corpo” poderá pensar que há diferenças legais entre Elvas e Badajoz. A diferença reside apenas na interpretação abrangente que a classe médica espanhola dá à “saúde materna” como justificação para realizar o aborto. Muitos médicos portugueses consideram essa argumentação desonesta. Aliás muitos médicos portugueses recusam-se a realizar abortos mesmo quando não existem quaisquer dúvidas sobre a sua legalidade face à lei actual. A diferença entre ser ou não ser crime reside apenas na justificação médica apresentada para a realização do acto e não na lei. Não é a nossa lei que é obsoleta, como muitos clamam. A sua interpretação é que faz a diferença.

Não vou escrever que não percebo porque é que os alegados defensores da “mulher” não reclamam a integral aplicação da actual lei, nem porque será que não apoiam a criação de centros médicos para, à semelhança do que sucede em Espanha, realizarem idênticas intervenções clínicas. Não escrevo que não percebo, porque percebo perfeitamente: O populismo tablóide de esquerda apenas tem interesse pela agitação irracional e pelos chavões do seu Parque Jurássico Ideológico. Nem o MST, o sex-symbol da Lapa, escapa a esta influência obscurantista.

Também não vou escrever que não percebo porque nem os meios de comunicação, nem os políticos abortonautas esclarecem esta situação para fundamentarem a exigência de mudanças dentro do actual quadro legal. Percebo perfeitamente: Quer o populismo tablóide de esquerda, quer o populismo tablóide que se dirige às domésticas entediadas, baseiam-se na ignorância e desinformação dos seus receptores. Se esses receptores estivessem esclarecidos ... lá se iam as audiências.

Como pano de fundo de tudo isto prefigura-se a velha pecha portuguesa: quando as coisas não correm de feição há uma panaceia universal – mudar a lei. Ninguém pensa em aplicar devidamente a lei vigente.

Paradoxo dos abortos feitos sem condições sanitárias

O populismo tablóide de esquerda indigna-se com as condições vexatórias e ausência de apoio médico, em meios humanos e materiais, em que decorrem os abortos clandestinos e o risco de vida que tal comporta. É um facto iniludível. Todavia, como alternativa, propõem abortos realizados num pequeno barco, no alto mar, na costa ocidental portuguesa (onde uma pessoa normalmente enjoa, mesmo quando está apenas a desfrutar o prazer turístico), num contentor sem equipamentos médicos de apoio, nem condições de segurança, o que levou um tribunal holandês a interditar semelhantes intervenções a uma distância superior a 20 milhas de um hospital que possua tais meios.

Será que estão à espera que alguma mulher alinhe em semelhante procedimento, a menos que esteja integrada em alguma operação mediática?

De acordo com a lei portuguesa o barco é uma clínica não autorizada e não vistoriada. À luz dos regulamentos da Ordem dos Médicos, qualquer clínica que abra em território nacional tem o dever de o comunicar a uma direcção regional da OM que enviará 2 médicos para fazer uma vistoria. Por sua vez os médicos holandeses que queiram exercer temporariamente actos em Portugal devem inscrever-se previamente na OM, que foi o que sucedeu com os médicos das selecções estrangeiras no Euro 2004. É evidente que, enquanto estiver fora das águas portuguesas, nem o barco nem os médicos estão sujeitos àquelas obrigações, mas uma questão interessante seria saber o que aconteceria se uma das mulheres que eventualmente abortasse em águas internacionais se queixasse à OM em consequência de actos clínicos praticados a bordo.

Paradoxo do Mercado ter mais sensatez que os políticos abortonautas

A JS anda afadigada a ver se afreta um barco para transportar a imensa mole de grávidas que se acotovelam no porto da Figueira da Foz ansiando por emanciparem “o seu corpo”.

Isto sucedeu porque o proprietário do barco “Capitão Capela” se recusou a transportar mulheres grávidas invocando razões de segurança: o «transbordo de pessoas no alto mar é difícil e as mulheres grávidas são casos de risco», afirmou.

Este proprietário tem arrecadado alguns milhares de euros com os políticos e jornalistas abortonautas que demandam o “velo de ouro” do extermínio fetal. Provavelmente nunca fez tanto negócio. A esquerda radical sempre diabolizou a ominosa sede do lucro dos gananciosos capitalistas e os efeitos deletérios do mercado. Por este raciocínio o proprietário do “Capitão Capela” deveria estar agora a promover uma operação publicitária de âmbito nacional com pacotes convidativos de viagens destinados a grávidas. E o papel destinado aos dirigentes da esquerda, tendo em conta os valores éticos que, na sua esclarecida opinião, os diferencia da direita e dos gananciosos, seria o de se empenharem na segurança das pessoas e travarem os excessos e perversões do mercado de transporte de pessoas no alto mar.

Afinal quem está empenhado na satânica sede de lucro mediático são os políticos. Afinal, a sensatez está no funcionamento do mercado e a tontice e ganância está entre os políticos.

Paradoxo dos Abortonautas à deriva

Não me vou pronunciar sobre a bondade da decisão de proibir a entrada do “Barco do Aborto” nas águas territoriais portugueses, nem sobre os fundamentos jurídicos dessa decisão. Do ponto de vista legal, e exceptuando alguns jornalistas e fazedores de opinião, ninguém contestou a fundamentação da decisão do governo português. O próprio governo holandês, apesar de pressionado pelos seus radicais domésticos, reconheceu o direito de Portugal em tomar aquela decisão.

A questão é saber se estrategicamente teria sido a decisão mais acertada. A costa ocidental portuguesa, nomeadamente a zona a norte de Peniche, é caracterizada pela forte ondulação e pelas tempestades frequentes. É a zona mais agreste de toda a costa portuguesa. Observando as dimensões do navio, duvido que, mais dia menos dia, ele não tenha que ser socorrido por razões humanitárias (1) e conduzido a um porto de abrigo. Parece-me que isto será inevitável se a estada do navio se prolongar.

Se o barco for obrigado a ancorar por razões humanitárias, que irá fazer então o governo? Presume-se que tenha um plano de emergência para tal situação. Quando se toma uma decisão devem-se analisar todas as variantes que podem ocorrer na sequência dessa decisão. E o rigor da identificação e avaliação das variantes deve ser proporcional à sensibilidade da matéria. Para tontos já bastam os radicais de esquerda.


(1) Fala-se muito da desproporção de meios, com uma corveta a vigiar o navio. Não sei se também foi essa a intenção, mas Portugal tem deveres para com as embarcações que cruzam as suas águas ou a sua ZEE. Em face da proibição, é preferível estar uma corveta por perto, do que não haver quaisquer meios nas imediações. Todavia, em caso de forte intempérie a corveta pode ser útil no resgate de algum acidentado, mas pode não ser suficiente e o barco do aborto necessitar de se abrigar nalgum ancoradouro.

Publicado por Joana às 08:01 PM | Comentários (13) | TrackBack

setembro 02, 2004

O Paradigma Totalitário

O Barco do Aborto e a Mentira

Uma das técnicas da esquerda radical e de uma ala não despicienda do PS é a da manipulação da verdade, mentindo objectivamente, mas mascarando a nudez forte da mentira sob o manto diáfano do trauliteirismo verbal e de um pretenso apego a valores.

Há 2 semanas, o “crítico (!?)” cinematográfico MJT dava 5 estrelas (se bem me recordo) ao Fahrenheit 9/11 e escrevia «este manisfesto anti-Bush é demagógico. Pois é. Não hesita em manipular materiais e imagens. Quanto a isso não há dúvidas. No entanto fá-lo de maneira exposta, clara, “honesta”(!!??), sem falsos subterfúgios ... Quando o mundo é comandado por um louco furioso porque não expô-lo e ridicularizá-lo?» Ora a tese de que a mentira e a manipulação são úteis e necessárias para combater os nossos adversários foi a base da propaganda nazi, o que coloca Fahrenheit 9/11 muito mais próximo do “Judeu Süss” do que do “Triunfo da Vontade” da Leni e o “nosso crítico”, embora julgando-se provavelmente de esquerda, como um obscuro epígono de Goebbels. A sua convicção («Bush é um louco furioso») é instituída como uma verdade universal, um postulado que não necessita ser demonstrado, e a partir daí desenvolve-se uma teoria em que tudo é permitido, e mesmo necessário, para exterminar o seu adversário.

A viagem do navio da Women on Waves em demanda de Portugal veio mostrar que o paradigma totalitário da utilização da mentira como arma política e social é a norma na esquerda (esquerda definida com o âmbito acima referido) e que se o reconhecimento público do comportamento totalitário possa ser, no caso citado acima, fruto da ingenuidade de um crítico, ele existe e está generalizado. Vou centrar-me nesta questão e deixar para uma ocasião mais oportuna (quando houver ambiente para um debate sereno) a questão da descriminalização do aborto. Não é possível o esclarecimento público e manter um debate sério, quando a generalidade dos políticos de esquerda assume a despenalização do aborto como uma questão ideológica ou política. Não é possível contribuir para a solução do problema do aborto, quando a essência do debate se faz à custa de extremismos e de argumentos demagógicos. Não é possível levar a sério uma esquerda que arvora esta bandeira para atacar agora a actual maioria, quando no passado dispôs de várias oportunidades para mudar a legislação e não o fez.

Analisemos o paradigma totalitário da mentira com alguns exemplos actuais:

A lei sobre a IVG é imposta por uma minoria fanática

A actual lei sobre a IVG é imposta por uma minoria fanática ou, como escreveu Fernando Rosas, uma minoria impõe «totalitariamente a toda a comunidade a sua particular visão filosófica sobre a vida, transformando-a em lei imperativa da IVG».

Mentira: A actual lei foi referendada pelos eleitores portugueses em 1998. Pior, quando foi referendada a questão da interrupção voluntária da gravidez a lei que se propunha referendar já tinha obtido a maioria de votos na generalidade na Assembleia da República. Foi o PS que, em face da questão não ser pacífica internamente, levou o assunto a referendo. Pode acusar-se o PS de cobardia por não ter legislado, apoiado na maioria da AR. Todavia, depois de se ter realizado o referendo, já não havia condições políticas para a aprovar na AR, embora o referendo não fosse vinculativo dado o elevado número de abstenções. A própria JS na altura o reconheceu e retirou a proposta de lei, contra a vontade do PC e BE que exigiam que essa lei fosse aprovada na AR, apesar dos resultados do referendo.

Portanto a actual lei resultou da vontade do país e o referendo e a respectiva campanha mostraram que era uma questão que atravessava transversalmente todos os partidos (se não os seus dirigentes, pelo menos os seus eleitores). O eleitorado português não é uma minoria fanática e a sua opinião mereceria bastante mais respeito.

Quando Rosas não se lembra (ou finge não se lembrar) de algo que ocorreu há meia dúzia de anos, podemos pôr em dúvida a sua competência como historiador (se desconhece um facto tão relevante e recente) ou a sua probidade (se finge que é um facto que não existiu). Mas a questão não se resume ao Rosas. Louçã e outros dirigentes do BE, do PCP e da ala esquerdista do PS também evidenciam a mesma ausência selectiva de memória.

A Holanda faz pressão junto do governo português

Mentira: Aart-Jan de Geus, ministro dos assuntos sociais e do emprego da Holanda, já declarou ao Parlamento Europeu que “não pretende levantar a questão junto do governo português”.

O ministro dos negócios estrangeiros Ben Bot igualmente informou que não vai pedir explicações oficiais a Portugal, devendo manter apenas uma conversa informal com um representante do governo português. Aliás, a France-Press noticiou que Ben Bot (o MNE da Holanda) afirmou (ou escreveu ao parlamento holandês) que «Portugal tem o direito de interditar a entrada do barco. Portugal pode entender, legitimamente, que a vinda do barco não é inocente e interditá-lo de entrar nos seus portos e nas suas águas territoriais».

A única acção do MNE holandês foi ter transmitido ao governo português o “desejo” do parlamento holandês de que o barco pudesse atracar.

Aliás este assunto é caricato, porquanto os partidos que mais apostam agora na “interferência” estrangeira foram sempre os que mais protestaram contra a “sujeição” de Portugal a alegados interesses estrangeiros. Os partidos que mais têm “desconfiado” da Europa são agora os que mais empolgados ficam com o apoio da Holanda e mais referem os “valores europeus”. Não partilho dessa concepção “selectiva” da soberania e acho-a hipócrita.

Igreja concorda com a entrada do Barco do Aborto em águas nacionais

Mentira: Em primeiro lugar, D. Januário Torgal é apenas Bispo das Forças Armadas e não a Igreja. Em segundo lugar o que o Bispo Januário Torgal declarou foi que «se o barco pretender fazer apenas uma simples campanha, ninguém pode impedir a liberdade de expressão ... contudo se o barco da WoW pretende, através desta ou de outra modalidade, infringir a lei, é perfeitamente legítima a acção das autoridades portuguesas».

Aliás, sobre esta questão há várias opiniões. Pacheco Pereira, entre outros, acha que «enquanto não quebrar a lei a sua acção é do domínio da pura propaganda e agitação e isso as leis da república protegem como liberdade de expressão». Outros entendem que as intenções da WoW, quer pelas declarações iniciais, quer pelas informações no seu site, configuravam uma intenção de infringir a lei. Ou seja, uns entendem que se deveria esperar que infringissem a lei, outros que bastava conhecer a intenção, para prevenir a infracção. Todavia, D. Januário Torgal, admitindo que houvesse essa intenção, consideraria «perfeitamente legítima a acção das autoridades portuguesas»

Sampaio exige explicações

Mentira: Sampaio reconheceu apenas «haver um problema para os juristas discutirem que dá pano para mangas», mas adiantou não estar descontente. Posteriormente os factos vieram provar que a “arma” Sampaio havia sido uma inventona dos meios de comunicação.

Santana abre a porta a mudanças na lei do aborto

Mentira: Santana Lopes apenas revelou abertura para debater alterações à lei do aborto, afirmando que o «debate sobre esta questão estará sempre em aberto uma vez que as leis e os resultados dos referendos não são definitivos ... nem as sociedades são estáticas, nem as leis são estáticas, nem os referendos são estáticos». Isso foi claro nas suas declarações feitas na quarta-feira, mas que os jornalistas, ansiosos de tomarem os seus desejos por realidades, leram ao invés. E o mais espantoso foi os jornalistas dizerem hoje, quando PSL repetiu as suas declarações para que não houvesse dúvidas, que a “confusão” havia sido agora desfeita, quando a confusão fora criada por eles próprios.

Apoio popular à acção

Uma das teclas é falar-se das muitas centenas de milhares de mulheres vítimas de uma legislação vexatória e desejosas de serem redimidas pelo barco libertador. A acreditar nessa indignação, ver-se-iam certamente centenas de milhares de pessoas (nomeadamente mulheres) a manifestarem-se tumultuosamente, exigindo a atracagem do barco redentor.

A população tem dado uma resposta elucidativa. Menos de meia dúzia de pessoas estiveram presentes na manifestação junto do Ministério da Defesa, amplamente divulgada por SMS e depois nos meios de comunicação. Na manifestação junto à residência do 1º ministro estiveram 200 a 250 pessoas, incluindo dirigentes dos partidos de esquerda. Na Figueira da Foz, no primeiro dia, apareceram uma a duas dezenas de curiosos. Depois nem isso. Aparentemente há mais organizações envolvidas na acção da vinda do barco do que pessoas a manifestarem-se.

Como os meios de comunicação não encontram manifestantes indignados na Figueira da Foz, vão entrevistando pescadores que estão entretidos a restaurarem a pintura dos barcos. Mas sabe-se como são usadas essas entrevistas de rua (vox populi) pretendendo que funcionem como representativas do todo nacional.

É evidente que há uma questão social onde se insere o recurso ao aborto. Mas a situação proclamada insistentemente nos meios de comunicação pelos corifeus da esquerda já só existe na sua imaginação. Os filhos não são algo que é imposto à mulher. Não nascem nas nossas barrigas por obra e graça do acaso. E as mulheres que não querem ter mais filhos têm hoje um sem número de maneiras de responsavelmente os evitar. O aborto não é, nem pode ser apresentado como mais um método anti-conceptivo.

A questão do aborto, que tanta energia suscita, não está em qualquer lista de inquietações dos portugueses e é um tema que a população já mostrou repetidamente que se sente indecisa perante ele. A insistência obsessiva em o levantar deve mais a uma ânsia de protagonismo e conveniências tácticas que a qualquer sentido de dever público.

Hipocrisias

Para mostrar a hipocrisia da esquerda no seu alegado apego a combater a subalternização da mulher e a lutar pelo “direito ao seu corpo”, basta constatar os esforços que fez para que não fosse votado um projecto que visava criminalizar a mutilação genital feminina (MGF). Frases do género "mais do que uma lei específica, são necessárias medidas de prevenção", "há que intervir junto das populações para alterar hábitos ancestrais"... pareciam argumentos esgrimidos pelos mais ferozes opositores de qualquer forma de IVG. Várias deputadas, que se destacaram na luta pela alteração da lei do aborto, como Odete Santos e outras, utilizaram a argumentação da prevenção e dos estudos para protelarem as alterações legislativas que tipificariam a MGM como uma ofensa grave.

Sabe-se que tal ocorre nas comunidades imigrantes (da Guiné-Bissau, por exemplo) com carácter regular. Se a lei sobre a MGF for aprovada, apesar das manobras dilatórias da esquerda, e se alguma vez tiver lugar, em Portugal, um julgamento sobre esta matéria, ouvir-se-á certamente que é um julgamento de “brancos contra negros", de "colonialistas contra os oprimidos", dos "cristãos contra o islão", etc..

Esta esquerda (sublinho ... a esquerda radical e uma ala não despicienda do PS) não tem ética nem tem coerência nas suas causas. Apenas as usa como armas de arremesso político.

Publicado por Joana às 11:46 PM | Comentários (20) | TrackBack