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setembro 16, 2004

Fogo sobre a Classe Média

A classe média é o sustentáculo da democracia. Onde a classe média é quantitativamente incipiente e financeiramente frágil, a democracia não consegue vingar ou, quando aparenta existir, coexiste com um enorme défice democrático e está permanentemente à beira do abismo. O poder económico foi durante séculos controlado por um reduzido grupo de empresários, banqueiros, burocratas, e antes de nobres, patrícios, etc. No último século descentralizou-se. A sociedade ocidental criou uma classe média numerosa e próspera cuja capacidade de consumo (dinamizadora da oferta) e de poupança (vital para o financiamento das empresas e do investimento público) tem que ser conquistada porque é a base desse poder económico. É essa classe média que é o sustentáculo da estabilidade social e da democracia.

Vem isto a propósito da comunicação ao país do ministro Bagão Félix. É certo que o ministro usou de um discurso didáctico, inteligível, com exemplos, perfeito na forma. Todavia, na substância, há que separar duas áreas em que as palavras do ministro merecem apreciação contrária: o diagnóstico e as medidas e estratégias correctivas.

No que respeita ao diagnóstico, Bagão Félix repetiu o que muitos economistas, alguns (infelizmente poucos) políticos têm dito e escrito. Neste blogue já escrevi tudo (e mais alguma coisa) o que o ministro diagnosticou. Apenas demagogos vendedores de ilusões fingem não acreditar e apenas alguns dos compradores dessas ilusões querem continuar a não acreditar. O país, a sociedade, o tecido produtivo não podem continuar a alimentar o Moloch estatal, esse sorvedouro da riqueza que o país penosamente produz. E essa situação é cada vez mais insustentável não só pela perversidade da injustiça que tal representa, mas também pela eventual “vingança” do mercado, porquanto com o incremento da livre circulação de pessoas e bens, as deslocalizações podem acelerar um processo em que o país fique reduzido à máquina estatal e a alguns parcos serviços, à míngua de empresas e trabalhadores para a sustentar.

No que respeita às medidas correctivas Bagão Félix deu algumas pistas. Algumas merecem a minha concordância: 1) o alegado fim da «obsessão orçamental», o que significa uma visão mais equilibrada de lidar com as variáveis financeiras e económicas e o abandono do recurso a receitas extraordinárias de forma indiscriminada para não infringir o PEC – como dizia PSL há dias, o Estado está a ficar sem anéis; 2) a regularização das dívidas permanentes do Estado aos seus fornecedores – um «Estado caloteiro» é incompatível com um Estado de Direito e com um eficiente funcionamento da economia e coloca a administração e os organismos públicos reféns dos credores, sem autoridade moral para exigir rigor no cumprimento dos orçamentos e prazos, como se verifica nas empreitadas de obras públicas e nos fornecimentos ao sistema da saúde.

Dou um crédito muito relativo a algo que ficou implícito nas afirmações do ministro e que muitos têm aplaudido: o redimensionamento do Estado. Em primeiro lugar Bagão Félix não foi muito assertivo nesta questão. Em segundo lugar ninguém, até hoje, teve coragem de mexer na função pública. Ou pior ... os que mexeram foi para a empolar em pessoal e em remunerações sem contrapartidas de melhorias de desempenho e nas prestações aos cidadãos. Ora a crise orçamental perpétua em que o país vive só se resolve mexendo profundamente na Administração Pública. Resolve a crise orçamental e, indirectamente, melhora a competitividade do tecido produtivo português. Desejaria que o aplauso desses muitos analistas se viesse a justificar. Permitam-me, todavia, que coloque muitas dúvidas.

O ministro, no seguimento das declarações de PSL, relacionou os aumentos salariais com aumentos da produtividade. Está obviamente a referir-se à função pública, pois o sector privado aumenta os salários num quadro de referência em que está implícita a competitividade de cada empresa. É certo que os aumentos percentuais da função pública constituem, muitas vezes, um ponto de referência, mas não mais que isso.

A questão da produtividade é muito complexa. A produtividade é uma medida macro-económica. Por exemplo, se a produtividade portuguesa tivesse aumentado por igual em todos os sectores, Portugal estaria falido há alguns anos, pois tinha deixado de exportar. O que se verifica é que os sectores exportadores têm aumentado a produtividade muito acima da média e são eles que têm aguentado o laxismo da função pública e a falta de inovação de muitos dos sectores virados “para dentro”. Neste entendimento, a primeira linha da batalha da produtividade tem que se travar na função pública e nos organismos e empresas dependentes do Estado. E, obviamente, terá também que ser incentivada em toda a economia e não apenas nos sectores actualmente exportadores. Aliás, um aumento da produtividade no sector público induz, ceteris paribus, um aumento de produtividade no sector privado: menos atrasos burocráticos, justiça mais rápida e ... menos impostos.

Mas onde o ministro foi mais claro foi na questão das receitas. É o mais fácil ... pois cortar na despesa tem sido, como se viu com Manuela Ferreira Leite, um completo fiasco. Vejamos primeiro o que é pertinente e consensual:

Estou de acordo em que a questão do regime fiscal da banca, nomeadamente nos «off shores», deverá ser reavaliada de forma a obter uma maior justiça fiscal, sem menoscabo da capacidade de atrair capitais que um «off shore» representa (ou de os afastar, se deixar de ser minimamente atractivo). Igualmente o agravamento do impostos sobre o tabaco é uma medida pacífica.

Deverá todavia ter-se em conta os efeitos perversos de medidas deste tipo: o aumento destes impostos induz um aumento do contrabando (ou de outras formas de evasão) e faz com que as receitas fiscais fiquem frequentemente estáveis. Isto não é novo: já há duzentos anos que J. B. Say descobriu este fenómeno, embora muitos políticos continuem a ignorá-lo. Há uma regra que se verifica sempre e em todas as circunstâncias: quanto maior é o peso da fiscalidade e a sua injustiça, mais incentivos há à evasão fiscal. Isto é uma característica do comportamento de qualquer agente económico: ponderar entre o risco da evasão e o pagamento integral das obrigações fiscais. Por isso também se verifica que, no caso de desagravamento de impostos, a queda das receitas fiscais é muito menor da que se poderia deduzir pelos valores anteriores: os agentes económicos preferem correr menos riscos, diminuindo os incentivos à evasão fiscal.

O que discordo em absoluto é de medidas que são selectivas e que atingem apenas a classe média, nomeadamente a classe média baixa, como o que foi designado pelo princípio do utilizador-pagador no Serviço Nacional de Saúde, uma medida que, a ser tomada, enferma de vários vícios:

1. Parece-me, salvo melhor opinião, tratar-se de uma medida inconstitucional, visto introduzir desigualdades no acesso dos cidadãos a um serviço público. Se os serviços de saúde tiverem preços diferentes de acordo com os rendimentos do paciente então passa a ser legítimo que todos os serviços públicos funcionem segundo a mesma lógica discriminativa. Nas escolas públicas, nas estradas públicas, nos transportes públicos, nos museus, etc., os utentes pagarão preços diferenciados consoante o seu rendimento.

2. Afecta fundamentalmente a classe média nos seus segmentos menos abastados, ou seja, aqueles que não conseguem provar que são pobres. Os ricos e a classe média alta não frequentam o Serviço Nacional de Saúde, excepto, e nem todos, no caso dos tratamentos (mas não das operações) do foro oncológico.

3. Os sobrecustos pagos pelos não-pobres configuram uma espécie de imposto que irá recair sobre uma parcela importante da população portuguesa, mas não sobre a população mais abastada: os cidadãos da classe média pagarão simultaneamente dois impostos: o do IRS e o do sobrepreço dos serviços públicos. Às taxas progressivas de IRS haverá que somar os preços diferenciados dos serviços públicos.

4. Como as declarações individuais de rendimento são pouco fiáveis, excepto no caso dos trabalhadores por conta de outrem, serão estes os mais prejudicados por essa eventual medida.

5. O controlo desta medida, que terá de ser periódico, pois as pessoas não usufruem sempre dos mesmos rendimentos, vai exigir mais pessoal, mais repartições, mais direcções, mais burocracia, mais custos.

Espero que prevaleça algum bom senso e que se deixe cair uma medida, aparentemente popular, mas que é um completo disparate!

Já no que respeita aos benefícios fiscais em sede de IRS a situação é diferente. As sucessivas alterações que têm ocorrido nos PPR e PPR/E tornaram-nos menos atractivos e a fluidez do mercado bolsista fez com que os benefícios fiscais dos PPA fossem anualmente consumidos pela queda bolsista. A questão aqui é a da diminuição das receitas que a banca e os seguros irão ter e saber qual a parcela do aumento das cobranças do IRS que será consumida pela diminuição do IRC daqueles sectores. Por outro lado o incentivo à poupança é benéfico para a economia. A poupança das famílias é injectada no mercado de capitais e melhora o desempenho económico. Ora aqueles benefícios eram um importante incentivo ao aumento da poupança das famílias.

Em qualquer dos casos, e embora estes benefícios tenham diminuído de interesse nos últimos anos, a sua extinção também atinge a classe média, nos seus segmentos mais abastados (pelo menos 30% dos contribuintes).

Estas medidas vão somar-se a outras que afectarão sobretudo a classe média. Tomemos o caso da nova Lei do Arrendamento Urbano a discutir proximamente e que tem vindo a lume aos bochechos, frequentemente desmentidos. O que parece transparecer das notícias, é que ela terá disposições que afectarão sobretudo a classe média.

No que respeita aos inquilinos, será a classe média a única que será afectada pelos aumentos das rendas habitacionais. Os mais pobres serão subsidiados ou não serão aumentados e os locatários comerciais terão “pena suspensa”. Os mais ricos e a classe média alta têm casa(s) própria(s).

No que respeita aos senhorios, serão os proprietários de casas degradadas, sem meios financeiros suficientes para vultuosas obras de reabilitação (classe média, pois claro!) que ficarão confrontados com inquilinos insolventes, que não serão aumentados ou terão aumentos insuficientes, e com o “comércio tradicional”, que paga rendas irrisórias, sendo portanto subsidiado há décadas por esses senhorios, o que o levou à falta de incentivos pela inovação, à estagnação e a tornar os centros históricos sem capacidade de atracção e a perderem terreno face a novas centralidades. E que tudo indica o vai continuar a ser. O que há de perverso na protecção ao “comércio tradicional” é que ele “precisa de ser protegido” porque estagnou mercê de ter sido “protegido”, anos a fio, à custa dos senhorios. Foi anquilosado pela protecção que teve ... e por ter ficado anquilosado, continua a precisar de protecção.

Portanto as distorções que irão constar da nova Lei do Arrendamento Urbano (curiosamente estabelecida para acabar com as graves distorções actuais) irão afectar primordialmente a classe média (inquilinos e senhorios).

A classe média é, convém relembrar, o sustentáculo de uma democracia sólida. É a classe média, convém lembrar à actual maioria, quem decide as eleições ...

Publicado por Joana às setembro 16, 2004 11:35 PM

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Comentários

Excelente, didáctico e ... independente!

Publicado por: sabeu às setembro 17, 2004 02:00 PM

Sou franco: se o Ministro Bagão apostar no fim do sigilo bancário e no rigor fiscal perdoo-lhe muito disparate!(Esse que menciona é o maior de todos eles...)
Senão não!
Gostei desta posta.

Um abraço,
Francisco Nunes

Publicado por: Planície Heróica às setembro 17, 2004 03:26 PM

A questão não é o sigilo bancário. Se fosse possível um juiz, mesmo um de turno, levantar a quebra do sigilo, desde que lhe fossem apresentadas as alegações para tal, não havia problema.
Sou contra o levantamento indiscriminado do sigilo. Isso pode ter efeitos colaterais nocivos.
Tem é que haver mecanismos legais que permitam o levantamento, se for justificado, de um dia para o outro.

Publicado por: Viegas às setembro 17, 2004 04:27 PM

Viegas: plenamente de acordo

Publicado por: David às setembro 17, 2004 05:25 PM

Da mesma forma que algumas vezes tenho manifestado a minha discordância com a Joana, quero agora endereçar-lhe uma palavra de agradecimento por partilhar com os viajantes do ciber-espaço as suas reflexões sobre as questões acima.

Em relação às taxas diferenciadas gostaria de colocar à consideração dos leitores (e nomeadamente da Joana) uma questão: ao insistir sobre esta diferenciação fico com a impressão que há uma mudança fundamental na filosofia do sistema - de ums expressão de solidariedade no seio da comunidade passa-se para uma visão assistencial.

O sistema (actual ?) apresenta-se (pelo menos em teoria) como pretendendo garantir aos cidadãos, a salvaguarda de situações de doença (em geral independentes da sua vontade) de certa forma reflectindo a percepção popular de que a doença toca a todos, independentemente dos seus rendimentos (o que não será inteiramente exacto). De alguma forma isto justifica que o financiamento do sistema seja assegurado por uma contribuição colectiva e solidária de todos os membros da comunidade.

Por outro lado as propostas que vêm agora a lume vêm gradualmente instituir um conceito distinto: o sistema de saúde público parece dirigir-se primordialmente aos que por via dos seus fracos recursos não dispõem de outras alternativas (daí a relativa gratuitidade do sistema).

Assumindo como válidas as premissas acima expostas interrogo-me sobre as vantagens reais desta mudança. Por um lado do ponto de vista económico - será que vamos assistir a uma diminuição do nível de utilização dos serviços de saúde público (o que será também função do nível das taxas diferenciadas)? Por outro lado do ponto e vista sociológico - até que ponto este tipo de diferenciação vai marcar ainda mais a percepção por parte dos contribuintes de que os seus impostos se destinam em grande parte a subsidiar politicas sociais destinadas a terceiros, dependendo de si próprios para as estas "situações imprevisiveis".

Talvez o cenário seja aqui apresentado tenha contornos algo simplistas mas de qualquer forma penso que a pergunta tem alguns méritos (modéstia à parte)

Publicado por: Carlos José às setembro 17, 2004 10:31 PM

São estas baboseiras que fostes recomendar ao on-line?

Publicado por: cosme às setembro 20, 2004 03:21 PM

São estas baboseiras que fostes recomendar ao on-line?

Publicado por: cosme às setembro 20, 2004 03:21 PM

É a mesma estúpida, cosme

Publicado por: calimero às setembro 20, 2004 03:40 PM

Vocês são uns democratas!!
Ou "fostes" democrata??

Publicado por: Coruja às setembro 20, 2004 04:53 PM

Excelente este post.

Publicado por: Mauricio às setembro 21, 2004 10:00 AM

De acordo, Joana. Também vejo algumas restrições no levantamento indiscriminado do sigilo bancário

Publicado por: c seixas às setembro 21, 2004 10:42 AM

Inteiramente de acordo.
A classe média, mais uma vez, paga a factura. Mas porquê? É o local de mais fácil cobrança, não?

Publicado por: vmar às setembro 22, 2004 12:24 PM

E a lei do arrendamento sempre vai para a frente. Mas só alguns é que pagam!

Publicado por: VSousa às setembro 24, 2004 04:39 PM

Dizem que o PSL fala às 5.
A las cinco de la tarde

Publicado por: Ricardo às setembro 24, 2004 04:51 PM

Às 5:00 não foi.
Deve ser às 5:30

Publicado por: J Correia às setembro 24, 2004 05:31 PM

Foi o que se previa: a classe média é que se lixa

Publicado por: Fred às setembro 24, 2004 06:52 PM

Fred: tem toda a razão. Os senhorios com inquilinos decrépitos ficam na mesma e são a maioria dos imóveis.
O país vai ficar à espera que eles morram?

Publicado por: VSousa às setembro 24, 2004 07:05 PM

Em contrapartida, muitos dos 60.000 que "podem pagar" poderão ser obrigados a abandonarem as casas.

Publicado por: cosme às setembro 26, 2004 07:30 PM

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