dezembro 25, 2005

Investigação Natalícia

O Natal sempre me intrigou. Nos primeiros tempos a explicação era simples: Tratava-se de um velhinho barbudo ajoujado a um saco de presentes que descia por uma chaminé, pela calada da noite, e nos enchia os sapatinhos de prendas. As minhas dúvidas começaram quando me apercebi da largura da chaminé. Nem o Pai Natal passaria ali, a menos que fosse um anãozinho, quanto mais o saco e as barbas. As renas também não eram convincentes. Como conseguiriam sobreviver ao tráfego da 2ª Circular e chegar à nossa casa? A partir daí, ano após ano, fui aprofundando as minhas pesquisas sobre esta matéria. Não recorri à net, descredibilizada pelo erro da Wikipedia, nem aos livros, descredibilizados entre os viciados na net. Resolvi investigar in loco.

Fiz as malas, e mesmo sem esperar pelo subsídio do Plano Tecnológico, muni-me de um portátil, mas sem GPRS para evitar cair na tentação da net, e iniciei a minha jornada de investigação. Deve começar-se pelo princípio. Dirigi-me ao cume do Ararat, onde a tradição coloca a “aterragem” da arca de Noé e segui as pisadas daquele patriarca que, felizmente para nós, foi um proeminente especialista em previsões meteorológicas e na protecção da biodiversidade.

Durante horas vagabundeei rumo ao sul, pelas montanhas da Assíria, seguindo a peugada de Cam, filho de Noé. Foi uma investigação arriscada, em vista da instabilidade que reina na região. Seguindo um vale profundo, cavado por um caudaloso afluente do Tigre, dei por mim diante das ruínas de um casebre de adobe ladeado por duas árvores seculares, mais tristes que plantas crescidas na fenda de um sepulcro, erguendo a sua rama rala e sem flor. E na sombra ténue do crepúsculo, emergiam duas velhinhas descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas túnicas pobres, mais velhas que as árvores seculares, mais arruinadas que o casebre de adobe, hirtas, de cabelos desmanchados, alastrados até ao chão, numa neve inesperada. Um cão, que farejava entre as ruínas, uivava sinistramente. … Enfim, o cenário ideal para veicular tradições milenares. Nem Spielberg teria concebido um cenário melhor.

Foi aí que uma das anciãs, cabeça mais lívida que o mármore, por entre os cabelos emaranhados que o suor empastara e os olhos esmoreciam, sumidos, apagados, me informou penosamente que, de acordo com as tradições daquela aldeia e de todo o Crescente Fértil, aliás coincidentes com as da Bíblia, Cam, filho de Noé, havia tido um filho chamado Cush que desposara Semiramis. Cush e Semiramis tiveram então um filho chamado Nimrod (também conhecido por Ninus). Depois da morte de seu pai, Nimrod casara com a mãe e tornara-se um rei poderoso. Nimrod fora o construtor de diversas cidades (como Nínive) e da Torre de Babel (a Semiramis também foi atribuída a construção dos jardins suspensos da Babilónia). Enfim, gente pouco conveniente, viciada em investimentos públicos e em extorquir o dinheiro dos contribuintes.

Continuando a sua narração, a anciã, por entre sons sibilados, inevitáveis face à sua idade avançada e à ausência de recursos odontológicos na região, foi acrescentando que quando Nimrod foi morto, Semiramis proclamara que Nimrod tinha subido ao céu. Mais tarde, a patrocinadora deste blog, após alguns desregramentos domésticos que a decência e os bons costumes me impedem de revelar, tivera um filho, ilegítimo, concebido “sem pecado” (como Jesus), a quem chamara Tamuz, também conhecido por Baal. Para evitar falatórios, Semiramis pôs a correr que ele era Nimrod reencarnado. Quando Tamuz morreu, num acidente de caça, Semiramis igualmente proclamou que aquele havia subido aos céus e se tornara Deus. A sinceridade que a anciã punha nas suas palavras era garante seguro da veracidade da história. Nem por um momento tive dúvidas. Aquela história era credível. Tão credível como uma promessa de Sócrates.

A mãe, Semiramis, era figurada como A Rainha dos Céus com o filho, Tamuz, nos braços. Várias religiões antigas contam este facto. Os nomes podem variar mas a história é a mesma. Esta religião, começada com Semiramis, tornou-se mãe de todas as religiões do mundo oriental. Numerosos monumentos babilónicos mostram a deusa-mãe Semiramis com o filho nos braços. O culto desta figura (mãe e filho) disseminou-se, sob diversos nomes, por todo o mundo antigo. Semiramis e Tamuz, Isis e Hórus, Maria e Jesus.

O filho era exibido apenas como uma criança nos braços da mãe, enquanto que os artistas se empenhavam em favorecer a imagem da mãe, tentando mostrar a beleza exótica atribuída a Semiramis durante a sua vida. Beleza, força, sabedoria, orgulho indomável, resolução inquebrantável e voluptuosidade eram os seus atributos principais. Por exemplo, Catarina II da Rússia, talvez menos pela sua energia política que pela sua vida íntima, turbulenta e lasciva, foi rotulada como a Semiramis do Norte.

Foi então que veio a revelação que eu esperava, tremendo de emoção e de frio, que esta época torna as montanhas da Assíria um local inóspito e gelado. O 25 de Dezembro era celebrado como nascimento de Tamuz! Na antiguidade caldaica, 25 de Dezembro era conhecido pelo dia da criança, o dia do nascimento de Tamuz, o deus do sol. A noite anterior era a “noite da mãe”, em honra de Semiramis, hoje “véspera de Natal” e o Natal seria pois o dia do filho da mãe.

Continuando a ouvir o sussurro sibilado das velhinhas (não haveria um protésico na região?), soube que o nome Semiramis é a forma helenizada do nome sumério "Sammur-amat", ou "dádiva do mar." Também era conhecida por Ishtar que deu a palavra "Easter" (Páscoa) e Este (onde nasce o Sol). Os ritos da Primavera, 9 meses antes do nascimento do Sol do Inverno, foram os precursores da Páscoa cristã. Os Romanos chamavam-na Astarte e os Fenícios usavam Asher. Aquelas velhinhas tinham mais ciência sobre esta matéria que a Filomena Mónica sobre o D. Pedro V.

Em Israel era conhecida por Ashtaroth. A religião judaica, muito circunspecta e pouco dada a tratos de carnes, votava um ódio de morte à religião criada por Semiramis. Ao longo da sua história milenar centenas de vezes o povo de Israel caiu nas tentações idólatras atraído pelo suave e lascivo perfume da religião de Semiramis. E como é doce cair em tentações ... se foi para isso que elas foram concebidas!

Deixei as anciãs no seu tugúrio, após lhes ter dado um óbulo modesto, mas que as comoveu de satisfação (alguns dólares fazem jeito naquela terra de escassez e miséria), pensando na linha contínua que une a nossa história às remotas tradições daquelas terras.

A gestação do cristianismo foi um fenómeno longo no tempo e no espaço. Se os seus ensinamentos morais eram a resposta que os deserdados pretendiam face à crise social e de valores do mundo antigo, o seu ritual e os aspectos lúdicos da sua liturgia entroncam nas religiões do médio oriente, transplantadas para Roma após as conquistas.

Os Romans tinham a "Festa da Saturnalia" em honra de Saturno. Este festival era celebrado entre 17 e 23 de Dezembro. Nos últimos dois dias trocavam-se presentes em honra de Saturno. Em 25 de Dezembro era a celebração do nascimento do sol invencível (Natalis Solis Invicti). Posteriormente, à medida que as tradições romanas iam sendo suplantadas pelas tradições orientais importadas, os maiores festejos realizavam-se em honra do deus Mitra, cujo nascimento se comemorava a 25 de Dezembro. O culto de Mitra, o deus do sol, da luz e da rectidão, penetrou em Roma no 1º século AC. Mitra era o correspondente iraniano do babilónico Tamuz.

A data entrou no calendário civil romano em 274, quando o Imperador Aureliano declarou aquele dia o maior feriado em Roma. A data assinalava a festa mitraista do Natalis Solis Invicti. Com a quantidade enorme de feriados que então havia em Roma, ser considerado o maior feriado era uma proeza notável.

Aureliano ao acabar com a insurreição de Palmira e do Oriente e trazer a sua rainha Zenóbia para Roma, enterrou, em contrapartida e definitivamente, as tradições romanas do culto da família e das virtudes que haviam feito a grandeza da república, mas que foram perdendo influência à medida que o poder de Roma se estendia ao mundo conhecido. E ao ter destruído Palmira, permitiu que Volney, 15 séculos depois, invocasse aquelas ruínas (Je vous salue, ruines solitaires, tombeaux saints, murs silencieux!) para início das suas belíssimas meditações sobre a condição humana e a origem e o destino das sociedades, dos governos e das leis.

A escolha do dia 25 de Dezembro como data de comemoração do nascimento de Cristo nada teve, portanto, de arbitrária. Ao colocar, de uma vez por todas, o nascimento de Cristo a meio das antiquíssimas festividades pagãs do solstício do Inverno, a Igreja Cristã tinha a esperança de as absorver e de as converter, o que veio efectivamente a acontecer. Mas se a Igreja ganhou ao transformar aquela festividade na comemoração mais importante da liturgia cristã, teve que aceitar a aculturação resultante da importação de muitos símbolos das religiões antigas.

Foi assim que no século IV, o 25 de Dezembro passou a ser a festa do "Dies Natalis Domini", por decreto papal. A partir daí não há dúvidas e a história está tranquila.

E assim terminei a minha investigação e regressei a penates. E enquanto crepitava a lareira no conchego do lar, fui pensando no fio oculto que nos liga ao início da história da humanidade. Quando se fala da tradição judaico-cristã da nossa cultura eu penso menos nessa tradição como fé religiosa do que como matriz cultural. A gestação do cristianismo durou vários séculos num meio político que o hostilizava. A religião cristã acabou por incorporar na sua liturgia imensos símbolos das religiões que a precederam – a Virgem e o menino, o Natal, a Páscoa, o halo que se perfila por detrás da cabeça de Cristo (posteriormente alargado às representações dos santos), que representa uma reminiscência simbólica do sol invencível, etc..

O Natal, assim como outros eventos da liturgia cristã, começou há muitos milénios, no seio das primeiras religiões do médio oriente, ligado ao culto solar sob diversas formas e sentimentos. Continuou, adaptando-se ao sabor das alterações políticas e religiosas, incorporando ou rejeitando símbolos e conceitos, mas comemorando sempre o 25 de Dezembro e a sua véspera.

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dezembro 12, 2005

A Ana e a Márcia

Ou uma história triste de um sector com nichos de mercado diferentes

Não foi por ter lido o livro da Maria Filomena Mónica este fim-de-semana. Nem pensem nisso! Honni soit qui mal y pense! Mas, por razões enigmáticas e obscuras, que se perdem nas profundezas, porventura perversas, do meu inconsciente, lembrei-me de uma história simultaneamente triste e de sucesso, que vou contar em seguida. Advirto que esta história não é adequada a espíritos sensíveis, nem a mentes mais preocupadas com a essência da totalidade absoluta, do que com a existência insidiosa dos factos. Assim sendo, não me responsabilizo pelas consequências da sua leitura:

Duas prostitutas encontram-se ao fim de alguns anos. Têm a mesma idade, mas que diferença … A Ana estava viçosa, com o rosto indiferente à marca dos anos, bem vestida, com um vestido em tule bordado e seda, chiquérrimo, e umas sandálias em veludo com atilho e um salto bem alto. A outra, a Márcia, tinha o rosto acabado, sem chama, desbotado, envergando um traje barato, sem gosto, cuja única atracção, vocacionada para a libido dos camionistas de longo curso, eram as suas dimensões exíguas.

A Márcia estava estupefacta:
- Ana, filha … estás um espanto! Como consegues manter-te assim?
- Márcia, há muito que abandonei o passeio. Só o fiz durante poucos meses. Agora tenho outro tipo de clientela. Estável.
- Mas que tipo de clientela?
- Intelectuais.
- Mas que é que esses intelectuais fazem?
- Reúnem-se numa tertúlia e conversam sobre coisas deles. Discutem acerca do que disseram uns tipos estrangeiros que eu não conheço e lêem coisas em voz alta. É variado. Uns lêem poesia e coisas que eles dizem que são culturais; há um que anda sempre a explicar que é preciso desconstruir o real e mais coisas, mas se queres que te diga ... não sei como, pois não consegue mexer uma palha. Não o vejo capaz de andar com uma picareta nas unhas. Ah! e também lêem coisas dos jornais … Lêem às vezes uma mixórdia que eu não percebo nada, ao que parece de um tal Coelho no Prado. Ultimamente não têm lido. Talvez por estarmos na época da caça e ele ter sido abatido.
- Mas o que é que tu fazes? Apenas ouves essas coisas?
- Não, eu ando por ali e vou lambendo-lhes os pénis.
A Márcia teve um momento de incompreensão, o que é normal. A baixa qualificação da mão-de-obra portuguesa atinge todas as nossas actividades, mesmo os sectores semi-abertos ao exterior e com grande potencial, como este. Mas ela queria instruir-se, qualificar-se, abraçar o plano tecnológico, e perguntou:
- Pénis? Que é isso?
A Ana esteve uns segundos hesitante, e depois explicou:
- Ó filha, deixa ver se te consigo explicar…. Pénis é uma coisa que os intelectuais têm … é difícil de dizer … deixa ver ... olha ... é uma coisa assim a modos como o ca**lho … mas flácida.


Momento de reflexão:
A Ana não foi suficientemente precisa. Em rigor deveria ter dito que a tarefa dela era a de desconstruir sexualidades heteronormativas, o que evitaria que a conversa descambasse para uma semiótica redutora e pouco abrangente.

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setembro 13, 2005

Inovação Tecnológica

O Plano Tecnológico começa a ganhar forma. Manuel Pinho tem-se empenhado na concepção de protótipos capazes de induzirem novas valências na depauperada indústria portuguesa. Foi bastante auxiliado nesse desiderato pelo ministro Mário Lino cuja capacidade de decidir primeiro, projectar depois e comissionar as gerações futuras, como garantes dos cash-flows, é sobejamente conhecida.

O primeiro protótipo foi concebido com todo o rigor e conforme as melhores regras de arte da engenharia. Como podem observar, todos os componentes deste equipamento se integram numa harmonia perfeita e privilegiada e visam um nicho de mercado no qual deterá, sem sombra de dúvida, uma posição monopolista durante muitas décadas.

Maquinismo.jpg

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julho 17, 2005

NetKafka

Ou como um Monopólio além de não ter um sistema de preços eficiente, também não age com racionalidade económica
Há tempos, na alvorada de uma manhã que se previa risonha, descobrimos que a netcabo não estava operacional. Telefonou-se para a Netcabo e depois de refutarmos toda a lista de palpites obnóxios que qualquer aprendiz de informática tem por costume enunciar quando é confrontado com um problema, marcou-se uma intervenção para o fim da tarde. À hora do jantar apareceu um técnico que, depois de verificar tudo e de diversos telefonemas para a sede, nos disse que a net havia sido cortado por não termos pago uma factura.

Era falso, até porque as facturas são pagas por transferência bancária. Em contacto telefónico com os serviços financeiros eles disseram que estava tudo pago e que não haviam dado qualquer ordem de corte de serviço O serviço fora cortado por engano – deviam ter-se enganado no número do utente. O NetTécnico telefonou para os serviços técnicos, deu todas as indicações que foram pedidas, disse que o assunto ia ser resolvido, que dentro de 4 horas, no máximo, o serviço estaria restabelecido e foi-se embora tranquilamente.

Passadas 4 horas estava tudo na mesma. Telefonou-se. Contámos a história desde o princípio e o nosso interlocutor disse que ia ver e que daí a 4 horas seria seguro que …

No dia seguinte de manhã, o modem continuava a apresentar o desolador aspecto da luzinha do Cable Link desligada. Voltámos a telefonar e a contar a história desde o início e o nosso interlocutor afirmou que as activações eram com o departamento respectivo e que não podia fazer nada. Depois de alguma insistência e muitos insultos, passou-nos ao departamento das activações. Contámos novamente a história, cada vez mais comprida e tortuosa, demos todas as indicações que foram pedidas, inclusive os números inscritos na parte inferior do modem (números que aliás o NetTécnico já havia dado nos telefonemas que tinha feito) e o nosso interlocutor disse que ia proceder à reactivação.

Ao fim da tarde estava tudo na mesma. Telefonou-se e recontou-se a história sempre mais longa e dolorosa. Depois de muitas investigações e perguntas, eles concluíram que se tinham enganado num dos números do modem e que teriam activado outro! Iam proceder à reactivação. Mais 4 (fatídicas) horas e tudo estaria bem. Nem 4 horas depois, nem no dia seguinte de manhã. A luzinha do Cable Link continuava apagada!

Telefonámos e tivemos que repetir toda a história (são sempre pessoas diferentes; na lista dos nossos sucessivos interlocutores figuram 14 nomes!), mas desta vez sumarizada nos conceitos e enriquecida na forma – recheada de apóstrofes e palavrões. Em face da situação, marcaram uma “intervenção” para a hora do jantar. Entretanto ao fim da tarde, a net havia regressado. Como somos pessoas que prezamos o civismo e a eficiência, telefonámos para a NetCabo avisando da reposição do serviço. Depois de 10 minutos em comunicação com o nº de valor acrescentado que a NetCabo tem para atender os clientes vítimas do seu mau serviço, quem nos atendeu disse-nos que havia entretanto cancelado a “intervenção” e que estava tudo OK.

Duas horas depois, tínhamos acabado de jantar, tocaram à porta e … era o técnico da NetCabo! Não sabia do cancelamento! Limitou-se a olhar para o modem, a pedir-nos para assinar o papel, a apresentar desculpas e lá foi.

Neste caso, nem foi o equipamento, linhas e software que funcionaram mal. Apenas erros humanos: o erro em cortar o serviço e sucessivos erros ou desleixos nas tentativas goradas de reactivar o serviço. Todos perdemos. Nós, a paciência, o estar 3 dias sem serviço e o custo das chamadas telefónicas de valor acrescentado; a NetCabo, porque mandou 2 vezes técnicos a nossa casa para nada.

Em Microeconomia demonstra-se que o preço de equilíbrio em monopólio, além de ser superior ao que se gera em concorrência, conduz a soluções de equilíbrio geral de menor eficiência (*). Mas os raciocínios microeconómicos baseiam-se, entre outros postulados, no princípio da Racionalidade Económica: a firma escolhe a combinação de factores que maximiza a sua produção. Por outras palavras: para um dado estádio tecnológico, uma firma gere os recursos que dispõe da forma mais racional possível. Só assim é possível estabelecer um modelo explicativo.

No caso da NetCabo não há uma gestão racional de recursos ... tudo indica, aliás, que os recursos estão em auto-gestão. Nem deve ser possível estabelecer qualquer função de custos para aquela empresa, dado o grau de aleatoriedade no comportamento dos recursos. No caso da NetCabo, trata-se de um monopólio duplamente eficiente. Por ser monopólio e por não agir com Racionalidade Económica.

E o mais descoroçoante foi saber que, pelo segundo ano consecutivo, os leitores da PC Guia elegeram a NetCabo como o Melhor Internet Service Provider (ISP). Estremeço de pavor só de pensar como serão as Clix, Oni, Sapo e Cabovisão. Ou então de pavor sobre o siso de quem lê a PC Guia.

(*) A NetCabo é um monopólio relativo, pois há possibilidade de substituição entre tipos de serviço diferentes.

Publicado por Joana às 06:33 PM | Comentários (60) | TrackBack

junho 20, 2005

Preparada para ir à Cova da Moura

Os preparativos estão adiantados. Uma comitiva com 500 pessoas, metade das quais seguranças experimentados e o resto pessoal da Comunicação Social, a melhoria do revestimento betuminoso do trajecto, contactos com o embaixador Onésimo Silveira (*) para apurar se haverá algum risco na visita, vestuário e calçado adquirido nos chineses e uma pulseira de missanga sem brilho.
Não levo nem telemóvel (porque quero usufruir a visita sem distracções), nem relógio (porque não quero que o factor tempo abrevie a visita).
(*) Fiquei entretanto confusa, sem saber se é Embaixador de Cabo Verde ou da República ImPopular da Cova da Moura

Publicado por Joana às 12:15 AM | Comentários (58) | TrackBack

maio 26, 2005

Reposta a tributação em imposto de selo das doações de valores monetários

Vou deixar de dar moedas aos arrumadores

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maio 24, 2005

Mercado de Usados

Portugal está de parabéns. Embora estejamos com dificuldades de exportar os bens e serviços que produzimos, estamos a ter muito êxito na exportação de maquinarias usadas, obsoletas e de manutenção muito dispendiosa. Hoje exportámos António Guterres para a ACNUR, um ano depois de termos exportado Durão Barroso para a Presidência da CE. A transacção de hoje foi das mais proveitosas para o país, pois que aquele maquinismo, durante o período em que esteve em funcionamento público, gerou custos exorbitantes que endividaram ainda mais o país e o deixaram em estado comatoso.

É uma solução excelente, pois que apesar de se prever que a penúria dos refugiados venha a cair para índices ainda mais calamitosos, eles terão sempre o conforto do canto de sereia de Guterres, capaz de anestesiar a indigência mais lastimosa.

Publicado por Joana às 06:43 PM | Comentários (18) | TrackBack

Nabices

Murteira Nabo.jpgSe eu tivesse um PDG que ficasse espantado com o défice “achado” por Constâncio, despedia-o imediatamente. Um PDG tem que estar atento ao mercado, ler as revistas da especialidade e contactar com gente dos negócios e do topo do aparelho do Estado. Ou então mentiu descaradamente, e despedia-o por não ser pessoa fiável e deixar mal colocado o nome da minha empresa em público. Finalmente despedia-o (ou não o contratava) por bajular pateticamente o patrão.

Publicado por Joana às 02:54 PM | Comentários (12) | TrackBack

maio 22, 2005

Choque Tecnológico (2)

Os novos patrulhões destinados à vigilância das nossas costas vão ter uma concepção diferente e revolucionária. Conjugarão o choque tecnológico com máxima incorporação de mão de obra nacional na sua construção, extraordinária capacidade de gerar emprego, o recurso a energias alternativas e uma perfeita ergonomia funcional de forma a criar um bom ambiente de trabalho, isento de poluição, e uma elevada motivação profissional. Foi mais uma vez uma firma alemã de tecnologia de ponta que ganhou o concurso internacional, apresentando 4 variantes, todas elas satisfazendo os requisitos muito exigentes do Caderno de Encargos.

Os sistemas de propulsão foram estudados com grande minúcia, inclusivamente os ângulos de entrada dos remos na água, os seus comprimentos e as proporções relativas face aos respectivos toletes.

Todos aqueles valores, bem como as cotas indicadas no projecto, resultam de cálculos rigorosos executados por programas informáticos muito complexos, destinados a maximizar a potência de tracção face aos recursos empenhados, tendo em conta a ergonomia e as características dos recursos humanos envolvidos.

Patrulhoes.jpg

A afectação de recursos humanos também foi cuidadosamente estudada. Os testes psicotécnicos decidiram que seria preferível que os zoilos (Z) ficassem com os remos mais curtos e fáceis de manobrar. A sua inveja e maledicência poderia desestabilizar o pessoal. Os remos mais compridos foram entregues aos trouxas (T).

O combate ao efeito estufa decorre naturalmente do tipo de energia de tracção utilizada e da proibição de incluir feijões na dieta da tripulação.

A chusma foi desenhada bronzeada, visto ser o desfecho normal de uma vida sadia, ao ar livre, respirando as inspiradoras brisas marítimas.

Publicado por Joana às 06:43 PM | Comentários (8) | TrackBack

maio 20, 2005

Choque Tecnológico

Para a reestruturação da indústria extractiva portuguesa foi pedido, através de um concurso internacional, um projecto que consubstanciasse os grandes desígnios da nossa política económica: choque, tecnologia e emprego.

Apresenta-se a seguir o projecto vencedor, executado por uma firma alemã de alta tecnologia. Está virado essencialmente para o combate ao desemprego através de um forte espanto choque tecnológico.

PT_Ind_Extract.jpg


Os circuitos de encaminhamento do material extraído estão indicados no corte e obedeceram a critérios ergonómicos rigorosos. O ângulo da escada que optimizava a eficiência do transporte foi calculado em 70º, através de software elaborado especificamente para este projecto. Nada foi deixado ao acaso – no canto superior direito pode observar-se o cuidado posto na preservação do meio ambiente.

Ao lado, em corte, vê-se um poço de visita para um mineiro de elite.

Publicado por Joana às 10:22 PM | Comentários (23) | TrackBack

abril 12, 2005

A Internacional vítima de takeover Neoliberal

Parafraseando a cassete de Carvalho da Silva, a ofensiva neoliberal arremete selvaticamente em todas as frentes. Soube-se recentemente que a Internacional estava privatizada e que mesmo assobiá-la, inocentemente, em público, obrigava ao pagamento de direitos de autor. A cidadela mais emblemática do socialismo de Estado havia caído nas mãos da iniciativa privada. Havia passado a Internacional SA.

A notícia caiu como um raio. Em Portugal, como é evidente, apenas a Blogosfera (primeiro a Grande Loja e depois o Blasfémias, que eu saiba) deu notícia. Este infeliz evento era demasiado doloroso para os “politicamente correcto” da nossa Comunicação Social o partilharem com o seu público. Mas lá fora, ele foi glosado pelo El Mundo e pelo Monde. Este último conta a “descoberta” da privatização da Internacional em pormenor:

No filme Insurrection résurrection, um actor assobia durante 7 segundos a Internacional. O produtor do filme recebeu uma carta da entidade que zela pela propriedade privada dos direitos de autor em França (SDRM), avisando-o que, no decurso de uma fiscalização, havia sido detectada aquela apropriação indevida de um bem pertencente à Le Chant du monde. O custo de utilização daquele bem foi fixado em 1.000€ pela SDRM.

E o que é mais mortífero para a visão do Estado Social de que a Internacional tem sido um dos suportes sonoros mais comoventes e exaltantes, é que o filme em causa apenas teve 203 espectadores no total, isto é, 202 mais o vigilante da SDRM. Poucos mais que os filme portugueses que vivem às nossas expensas. A expensas do nosso Estado Social!

Louve-se todavia a prudência do cineasta. O actor apenas assobiou durante 7 segundos. Se ele, levado por um inebriante ímpeto revolucionário (ou insurreccional), tivesse assobiado durante 3 minutos, o produtor teria que pagar 25.714€! E imagine-se que em vez de um único personagem, fosse toda a assistência de um comício a entoar a Internacional num imponente concerto de assobios? Eram milhões de euros que estariam em jogo!

A esta hora, se leram o Monde, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã devem estar de calculadoras em punho a fazer contas: Portanto x comícios com uma média de y participantes, entoando durante cerca de 3 minutos ... dá ... diacho! A quanto monta o financiamento da campanha? Bem ... temos que rever as contas ... há muitos camaradas mudos e outros só abrem a boca para a gente julgar que estão a participar. Temos que fazer um inventário rigoroso e falar com o nosso departamento jurídico. Para a próxima vamos treinar o pessoal a cantar a Maria da Fonte que, segundo parece, ainda não foi privatizada.

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abril 06, 2005

Semiramis preocupada

Com a rigidez silenciosa (ou o silêncio rígido) de Sócrates:

Semiramis_observa_estado.jpg

Publicado por Joana às 11:51 PM | Comentários (44) | TrackBack

março 16, 2005

Uma Imagem de Marca

A Arrogância Francesa

Há dias a actriz britânica Rachel Weisz foi ao Daily Show, o programa do Jon Stewart. Falando sobre um filme que tinha acabado de rodar em Montréal, e questionada sobre a sua estadia, gabou imenso a ambiência daquela cidade, o seu perfume e sabor francês, mas sem a “arrogância francesa”. E Jon Stewart, o militante anti-Bush, portanto imparcial sobre a “velha Europa”, assentia com compreensivos acenos de cabeça. E Rachel Weisz repetia aquele conceito do “sabor a França sem o travo francês” inquirindo se Jon Stewart percebia aquilo que ela pretendia dizer e Jon Stewart acenava que compreendia. Perfeitamente consensual.

A naturalidade com que aquele diálogo se desenrolou e a espontaneidade consensual na referência à arrogância dos franceses como se tal fosse uma verdade solidamente instalada e universalmente (fora do hexágono) aceite, deu-me que pensar. Como se sentiria um francês ao ver aquela gente a falar da arrogância dele, com a tranquilidade e a naturalidade das teorias consistentes, incontestáveis e universais?

A propósito disso vou contar uma história passada comigo, que é paradigmática. Certamente muitas situações semelhantes ajudaram a criar aquela imagem de marca. Em fins da década de 80 os meus pais foram fazer turismo a Paris connosco. Estivemos lá 3 semanas. Ficámos instalados num hotel de nível médio (éramos 6!), mas central, a 100m da Sorbonne, à beira do Boul’Mich e de St-Germain, no coração de Paris. O sítio era óptimo.

Fizemos o check-in e dirigimo-nos para os elevadores, que divisávamos, lá ao fundo. Chegados ao piso, andámos para trás e para diante, à procura dos quartos, mas não demos com eles. Como eram 4 quartos (éramos 3 raparigas de 19,12 e 10 anos e um rapaz de 14 anos), se não os conseguíamos encontrar era porque obviamente não existiam ali. Eram demasiados quartos para passarem desapercebidos por muito despassarados ou ignaros que fôssemos.

Regressámos à recepção e, à medida que nos aproximávamos, o sorriso do empregado alargava-se escarninho. Quando chegámos junto dele disse-nos divertido, com aquela divina sobranceria com que os parisienses mostram a sua superioridade face aos estrangeiros: Eu apontei naquela direcção mas não me referia aos elevadores do fundo ... a meio, à esquerda há um recanto, onde está outra coluna de elevadores. É aí!

Aquele empregado tinha-nos visto a caminhar para os outros elevadores, a esperar pela sua chegada, a arrumar a miudagem e as bagagens no elevador, tudo durante uns bons minutos, “en rigolant”. Não havia qualquer barreira da língua, pois os meus pais falam francês fluentemente e eu própria já o falava então bastante bem – talvez demasiado literário para o “argot” do empregado; tínhamos alugado 4 quartos por 3 semanas e não um single por uma noite; ele tinha um ar bastante mais mediterrânico que nós; etc.. Todavia ele tinha algo de que nós estávamos absolutamente carenciados: era francês ... ou pelo menos parisiense (de adopção, certamente).

No elevador, o meu pai comentou filosoficamente: adoro os franceses ... Rousseau, Stendhal, Victor Hugo, Flaubert, Proust … infelizmente, os franceses que adoro estão todos mortos. Os vivos são insuportáveis!

Não me lembro de alguma vez ter ido a França e não acontecer algo que me faça lembrar esta frase paterna.

Publicado por Joana às 07:16 PM | Comentários (52) | TrackBack

março 04, 2005

O Novo Elenco Governativo

Semíramis encontra-se em condições de divulgar a composição do XVIIº Governo Constitucional. Foi uma negociação difícil, devida à correlação de forças no interior do partido, às dificuldades de obtenção dos necessários consensos, à compreensível repugnância que qualquer cidadão qualificado e competente tem pelo exercício de servir a coisa pública e à óbvia e abnegada ambição que qualquer cidadão desqualificado e incompetente tem pela obtenção de um sinecura governativa. Devido ao aperto orçamental, terá apenas 11 ministérios A composição é a que se segue:

Presidência do Conselho de Ministros [PCM] – Engº José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa

Ministério da Administração Interna [MAI] – Dr. J. S. C. Pinto de Sousa

Ministério das Actividades Económicas, Agricultura, Pescas e Florestas [MAEAPF] - Engº J. S. Carvalho P. de Sousa

Ministério do Ambiente, das Cidades, Administração Local, Habitação, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional [MACALHOTDR] – Prof. Dr. Engº José S. C. P. de Sousa

Ministério da Educação, Ciência, Inovação e Ensino Superior [MECIES] – Prof. Dr. J. Sócrates C. P. de Sousa

Ministério das Finanças e da Administração Pública [MFAP] – Prof. Dr. J. S. Carvalho Pinto de S.

Ministério da Cultura, do Trabalho e do Plano Tecnológico [MCTPT] - Arqº José Sócrates C. P. de S.

Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações [MOPTC] - Engº J. Sócrates Carvalho P. de S.

Ministério da Defesa Nacional [MDN] - Almirante José S. Carvalho Pinto de Sousa

Ministério da Justiça [MJ] – Juiz Conselheiro José S. C. P. de S.

Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Turismo e das Comunidades Portuguesas [MNETCP] – Embaixador José S. Carvalho P. de Sousa

Ministério da Saúde, da Segurança Social, da Família e da Criança [MSSSFC] – Drª J. S. C. P. de Sousa

Este elenco assegura uma elevada coesão, tem uma aparente homogeneidade e pretende, pese embora as dificuldades compreensíveis e eventuais acidentes de percurso, ter uma única voz, ao contrário do que acontecia com o anterior governo

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janeiro 06, 2005

Os Reis Magos

Um Remake em Technicolor

Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade, os investigadores e os viciados no Google, há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela? Seria mesmo uma estrela? Ou um cometa?

Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.

Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus. Comecemos pelo cenário tradicionalista, o mais conforme aos textos litúrgicos.

Neste primeiro cenário era elementar colocar a questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador ou, na Lusitânia, o poder dissolutor) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram, em conjunto, centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante de camelos escorrendo uma baba peganhenta e fétida, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.

Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:

1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato “Santanista” de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;

2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice orçamental nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública e os Bancos Centrais reagiriam mal à saída, para destino incerto, atrás de uma estrela, ou sabe-se lá de quê, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias.

3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese de os Ministros da Defesa, eventualmente indicados por facções de menor expressão eleitoral, quisessem evidenciar o seu protagonismo político, não fornecendo acintosamente as escoltas. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, que transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar cabimento orçamental para custear a escolta.

4 – Mas o que definitivamente invalida este cenário é a inexistência de jornalistas embedded na caravana régia. Nem sequer jornalistas perdidos na imensidão do deserto, segundo os usos de um país do extremo ocidente europeu, sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.

Portanto, apenas quatro hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice orçamental e de défice de transacções com o exterior; ausência de escolta; ausência de jornalistas embedded ou apenas transviados, etc.

Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam.

Sendo assim demonstra-se que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tem poder explicativo na sua formulação tradicional. Impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, o Cenário Neo-liberal, por muito que custe aos defensores dos sistemas estatizantes.

Assim, a minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.

A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos Livros (cujo território se cinge a um espaço exíguo na Baixa lisboeta; rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); o rei dos gaffeurs (o ministro Morais Sarmento) “o Rei” tout court (Elvis Presley); etc..

Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.

A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?

Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.

Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?

Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?

As respostas são doravante simples e elementares:

Quem são esses especialistas? – Economistas;

Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;

Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra.

Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo a declaração de liquidação que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluída no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal se deixava embalar com balelas.

Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.

Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar as prendas para festejar as Saturnalias e a bolsa estava sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.

Herodes aproveitou o crash bolsista, suspendeu o exercício das «call-option», ignorando a CMVM, utilizou as «golden share» detidas em todas as sociedades vítimas da recessão, e ficou com os activos de todas elas. Os pequenos aforradores, os inocentes, ficaram sem um obolo. Foi este episódio que, ficcionado por historiadores menos avisados, ficou conhecido pela “matança dos inocentes”

Por isso, no regresso, os Reis Magos fizeram um desvio para não voltarem a encontrar-se com Herodes, que havia arruinado a Judeia com uma política keynesiana, baseada no uso imoderado da despesa pública e, por via disso, desvalorizado as suas mercadorias.

Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.

Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.

Semiramis Rubens_The Adoration of the Magi.jpg

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dezembro 20, 2004

Nova Funcionalidade no Semiramis

Estou a trabalhar afincadamente numa nova facilidade, aqui no Semiramis, que permite que quem navega neste site possa votar de acordo com as suas intenções de voto nas legislativas. O processo que estudei com a sagacidade que mesmo a minha modéstia não evitou que fosse eu a primeira a reconhecer, está em fase de teste e permite obter resultados com uma margem de erro inferior a 0,1% a partir de 10 respostas.

As escolhas são: PSD PS CDU CDS/PP BE Outro Branco Nulo Abstenção. A democraticidade da escolha está assegurada pela abragência e liberalidade com que escolhi as opções.

Já organizei o lay-out. O essencial está feito. Falta escolher a percentagem que quero para o meu partido. Depois dessa escolha (estou a pensar num valor entre 55% a 60%), introduzo esse valor. Sempre que alguém votar e o valor da sondagem para o meu partido descer abaixo daquele limiar devido a esse voto insensato, o sistema responde:

We're sorry, you've already voted in this poll!

As rotinas nas quais trabalho presentemente indicam que se trata de um trabalho muito científico, do qual não são permitidas quaisquer dúvidas sobre a legitimidade dos seus resultados. O facto da mensagem estar em inglês assegura o carácter neutral do escrutínio.

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dezembro 17, 2004

Balanços Cruzados

Miguel Cadilhe fez o balanço dos dois anos de actividade da agência a que preside. Foi genial e objectivo: «Continuamos a não ter o problema do tratamento de resíduos industriais perigosos resolvido em Portugal e isto é uma vergonha ... Desde a primeira hora que chamamos a atenção para isto e chegamos a encomendar um estudo sobre municípios com melhores possibilidades de receber uma estação mediante contrapartidas» desabafou, adiantando que «há empresas que transportam resíduos industriais de forma ilegal, clandestinamente, enquanto outras espalham-nos pelo território e um país que se quer desenvolvido não pode virar as costas ao problema.».

Foi luminoso como exemplo de rigor e adequação, abrindo novos e entusiasmantes caminhos para o trabalho a desenvolver pelas nossas agências e institutos. Quando o Presidente do Instituto de Resíduos fizer uma conferência de imprensa sobre o balanço da sua actividade, certamente alertará o auditório sobre os problemas graves decorrentes da má fiscalização da actividade dos areeiros e sobre a má utilização do domínio hídrico em Portugal, sugerindo soluções oportunas e necessárias e prometendo que agilizará a implementação da directiva da água de forma coerente e exemplar.

Como se espera e será óbvio, o Presidente do INAG fará um balanço da sua actividade no Instituto da Água, chamando a necessária atenção para o mau estado das estradas em Portugal, para a vergonha que tal representa para o país e para a imagem com que ficam os estrangeiros que nos visitam, enjoados pelos solavancos das viaturas e pelas apertadas e desnecessárias curvas e lombas à espera das devidas rectificações. E igualmente para as pontes que estão com limitações de tráfego, obrigando os utentes a trajectos muito mais longos.

Entretanto o Presidente do IEP, na sua anunciada conferência do balanço de actividade, não deixará de anunciar logo de início: Senhoras e senhores, estou aqui para vos comunicar que a situação da orla costeira é catastrófica, vítima de uma erosão persistente e odiosa que urge combater. E nossa Zona Económica Exclusiva está no mais lamentável abandono. É para esse combate que eu apelo a todos vós e que vos prometo que irei dedicar os próximos dois anos da minha actividade.

E assim, finalmente, o país começará a aperceber-se da gravidade dos seus problemas. O Presidente do Instituto Hidrográfico prestará contas da sua actividade, desabafando a sua comoção pelos problemas da adolescência desvalida e sujeita às piores tentações; o Presidente do Instituto de Reinserção Social virá a público clamar contra a baixa qualificação nas empresas e como a sua competitividade perante o exterior se ressente disso. O Presidente do Instituto de Emprego falará revoltado da situação dos vitivinicultores e da necessidade de apoiar essa actividade exportadora e com tantas e gloriosas tradições. O Presidente do Instituto da Vinha e do Vinho produzir-se-á em público arengando sobre a falta de iniciativas e promoções turísticas em Portugal, vitais para uma actividade que tantas divisas traz para o país. O Presidente do Instituto do Turismo industriar-nos-á sobre o tormentoso estado da agricultura em Portugal e da falta de apoios de que sofre; o Presidente do IDRHa elevará a sua voz de protesto contra os horários e o mau serviço público dos museus. O Presidente do Instituto dos Museus debruçar-se-á numa solene advertência sobre o facto de não estar a ser devidamente dinamizado o investimento estrangeiro em Portugal.

E a vida política e económica conhecerá um dinamismo maior e inesperado ... sobretudo inesperado. Quando o Presidente do IAPMEI entrar, todos os jornalistas estarão impacientes, roendo nervosamente as esferográficas, na expectativa da matéria que será abordada.

O Presidente do IAPMEI levanta-se, pigarreia, bebe um gole de água e começa entusiasmado:
- Chamei-vos para que compartilhem comigo as preocupações que tenho sobre a situação do controlo aéreo em Portugal e da gestão dos aeroportos. Nestes últimos dois anos tenho dedicado toda a minha actividade e sentido do dever público a analisar essa situação e tenho a dizer-vos que ...

Que país magnífico! Que exemplo de devoção pelo serviço público ... dos outros!

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novembro 22, 2004

Cassandra ao Retrovisor

Mário Soares na sua alocução, quinta-feira à noite, no Porto, não fez apenas diagnósticos. Fez também profecias. Profetizou a possível ocorrências de «revoltas descontroladas ou rupturas que podem levar a aventuras, como aconteceu no fim da I República, dando lugar a uma ditadura obscurantista ... A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos».

Há algo de similar entre as profecias de Mário Soares e as de Cassandra, embora seja uma similitude às avessas. Mário Soares é uma Cassandra vista pelo retrovisor.

Cassandra, filha de Príamo, Rei de Tróia, foi dotada com o dom da profecia. Todavia «meteu na gaveta» as promessas que, em troca desse dom, havia feito a Apolo. A punição divina foi pesada: Cassandra continuaria a prever o futuro mas sem poder convencer ninguém da veracidade das suas afirmações. Todo o drama de Tróia aparece pontuado pelas profecias desacreditadas de Cassandra: em vão avisou os troianos da desgraça que se abateria sobre a cidade. Avisou-os que Páris, seu irmão, deveria ser eliminado, pois se vivesse seria a causa da ruína da cidade; avisou-os que a viagem de Páris a Esparta traria desgraças (e ... ele trouxe Helena, raptada); avisou-os que se Helena não fosse devolvida, Tróia seria destruída; avisou-os que o cavalo de madeira deixado pelos Gregos às portas da cidade, como presente, não deveria ser trazido para dentro da cidade ... e ninguém, alguma vez, acreditou em quaisquer das suas profecias!

Na repartição do espólio da Guerra de Tróia, ela foi dada, como cativa, a Agamemnon, o rei de Micenas, para ser sua concubina. Em vão, numa derradeira e inútil profecia, Cassandra anunciou o que o futuro reservaria ao rei e a ela própria, se regressassem a Micenas: a morte às mãos de Clitemnestra, a rainha, e de Egisto, que havia substituído Agamemnon no tálamo real, durante aqueles 10 longos anos de ausência.

Mário Soares anda há anos a fazer profecias completamente inverosímeis, mas que são reverenciadas pelos meios de comunicação e políticos em exercício ou no desemprego. A maldição lançada pelo determinismo histórico, por Soares ter «metido o socialismo na gaveta», foi inversa à da punição divina sobre Cassandra: Soares debitaria profecias cada vez mais insensatas e, em contrapartida, os seus auditórios evidenciariam a mais cândida credulidade.

A inversão da imagem é visível no facto dos troianos deste outro extremo da Europa alegarem que, em vez de os avisar, foi ele próprio quem introduziu o cavalo de pau Frank Carlucci dentro das muralhas da cidade. Alegarem que depois da derrota, enquanto Cassandra foi violada por Ajax e levada cativa por Agamemnon, Soares violou as promessas que havia feito, liquidou politicamente o vencedor Eanes e cativou inexplicavelmente o cargo de PR. Alegarem que, enquanto Cassandra permaneceu sempre fielmente troiana, com Mário Soares nunca se sabe se ele está a ser grego, troiano, ou nem uma coisa, nem outra.

Cassandra, ao profetizar, tornou-se sempre uma das primeiras vítimas da recusa em acreditarem nas suas profecias. Mário Soares, ao profetizar, apenas vitimiza os crédulos que seguem as suas profecias.

Publicado por Joana às 12:02 AM | Comentários (9) | TrackBack

Cassandra ao Retrovisor

Mário Soares na sua alocução, quinta-feira à noite, no Porto, não fez apenas diagnósticos. Fez também profecias. Profetizou a possível ocorrências de «revoltas descontroladas ou rupturas que podem levar a aventuras, como aconteceu no fim da I República, dando lugar a uma ditadura obscurantista ... A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos».

Há algo de similar entre as profecias de Mário Soares e as de Cassandra, embora seja uma similitude às avessas. Mário Soares é uma Cassandra vista pelo retrovisor.

Cassandra, filha de Príamo, Rei de Tróia, foi dotada com o dom da profecia. Todavia «meteu na gaveta» as promessas que, em troca desse dom, havia feito a Apolo. A punição divina foi pesada: Cassandra continuaria a prever o futuro mas sem poder convencer ninguém da veracidade das suas afirmações. Todo o drama de Tróia aparece pontuado pelas profecias desacreditadas de Cassandra: em vão avisou os troianos da desgraça que se abateria sobre a cidade. Avisou-os que Páris, seu irmão, deveria ser eliminado, pois se vivesse seria a causa da ruína da cidade; avisou-os que a viagem de Páris a Esparta traria desgraças (e ... ele trouxe Helena, raptada); avisou-os que se Helena não fosse devolvida, Tróia seria destruída; avisou-os que o cavalo de madeira deixado pelos Gregos às portas da cidade, como presente, não deveria ser trazido para dentro da cidade ... e ninguém, alguma vez, acreditou em quaisquer das suas profecias!

Na repartição do espólio da Guerra de Tróia, ela foi dada, como cativa, a Agamemnon, o rei de Micenas, para ser sua concubina. Em vão, numa derradeira e inútil profecia, Cassandra anunciou o que o futuro reservaria ao rei e a ela própria, se regressassem a Micenas: a morte às mãos de Clitemnestra, a rainha, e de Egisto, que havia substituído Agamemnon no tálamo real, durante aqueles 10 longos anos de ausência.

Mário Soares anda há anos a fazer profecias completamente inverosímeis, mas que são reverenciadas pelos meios de comunicação e políticos em exercício ou no desemprego. A maldição lançada pelo determinismo histórico, por Soares ter «metido o socialismo na gaveta», foi inversa à da punição divina sobre Cassandra: Soares debitaria profecias cada vez mais insensatas e, em contrapartida, os seus auditórios evidenciariam a mais cândida credulidade.

A inversão da imagem é visível no facto dos troianos deste outro extremo da Europa alegarem que, em vez de os avisar, foi ele próprio quem introduziu o cavalo de pau Frank Carlucci dentro das muralhas da cidade. Alegarem que depois da derrota, enquanto Cassandra foi violada por Ajax e levada cativa por Agamemnon, Soares violou as promessas que havia feito, liquidou politicamente o vencedor Eanes e cativou inexplicavelmente o cargo de PR. Alegarem que, enquanto Cassandra permaneceu sempre fielmente troiana, com Mário Soares nunca se sabe se ele está a ser grego, troiano, ou nem uma coisa, nem outra.

Cassandra, ao profetizar, tornou-se sempre uma das primeiras vítimas da recusa em acreditarem nas suas profecias. Mário Soares, ao profetizar, apenas vitimiza os crédulos que seguem as suas profecias.

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outubro 15, 2004

Fábulas de La Louçã

1 - A fábula da vaca e da galinha

Uma vaca e uma galinha ficaram um dia fechadas, acidentalmente, numa sala. Foi um acidente deplorável para os donos da casa porquanto estes tinham muita estima num enorme tapete de Arraiolos que se estendia, magnificamente, pela maior parte do chão da sala. A chave não aparecia. A vaca mugia persistentemente. A galinha cacarejava aflitivamente. Foi o pânico.
Com a mulher aos gritos, o marido deu uma saltada à arrecadação de onde trouxe um pé-de-cabra, um dos mais importantes equipamentos da profissão que exercia no turno da noite.

A porta foi arrombada, ruindo fragorosamente, a galinha saltitava desajeitadamente, a vaca, de espanto, enfiou um dos cornos num canapé Luís XV, penas esvoaçavam pela sala. Mesmo no centro do tapete emergia um novo objecto.
- É um ovo! – exclamou a mulher.
O homem correu a apanhá-lo. Sacudiu a mão nervosamente a mão e comentou:
- Talvez seja. Mas olha que foi a vaca que o pôs!

Moralidades:
1. As aparências iludem;
2. Nunca se contraria uma mulher em pânico;
3. Manter sempre tapetes de Arraiolos (a menos que sejam feitos na China) fora do alcance de vacas e galinhas.

2 - A fábula do Marcelo, do Paes e do Rui

Uma tarde La Louçã fechou numa sala Marcelo Rebelo de Sousa, a criticar o Governo, o presidente da Media Capital, a ter negócios com o Governo, e o ministro dos Assuntos Parlamentares, a acusar Marcelo de fazer comentários de ódio ao Governo. La Louçã abre a porta, aparece um ovo e é corrido o professor Marcelo.

- Quem é que pôs o ovo? Perguntou o fabuloso fabulista

Elementar, caro La Louçã, foi o professor Marcelo. Foi por isso que ele saiu a correr, envergonhado. O patrão apropriou-se do ovo, sob a alegação de ter sido posto por alguém que efectuou a postura ao seu serviço e o ministro dirigiu um ofício ao ministro das Finanças a pedir que fosse liquidado o Imposto de Mais Valias sobre o ovo.

Moralidades:
4. Nunca abras uma porta de repente, pois pode sair de lá o professor Marcelo a correr;
5. Nunca ponhas um ovo, estando o patrão na mesma sala;
6. Nunca te apropries de um ovo com um ministro a assistir, pois podes ser obrigado a pagar as Mais Valias e uma coima por não teres entregue a declaração;


3 - A fábula de La Louçã e da Drago

Um dia, o fabulista La Louçã e a fabulosa Ana Drago fecharam-se numa sala que dá para os Passos Perdidos. Quando Mota Amaral, indignado, arrombou a porta, havia, dentro da sala, e para além deles, um ovo.

- Quem é que pôs o ovo? Perguntou incrédula a Representação Nacional.

Elementar, caríssima Representação, foi o fabulista La Louçã. Ana Drago assumiu já há tempos o compromisso público, por escrito, que nunca serviria de incubadora em nenhuma circunstância.

Moralidades:
7. A frequência dos Passos Perdidos não é aconselhável a quem tenha o colesterol elevado;
8. La Louçã faz da política uma fábula e da fábula a sua política

Entretanto La Louçã vai enviar o ovo para o barco das Women on Waves, para prevenir a hipótese de ele estar galado.

Publicado por Joana às 11:49 PM | Comentários (21) | TrackBack

setembro 04, 2004

Um Filho

Uma mãe olha desolada para o corpo sem vida do seu filho, uma das centenas de vítimas inocentes do massacre da escola de Beslan, na Ossétia. A sua mão pousa, docemente, na testa gelada da criança morta injustamente no alvor de uma vida que se supõe sempre promissora e repleta de esperanças. Os seus olhos estão secos, já não tem mais lágrimas para chorar. Pelo seu olhar vazio perpassam, provavelmente, as imagens dos dias alegres e descuidados em que o seu filho, agora um corpo gelado, ensanguentado, sem vida, se agitava, travesso, estuante de vida, uma vida que ela lhe dera com tanto amor e devoção e que agora lhe fora roubada, de uma forma incompreensível, brutal, criminosa.

Mas na sua mente ainda não houve tempo para se formar um pensamento de revolta. A morte de um filho deixa sempre, como primeiro sentimento, instintivo, de uma fêmea pela sua cria, a convicção que talvez não a tivesse protegido como deveria, que naquele instante supremo, definitivo, havia falhado irremediavelmente. Lembra-se daquele dia fatal, que seria o seu primeiro e último dia de escola, e do que poderia ter acontecido em alternativa, as razões que poderiam ter sido invocadas para servir de escusa à sua ida. Tratava-se apenas do dia da apresentação, que necessidade havia de ter ido? Nenhuma. Tanta coisa poderia ter sido feita e ela não fizera nenhuma. Teria protegido o seu filho como era seu dever? Provavelmente não e ele era um ser tão pequeno ainda, tão inocente, tão frágil, tão dependente do apoio maternal.

Há uma canção dos Delfins cuja letra afirma «quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém». Quem escreveu esta letra nunca cuidou de um filho, nunca lhe deu o ser, nunca o transportou no seu ventre, nunca o viu nascer, nunca lhe deu o amor, a ternura e o carinho que esses seres tão dependentes carecem em absoluto para sobreviverem. Quem escreveu essa letra não sabe o que é uma criança. Quando alguém nasce, se não for de ninguém, não consegue sobreviver muitas horas. Um bebé é completamente dependente, nem é selvagem nem é livre: precisa desesperadamente de alguém que cuide dele, que o acarinhe e o proteja. Uma criança só se torna pessoa pela sua inserção familiar, primeiro, e familiar e social, depois. Até ao ano e meio nem sequer tem a noção do seu eu. Ele, a mãe, o pai e tudo o que o rodeia, são um todo sincrético.

Esta relação de dependência é um elo que une necessariamente a mãe e um filho e que só será resolvido, e sê-lo-á necessariamente, pouco a pouco. Enquanto ele dura, a criança sabe que pode contar com a família para a proteger, alimentar, vestir, conviver. Sabe, e precisa de estar perfeitamente segura e tranquila sobre isso, para bem da sua saúde psíquica e da sua formação equilibrada. E os pais, e a mãe em primeiro lugar, sabem que têm aqueles deveres para com o seu filho, e que se alguma coisa acontecer, eles se sentirão para sempre responsáveis, pois falharam.

Aquela mãe terá tempo de se revoltar contra as circunstâncias que lhe roubaram o seu filho querido. Terá tempo para se revoltar contra os terroristas, monstros horrendos e destituídos de qualquer sentimento humanitário, de uma moral repelente e tenebrosa. Terá tempo para se revoltar contra a incompetência e a frieza das forças de segurança russas. Terá tempo de se revoltar e pedir responsabilidades a todos os protagonistas deste drama.

Agora apenas se interroga: Porquê tudo isto? Que poderia ter feito para ter evitado este desenlace? Onde teria eu falhado? Como é possível o meu filho estar morto?

Publicado por Joana às 06:39 PM | Comentários (18) | TrackBack

julho 28, 2004

O Vírus do Nilo Ataca em 2 Frentes

O vírus de Nilo atacou esta semana em duas frentes. Este ataque dá que pensar e temer dadas as distâncias enormes no eixo do espaço e no eixo do tempo que separam aquelas duas ocorrências. Um dos ataques ocorreu no Algarve em 2004, o outro ocorreu nas margens do Tigre, em –323. O primeiro teve como alvo 2 turistas irlandeses e o segundo, mais mortífero, liquidou Alexandre Magno, que estava então em Babilónia, na dupla qualidade de turista e conquistador.

O Público de hoje refere com bastantes pormenores estas duas acções deletérias do vírus de Nilo. A simultaneidade da notícia não permite interpretações ambíguas: foi um ataque concertado mesmo atendendo às distâncias espaciais (4 mil kms) e temporais (24 séculos) das duas frentes de ataque. Essa concertação extrai-se naturalmente do Público de hoje de J Almeida Fernandes e explica-se cientificamente pela Relatividade Restrita de Einstein.

E há mais e evidentes factores comuns que estabelecem um iniludível nexo de causalidade. Um deles é sobejamente conhecido: turistas irlandeses e Alexandre Magno têm um historial de excessivo consumo de álcool.

Não se sabe, todavia, no que respeita aos turistas irlandeses, se eles estariam no Algarve apenas como turistas ou se, no seu íntimo, não estariam a perpetrar algum plano de conquista. Se tal se verificasse, isso quereria dizer que o vírus de Nilo ataca preferencialmente quem acumula a tripla característica de turista, alcoólatra e conquistador.

Igualmente os laboratórios e os cientistas ainda estão indecisos sobre a responsabilidade daqueles dois ataques. O vírus de Nilo poderá estar a ser acusado injustamente. Em qualquer dos casos, como ao vírus de Nilo escasseia a capacidade de demanda judicial por difamação, quer o Público, quer Semiramis podem estar tranquilos ao pronunciarem estas acusações.

Há uma diferença que foi entretanto detectada: enquanto os nossos brandos costumes tornaram benigna a estirpe portuguesa do vírus de Nilo, na Mesopotâmia é o oposto ... basta ligar diariamente a TV e ver o clima de violência que afecta aí homens, bestas e, por extensão, o vírus de Nilo, afinal vítima inimputável da degradação da vida social naquelas paragens.

Portanto quem pretender demandar plagas distantes com o duplo intuito de turista e conquistador, que se cuide! E não beba! O vírus de Nilo espreita atenta e pacientemente.

Publicado por Joana às 07:31 PM | Comentários (8) | TrackBack

junho 30, 2004

Sempre Perfeito ...

Ganhámos na simpatia, onde poucos nos batem, ganhámos na organização, onde tantas vezes falhamos e onde a maioria estaria descrente, e temos bastantes possibilidades de ganhar dentro do campo, o que muito poucos acreditariam.

Quando eu escrevi, há uma semana, «Perfeito ... até agora», dei conta da forma perfeita como tudo havia até então decorrido e desejei que, independentemente dos nossos resultados desportivos, mostrássemos à Europa que merecemos o respeito, o apreço e a admiração que tantas vezes nos negam.

E isso tem acontecido. O director executivo da UEFA ainda hoje classificou o Euro2004 como o melhor de sempre e que o difícil era encontrar pontos em que a organização não tivesse estado muito bem.

Muitos perguntam-se porque se conseguiu esta extraordinária adesão, este consenso total no apoio e no entusiasmo com a nossa prestação no Euro2004, e não conseguimos a mesma coesão para outros desígnios.

É simples. No caso da selecção, o nosso consenso é no apoio ao seleccionado dirigido por esse espantoso condutor de homens que é Scolari. No caso da comunidade nacional seria preciso um consenso naquilo que podemos fazer pelo nosso país e não apenas digladiarmo-nos para obter aquilo que nos achamos no direito de exigir ao nosso país.

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junho 23, 2004

Perfeito ... até agora

O Euro2004 tem sido, até agora, perfeito. Apesar da situação geográfica periférica do país, centenas de milhares de estrangeiros demandaram Portugal para assistirem ao torneio, ou apenas para estarem presentes durante a sua realização. Apesar do “mata ... mata” competitivo, as claques têm-se comportado com uma correcção notável. Até onde me foi possível observar, Portugal está a constituir um local de estada extraordinariamente agradável para todos esses estrangeiros.

A nossa natural simpatia para com os forasteiros não tem sido afectada pelos rescaldos das pugnas desportivas. Soubemos perder com dignidade, e soubemos ganhar com dignidade acrescida. Ganhámos à Espanha, mas não achincalhámos os espanhóis. Portámo-nos para com eles com a correcção que gostaríamos que tivessem tido connosco se tivesse sucedido o inverso.

Espero ardentemente que tudo isto continue, quaisquer que sejam os resultados desportivos, qualquer que seja o percurso da nossa selecção. Quero continuar a ver nas ruas e nas praças os rostos felizes dos adeptos que nos visitam. Felizes e inebriantes de alegria, porque as suas selecções ganharam, felizes, serenamente, porque se continuam a sentir bem entre nós, apesar das suas selecções terem perdido.

Que aquele troço da Rua da Oura seja uma excepção despiciente na tolerância, correcção e alegria que tem rodeado este evento.

Se isso acontecer, Portugal ganhará sempre o Euro2004. E isso independentemente da selecção que os acasos do futebol levarem à conquista da taça, pois granjeará entre os nossos visitantes o respeito, a admiração e a simpatia pela nossa forma de estar, a nossa tolerância e a nossa hospitalidade, predicados que eles se encarregarão de transmitir aos seus conterrâneos quando regressarem às suas terras. E essa será a vitória mais frutuosa e a mais perdurável.

Publicado por Joana às 07:47 PM | Comentários (30) | TrackBack

junho 21, 2004

Também Jogo Sem Bola

Apaixonei-me pelo futebol. Dou por mim de olhos grudados nos televisor a observar as peripécias do Euro 2004: os adeptos sentados nas bermas dos passeios a beberricarem cerveja em enormes copos de plástico; o tropel de fãs a dirigirem-se para os estádios; a mole imensa das bancadas agitando freneticamente bandeiras, cachecóis ou, os mais deserdados, apenas os braços e as cabeças pintalgadas; a turbamulta a abandonar os estádios, uns exuberantes, na sua exaltante alegria, outros deprimidos, rindo-se nervosamente para as objectivas; e os rios de cerveja a correrem nas noites citadinas, com uns a emborcarem-na, exultantes, para festejarem a alegria da vitória e outros a absorverem-na, lenta mas metodicamente, para diluirem a amargura da derrota e todos irmanados no fim da noite, quer na bebedeira, quer, os azarados de Albufeira, nos calabouços municipais.

Já notei, todavia, que a minha recente paixão futebolística exprime-se de forma diferente da do pessoal cá de casa. Eles excitam-se com as deambulações dos jogadores pelo campo, com aquele passe magistral, de mais de 50 metros, que colocou a bola exactamente em ..., com a desmarcação primorosa de ..., com a precisão e potência do remate de ..., etc., etc .... Outro dia era o entusiasmo por um acrobata toque de calcanhar numa bola executado por um sueco com um nome esquisito, meio eslavo, meio islâmico, que, de costas, mandou o esférico para o fundo das redes. Segundo depreendi foi uma jogada magistral, uma obra-prima de execução.

Eu sou pouco sensível a esses arrebatamentos proporcionados pela actuação dos protagonistas que actuam no relvado. Interesso-me mais por outros protagonistas. Interesso-me pelos panoramas que as objectivas nos trazem das bancadas, dos acessos aos estádios, das praças e avenidas, olho para todo aquele pessoal e, mentalmente, elaboro estimativas sobre a quantidade de gente trajada de amarelo e azul, ou de vermelho e branco, ou de azul e vermelho, ou de vermelho axadrezado, ou ... etc. Depois, mentalmente ... maquinalmente ... calculo os euros que aqueles diversos subconjuntos irão consumir em cerveja, em souvenirs, na restauração, em alojamentos, nas viagens (foi excelente, e de enorme alcance económico, a ideia de andarem a mudar, todos os jogos, as selecções de um estádio para outro) e ... na economia paralela.

Seguidamente olho para o rectângulo relvado e faço figas para que ganhe a selecção do subconjunto cujas estimativas atingiram o valor mais elevado. É um método simples, elementar e neutro: não preciso de saber o nome dos países envolvidos na refrega: guio-me apenas pelas cores, pois as cores das camisolas dos adeptos e as suas pinturas faciais identificam sem ambiguidades as respectivas selecções.

Já tive algumas arrelias. Aquela selecção dos laranjas deveria ter ganho (teria sido prudente terem mudado previamente de cor, pois em Portugal o Junho tem sido aziago para o laranja). Será decepcionante para a nossa balança de transacções com o exterior se aqueles dezenas de milhares de laranjas abandonarem prematuramente o país. Nem quero pensar na quantidade de euros que aquela derrota nos pode custar! Foi um sábado para esquecer, pois no outro jogo, a selecção de um país distante, todos de vermelho, poucos e pobretanas, bateu o pé a uma selecção na qual depositava, e ainda deposito, muitas esperanças em termos de dinamização da procura.

Hoje nada disso aconteceu. As vitória foram indiscutivelmente merecidas, pois as selecções vencedoras eram as que tinham adeptos mais habilitados em termos de poder aquisitivo, pela acção conjunta do seu número e do seu rendimento per capita. Foi uma jornada bem conseguida. Provavelmente valeu 0,05% do PIB.

Muitos ficarão surpreendidos, ou mesmo chocados, em pensar como é possível ter esta paixão pelo futebol e nunca citar a bola. Alguns, mais precipitados em tirar conclusões, dirão que será o desdém próprio de uma intelectual blasée. Nada disso. Ainda hoje, durante a transmissão do jogo que se realizou naquele relvado ao pé do Colombo, o locutor disse, para cima de quarenta vezes, que a selecção que ganhou era especialista em jogar sem bola.

Jogar sem bola parece-me simples. Acabei de o fazer e não me atrapalhei. Será que poderei estar no próximo europeu?

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junho 01, 2004

É Bom Trabalhar nas Obras

Passeando-me outro dia pela Feira do Livro dei com o pavilhão da “Oficina do Livro” que ostentava, em tudo que era sítio, uma frase cheia de intenções sublimes:

«É Bom Trabalhar nas Obras»

É comovente a nostalgia que os intelectuais têm pelo trabalho manual. Não qualquer trabalho. Tem que ser um trabalho duro, árduo, que implique sofrimento, suor, músculos entumecidos, físico extremado, exaurido; o ferro malhando na bigorna, a picareta faiscando na pedreira; sol inclemente, abrasador; as trevas gélidas do fundo da mina; bíceps magníficos, feições duras, angulosas, determinadas; mais suor ... muito suor ... e os bíceps ... ah! Aqueles bíceps!

Neste imaginário obreirista não colhe qualquer trabalho manual. Empregado(a) de balcão ou de mesa não têm estatuto. Afixar «É Bom Servir à Mesa» seria despiciente. Servir à mesa? Bah! Afixar «É Bom Estar Atrás de um Balcão »? Pior! Poderia ser tomado como um insulto para as enfadadas funcionárias que estavam dentro do pavilhão ... atrás do balcão. Algo como o «Arbeit Macht Frei» que encimava os portões que acolhiam os “clientes” de Auschwitz.

Afixar «É Bom Estar no Fundo da Mina» resultaria incompreensível. As poucas que ainda existem, no nosso país, estão à beira da exaustão. Restam as obras. Pois que o nosso ícone seja «Trabalhar nas Obras»!

Portanto os nossos intelectuais idealizam aquilo que os nossos não-intelectuais abominam: Trabalhar nas obras. Recrutamos ucranianos para trabalharem nas obras, quando afinal existem tantos intelectuais nostálgicos, aspirando por empunharem a picareta, acarretarem baldes de massa, empilharem tijolos, empoleirarem-se nos andaimes ... o Nirvana!

Antero de Quental, influenciado pelo “obreirismo” de Proudhon e à imagem deste, partiu para Paris para exercer a profissão de tipógrafo. Como bom diletante intelectual português, não lhe servia uma tipografia na Coimbra onde estudara, nem na Lisboa queirosiana. Além do que os tipógrafos portugueses eram-lhe conhecidos ... gente inculta, analfabeta, que não compreendia a elevação dos seus pensamentos. Paris sempre é Paris!

Antero deu-se mal com a experiência: os tipógrafos reais, mesmo os parisienses, não eram os mesmos dos ícones obreiristas e anarquistas dos livros que lia e que escrevia, mas era o Antero, oriundo de uma família burguesa, licenciado em Coimbra, enfim, tudo o que há de mais inadequado para tal experiência.

Os intelectuais da “Oficina do Livro” serão, provavelmente, mais bem sucedidos.

Mas, se falharem nas obras, poderão sempre encetar uma carreira mais próxima do ideal e da ambição do intelectual contemporâneo 3º-mundista: ir mondar arroz para o Bangla-Desh; ir, no âmbito de uma ONG, para Fallujah ou para a Faixa de Gaza ... ou talvez descarregar sacos de farinha na Africa Central; etc., etc..

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janeiro 06, 2004

Os Reis Magos: O Cenário Neo-liberal

Demonstrou-se, no capítulo precedente, que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tinha poder explicativo na sua formulação tradicional.

A minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.

A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos Livros (cujo território se cinge a um espaço exíguo na Baixa lisboeta; rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); “o Rei” (Elvis Presley); etc..

Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.

A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?

Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.

Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?

Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?

As respostas são doravante simples e elementares:

Quem são esses especialistas? – Economistas;

Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;

Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra.

Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo o parecer que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluído no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal se deixava embalar com balelas.

Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.

Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar as prendas para festejar as Saturnalias e a bolsa estava sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.

Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.


Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.

Publicado por Joana às 11:58 PM | Comentários (28) | TrackBack

Os Reis Magos: O Cenário Tradicionalista

Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela?

Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.

Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus.

Um primeiro cenário era elementar por uma questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram em conjunto centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante dos camelos, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.

Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:

1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato “Santanista” de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;

2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice público nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública reagiria mal à saída para destino incerto, atrás de uma estrela, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias.

3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese de os Ministros da Defesa, eventualmente indicados por facções de menor expressão eleitoral, quisessem evidenciar o seu protagonismo político. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar verba para custear a escolta.

4 – Mas o que definitivamente invalida este cenário é a inexistência de jornalistas embedded na caravana régia. Nem sequer jornalistas perdidos na imensidão do deserto, segundo os usos de um país do extremo ocidente europeu, sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.

Portanto, apenas hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice público e de défice de transacções com o exterior; ausência de escolta; ausência de jornalistas embedded ou apenas transviados, etc.

Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam.

Sendo assim impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, a estudar no próximo capítulo.

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dezembro 23, 2003

Luta de classes em aviões de longo curso

A história de toda a sociedade até agora é a história de lutas de classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões e servos, burgueses e operários, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta” escreviam Marx e Engels em 1848.

Inesperadamente, no início de 3º milénio, essa luta alastrou à aviação de longo curso, com o aparecimento da “síndrome da classe económica”. Está assim estabelecida uma perigosa e mortal clivagem entre a classe económica e a classe executiva, uma luta que ameaça dirimir-se, na aviação de longo curso, a mais de uma dezena de kms de altura.

Alguns reformistas e adeptos das teorias da conciliação de classes têm feito estudos e sugerido que o termo “síndrome da classe económica” deveria ser evitado e devia passar a denominar-se “trombose do viajante".

Mas trata-se claramente de uma situação classista. Basta observar que as prescrições para acautelar o aparecimento da “síndrome da classe económica” exigem evitar a permanência nos lugares, movimentar os pés e as pernas, estendendo-as e flectindo-as, como se se estivesse a trabalhar com uma máquina de costura (um dos penosos trabalhos das operárias do início do século passado), evitar estar sentado com as pernas muito dobradas ou cruzadas, etc..

Obviamente, tudo o que requer esforço físico, recurso a simulações de trabalhos da fase do capitalismo manufactureiro, etc., se torna obrigatório para a “classe económica”, para ela se eximir a um destino porventura fatal, enquanto que os membros da “classe executiva” estão regaladamente sentados, sorvendo whisky, diletando deliciosas frivolidades entre si, perfeitamente indiferentes ao drama social que se vive na outra extremidade da aeronave.

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novembro 28, 2003

Fare il portoghese

Regressando à nossa arte do dever, a expressão que em italiano designa o entrar em algum local sem bilhete de ingresso, à borla, é:
Fare il portoghese“ – Fazer de português.

Muitos pensarão que aquela frase idiomática é a lídima expressão popular (italiana) da nossa reconhecida capacidade de “cravar” o próximo. Dirão: a nossa reputação já chegou a Itália e há longa data!

Desta vez, curiosamente, estariam enganados. Nas festividades decorrentes em Roma durante a embaixada que D. João V enviou ao papa Clemente XI, este, maravilhado com o fausto dessa embaixada, determinou que os cidadãos portugueses fossem dispensados de pagar os ingressos nos espectáculos realizados para festejar o evento.

Os súbditos dos Estados Papais, aqueles que no dizer de Stendhal, tinham um “soberano que fazia a felicidade deles no céu e a sua desgraça na terra”, como bons romanos, compareceram em massa aos espectáculos, tentando entrar à borla dizendo-se portugueses. A perseverança destes romanos a fingirem ser portugueses foi de tal monta que, a partir daí, em Roma e depois no resto da Itália, “fare il portoghese” passou a designar os borlistas.

Como o mundo é injusto! Eis como a principal “boutade” estrangeira aparentemente dirigida à nossa refinada arte de ficar a dever ao próximo, de sermos borlistas, radica-se afinal no comportamento dos compatriotas daqueles que cunharam e puseram a circular aquela expressão idiomática.

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novembro 03, 2003

Intolerâncias

Era uma vez um rapaz, filho de um pedreiro, que foi para a ex-URSS fazer um curso de engenharia, ao abrigo de algum protocolo da Associação de Amizade Portugal-URSS.

Fez o curso em Kiev. Acabou o curso, julgo que um ou dois anos antes da implosão da URSS. Durante a sua permanência na Universidade de Kiev conheceu uma moça síria, do mesmo curso que ele. Casou com ela e vieram para Portugal, onde ambos arranjaram emprego com alguma facilidade.

Tiveram uma filha. Entretanto a moça resolveu ir visitar a família à terra dela. Não voltou, nem escreveu mais.

Inquieto com a situação fez várias diligências para saber da moça. Descobriu que era a família que não a deixava regressar.

Muniu-se de uma cópia da certidão do casamento, traduzida em árabe e autenticada e de toda a papelada que o advogado dele considerou pertinente para o efeito e demandou as terras da Síria.

A família da moça morava em Dair-as-Zor, uma cidade do interior, nas margens do Eufrates, a cerca de 100 kms da fronteira iraquiana.

Ele foi a Dair-as-Zor escoltado por um polícia sírio. Dormiu na esquadra da polícia enquanto lá esteve. Nunca conseguiu chegar à fala com a moça, nem vê-la. A família, nomeadamente os irmãos (ela tinha 6 irmãos) não deixou vê-la. A polícia aconselhou-o a regressar. As autoridades sírias não fizeram o mínimo esforço para repor a legalidade da situação.

Ele regressou a Portugal. Viu-o tempos depois com a filha. Era uma miúda loirinha, amorosa. Ela deve ter agora 12 ou 13 anos. Segundo me informaram, há tempos, ele refez a sua vida afectiva, na medida do possível (julgo que terá dificuldade em divorciar-se e nem sei se quererá). Encontrou uma companheira.

Quanto à moça síria, ninguém sabe o que foi feito dela. Estará ainda viva? Continuará encarcerada na casa familiar, segregada do resto do mundo?

Não era uma camponesa, não era uma analfabeta. É uma moça que tem um curso de engenharia, que afinal não lhe serviu para nada, e que se apaixonou por um rapaz português, um doce afecto que a conduziu à amargura de se ver enclausurada e segregada do mundo. Nunca a conheci pessoalmente, mas sempre que este assunto vem à baila, é sempre nela que penso em primeiro lugar, com muita tristeza, muita amargura e muita ... muita revolta.

Durante o domínio árabe, o Ribatejo era designado por Balatha (provavelmente daí o toponímio Valada, omnipresente naquelas terras). Era uma das regiões mais florescentes do Califado Omíada de Córdova. Aquela moça havia afinal regressado a uma terra que os seus correligionários tinham deixado há quase um milénio. Mas a intolerância religiosa e a cegueira da tradição não permitiu que esse regresso se concretizasse.

Publicado por Joana às 08:59 PM | Comentários (11) | TrackBack

outubro 08, 2003

Bob ... errei ...

Bob, venho humildemente confessar que errei. Lamentável equívoco! A nossa civilização tem gente sensata, mas também insensata, amável, mas também irascível, intelectualmente brilhante, mas também analfabeta total ou funcionalmente (como eu ingenuamente pensei que fosse apenas esse o seu caso), etc.. Porém, age segundo esquemas lógicos comuns sedimentados por uma vivência multisecular. As nossas idiossincrasias já fazem parte do nosso património genético.

E assim, quando lêem o texto dos outros, apreendem os respectivos conceitos (quando o conseguem) e argumentam em conformidade. Não o esquartejam no leito de Procusta, o tornam irreconhecível e deitam os bocados aos cães. E discutir restos é tarefa para o pessoal da recolha dos RSU e não para mim.

Na verdade, Bob, você é de outra civilização. O que é substantivo em si, face aos meros ícones que o ligam à net (teclados, monitores, etc.), é o bracelete entrançado de sisal que lhe enfeita o tornozelo, o osso que lhe perfura orgulhosamente o nariz, a pedra enorme embebida no seu lábio inferior, que você chocalha ritmicamente quando se dirige ao P Pedroso, o soberbo cocar coberto com penas amarelas, pretas e vermelhas agitadas ao vento, as palhinhas que lhe tapam o períneo e as pinturas guerreiras que lhe esmaecem nas faces e ao longo do corpo, juntamente com a missanga e as conchas que se lhe dependuram nas orelhas.

Na sua memória perpassam os avatares de uma vida no seio da natureza primitiva que o rodeia: circuncidado em criança pelo sílex afiado do feiticeiro da tribo, que ainda hoje se penitencia pelo resvalar lamentável do golpe; a sua caçada, ao iniciar a idade adulta, onde os jovens da tribo foram, disparados, atrás da onça, e você, empolgado, em sentido oposto, atrás dos gambozinos e a única coisa que apanhou foi uma descompostura dos anciãos extenuados após 2 semanas à sua procura.

É verdade que desde que o G7 anunciaram, há anos, que ia ser promovido o uso da informática no 3º mundo, e lhe dependuraram o PC oferecido à tribo num embondeiro distante, para o manterem prudentemente longe da senzala, numa savana a perder de vista, que você tecla caracteres latinos, embora encadeados de forma aleatória e desconexa (excepto quando descamba para a má criação). Todavia, os conceitos que existem são cliques ao estilo dos quiocos, Ugh’s guturais e ásperos.

Enviarem-lhe missionários? Nem pensar nisso, pois correm o risco de acabarem no caldeirão, para você partilhar, de uma forma mais concreta, o Conhecimento com eles.

A melhor solução é deixá-lo aí, na civilização a que pertence, em equilíbrio com o ecossistema de que faz parte. Ainda tem uma idade tenra. Ao pé de si sou, de facto, uma espécie de avó! Mais alguns séculos (ou milénios) e estará civilizado.

E é aí que eu o vou deixar, Bob! Não tenho vagar, nem paciência, para manter diálogo com uma civilização tão diferente e primitiva.

Escrito em 2003-10-08

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