dezembro 30, 2004

Punir o Bota-abaixo Obstrucionista

Em 5 de Dezembro escrevi aqui (cf. O Túnel pela culatra) que o causídico das «causas populares» José Sá Fernandes deveria ser cauteloso e evitar passear-se por aquela zona, enquanto os moradores e comerciantes locais não esquecessem o sofrimento por que têm passado. Muitos comentadores desdenharam então dessa afirmação e auguraram uma promissora carreira a uma das mais proeminentes figuras do «não deixar fazer nada» à portuguesa.

Hoje soube-se pelos jornais que um grupo de moradores e comerciantes que se sentem prejudicados pela interrupção de sete meses das obras do túnel do Marquês, em Lisboa, constituíram a "Comissão de Lesados por Sá Fernandes", e admitem avançar para tribunal para exigir indemnizações pelos prejuízos que sofreram pela paragem da construção do túnel em Abril. Segundo um dos impulsionadores da comissão, esta já reúne cerca de uma centena de pessoas, residentes e comerciantes da área afectada pelas obras e mesmo gente que não sendo da zona, a utilizava e que sofreu graves transtornos.

Não me parece que essa acção tenha pernas para andar. Afinal de contas quem ordenou a paragem das obras foi o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa. Sá Fernandes apenas interpôs a «acção popular» que se veio a revelar uma «acção muitíssimo impopular»! Provavelmente a intenção dos moradores é que aquela comissão constitua uma espécie de providência cautelar contra futuros delírios cívicos daquele advogado

Todavia é bom que Sá Fernandes saiba que o seu protagonismo em impedir a realização de obras sob a epígrafe revolucionária de «acção popular», só é popular entre os amigos dele e os meios de comunicação social. E nestes, apenas até concluírem que a população está irada, assestando então baterias em sentido contrário ... audiências oblige.

Em Portugal, quando se pretende fazer qualquer coisa, seja a nível do governo, seja a nível autárquico, seja mesmo a nível de grupos de cidadãos para fazer um simples parque de estacionamento subterrâneo, levanta-se imediatamente um coro de protestos dos quadrantes mais inesperados. Tudo serve para tentar impedir a realização de qualquer empreendimento: a mentira ou as meias-verdades insidiosas, a calúnia mais torpe, a chicana, a intriga, a gritaria, providências cautelares, manifestações, etc.. Todos os meios possíveis são mobilizáveis na cívica e patriótica tarefa de impedir que algo seja feito.

Se exceptuarmos o futebol, que foge a esta regra por estar dominado por gente despicienda do ponto de vista intelectual, Portugal atinge o máximo da sua exaltação patriótica e cívica quando os intelectuais p.c. (politicamente correctos) e os órgãos de comunicação social, colonizados por eles, mobilizam as forças vivas da Pátria para a ingente tarefa de não deixar fazer nada.

É esta mentalidade obstrucionista que tem que acabar. Ela não corresponde à vontade do povo português, mas apenas a uma fina camada urbana arrogante e convencida que detém a verdade absoluta, verdade que parece ser a vontade do país, apenas porque controla a informação.

Há cerca de 3 anos fui a Évora em serviço, no preciso dia em que se realizava uma manifestação ambientalista para protestar contra a Barragem do Alqueva, exigindo a cota 139. De início não me apercebi de nada. Reparei apenas que muitas árvores das praças da cidade tinham fitas pretas atadas ao caule. Quando ia a chegar à Praça do Geraldo, uma adolescente com uns ramos entrançados encimando a cabeça, lembrando a coroa de espinhos, distribuía uns prospectos, perante a indiferença, e mesmo hostilidade, da população.

Já estava eu na Praça do Giraldo quando esse pessoal se reuniu no centro da praça e clamou repetidamente o refrão «Cota 139». Não deveriam ser mais de 30. Dezenas de repórteres, com apoio de vários carros de exteriores, afadigavam-se à volta daquele grupo, tentando obter as imagens mais favoráveis. Quando acabaram as imprecações, o pessoal subiu para o autocarro que o tinha levado até àquela cidade alentejana e foi-se embora. Os eborenses ignoraram completamente aquela incursão dos «bem pensantes» de Lisboa.

E de facto, o plano de rega que faz parte do projecto do Alqueva, que ultrapassa Ferreira do Alentejo e Odivelas, só é possível com uma cota que permita o transporte por gravidade até zonas tão distantes, minimizando o custo de energia em Estações Elevatórias. É a cota 152 que permite esse plano de rega e a população interpelada pelos excursionistas ou sabia isso, ou apenas estava farta de intromissões estúpidas e arrogantes nas suas vidas.

Mas não é apenas nestes níveis que o não fazer nada prevalece, ou tenta prevalecer. O principal cuidado de qualquer gestor público que se preze e que pretenda singrar nas sinecuras estatais, é evitar tomar decisões. Tomar uma decisão é o acto mais atrevido e arriscado que um gestor público pode fazer. Um gestor público pode ser punido ou enxovalhado publicamente por tomar uma decisão. Passará completamente desapercebido se evitar tomar decisões. O gestor público é premiado, não pelas decisões que tomou, mas pelo patriótico empenho em não tomar qualquer decisão.

Essa mentalidade, muito arreigada no nosso país, e, hoje em dia, curiosamente sustentada primordialmente por aqueles que se arrogam de progressistas e de terem o futuro nas mãos, tem que ser erradicada porque é, desde há séculos, um dos maiores obstáculos, senão o principal, ao desenvolvimento do país.

É esse dever cívico de contrariar aqueles que não deixam fazer nada, que se impõe presentemente ao povo português. Era imperioso que o povo português se consciencializasse, ganhasse voz (não a voz daqueles que se arrogam permanentemente de serem as suas vanguardas conscientes) e se organizasse para pressionar para se fazerem coisas, em vez de assistir, nas TVês, à proliferação de pseudo-organizações do apostolado da inércia, que não representam ninguém, e cujas dezenas de membros estão igualmente filiadas em centenas de outras pseudo-organizações que não passam de emplastros emolientes.

É essa recusa à mudança e à inovação, misturada com a mesquinhez e a inveja, que constitui a amálgama mortífera que se opõe ao nosso desenvolvimento. Contribuir para a sua erradicação é o dever de todos nós.

Publicado por Joana em 07:55 PM | Comentários (52)

dezembro 29, 2004

Balanço Negativo

O fim do ano aproxima-se e é tempo dos balanços. Infelizmente o balanço não é positivo e as perspectivas futuras são ainda mais negativas. Em fins de 2003 e no início deste ano as perspectivas eram animadoras embora reservadas. Os indicadores macroeconómicos do país acusavam então uma evolução positiva. As diminuições do consumo privado e público haviam conduzido a uma forte retracção da procura interna. Como a propensão marginal à importação é muito elevada, nomeadamente em flutuações marginais da procura interna, essa retracção havia levado a uma importante quebra das importações.

Como a quebra da procura interna foi parcialmente compensada pelo aumento das exportações (procura externa), esta conjugação de factores permitiu um maior equilíbrio da Balança de Pagamentos (que passou de cerca de –9% do PIB em 2001 para cerca de –2,5% em 2003) e, portanto, a uma situação mais saudável da economia portuguesa. O facto de, com a crise internacional, as nossas exportações terem tido um aumento significativo, era um bom sinal.

Já era mais preocupante a forte quebra na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), embora o Governo afirmasse então que se tratava do investimento menos produtivo e, por isso mesmo, de menor impacte no crescimento económico. Mas não levei na altura aquela afirmação muito a sério, porquanto nessa FBCF se contabilizavam, certamente, os montantes despendidos nos estádios para o Euro 2004 que não era, de forma alguma, um investimento produtivo.

Outra situação preocupante era a Ministra das Finanças revelar-se incapaz de controlar o défice pelo lado da despesa, como seria o desejável. Portanto o montante do défice iria depender das receitas geradas pelo hipotético aumento da actividade económica.

Infelizmente os maus presságios confirmaram-se e as previsões optimistas goraram-se. O aumento da procura interna do primeiro semestre traduziu-se num acentuado aumento das importações, enquanto as exportações têm patinado, devido à estagnação da competitividade do sector exportador português, potenciada pela queda do dólar, em cerca de 8% durante 2004. A conjugação desses dois factores agravou o défice da nossa Balança de Pagamentos, invertendo a tendência verificada no ano de 2003.

O Euro 2004 contribuiu para o melhor clima económico sentido no primeiro semestre. Mas esta melhoria não era sustentável, porquanto não resultava de nenhuma situação estrutural, mas de uma situação meramente conjuntural. Além do que o governo de Durão Barroso havia perdido a sua inicial fúria reformista, fúria que aliás era mais verbal que real. Verba non res foi a divisa de Durão Barroso. Havia no governo de Barroso diversos ministros e secretários de Estado cuja remodelação era urgente e o chefe do executivo foi adiando essa remodelação, por razões que não consigo atingir, mas que julgo deverem ser procuradas na sua falta de coragem política, de preferência a qualquer estratégia política suicidária.

A saída de Barroso e a sua substituição por Santana Lopes trouxe objectivamente uma melhoria. A equipa ministerial de Santana, com uma ou outra excepção, era claramente melhor que a anterior. Foi um governo que desenvolveu uma grande actividade para um tempo de existência tão reduzido. Meteu ombros a reformas que exigiam grande coragem política e que, até então, todos os governantes tinham evitado.

Todavia algumas dessas reformas pecavam por diversos erros. A Lei do Arrendamento Urbano era insuficiente, privilegiava o comércio perante a habitação, e os condicionalismos impostos aos aumentos das rendas comerciais tornavam esses aumentos praticamente impossíveis. Por outro lado aquilo que é um travão ao funcionamento do mercado de arrendamento é o incumprimento contratual da maioria dos inquilinos que já celebraram os contratos de arrendamento no regime de liberdade contratual, posterior a 1990. Aliás a dificuldade em cobrar dívidas em Portugal é um travão ao funcionamento de todos os mercados, e não apenas o do Arrendamento Urbano. Neste último caso é duplamente grave pois, além de não pagarem renda e da morosidade das acções de despejo e das acções de execução da sentença, o senhorio recebe uma casa que necessita de obras de recuperação.

Há que desburocratizar o regime jurídico que vigora nestes casos, de forma a facilitar os despejos por não pagamento das rendas e agilizar todo o processo de cobrança coerciva das dívidas. Portugal é um paraíso para os caloteiros. Um dos sustentáculos do bom funcionamento de uma economia de mercado é a protecção da propriedade privada. Ora um caloteiro rouba, objectivamente, a propriedade de outrem e, em Portugal, fica impune, a menos que as dívidas sejam importâncias suficientemente vultuosas que sustentem as custas de acções judiciais. Mas mesmo assim, cobrar uma dívida sai caro e é um processo muito moroso.

Se objectivamente o governo de Santana Lopes constituía uma melhoria, subjectivamente foi ferido de morte pelo comportamento do PR e pelo vampirismo da Comunicação Social que o comportamento do PR incentivava. Foi a demora caricata, excessiva e injustificada na indigitação do governo; foi o discurso de posse, que era um convite à instabilidade social e mediática; foram diversas atitudes durante aqueles quatro meses que diminuíram a força política do governo, sempre sob a permanente ameaça de demissão. Não era possível governar naquelas circunstâncias, com a permanente oposição do PR e o vampirismo mediático estimulado pela fragilidade institucional do governo.

A dissolução da AR e a demissão do governo foi o corolário lógico de todo este processo nefasto.

Portugal está numa situação muito difícil. Objectivamente já aqui a descrevi por diversas vezes. Mas subjectivamente é pior. Os portugueses vivem na ânsia de esmolar o Estado, desde as empresas até aos agentes culturais. Temos graves carências a nível da instrução pública e na qualificação científica e profissional. Ansiamos por sinecuras e empregos que sejam asilos e somos avessos ao risco, à mudança e à mobilidade profissional. Temos um aparelho estatal desproporcionado que funciona pessimamente. A nossa sociedade está compartimentada em corporativismos poderosos que rejeitam obstinadamente qualquer mudança, quaisquer reformas. E esses corporativismos não existem apenas no sector público, pois também subsistem no sector privado.

Todavia, nos últimos vinte anos têm ocorrido melhorias no sector privado, mais dinamismo, mais capacidade de conviver com o risco. Há sectores industriais e de serviços que conseguem uma boa performance em concorrência com o exterior. Aliás a produtividade do nosso sector exportador tem crescido muito mais rapidamente que a do resto da nossa economia. Se não tivesse sido assim, Portugal estaria presentemente falido.

Mas se o sector privado tem experimentado algumas melhorias, embora muito insuficientes, o mesmo não acontece, antes pelo contrário, no sector público, onde magistrados, professores, médicos, função pública em geral, estão cada vez mais refractários a mudanças que belisquem minimamente interesses instalados, muitas vezes ilusórios.

E o que se perspectiva no horizonte não é brilhante. Escolher entre os que não conseguiram resolver a crise económica e financeira e aqueles que a criaram e ainda não se deram conta disso é uma tarefa difícil, nomeadamente quando estes últimos acenam com miragens não concretizáveis, mas substancialmente mais atractivas que a nudez forte da verdade.

Ler ainda sobre esta questão:
Da Importância de um PEC
Aspirina ou Benuron?

Publicado por Joana em 11:06 PM | Comentários (26)

As Duas Visões de Semíramis

Semiramis Recamier_Viva e Morta.jpg

Publicado por Joana em 06:50 PM | Comentários (27)

Confesso ... plagiei

É verdade ... tenho que reconhecer. Plagiei. Plagiei-me a mim mesmo e à minha desventurada maninha mais nova! E conto esta história apenas por dois motivos:

1 – Porque ela é deliciosa, quando enquadrada com o que as azémolas contumazes da net têm andado a escrever por tudo o que é blogosfera;

2 – Porque já a havia contado por mail, ao Bernardo Motta, do Afixe, há uma semana. Eu devo ter o dom da premonição ... parece que adivinho o futuro. Calhou contar então esse episódio, nesse mail, por mero acaso, porque se não o tivesse feito, não diria nada agora, pois não faltariam depois as azémolas do costume a zurrar que eu havia inventado esta história.

Há uns 12 anos, teria a minha mana mais nova 14 anos, precisou de fazer um trabalho escolar e, já não me lembro a que propósito, escolhemos (ela conversou comigo sobre essa escolha) o número de ouro como tema.

Um amigo do nosso pai (e nosso também, por afinidade), catedrático do I S Agronomia, julgo que, à época, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, emprestou-nos aqueles números do Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática. Eu encarreguei-me da parte matemática e de algumas partes do texto (sou mais velha 9 anos que ela) e ela das imagens e das partes mais artísticas. Ela é toda dada às artes e já estava na calha para Arquitectura, onde se formou há 2 anos.

O texto foi então feito em WordPerfect e não consegui, naquele domingo em que escrevi os 5 textos do Descodificando o Código da Vinci(*), recuperar tudo para o Word, nomeadamente umas imagens giríssimas da explicação do friso do Parténon em termos do rectângulo de ouro. Mas se estiverem interessados consultem os números que referi daquele Boletim. Em qualquer dos casos, o que postei foi um resumo do trabalho.

O que nos tem feito rir às escancaras é aparecerem, segundo os azémolas contumazes da net, distintos professores e alunos universitários, com textos semelhantes ao nosso. Será que tão ilustre gente foi vasculhar os trabalhos dos miúdos da Escola Secundária onde a minha irmã (e eu antes dela) andou? Claro que não. Fomos todos beber às mesmas fontes.

Entretanto verifiquei agora que o incansável e inefável LR descobriu, depois de ter escrito os primeiros disparates e ter passado o resto do dia a trabalhar neste momentoso problema, que aquele Boletim está on-line. Peço-lhe, após esta sua notável e tardia descoberta, que não se esqueça agora de acusar, em pelourinho público, aquele catedrático que, ainda esta manhã, era para si o repositório do saber e da ética científica. Andou a chamar-me tantos nomes e afinal o ex-reputado “professor Machiavelo também é um reles ladrão” (Luis Rainha em dezembro 29, 2004 01:05 PM)

Foi pena eu não ter sabido, naquele domingo tão extravagante, que aquele boletim já estava on-line, senão tinha ido lá sacar as imagens que não consegui converter do WP. ... Sou mesmo uma plagiadora relapsa ... diga lá!!


(*) O que é um espanto, e diz bem da forma como, em Portugal, despendemos tempo e energias com coisas inúteis, é que eu devo ter gasto umas 7 a 8 horas com aqueles 5 textos que são, repito, apenas textos de blogue e não uma dissertação de doutoramento. O LR já deve ter gasto muito mais que isso em navegações netívagas, em escritos tumultuosos por tudo o que é blogosfera, a roer nervosamente os sabugos, temeroso de possíveis respostas mordazes, a tomar ansiolíticos, a sovar desnecessariamente a companheira sempre que, após cada 40 irritantes passagens pelo Google não encontra o que quer.

Enfim ... uma vida tornada estupidamente inútil

Publicado por Joana em 06:40 PM | Comentários (44)

dezembro 28, 2004

Quando os não factos são notícias

O país estava carente de notícias. É certo que a catástrofe do Índico, que deve ter ceifado cerca de cem mil vidas, foi um maná para a sede sanguinolenta das nossas Tvês. Com que luxúria se lançaram sobre aquele pesadelo, com repórteres afadigados na perseguição de traumatizados, questionando-os sobre o cataclismo, tentando sacar as imagens mais arrepiantes possíveis. Mas não há nada que se compare com uma boa zaragata nacional.

Se não há notícias, nada como criá-las. O «Diário Económico» noticiou hoje que o Ministério da Segurança Social ordenou a suspensão do pagamentos dos subsídios de doença e de desemprego que deviam ser efectuados nos últimos dias de Dezembro, com o objectivo de transferir despesas para o próximo ano, aliviando a execução orçamental de 2004.

A razão apontada é pouco consistente. O défice orçamental avalia-se em termos de compromissos (custos e receitas) e não em termos de fluxos financeiros (pagamentos e recebimentos). Portanto parte daqueles fundos já estaria incluída no défice. Por outro lado os valores em causa são irrelevantes quando comparados com os montantes da despesa pública e do défice. Não excluo liminarmente que houvesse tentativa de protelamento de pagamentos, como tem acontecido, desde sempre, com mais frequência do que seria desejável, mas, se tal tivesse acontecido, seria por questões pontuais de tesouraria.

Aliás, o Ministro das Finanças, que é o responsável pelo orçamento, desmentiu, através de uma porta-voz, recorrer a «eventuais» atrasos no pagamento dos subsídios de desemprego e doença para controlar o défice orçamental de 2004, afirmando que «não deu qualquer ordem ou orientação nesse sentido» e desconhece «eventuais atrasos» no pagamento daquelas prestações sociais, a cargo do Ministério da Segurança Social. E acrescentou que alegados atrasos «a existirem, nada têm a ver com controlo do défice, cujas contas estão feitas e foram já explicadas». O Ministério da Segurança Social desmentiu igualmente a notícia.

As notícias referem-se a alegados factos, mas os protestos foram verdadeiros, coléricos e arrebatados. Carvalho da Silva apelou a uma revolta nacional e afirmou, com a segurança de quem sabe ser ele próprio um dos principais responsáveis por isso, que «o país assim não se desenvolve». As oposições reagiram indignadas gritando "a sua profunda indignação pela ignóbil atitude do governo”. As notícias foram desmentidas, mas os protestos mantiveram-se. Apenas deixaram de ser protestos contra as notícias ... passaram a ser protestos contra as alegadas notícias.

A TVI conseguiu mesmo, após uma devassa exaustiva, descobrir duas pessoas, no Algarve, uma em Faro e outra em Loulé, que se queixavam de atrasos no recebimento de subsídios.

Louvemos em piedosa atitude estas duas modestas algarvias que, heroicamente, sozinhas, sustentam o défice da nossa Pátria. Sem o seu patriótico, abnegado (e forçado) contributo, a Pátria, e os seus egrégios avós, estariam agora a contas com os empedernidos contabilistas do Eurostat. Louvemos igualmente a TVI por nos dar a conhecer quem, tão devotadamente, é o sustentáculo do nosso precário equilíbrio orçamental. Nunca tão poucas, valeram tanto.

E louvemos o heróico Director do Diário Económico que, segundo ele próprio, e já desesperado por ninguém reconhecer o seu merecimento, apareceu nos jornais televisivos das 20H00 a vangloriar-se de se dever a ele, e à sua notícia, que os subsídios de doença e de desemprego vão ser pagos.

É bom ser-se Director de um jornal. Diz-se que havia no Pireu, na clássica Atenas, um louco que se reclamava dono do porto e de todas as embarcações que o demandavam. Um director de um meio de comunicação, com a empáfia de Martim Avillez, pode reclamar-se de ser o motor de tudo o que aconteça. Basta noticiar que um facto notório não vai acontecer e aparecer, depois, a clamar ... olha se não fosse eu!

Amanhã o Sol não tem intenções de se levantar, asseguro-vos. Mas se ele despontar, desde já afianço que só o fará devido ao escândalo abjecto que eu acabo de denunciar publicamente, neste blogue. Portanto, se ele nos iluminar amanhã ... a mim o devem.

Publicado por Joana em 10:57 PM | Comentários (48)

Ucrânia, a Fronteira

Uma digressão geográfica

Ukraina significa confins, fronteira longínqua, e a Ucrânia, ela própria, constituiu sempre uma fronteira entre a Europa e a Rússia e estepes asiáticas. E essa fronteira passava por dentro da actual Ucrânia, como a história o mostra e os mapas seguintes o provam. E essa fronteira interna, foi a fronteira entre Iuschenko e Ianukovitch, entre a base de apoio de um e de outro, entre a Ucrânia mais europeizada e a Ucrânia mais russificada.

Para tentar explicar a clivagem existente entre as bases de apoio de Iuschenko e Ianukovitch, nada melhor que olharmos a evolução geográfica das terras actualmente constituintes da Ucrânia e sob que domínio estiveram.

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Vemos na viragem do milénio o Principado de Kiev, que russos e ucranianos reclamam com origem, e a costa sul dominada pelos petchnegos

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A geografia em 1200, mostra o desmembramento desse principado, durante os 2 séculos seguintes

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A continuação desse desmembramento em 1300, e a emergência da Lituânia. Os lituanos, que se tinham mantido pagãos apesar das cruzadas dos cavaleiros teutónicos, vão durante um século XIV, construir um extenso Estado onde a maioria da população não era lituana.

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Em 1386 Jaguelão, Grão-Duque da Lituânia, torna-se também Rei da Polónia. A partir daí estes 2 Estados ficam em união pessoal, mas governando-se autonomamente cada um. Foi durante o reinado de Jaguelão que os lituanos adoptaram, pouco a pouco, o cristianismo, e os cavaleiros teutónicos foram vencidos em Tannenberg.

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Se se observar o mapa referente a 1500, nota-se claramente a clivagem entre a actual Ucrânia ocidental, incluída no Reino Polaco-Lituano, e a Ucrânia Oriental, incluída nos principados russos e depois na Rússia. A sul, o que restou do domínio mongol, o Khanato da Crimeia. A Crimeia foi mais tarde, em meados do século XX, russificada, com a expulsão dos tatares. Provavelmente por isso ela é actualmente favorável a Ianukovitch. Estas fronteiras vão-se manter, com poucas modificações, até ao último quartel do século XVIII.

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No mapa relativo a 1700 vêm-se os territórios sob o domínio dos Hetman dos Cossacos, no limite entre as duas Ucrânias. Entretanto os Lituanos, povo numericamente muito reduzido, que haviam conquistado um domínio tão extenso, que colocaram o seu soberano no trono da Polónia, acabaram “engolidos” por quem tinham anexado!

Leste 1809.jpg

A partir daí, com o aparecimento de Pedro o Grande e o enfranquecimento do Reino Polaco-Lituano, vítima das disputas entre a sua nobreza irrequieta, a Rússia progride para o ocidente e, em fins do século XVIII, juntamente com a Áustria e a Prússia, repartem a Polónia. Neste mapa, relativo a 1809, no apogeu de Napoleão, vê-se o Grã-Ducado de Varsóvia, reconstituído por Napoleão, a seguir à derrota dos russos em Friedland e dos austríacos em Wagram. Após a queda de Napoleão, o Grã-Ducado de Varsóvia passou para o domínio russo. Esta situação vigorou até à Grande Guerra de 1914-18

A Polónia e a Lituânia só recobram a independência após a Grande Guerra de 14-18, embora a Lituânia tivesse sido incorporada na URSS em 1940. A Ucrânia teve uma curta experiência de independência no final da Grande Guerra de 14-18, mas foi rapidamente incorporada na URSS. A Lituânia e a Ucrânia recuperaram a independência com o colapso da URSS em 1990.

O futuro dirá que Ucrânia irá emergir do actual processo. Se a Ucrânia que esteve, durante quase um milénio, ligada à Europa oriental, que durante esse tempo foi os confins orientais da Europa, ou a Ucrânia que durante os 2 últimos séculos esteve dependente da Rússia. Ou se a Ucrânia se cinde em duas Ucrânias, Ucrânias que tiveram, ao longo da História, percursos tão diversos

Publicado por Joana em 12:08 AM | Comentários (27)

dezembro 27, 2004

Da Importância de um PEC

Um PEC é absolutamente imprescindível. Mas não necessariamente um PEC simplista, como o existente. Todavia, quando estabeleceu as regras do PEC, Bruxelas deve ter julgado que os dirigentes políticos dos países da UE eram gente sensata e que no ciclo alto não entrariam em desvarios despesistas, para não ficarem de pés e mãos atados durante a recessão. Por outro lado meteram tudo no mesmo saco – a despesa corrente e despesa de capital. Ora isto é perverso para governos insensatos e laxistas. Se em ciclo baixo, Bruxelas alargar o espartilho, teremos os lobbies sindicais do Sector Público e os partidos, cujo horizonte político é a distribuição do que não há, a exigirem aumentos salariais e das pensões.

Ou seja, se Bruxelas apenas alargar o espartilho dos 3%, sem outras especificações, o que acontecerá é ficarmos um passo mais próximo do abismo.

Portanto, embora o PEC seja “estúpido” e “rígido”, a sua flexibilização, sem ter em conta o que enunciei acima, poderia ser a abertura da boceta de Pandora do cataclismo financeiro em diversos países europeus e, em primeiro lugar, no nosso. O Pacto de Estabilidade e Crescimento tem o defeito de, nas fases altas do ciclo económico, não ter um sistema de alerta e de sanções quando a política orçamental está a ser pró cíclica durante a expansão da actividade económica. Esse defeito foi a nossa desgraça nos anos de 1996-2001.

Portugal tem uma despesa pública cerca de 48% do PIB, em termos oficiais, mas na prática é bastante superior. Porque os compromissos reais do Estado vão muito para além disso, como o caso das empresas que embora públicas, são extensões das administrações públicas, e das parcerias publico/privadas. Além do mais, a dívida pública não contém o valor actualizado dos compromissos assumidos há alguns anos atrás, como o caso das SCUTs, que são dívida pública. No caso das SCUTs apenas as anuidades entram no orçamento de cada ano (e só a partir de 2005). O que o governo de Guterres fez, foi não apenas comprometer o presente (dele), como comprometer o futuro do país por várias décadas.

O mesmo iria acontecer, embora em muito menor escala, pois eram montantes muitíssimo menores, com a operação de lease back que Bruxelas teve o bom senso de inviabilizar. O Estado tem imóveis em excesso. Mas deve vender aqueles que não necessita, na altura mais favorável da conjuntura imobiliária. De forma alguma vender imóveis onde estão instalados serviços necessários. Vender e alugar em seguida é uma operação que será sempre desfavorável, porque os Bancos internalizam nas taxas de juro um spread para cobrir o risco da operação, os seus custos na gestão contratual e os seus lucros.

Há alguns anos, ainda durante a gestão de Guterres, em 2001, Abel Mateus fez um estudo comparativo sobre os pesos da despesa pública no PIB de diversos países europeus, e estabeleceu uma recta de regressão linear entre aquelas duas variáveis.

Esse gráfico é o seguinte:
Grafico SPA_PIB.jpg

Não foi indicado o coeficiente de correlação (nem os intervalos de confiança para os coeficientes da regressão), mas ele deve ser elevado, atendendo à distribuição dos pontos.

Ora há dois países “marginais” naquela distribuição, embora em sentidos opostos: Portugal e Irlanda. Que têm em comum? Portugal é o país que mais estagnou nos últimos anos; a Irlanda o país que mais cresceu. A Suécia também está numa posição “marginal”, e também ela tem conhecido uma importante desaceleração económica na última década. A Espanha aproveitou o período da fase alta do ciclo económico e das vacas gordas para consolidar uma situação orçamental saudável. A Espanha tinha em 1995 um défice público superior ao nosso e chegou a 2001 com as contas equilibradas, aproveitando adequadamente o período favorável do ciclo. O gráfico é elucidativo.

Portanto não é com aumentos da despesa pública que relançamos o crescimento económico. O que conseguiremos é, transitoriamente, uma maior animação no comércio, mas seguida logo por um défice acrescido nas nossas contas com o exterior, induzido pelo aumento das importações para satisfazer esse aumento artificial da procura interna, e uma situação insustentável a médio prazo. Qualquer dinamização da economia pelo recurso ao aumento da despesa pública tem o efeito de uma droga. Quando o seu efeito passa, o drogado fica na ressaca e mais dependente que antes. E quanto mais droga se injecta, mais dramático e doloroso vai ser o tratamento dessa dependência.

Portugal teria que descer a sua despesa pública em cerca de 10 pontos percentuais, menos 20% a 25% da actual despesa pública em valores reais. Ora os dois últimos governos, com as mezinhas que as nossas disposições constitucionais permitem e a falta de coragem que os caracterizou, apenas conseguiram garrotar a aceleração anterior. Mas como se viram, entretanto, confrontados com a recessão económica e com a estagnação do PIB real, a despesa pública não diminuiu em termos de percentagem do PIB, antes aumentando, embora a uma taxa muito menor que anteriormente.

O OE para 2005, como escrevi aqui diversas vezes, procurava continuar uma estratégia de controlo do défice orçamental baseada na diminuição do peso do Sector Público Administrativo na economia, fundamentalmente à custa da contenção da despesa corrente primária, mantendo o peso da despesa de capital no PIB. Essa estratégia é correcta, como orientação geral, mas insuficiente em termos quantitativos. O actual governo pactuou com a “necessidade” de satisfazer a tentação eleitoralista dos seus autarcas e de si próprio.

Esse eleitoralismo observa-se também na inversão de prioridades fiscais do OE 2005, favorecendo o consumo e penalizando a poupança. O aumento do rendimento disponível vai induzir um aumento nas importações e um agravamento do desequilíbrio nas nossas contas com o exterior

O nosso problema estrutural é a dimensão do Estado e o seu mau funcionamento. No que toca às empresas e à sua competitividade, a burocracia estatal e, principalmente, a ineficácia da justiça, que inviabiliza, na prática, o cumprimento dos contratos e a cobrança das dívidas, são os factores mais penalizadores. Ou seja, o Estado degrada a competitividade das nossas empresas por duas vias: sugando a seiva do nosso tecido produtivo e não assegurando a função vital em economia, que é proteger a propriedade privada, pois não protege o credor face ao caloteiro, nem a vítima do incumprimento contratual, perante o burlão ou o contraente de má fé.

Actualmente, estamos com um nível de despesa pública cerca de 50% do PIB. Se não pusermos cobro a isto, nós, os nossos filhos e os nossos netos poderemos ter de suportar impostos na casa dos 60% e 70% do PIB, o que seria completamente inviável em termos de crescimento económico e em termos de nível de vida. Antes disso haveria algum cataclismo económico e político.

Publicado por Joana em 07:44 PM | Comentários (33)

dezembro 26, 2004

Aspirina ou Benuron?

A transferência de parte do Fundo de Pensões da CGD para a Caixa Geral de Aposentações (CGA) com vista a reduzir o défice orçamental para um valor inferior ao limite do PEC, foi o menor dos males. Foi um mal muito menor que não fazer nada e infringir as regras do PEC. Mas também foi, tecnicamente, um mal menor que vender de supetão várias dezenas de imóveis numa época em que o sector imobiliário atravessa uma grave crise que se reflecte seguramente nas avaliações dos imóveis e nas condições das transacções. Todavia, debater estas soluções é o mesmo que discutir se se deve dar aspirina ou benuron a um paciente sofrendo de grave doença infecciosa.

Em teoria, a transferência de parte do Fundo de Pensões da CGD para a CGA é uma mera operação contabilística. A entidade gestora daquele fundo de pensões deixa de ser a CGD e passa a ser a CGA. Na prática pode não ser o mesmo, pois nada garante que a CGA seja melhor gestora de fundos de investimento que a CGD. Adicionalmente, aquela parcela do Fundo de Pensões dos trabalhadores da CGD fica mais à mercê de decisões intempestivas e perversas do Estado, que se se mantivesse na CGD.

O equilíbrio orçamental é entre receitas e custos gerados num determinado ano e não um equilíbrio, nesse mesmo ano, entre pagamentos e recebimentos. Portanto, aquela operação contabilística não é paralela a quaisquer transferências de numerário alegadamente necessárias devido ao buraco orçamental, como já vi escrito em diversos sítios. O risco para os trabalhadores da CGD é o de o Estado ser um pior gestor de aplicações financeiras que os gestores da CGD ou, ainda pior, o Estado não ser uma pessoa de bem quando gere o dinheiro dos outros. Este último risco pode ser real se à ruptura orçamental se adicionar uma ruptura financeira.

Portugal é um doente sofrendo de grave doença infecciosa, mas cujas crenças religiosas (a constituição – política, não física) impedem a administração de antibióticos, e que vai escolher, em Fevereiro, se vai continuar nos cuidados intensivos, a tomar aquilo que a sua actual Constituição (política, não física) permite – aspirinas, benurons, uns sinapismos – ou regressa à enfermaria donde viera, enfermaria onde se adensam os miasmas da peste, que continua repleta de vírus infecciosos e agressivos, e fica entregue aos cuidados de um emplastro emoliente.

Convenhamos que a perspectiva não é brilhante. É escolher entre a morte lenta e a morte rápida. Todavia, às vezes, a iminência da morte leva a actos desesperados, e um deles pode ser o doente mandar às urtigas as crenças religiosas (a constituição – política, não física) que lhe espartilhavam a sua conduta, mandar passear sinapismos e emplastros emolientes, e fazer a cura que a ciência médica impõe.

Por isso, a escolha que conduz à morte rápida pode não ser má de toda, ou mesmo nem ser a alternativa pior, pois quando se vir às portas da morte, talvez se aguce o engenho ao doente. A menos que o engenho se aguce tarde de mais ... ou que nem se chegue a aguçar, e o paciente se fine na quietude da sua piedosa devoção, confortado com os santos óleos e as preces e prédicas dos Patriarcas da democracia.

Publicado por Joana em 11:29 PM | Comentários (17)

dezembro 25, 2004

Semiramis ao entardecer

Como hoje é Natal, dei-me descanso. Para quem quiser ler Semiramis e o Natal, clique aqui.
Quem me quiser ver ... é continuar.

Semiramis abrindo Caixa.jpg

Publicado por Joana em 07:49 PM | Comentários (10)

dezembro 24, 2004

Boas Festas

Hoje venho aqui desejar um Bom Natal para todos ... todos mesmo e, em especial, agradecer os votos que me formularam.

Depois de um ano de stress: O défice, a crise, a “fuga”, o défice, a crise, os fogos, o défice, a crise, a dissolução, o défice, a crise, o Orçamento, o défice, a crise, etc., é chegada a época de se ter paz, nem que seja por alguns dias apenas, na companhia da família, ou na melhor companhia que se puder arranjar.
Bom Natal!

Semiramis Raphael. Adoration of the Magi.jpg

Publicado por Joana em 12:03 PM | Comentários (25)

dezembro 23, 2004

Blogs de Outras Épocas (1822) 3

Um Ouvidor

A seguir estão as 3 primeiras páginas do panfleto de resposta de Pato Moniz, sob o nick de Um Ouvidor às gaitadas de Agostinho de Macedo.

Agostinho de Macedo escreveu, que eu conheça, 4 gaitadas. Não consigo situar em que altura das “gaitadas” se insere esta resposta. Aliás Pato Moniz escreveu dezenas de panfletos contra o “Padre”, como também lhe chamava, pelos mais diversos motivos, normalmente em resposta a panfletos do "Padre".

Só coloco as 3 primeiras páginas, porque me parecem suficientes para avaliar o estilo. Achei que não deveria sobrecarregar desnecessariamente o blog, mas poderei mudar de opinião ...

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Publicado por Joana em 08:01 PM | Comentários (5)

Blogs de Outras Épocas (1822) 2

O Anão dos Assobios

Gaitada 2 – últimas 4 páginas

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Publicado por Joana em 07:45 PM | Comentários (3)

Blogs de Outras Épocas (1822)

O Anão dos Assobios

Os frequentadores da blogosfera julgavam, provavelmente, que tinham inventado a realidade virtual, a polémica política grosseira e os insultos a coberto dos nicks, Puro equívoco. Vou mostrar-vos, neste e nos próximos posts, 2 blogs que se combateram ferozmente no longínquo ano de 1822 (e não só).

O primeiro é o Anão dos Assobios, blog pertencente a José Agostinho de Macedo, embora ele o tenha tentado negar. Todavia Inocêncio da Silva assevera que o Padre Agostinho de Macedo era mesmo o Anão dos Assobios. Vejam como meio século depois se descobre o nome acobertado atrás de um nick!

O outro blog era de Pato Moniz. Não tinha nome fixo, umas vezes assinava Um Seu Ouvidor, outra vezes era o Mestre Artista, mas todos os seus “posts” eram respostas a escritos de José Agostinho de Macedo. Bem vistas as coisas, o blog de Pato Moniz era dependente do blog do Padre Agostinho de Macedo.

Pato Moniz era liberal e Agostinho de Macedo miguelista. Escrever blogs naquela época era mais arriscado que hoje. Apesar de o país ainda estar sob a vigência do vintismo, embora final e já combalida, Pato Moniz foi desterrado para a Ilha do Fogo, ao que parece por pertencer à maçonaria. Morreu lá poucos anos depois, ainda relativamente novo.

Cada post do Padre Agostinho de Macedo, nesta altura, era designado por “gaitada”, o que diz bem dos intuitos do post. Cada folheto destes era constituído por 8 páginas (normal, devido à dobragem do papel saído da impressora) escritas do princípio ao fim. A técnica da impressão é que comandava a dimensão do post!

Vou colocar aqui as 4 primeiras páginas da Gaitada 2, a que me pareceu ser a mais legível, pelos hábitos actuais. No meu post seguinte colocarei as últimas 4.

A Gaitada 2 insere-se no protesto (anónimo) de Agostinho de Macedo por o seu nome haver sido riscado em diversos círculos, onde teve muitos votos, como Alenquer e Setúbal, por “incompatibilidades”. Como ele era pregador régio, foi considerado, pela vaga liberal, que então comandava o país, como assimilável a “Criado d’el rei”! Mas mesmo assim conseguiu ser eleito pelo círculo de Portalegre, mas apenas como primeiro substituto. Como o lugar nunca vagou, ele nunca ocupou o lugar nas Cortes. Isso tornou-o muito despeitado. Esta gaitada insere-se nessa questão.
Apreciem o tipo de polémica e as mexeriquices trazidas à colação.

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Ver a seguir:
Blogs de Outras Épocas (1822) 2
Blogs de Outras Épocas (1822) 3

Publicado por Joana em 07:20 PM | Comentários (3)

dezembro 22, 2004

Plágios e Fontes

A situação não é virgem. Quando em 21-01-04 postei aqui A execução de um rei, na efeméride da execução de Luís XVI, houve uns zunzuns de c&p e eu, dias depois, em 26-01-04, postei a bibliografia mais relevante para o tema, e que eu disponho, em Revolução e Historiografia com comentários sobre o seu interesse e as circunstâncias em que as obras foram escritas. Desta vez, face aos comentários que acabei de ler, resolvi matar a questão de imediato, e postar a bibliografia que disponho, repito, que disponho, sobre estas matérias.

Se tiverem dúvidas sobre o facto de eu dispor daquelas obras, e das que vou discriminar em seguida, posso disponibilizar ficheiros jpg com as páginas que pretenderem, eventualmente o frontispício, da obra ou volume que entenderem, desde que de forma moderada, visto eu ter mais que fazer que satisfazer gente que o que tem em comum é o serem caluniadores e não perceberem nada do que escrevem.

Quando se faz um trabalho sobre um tema histórico abrangente é obrigatório, para ele ter alguma coerência, que quem o faça tenha uma cultura vasta sobre essa matéria, tenha lido muito sobre ela, que tenha passado e repassado mil vezes Lethes, o sombrio rio dos mortos, como escreveu, numa alegoria magnífica, Michelet. Só assim se podem relacionar factos, sentir as motivações e integrá-los num todo coerente.

É evidente que a transcrição de documentos coevos, datas exactas, etc., obriga a que, quando se está a escrever se relanceie os olhos por diversos livros e, eventualmente, a net. Sobre a net tenho todavia algo a acrescentar – é muito útil e rápida, mas não é fiável em termos de informação rigorosa e precisa.

A maior parte das informações sobre esta questão baseiam-se em documentos produzidos na época: bulas, manifestos, autos dos inquiridores, etc. Logo quando se transcrevem essas informações elas são do domínio público, pois foram produzidas na época e reproduzidas milhares de vezes por milhares de historiadores.

Eu escrevi algures «No mês seguinte, cento e trinta e oito prisioneiros são interrogados em Paris, na sala baixa do Templo, peto inquisidor de Paris, depois de terem passado pelas mãos dos oficiais do rei, que, de conformidade com as instruções contidas nas cartas fechadas, empregaram «a tortura, em caso de necessidade». De facto, trinta e seis dos presos deveriam morrer em consequência dessas torturas. Perante o inquisidor, apenas três deles negaram ter cometido os crimes de que os acusavam». Mas isso é o que consta dos autos das inquirições. Daí em diante, todos os historiadores não passarão de meros plagiadores? Pois quê? Você escreve 138 e o Sr. X também escreve! Ignara plagiadora! Pois ... o Sr. X também se reportou às fontes anteriores. Mas ele não plagia ... quem plagia sou eu ...

Quanto ao manifesto real de 14 de Outubro de 1307, ele é público. Tem sido citado e transcrito ao longo de quase 7 séculos. Como posso ser acusada de plagiadora ao transcrever partes desse manifesto É uma perfeita estultice.

Eu li o Código Da Vinci e escrevi aqueles textos num fim de semana. Eram comentários insertos num blog e não uma tese de doutoramento nem de mestrado. Escrevi-os tão rapidamente, porque tinha algumas ideias sobre as matérias e sabia onde estavam as fontes em caso de dúvida, e tinha todo o material à minha disposição, quer na nossa casa, quer em casa dos meus pais, que é na porta ao lado.

Passemos às fontes:

Dupuy Traittez … concernant la condamnation des Templiers … Paris 1654
Esta obra trata de toda a época que se inicia com o episódio de Anagni e acaba com o fim do «Cisma de Avignon» ... cerca de 70 anos. É minuciosa (são mais de 500 páginas!). Está em francês arcaico (com as bulas papais em latim) e não conheço edição posterior. Dei-lhe uma vista de olhos e passei adiante ...

Abade de Fleury - Histoire Ecclesiastique 36 vols, Paris 1742
O volume 19 (Depuis l'an 1300 jusques à l'an 1339) abarca este período e é muito minucioso (são 576pgs.). Leitura obrigatória para quem quiser saber que abordagem desta questão fazia a Igreja.

Conde de Ségur – Histoire Universelle 18 vols Bruxelas 1822.
O Tomo 13 (6º da História de França), saído em 1826, é todo ele dedicado aos reinados de Filipe o Belo e dos seus filhos (300 páginas). Trata com grande detalhe o processo dos Templários.

Michelet - Histoire de France 17 vols Paris 1861 (Nota: esta história vai até à convocação dos Estados Gerais-1788)
Michelet foi o primeiro historiador “moderno” pela forma como abordou a historiografia. É o equivalente francês de Herculano (ou vice-versa). É um extraordinário analista dos factos e das sua motivações, mas menos minucioso no relato dos factos. Qualquer leitura de Michelet deverá ser complementada com historiadores mais “factuais”. O processo dos Templários está no Tomo III, que abrange o período desde as Vésperas Sicilianas (1282) até à morte de Duguesclin (1380). Michelet dedica cerca de 50 páginas ao processo dos Templários. É interessante a análise que ele faz das causas da queda dos Templários (pgs 168/170) que tem semelhanças à minha ... sans blague! Na altura interessava-me mais os factos e a pressa fez-me passar ao lado dessas 3 páginas! (era demasiado literário para a pressa que eu tinha) mas estou a olhar para elas agora.

Henri Martin - Histoire de France jusqu'en 1789 17 vols Paris 1855
O terço final do Tomo IV abarca os reinados de Filipe o Belo e dos seus filhos (pgs 420 a 567)

Na Revue des Deux Mondes, Paris 1891 Tomo 103 (janvier-février) há um artigo muito interessante, e que me foi útil, Le Procés des Templiers d’après des Documens Nouveaux da autoria de Ch. V. Langlois (pgs 382 a 421), bem documentado e que julgo se baseia em parte na obra de Schottmüller – Der Untergang des Templer-Ordens, que tinha sido publicada há pouco, mas que não disponho.

Esta revista, que se publicou entre 1829 e 1900 (pelo menos só dispomos dos números até 1900), foi das mais importantes que se publicaram então na Europa e era uma referência, nomeadamente para a intelectualidade portuguesa do século XIX.

Estes autores têm, todavia e de acordo com os “netívagos”, um problema. Todos eles plagiaram, aqui e além, o guru Gilles C H Nullens!! ... descoberto ao acaso da net... pois todos eles transcrevem passagens comuns.

Sobre as cruzadas:
Guillaume de Tyr Histoire des croisades 3 vols Paris 1824 É o clássico, onde muitos vieram depois beber. Ele foi contemporâneo dos acontecimentos (julgo que morreu por altura da conquista de Jerusalém por Saladino em 1187)

Albert d'Aix Histoire des croisades 2 vols Paris 1824 É o outro clássico. Também contemporâneo, mas mais velho que o anterior (julgo que cerca de 30 anos).
Estas edições são complementadas com anotações de Guizot o que, em certa medida, as actualizam.

O resto das obras que disponho tem mero interesse biblliográfico, como Maimbourg Histoire des croisades pour la Délivrance de la Terre Sainte 2 vols Paris 1686

Recentes:
Zoe Oldenbourg – As Cruzadas - Rio de Janeiro 1968
É dos livros que conheço mais documentado sobre aquela matéria. Quer factual quer, principalmente, sociológico.

René Grousset L'Epopée des Croisades Paris 1957 Mais factual e sintético que o anterior, mas peca por não fazer uma análise aprofundada da sociedade franca (ou latina) no levante.

Sobre os primórdios do cristianismo, os livros de Tácito, Suetónio e Plínio o Moço, podem ser encontradas na net, em texto completo (latim e inglês) e estão traduzidos em português. O mesmo sucede com as obras de Flávio Josefo. Relativamente a este último disponho de 2 edições interessantes - The Works of Flavius Josephus 2 vols, Londres 1825 e Historia de las Guerras de los Judios y de la destruccion del Templo y Ciudad de Jerusalen, 2 vols, Madrid 1791.

Nota: Alguns romancistas abordaram esta temática. Eu sugeria Maurice Druon – Les Rois Maudits (há uma tradução portuguesa da Difusão Europeia do Livro (S.Paulo-Brasil). São 7 títulos, mas só disponho de 4 - I - O Rei de Ferro (1956), II - A Rainha Estrangulada (1956), III- Os Venenos da Coroa (1957) e VI - O Lis e o Leão (1328-1343) (1961). Não sei se nunca saíram, ou o meu pai desistiu de comprar os restantes. O 1º volume romanceia o processo dos Templários (A Maldição) e o escândalo da Torre de Nesle. Foi Prémio Goncourt, o que abona sobre o rigor da reconstituição histórica de Druon. Recomendo vivamente a leitura deste romance, visto ter sido escrito antes das inventonas do Priorado do Sião e a abordagem que faz das questões esotéricas ligadas ao processo segue vias diferentes. Li-o na adolescência e fascinou-me então.
Alexandre Dumas também romanceou estes casos – ver, por exemplo, La Tour de Nesle em Oeuvres II Paris 1842

Aditamento: As gravuras que postei ontem foram copiadas do 1º volume de:
Guizot - Histoire de France racontée a mes Petits-Enfants 5 vols Paris 1872.


À atenção de Bernardo Motta, do afixe.

Publicado por Joana em 09:27 PM | Comentários (89)

Prova Presencial

Como é do conhecimento público, sempre fui muito rigorosa nas minhas investigações históricas. Perante dúvidas que um incontinente blogger pôs sobre essa matéria, venho aqui apresentar evidências presenciais:

Em primeiro lugar estive presente no episódio de Anagni (e não Agnani...). Numa reportagem da época eu posso ser entrevista, de costas, semi-oculta pelo Papa Bonifácio VIII, a fugir espavorida de Sciarra Colonna e do seu guante ameaçador:

Anagni2.jpg


Em segundo lugar, repare como estive presente à execução de Enguerrand de Marigny, como refiro no Tomo V da minha obra sobre o Código da Vinci. Estou de costas (nunca tive sorte com as câmaras ... falta-me a química do Santana!), entre os espectadores. Fui lá a pedido de um Templário sobrevivente, como gesto de vingança contra o odiado conselheiro de Filipe o Belo. Provavelmente o Luís Rainha exultou ao pensar que eu era a figura pendurada à esquerda ... Mas não ... desta vez safei-me, tomei a máquina do tempo e regressei.

Marigny.jpg

Igualmente à atenção de Bernardo Motta, com mais um agradecimento pela gentileza.

Publicado por Joana em 01:19 AM | Comentários (35)

dezembro 21, 2004

Os Irmãos Marx e o Défice

Este Natal apareceu nos escaparates uma edição dos filmes mais emblemáticos dos Irmãos Marx. Comprei-a. Há uma cena nos Irmãos Marx no Far West onde eles usam toda a estrutura do comboio como combustível para atingirem o seu destino. E, na aflição de manter a locomotiva em andamento, nos equilíbrios difíceis de transportar, até lá, os destroços das carruagens desmanteladas, Harpo, diligente, mas azarado, perde a maior parte das tábuas pelo caminho. Quando vi esta cena, lembrei-me do ministro Bagão Félix.

O ministro tem feito malabarismos para descobrir receitas extraordinárias para maquilhar o défice. É o mesmo que maquilhar um doente num caso de anemia progressiva. Como não se consegue combater a anemia, a maquilhagem tem que ter cada vez mais camadas, para o doente aparentar um aspecto saudável. Em 2001, quando não houve receitas extraordinárias, o défice do Orçamento do Estado ascendeu a 4,4 %. Nos dois anos seguintes o défice foi ficou abaixo dos 3%, mas sem receitas extraordinárias teria sido de 4,1% e 5,3 %. E nos primeiros 11 meses de 2004 já vai nos 5,2 por cento. É certo que houve algumas receitas de Janeiro que foram contabilizadas, por antecipação, em 2003 ... manobra também frequente em empresas com receio de apresentarem prejuízos, que durante Janeiro continuam a emitir facturas com data de 31 de Dezembro do ano anterior. Mas Bagão Félix declarou hoje, na conferência de imprensa, que este ano não utilizará essa técnica.

A conferência de imprensa de Santana Lopes e Bagão Félix, hoje, foi importante para desfazer algumas inexactidões que a comunicação social havia transmitido, e que eu me fiz eco, sobre o alegado facto desta última solução (o lease back), que foi chumbada em Bruxelas, ter sido tomada à última hora, em desespero de causa. Bagão Félix apresentou documentação que prova que as duas soluções haviam sido apresentadas, em tempo (no início de Outubro), ao Eurostat. Assim, quando aparece um comentador a dizer que o que interessava saber era o futuro e não fazer a história do que aconteceu, só cabe designá-lo por hipócrita. No dia anterior afirmava que eram decisões atrabiliárias; quando confrontado com o facto de serem decisões previstas há mais de dois meses, ignora o que dissera anteriormente e critica Bagão por falar do passado.

O ministro apresentou ao Eurostat duas soluções: a alienação dos imóveis, ou uma operação de lease back. A primeira tornou-se indesejável por alegados motivos éticos, visto tratar-se de um governo de gestão. O ministro das Finanças afirmou que a opção pelo lease back surgiu como definitiva face a imperativos éticos e políticos, inerentes ao facto de «um Governo em gestão não dever vender património». Todavia houve outro motivo mais poderoso – após a dissolução do Governo, os consórcios vencedores, invocando o risco político, tentaram renegociar as condições do contrato de venda, aumentando de 6,5% para 7,5% a remuneração anual a preços correntes.

A segunda opção era uma não-opção. Não consigo atinar com a argumentação que Bagão Félix terá arranjado para servir ao Eurostat algo que era um simples empréstimo caucionado por imóveis, em travesti de alienação patrimonial com possibilidade de reversão. Vítor Constâncio, à saída de Belém, afirmou com pesporrência que havia previsto a sua rejeição por Bruxelas. Não me parece grande feito. Eu, que não governo o Banco de Portugal, e cujo único orçamento que giro é o orçamento doméstico, já havia escrito neste blog, posts atrás (cf. A Tirania do Défice), que não acreditava que Bruxelas aceitasse aquela operação. O próprio Bagão, numa entrevista esta noite, disse ou pareceu-me entender, que ele mesmo não estava convencido que a medida passasse em Bruxelas. Se era assim, porque razão a propôs?

Vítor Constâncio previu igualmente que a execução orçamental em 2005 obrigaria ao recurso de elevadas receitas extraordinárias para manter o défice abaixo dos 3%.

Estou completamente de acordo com ele. Aliás, é uma tal evidência que qualquer leigo se apercebe, desde que raciocine. A governação em Portugal está a ser vítima de heranças cada vez mais pesadas. O actual governo teve uma herança terrível, sem quaisquer hipóteses de reverter a situação. Mas o anterior executivo também tinha tido uma herança pesada. E o próprio Guterres teve duas heranças difíceis. A primeira herança era difícil, mas ele, na sua doce inconsciência, julgou que era uma herança de fartura e dinheiro fácil. A 2ª herança, mais onerosa, herdou-a dele mesmo, e continuou a ignorar os seus custos até ser tarde demais.

A questão central é que cada governo deixa ao seguinte uma herança pior do que aquela que recebeu. Se, no caso do governo de Guterres, este pode ser acusado de inconsciência, o mesmo não se pode dizer destes últimos governos. Por mais cortes que se façam e vencimentos que se congelem, a despesa pública aumenta a um ritmo que as receitas não conseguem acompanhar. O PIB estagna porque a competitividade das nossas empresas diminui face ao exterior e está vedada a possibilidade de aumento artificial do PIB pelo lado da despesa, como aconteceu durante o período de Guterres, em virtude da situação de desequilíbrio orçamental a que se chegou e à existência do PEC.

Antes da moeda única era fácil. Ao aumentar o PIB pelo lado da despesa, ele apenas aumentava em termos nominais, pois o deslizamento cambial fazia-o rapidamente cair em termos reais. Aumentava-se a despesa pública em termos nominais, mas o deslizamento cambial fazia-a diminuir em termos reais. Esse processo permitia igualmente manter a competitividade externa das nossas empresas. Todos viviam felizes.

Com a moeda única conseguimos estabilidade cambial e taxas de juro muito baixas. Mas em troca teríamos que aceitar que o aumento dos nossos rendimentos disponíveis seria de acordo com o nosso aumento de produtividade e que as despesas que fazemos nos serviços que gerimos, públicos ou privados, teriam que estar de acordo com os recursos disponíveis. Esquecemo-nos dessa contrapartida.

Antes vivíamos uma farsa cuja ilusão se desvanecia pelos equilíbrios automáticos do mercado internacional. Tínhamos uma mentira que ele própria se encarregava de se metamorfosear em verdade, sem a nossa intervenção e contra nós. Agora temos a verdade crua dos factos e não conseguimos lidar com ela. Agarramo-nos, desesperados, a ilusões; zombamos daqueles que nos chamam a atenção para a situação dramática em que se encontra a nossa economia; chalaceamos quando nos falam do resvalar da despesa pública; satirizamos sordidamente o governo por questões acessórias, na esperança de o vermos substituído, não por outro mais capaz de fazer as reformas que o país necessita, mas por meros vendedores de ilusões.

De tanto se falar nas reformas, a palavra banalizou-se. Hoje toda a gente aceita as reformas ... desde que não belisque os seus interesses individuais. Toda a gente está convencida que é imprescindível fazerem-se reformas, mas quando elas se perfilam no horizonte, todos os argumentos valem para impedir que elas se façam.

A palavra banalizou-se, mas o conceito persegue-nos na sua totalidade semântica. Elas hão-de se fazer, quer queiramos, quer não e quanto mais tarde acontecerem, mais sacrifícios teremos que suportar, mais custos haverá em desemprego, falências, insolvências. Será o preço acrescido a pagar pelo nosso desleixo.


Nota - Ler ainda:
A Tirania do Défice
Aspirina ou Benuron?

Publicado por Joana em 10:54 PM | Comentários (7)

Um País no Crematório

A questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos é o paradigma do cretinismo da nossa demagogia política, que aposta em emblemas para agitação eleitoral, vazios de conteúdo e nocivos para o país, pois que apenas servem para não fazer nada, para manter tudo na mesma. É perverso que as forças políticas e mediáticas do nosso país se tenham especializado e adquirido a máxima proficiência em mobilizarem o país ... para não deixar fazer nada.

Quando findou a governação de Cavaco Silva estava na calha um projecto para a construção de uma incineradora dedicada, destinada à eliminação dos resíduos industriais perigosos (RIP), em Estarreja, com o aval da autarquia respectiva. A equipa de Guterres fez abortar esse projecto.

Posteriormente o ministro Sócrates propôs uma solução diferente: a co-incineração realizada nos fornos cimenteiros. Esta proposta levantou imensa polémica, criaram-se e desfizeram-se comissões de iniciativa governamental e iniciativa cívica, choveram insultos mútuos entre figuras científicas, até então tidas como prestigiadas, foi, enfim, um enorme e pouco dignificante sururu. Não se percebe como cientistas e docentes universitários, com currículos volumosos, estejam em desacordo sobre, por exemplo, a quantidade de dioxinas emitidas pelas lareiras e que esse desacordo, entre os cientistas opositores e os cientistas da CCI, seja de 1 para 100! Ou de 1 para 1 milhão (!?) no caso da cremação de cadáveres.

Pelo que me apercebi, a co-incineração tem a vantagem de ser muito mais económica, pois os investimentos nos filtros das cimenteiras deveriam ter sido feitos em qualquer dos casos. Por outro lado, como os RIP são usados como combustível, poupa-se em fuel, o que é um factor muito positivo na nossa balança de pagamentos (o combustível fóssil constitui, de longe, o principal custo da fabricação de cimento).

Tem em contrapartida a desvantagem de só poder ser efectuada sobre parte dos RIP pois há restrições à queima de resíduos com elevadas concentrações de metais voláteis, como o mercúrio. Quanto às desvantagens ambientais tenho dificuldade em me pronunciar em face de contradições tão antagónicas de cientistas tão eminentes. Todavia parece-me que, desde que haja uma triagem prévia e que aos RIP mais nocivos seja dado outro destino, é uma solução que não causa prejuízos ambientais.

Quando Sócrates decidiu avançar com a solução ... caiu o governo de Guterres. Empolgado com a polémica anterior, Durão Barroso fez do não à co-incineração um dos seus emblemas de campanha. É profundamente estúpido que questões como esta se transformem em armas de arremesso político.

Durão Barroso ganhou as eleições e a questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos voltou à estaca zero. Só uma coisa era sólida ... o não à co-incineração. O assunto ia ser estudado e seria encontrada uma solução ... desde que não fosse a co-incineração!

Dois anos e meio depois, uma nova solução entretanto estudada está em fase de implementação e o país, e sobretudo os ambientalistas, tranquilo. E é nesta tranquilidade de quem julgava que havia sido encontrada uma solução ... ou melhor, uma decisão, que Sócrates aparece a ressuscitar a polémica e a garantir que com ele haverá co-incineração.

Resumindo: há 10 anos o país estava à beira de implementar uma solução para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; após muita inércia, estudos e polémicas, o país, há cerca de 3 anos, estava à beira de implementar uma solução (diferente) para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; agora, após alguma inércia e muitos estudos, o país está à beira de implementar uma solução (igualmente diferente) para a eliminação dos RIP ... e ... aparece Sócrates.

Sócrates tem sido sistematicamente acusado de só dizer banalidades e ser um vazio total. É perverso que a primeira ideia concreta com que ele nos obsequiou tenha sido um disparate, tenha sido o reviver uma polémica inútil.

Se Sócrates fosse inteligente e tivesse consistência política, estaria calado sobre este assunto durante a campanha e, posteriormente, poderia implementar uma solução conjugando a que está actualmente em concurso, que é ambientalmente muito melhor, com a eventual queima, nos fornos de cimento, dos RIP mais adequados a tal operação, o que tem vantagens económicas.

Mas não, Sócrates além de dar um tiro no próprio pé, deu mais um tiro certeiro na credibilidade dos políticos, na (in)consistência das suas (in)decisões. Deu mais uma achega àqueles que estão convencidos que os políticos apenas estão empenhados nos seus interesses partidários, em guerrilhas mútuas e nocivas para o país e completamente alheios aos interesses do país.

Municiou aqueles que acham que a nossa actual classe política é o principal estorvo à solução dos nossos problemas e ao desenvolvimento do país.


Nota - Ler ainda:
Prometemos o mesmo, mas ...

Publicado por Joana em 07:45 PM | Comentários (6)

dezembro 20, 2004

Pausa para Reflexão

A marcação de eleições antecipadas teve uma vantagem. Pôs diversas personalidades dos meios políticos, económicos e mediáticos a reflectirem sobre o impasse em que o país se encontra.

Em primeiro lugar há a constatação que nem António Guterres, nem Durão Barroso, nem Santana Lopes conseguiram gerar uma dinâmica de mudança no nosso país, nem promover as reformas necessárias para essa mudança e para alterar a estrutura de funcionamento da nossa economia. Eu acrescentaria a estes nomes o de Cavaco Silva, porque, apesar de ter levado a cabo importantes mudanças no país, não conseguiu, nem me parece que tenha tentado, resolver o problema da ineficiência do sector público.

Não vale a pena falar dos governos anteriores a Cavaco, que não merecem qualquer crédito, quer por terem exercido o poder por tempo insignificante, quer por o desvario social e político em que se vivia e que impedia quaisquer reformas, mesmo que as quisessem fazer, quer pelo facto de serem, na maioria, gente sem clarividência, apenas preocupada com abstracções ideológicas, completamente fora da realidade. Em suma, uma década que levou Portugal a uma situação absolutamente calamitosa.

É certo que António Guterres exerceu o poder em circunstâncias diferentes das de Durão Barroso e Santana Lopes. Durante os primeiros anos do governo de Guterres poucos se aperceberam do abismo para onde Portugal estava a deslizar. Guterres pôde levar a cabo uma política despesista, como nunca tinha sido possível até então, porque estava escorado em situações conjunturais que gente mais avisada compreendia que eram ilusórias, mas às quais o grande público era insensível.

As baixas taxas de juro e o aumento do consumo, da actividade económica e do emprego gerados por essa política satisfazia o grande público. Apenas os que sabiam ler para lá das quimeras do dinheiro fácil se preocupavam com o que viria a seguir. Guterres, e Portugal, desaproveitaram as circunstâncias excepcionais do primeiro mandato legislativo para introduzirem reformas importantes nas finanças do Estado. Em vez disso, aproveitaram essas circunstâncias para uma política populista e insensata que se traduziu num agravamento significativo da situação real do país.

A partir daí foram as meias legislaturas de António Guterres (o 2º mandato), Durão Barroso e Santana Lopes (apenas 4 meses). Nenhum conseguiu resolver, nem sequer inverter, o percurso calamitoso da economia portuguesa. É certo que Guterres, no seu 2º mandato, estava manietado pelas concepções políticas que havia veiculado no mandato anterior. Por outro lado não era seguro que ele estivesse convicto da gravidade da situação, embora houvesse, entre os socialistas, individualidades que já teriam consciência do facto.

É igualmente certo que Durão Barroso teve uma governação atribulada, desfalcado das principais individualidades do seu partido, que recusaram integrar o seu governo, e muito contestado por diversos motivos (nomeadamente por falar na urgência de reformas, que nunca chegou aliás a concretizar), dentro e fora do seu partido. Finalmente o governo de Santana Lopes foi morto à nascença. Santana Lopes nunca teve condições para governar, mesmo que o seu governo tivesse capacidade para tal.

Ora estes 3 governos integraram e foram directamente apoiados, em teoria aritmética, por tudo o que há de mais notável nas estruturas partidárias de partidos que compreendem 80% do eleitorado português – PS e PSD (neste último com a excepção de alguns dos seus notáveis). Além do mais, os 2 últimos governos contaram ainda com o apoio, embora como sócio menor, do PP. Apenas ficaram fora das responsabilidades governativas partidos da franja da esquerda radical, mas cujo concurso para as soluções da economia portuguesa seria uma completa calamidade, atendendo aos modelos económicos e sociais que propõem.

Portanto toda a classe política portuguesa, por acção (quase todos) ou omissão, esteve implicada no processo que tem conduzido à situação actual. E será entre estes políticos que teremos que escolher o governo que terá por missão salvar o país da desgraça em que se encontra. Desgraça para onde os seus erros e desleixos, ou incompetências, nos foram arrastando.

Mas será que 80% a 90% (descontando os restantes, que são lunáticos) da classe política portuguesa é incompetente? Obviamente não. Individualmente, a maioria deles não será incompetente. O problema é que toda essa classe está manietada pelos lobbies corporativos que têm amplas e profundas ramificações nos interiores desses partidos. O problema é que toda essa classe está manietada pela necessidade de ganhar eleições a qualquer preço, para satisfazer as suas clientelas partidárias. Para tal tem que fazer promessas ilusórias para cativar um eleitorado que, obviamente, não quer ver diminuído o seu poder de compra e a estabilidade e o imobilismo do seu posto de trabalho, no caso do sector público.

Portanto vamos assistir mais uma vez à formulação de promessas que não poderão ser cumpridas, e iremos viver depois uma governação que terá total dificuldade em seguir uma política de verdade por lhe estarem permanentemente a lembrar as promessas feitas e deixadas na gaveta. E esses apelos ao despesismo vêm não apenas de fora, mas também de dentro do partido (ou partidos) do governo. Portanto, o governo que sair das próximas eleições começa a sua governação fragilizado pelas promessas a que foi obrigado, para ganhar o poder.

Para se fazerem as reformas de que o país necessita para evitar esta descida contínua ao abismo, é necessária a congregação de mais de dois terços dos deputados, para permitir que se façam as leis necessárias a essas reformas, e as alterações constitucionais necessárias para que essas leis não sejam arguidas de inconstitucionalidade. É necessário um amplo apoio do espectro político, porque serão reformas que terão um impacto muito profundo no sector público, não apenas no número dos seus efectivos, como na avaliação do seu desempenho, como nos hábitos de aquisição de consumíveis (o SNS está incontrolável, neste aspecto) e outras despesas afins.

Porque a questão não é apenas a do défice orçamental. Qualquer desafogo dos orçamentos familiares salda-se imediatamente pela derrapagem das nossas contas com o exterior. A competitividade do nosso sector exportador continua a diminuir face à concorrência internacional, quer pela conjuntura internacional, quer pelos estrangulamentos internos, e qualquer aumento do rendimento disponível das famílias é maioritariamente despendido em bens importados.

Se não se fizer isto, todos os fins de ano vão ser palco das cenas que estamos a viver agora. Como há dias escrevi aqui em «A Tirania do Défice(*)», parecia-me impossível que o Eurostat aceitasse uma operação que, em termos simples, era trocar dinheiro por uma declaração de dívida caucionada por cerca de 60 imóveis. O défice, tal como os custos e proveitos das empresas, não é medido em termos de fluxo de pagamentos, mas em termos de fluxo de compromissos, pagos ou em dívida. Não entendo como o Ministro das Finanças acreditou que o Eurostat avalizasse semelhante operação.

Nesta emergência, o governo só tem dois caminhos: 1) vende os imóveis, e considera menos relevantes os princípios éticos que apregoou quando desistiu da venda, pela razão de ser um governo de gestão; 2) desiste da operação, admite um défice superior ao limite do PEC e permite que o próximo governo tenha mais bens para poder alienar no fim de 2005, para trazer novamente o défice para valores inferiores ao limite fatídico. Mas o primeiro caminho só será viável se tiver o aval do PR, o que talvez seja possível face aos problemas que o não cumprimento do défice nos poderão trazer. Lembremos que Portugal, contrariamente à França e à Alemanha recebe fundos comunitários, e está por isso numa posição muito mais vulnerável.


(*) Escrevi então: Mas se não há alienação patrimonial não percebo como tal poderá ser aceite por Bruxelas, porque me parece ter uma característica similar à hipoteca, embora com a designação pomposa e anglo-saxónica de lease and lease back.

Publicado por Joana em 11:41 PM | Comentários (18)

Nova Funcionalidade no Semiramis

Estou a trabalhar afincadamente numa nova facilidade, aqui no Semiramis, que permite que quem navega neste site possa votar de acordo com as suas intenções de voto nas legislativas. O processo que estudei com a sagacidade que mesmo a minha modéstia não evitou que fosse eu a primeira a reconhecer, está em fase de teste e permite obter resultados com uma margem de erro inferior a 0,1% a partir de 10 respostas.

As escolhas são: PSD PS CDU CDS/PP BE Outro Branco Nulo Abstenção. A democraticidade da escolha está assegurada pela abragência e liberalidade com que escolhi as opções.

Já organizei o lay-out. O essencial está feito. Falta escolher a percentagem que quero para o meu partido. Depois dessa escolha (estou a pensar num valor entre 55% a 60%), introduzo esse valor. Sempre que alguém votar e o valor da sondagem para o meu partido descer abaixo daquele limiar devido a esse voto insensato, o sistema responde:

We're sorry, you've already voted in this poll!

As rotinas nas quais trabalho presentemente indicam que se trata de um trabalho muito científico, do qual não são permitidas quaisquer dúvidas sobre a legitimidade dos seus resultados. O facto da mensagem estar em inglês assegura o carácter neutral do escrutínio.

Publicado por Joana em 12:07 AM | Comentários (13)

A Turquia e a Europa

A Europa está anémica, inerme. Quem acompanhou as negociações entre a UE e a Turquia com vista a uma futura adesão desta à União, decerto se apercebeu que quem falava mais grosso era a delegação turca. Tudo indiciava que os turcos estão convictos que irão a fazer um prestimoso favor à Europa em serem admitidos na UE.

O facto da Turquia ser um país islâmico parece-me uma questão menor, embora quem esteja contra essa admissão invoque essa questão como primordial. Primordial para quem contesta a entrada, mas também para quem a usa implicitamente, pretendendo dar ares de politicamente correcto, para a apoiar. Para mim, o essencial, são as seguintes questões:

A Turquia ocupa militarmente, há mais de 30 anos, cerca de 40% da República de Chipre, membro da UE. Ninguém fala dessa ocupação militar e o que tem sido abordado, embora de uma forma ambígua e susceptível de interpretações contraditórias, é apenas um eventual reconhecimento da República de Chipre pela Turquia.

O sueste da Turquia é habitado por uma importante e numerosa população curda (superior em número à população portuguesa), destituída de quaisquer direitos, cuja língua é proibida em tudo o que é público, incluindo as escolas e o seu ensino. Isto, penso eu, é o que se chama genocídio cultural. Por menos que isso, a Sérvia foi justamente penalizada pelo seu comportamento no Kossovo.

Quando se reclama pelo reconhecimento do genocídio dos arménios não se reclama, como é óbvio, pela reposição do statu quo ante. Seria estulto perante o facto de já se ter passado um século. Mas o seu não reconhecimento significa que a Turquia não está arrependida desse acto, ou que não o considera criminoso ou, pior, que o poderá repetir se se oferecer ocasião para tal.

Estes são os três pontos fulcrais. A questão islâmica é relevante apenas na medida em que a sociedade turca não teve o exercício de um poder e de uma cidadania laicos como na Europa Ocidental, mesmos nos países como a Irlanda, a Áustria e o próprio Reino Unido que, em teoria, são Estados confessionais.

E essa ausência de exercício de uma cidadania laica pode torná-la presa do fundamentalismo islâmico se as condições sociais o facilitarem. E mesmo que isso não aconteça, confere-lhe uma matriz cultural certamente muito diversa da europeia. Mas isso, apesar de ter algum relevo, não é de forma alguma motivo de impedimento, até porque a integração na Europa facilitaria o exercício da cidadania e o afastamento progressivo dos demónios do fundamentalismo religioso.

As três questões que enunciei são, essas sim, fracturantes. E o que me surpreende e revolta é a cortina de silêncio cúmplice que se abate sobre elas.

Os Estados Unidos fecham os olhos aos abusos dos direitos humanos quando, na sua óptica, os seus interesses estratégicos sobrelevam aqueles direitos. Mas não se percebe porque razão a Europa deve seguir na esteira dos EUA nesta matéria, quando tanto contesta outras opções políticas americanas.

Publicado por Joana em 12:01 AM | Comentários (9)

dezembro 19, 2004

António Barreto não vota

António Barreto, que está farto de ser enganado nas escolhas políticas que tem feito (mal de que também me queixo), não vai votar nas próximas legislativas. É todavia óbvio que um homem com as responsabilidades cívicas de António Barreto nunca publicitaria tamanho deslize de cidadania com crueza, taxativamente. Por isso escreveu-o de forma cabalística, enigmática ... esfíngica mesmo. Desconfio que ele seja do Priorado do Sião ... Ele que evite ser apanhado no Louvre fora de horas ...

Barreto é um político fino e astuto. Limitou-se por isso a elencar uma série de perguntas cujas respostas adequadas são imperiosas para a sua decisão de votar e em quem votar:

«Dêem-me respostas simples a perguntas simples, planos claros para questões práticas, e o meu voto, como o de tantos outros, tomará forma. O que vão fazer, no concreto, para reduzir os prazos da justiça? Como vão abrir, à sociedade, os sistemas fechados da Justiça e da Educação? Permitem que os Institutos Politécnicos confiram doutoramentos e se transformem em Universidades? Como pretendem organizar a colocação de professores? Continuarão a gerir, a partir do Ministério da Educação, as doze mil escolas ou vão entregá-las às autarquias? O que vão fazer com as portagens das auto-estradas e das SCUT? Mantém a uniformidade das formas de governo das Universidades? Permitem ou não que cada universidade tenha as suas regras próprias de selecção de professores e estudantes, os seus critérios de promoção, a sua autonomia de gestão e os seus órgãos de direcção? Que destino darão aos hospitais públicos e aos hospitais ditos SA? Que medidas práticas e concretas tomarão para lutar contra a evasão fiscal? Como vão cuidar dos miseráveis resultados escolares portugueses, nomeadamente dos desastres que constituem os ensinos da matemática, do português, da física e da química? Como lidar com as centenas de cursos e licenciaturas existentes em cada área disciplinar? Alteram ou mantém a actual legislação do aborto? São favoráveis ou adversários a um referendo sobre o aborto? Em qualquer dos casos, que voto recomendam? Como vão votar e que pergunta propõem para o referendo europeu? São contra ou a favor da integração da Turquia na União?».

Infelizmente nunca ninguém respondeu a estas perguntas, com clareza e sem sofismas, durante uma campanha eleitoral. Houve eventualmente alguns aprendizes de política que começaram a balbuciar respostas sinceras e adequadas a estas questões. Os aparelhos partidários boicotaram todavia, e de imediato, a sua participação, pois as sondagens indicavam que nenhum deles teria mais que 0,01% dos votos expressos.

Publicado por Joana em 10:25 PM | Comentários (11)

Da Obediência ao Rei, como preceito natural,

Considerado na sua origem e nos seus efeitos

(ou como decidi oferecer aos meus leitores monárquicos uma prenda natalícia)

TRATAR das obrigações de Vassalo, é supor súbditos e Soberano, obedecer e mandar. E quem poderia suportar a Sociedade, em que se não verificassem estes dois estados, obediência e Império? Não têm faltado inimigos aos Chefes do Estado; mas não é ódio, é inveja; aborrecem o lugar, e querem ocupá-lo, não advertindo que aquele Autor Supremo, que nos deu arbítrio sobre nossas paixões, determinou com sábia providência, que o corpo moral do Estado tivesse um Árbitro, moderador das desordens internas da Nação, e defensor contra seus externos inimigos.

É pois indispensável obrigação do Pai de Famílias instruir desde os mais tenros anos seus filhos acerca da obediência ao seu Rei, como preceito natural, e como preceito positivo, ou se considere este supremo lugar na sua origem Divino, ou nos seus efeitos, como mostrará este discurso.

O Autor da natureza, que é Deus, formou o Sagrado Código das suas Leis necessárias, segundo a sua sábia economia, para a conservação da ordem física, e da ordem moral do Universo. As que pertencem à física, majestosas, e inalteráveis, admiram todos, e mudamente anunciam a glória do seu Criador : as que pertencem à ordem moral, falam em voz mais alta, porque estão gravadas no coração de todos.

O que estas Leis ditam, chamamos vulgarmente, e com propriedade, preceitos naturais, e entre estes se encontram a obediência ao Rei, não só como imagem da autoridade Paterna, mas fonte da ordem pública. Desta necessidade de obedecer, temos uma prova na impossibilidade, que tem cada indivíduo, de fazer concordar todos com o seu parecer; e como o desejo inato que temos de mandar, nem sempre é ambição, porque muitas vezes procede de zelo pela felicidade do comum, de tudo isto infiro, que a regência é como base do sossego do Estado, e que por preceito natural, e de instinto devemos obedecer ao nosso Imperante. Estes preceitos naturais, quando também são positivos, adquirem então uma certa força, que fazem mais indesculpáveis as nossas desobediências. É verdade que o que é de direito natural, não parece necessária segunda promulgação para ter vigor, mas contra as sábias determinações de tal Legislador, não valem objecções; e doutrina segura é que os preceitos do Decálogo eram preceitos naturais, antes que o dedo do Omnipotente os escrevesse nas Tábuas da Lei. Não pode portanto disputar-se, que a obediência aos Reis é um preceito positivo, nem pode negar-se que todo o vivente, como diz o Apóstolo, deve estar sujeito aos poderes Superiores que vêm de Deus, como ele mesmo diz, mostrando deste modo a sua bondade; porque vem dele esta sua legitimidade, porque o autoriza o Supremo Senhor de todo o Criado. Por mim reinam os Reis, diz Deus na Sagrada Escritura, e os Legisladores determinam o que é justo.

Destas palavras interpretadas mesmo no sentido literal, devemos tirar por consequência, que a autoridade Régia é estabelecida por Deus, e que as suas Decisões e Leis são justas só pelo seu arbítrio, contanto que não se oponham àquele por quem reinam, o qual tomando a si as vinganças, retribuirá, como promete, as ofensas que fizerem à Justiça Divina os que a representarem mal sobre o Trono. Esta reserva, que o Senhor faz para si dos castigos aos maus Reis, junta com a obediência, que lhe teve a sua Santíssima Humanidade, quando vivia entre os homens, são claros documentos do respeito que devemos aos nossos Príncipes, respeito, que nunca podemos diminuir, porque, provada a Divina origem da sua autoridade, não sendo da nossa competência arguir suas faltas, que nos resta? obedecer; e tudo irá bem à Sociedade, em que houver este espírito de subordinação. Esta filial obediência a seus Príncipes foi sempre o honrado carácter dos que professam a nossa Santa Religião; e teve mais brilhantes efeitos nos primeiros três Séculos da Igreja, enquanto não teve asilo nos Palácios; era para pasmar ver os mesmos homens correr para o martírio, quando defendiam a sua fé, e correr para as fronteiras do Império, quando se tratava da defesa dos seus Príncipes, que eram ao mesmo tempo perseguidores do seu culto; mas esta é a índole preciosa dos Discípulos daquele Divino Mestre, que mandou dar a César o que era de César, e a Deus o que era de Deus. Consideramos o Poder Real de autoridade Divina, máxima, segundo entendo, de eterna verdade, que sendo sempre autorizada teoricamente, hoje pêlos trabalhos deste Século de sedição se vê comprovada pela experiência. Olhem pois os Pais de Famílias, e em geral todos os Vassalos para a autoridade Real também pêlos seus efeitos, para acabar de dar valor a este incomparável bem. O nosso Criador, podendo livremente dispor das suas criaturas, podendo determinar, e ser obedecido sem réplica, quis, por mais manifestar, a sua incompreensível bondade, dar-nos preceitos em nosso benefício; podia ser um Déspota, é um Monarca piedoso, e tudo o que nos ordena, não só tem prémio na vida futura, que é o objecto da fé, mas é realmente para nosso benefício, ainda nesta vida mortal.

Assim vemos no que pertence à matéria de que tratamos, porque a obediência aos Reis, que nos é expressamente mandada, tem pêlos seus efeitos mostrado as utilidades que tira cada indivíduo, e o total da Sociedade, em que ela está em seu vigor. Os homens no seu interior estado conhecem o desassossego das paixões, quando elas lutam sem freio, e sem condescendência à razão, e pelo contrário, quando ela toma verdadeiramente o ceptro, que harmonia e paz não sente o nosso coração? dirigem-se logo todas as nossas acções em benefício próprio, nem alheio se chama o benefício do próximo, como judiciosamente disse Terêncio, ainda que Pagão. Estas mesmas fortunas experimenta o corpo moral da Monarquia, onde o respeito filial ao Soberano é o carácter da Nação. A uniformidade das vontades, que um só dirige, dá uma força, que não é fácil destruir-se; e a diversidade das paixões, como é governada por um sistema, não só não prejudica, mas concorre para a harmonia política do Estado. Finalmente uma Sociedade, composta de muitas famílias, deve conservar-se pêlos mesmos meios de que se serve uma família para impedir a sua ruína: um que governe e o resto que obedeça. Não fica, pelo que temos dito, sendo desculpável o Pai de Famílias, que se esquecer de dar a seus filhos depois da educação cristã, a instrução de Vassalo, que tem por base a sujeição à Soberania; digo à Soberania em geral pêlos motivos, que o seguinte parágrafo dará a conhecer.

Publicado por Joana em 09:24 PM | Comentários (13)

Tosca e Marengo

Nem tudo é explicável. Ou talvez tudo seja explicável, mas por razões profundas e complexas. Há todavia um facto incontornável. Sinto um encanto muito especial pela Tosca de Puccini. Há três momentos que me tocam profundamente – a forma espantosa como Scarpia enreda Tosca na sua teia de intriga, naquele final do primeiro acto, portentoso de força; o momento em que Scarpia é informado que afinal Melas havia sido derrotado em Marengo e Mario Cavaradossi entoa «Vittoria! Vittoria! ... Libertà sorge, crollan tirannidi!»; e o momento final do II acto, em que Tosca apunhala Scarpia «Questo è il bacio di Tosca!», e exclama numa voz de desprezo, profunda e ardente, debruçada sobre o corpo de Scarpia, deixando cair o braço inerte do chefe dos carrascos de Roma, de cuja mão retirara o salvo-conduto: «E avanti a lui tremava tutta Roma!».

A trama desta intriga desenrola-se em paralelo com as informações que, do campo de batalha de Marengo, chegavam a Roma, ao Estado Romanos, o "Patrimonium Petrii" de cujo soberano, o Papa, Stendhal afirmaria que fazia a felicidade dos seus súbditos no céu e a sua miséria na terra.

Dois anos antes os franceses comandados pelo general Championnet haviam ocupado Roma e nomeado Cesare Angelotti como Cônsul da “República Romana”. Seguidamente Championnet conquistaria Nápoles e criaria a República Partenopeia. Ferdinando IV, o rei das Duas Sicílias, teve que fugir com sua mulher Maria Carolina (irmã de Maria Antonieta) para a Sicília, onde organizaram a resistência e aproveitando as dificuldades das tropas francesas, pressionadas pela «2ª coligação», que incluía a Inglaterra, a Áustria e a Rússia, e com um governo (o Directório) desacreditado, desembarcaram na península, apoiados pela revolta popular contra um governo satélite de França, retomaram Nápoles e depois Roma, onde o barão Scarpia com sua polícia secreta, conseguiu restabelecer a monarquia papal e derrubar a República. Angelotti foi encarcerado.

Para consolidar o seu golpe de Estado do 18 de Brumário, que derrubara o Directório, Napoleão precisava de vencer a Áustria, a principal potência continental, subvencionada pela Inglaterra. Como na anterior campanha, enquanto Moreau mantinha a pressão sobre as forças austríacas, na Renânia, Napoleão, então apenas o general Bonaparte, 1º Cônsul da República, concentrou os seus esforços no norte da Itália, no intuito de destruir o imponente dispositivo militar que a Áustria havia estabelecido aí, com o apoio dos pequenos estados do norte da península.

Bonaparte não estudava, de antemão, os pormenores dos planos das campanhas; considerava os objectivos estratégicos essenciais e as vias possíveis de os conseguir. As preocupações propriamente militares só o absorviam quando o contacto com as forças inimigas estava próximo. Nessa situação mantinha um serviço de recolha de informações muito preciso sobre os movimentos do inimigo e mudava o seu dispositivo militar com muita frequência, consoante as informações de que dispunha. Essa rapidez com que alterava as suas posições e o imprevisto dessas mudanças foi um dos motores do seus êxitos.

Outro dos seus factores de sucesso, antes que os seus êxitos o fizessem acreditar que seria sempre invencível, foi nunca subestimar a capacidade de discernimento do inimigo e nunca supor que este agisse de uma forma menos inteligente que a sua.

O essencial do dispositivo militar de Melas, que no total compreendia 120.000 homens, estava no sul do Piemonte e empregava as suas forças principais com o objectivo de tomar Génova, ocupada por uma guarnição francesa. Era pela costa mediterrânica que Melas esperava Bonaparte e a tomada de Génova assegurar-lhe-ia uma forte posição que impediria o avanço das forças francesas.

Todavia Bonaparte atravessou o S. Bernardo, com 60.000 homens e todo o trem militar – muares, canhões, etc. - e penetrou no Piemonte pelo nordeste, eixo que era considerado impraticável. Assim, enquanto Melas conseguia tomar Génova, as forças francesa invadiam à vontade as planícies piemontesas, eliminando pequenos destacamentos austríacos que encontraram, e Bonaparte marchou directamente para Milão, capital da Lombardia. As tropas francesas estavam na retaguarda de Melas. Conforme diria Napoleão, este operou contra Melas, como se Melas fosse Napoleão, enquanto que Melas conduziu-se perante Napoleão, como se este fosse Melas!

Melas viu-se numa situação complexa, com as suas forças dispersas pelo Piemonte, Ligúria e Lombardia e correndo o risco de Bonaparte poder bater, sucessiva e separadamente, os seus corpos de exército. Entre Alessandria e Tortona há a extensa planície de Marengo, onde Melas decidiu concentrar as suas forças. Foi para aqui que Napoleão se dirigiu depois de restabelecer o poder francês em Milão.

A batalha começou na manhã de 14 de Junho de 1800. As forças austríacas eram superiores em número e a rapidez de movimentos do exército francês não havia permitido a junção de todas as forças indispensáveis aos planos de Bonaparte. Durante toda a manhã e início da tarde, os franceses recuaram face a tenacidade e superioridade numérica dos austríacos. A batalha parecia perdida. A meio da tarde, Melas, cheio de júbilo, enviou correios com despachos para a Corte de Viena, e para as cortes dos estados italianos, entre eles Roma e Nápoles, comunicando a vitória completa dos austríacos, a derrota do ímpio Bonaparte, os troféus capturados, os prisioneiros e os canhões capturados.

Foram estes despachos que chegaram à corte papal, perto do fim do I Acto da Tosca. Angelotti, fugindo do Castelo de Sant’Angelo, refugiara-se na igreja de Sant’Andréa della Valle. Aí foi ajudado a esconder-se pelo pintor Mário Cavaradossi. A chegada de Floria Tosca, amante de Mário e ciumenta em extremo (È una donna... gelosa), precipita a acção e leva a que Tosca descubra o retrato da Marquesa Attavanti que Mário pintara sem que esta o soubesse (Chi è quella donna bionda lassù?). Mário inventa que seria Maria Madalena, mas Tosca reconheceu a marquesa, o que desencadeou uma cena de ciúmes que Mário conseguiu aplacar.

Foi na sequência desta cena que o Sacristão da Igreja de Sant'Andrea della Valle, entra radioso na igreja chamando os alunos do coro para cânticos festivos «Nol sapete? Bonaparte... scellerato... Bonaparte... Fu spennato, sfracellato, è piombato a Belzebù!». E as manifestações jubilosas só são interrompidas com a chegada do Barão Scarpia, acompanhado pelos seus esbirros e por aqueles acordes profundos e tensos que sublinharão sempre, durante o decorrer da ópera, as intervenções de Scarpia. Um tema, cheio de força, ressumando a terror e a ódio.

Mas Scarpia não é apenas o paradigma do polícia político torcionário e abjecto. É uma figura muito mais subtil que isso. Scarpia é o homem do poder que para saciar o seu desejo mistura a esfera política e a esfera privada. É o exemplo acabado da forma mais perversa do abuso do poder. Desde a sua entrada na Igreja «Un tal baccano in chiesa! Bel rispetto!», referindo-se às manifestações de alegria dentro do templo, até ao fim da ópera, mesmo depois de ser assassinado, ele é a figura central e todos os outros personagens não são mais que títeres manejados pelas suas mãos poderosas e peçonhentas.

E todo o fim desse I Acto será a urdidura da intriga de Scarpia, explorando os ciúmes de Tosca, que entretanto regressara para cancelar o encontro com Mário, por ter sido convidada pela Rainha Maria Carolina, então em Roma, para um sarau festivo em glória da vitória de Melas, mostrando-lhe o leque com o brasão dos Attavanti e fazendo insinuar um violento ciúme no seu seio «Va, Tosca! Nel tuo cuor s'annida Scarpia!... È Scarpia che scioglie a volo il falco della tua gelosia

Mas Scarpia, ao subverter a consciência de Tosca, sente despertar nele o desejo carnal pela diva do canto; a multidão entoa o Te Deum pela vitória sobre Bonaparte enquanto Scarpia exclama «Tosca, mi fai dimenticare Iddio!», antes de se penitenciar, associando-se, com empenhada religiosidade, ao imponente coro da Igreja de Sant'Andrea della Valle. É um final com uma força enorme, grandioso, de uma dimensão musical e cénica que perdura em quem quer que o tenha visto alguma vez.

Mas a partir do meio da tarde desse dia 14 de Junho, a situação mudou bruscamente no teatro das operações. A divisão do general Desaix, que foi morto logo no começo da operação, irrompeu no campo de batalha e arremeteu no momento decisivo sobre as tropas austríacas. Simultaneamente Bonaparte fez avançar as suas tropas que haviam recuado e tudo isto redundou numa completa derrota de Melas. Antes do fim do dia os austríacos tinham perdido metade da artilharia e deixado milhares de prisioneiros nas mãos de Bonaparte. A mortandade entre os austríacos havia igualmente sido enorme. Todo o dispositivo militar austríaco no norte da Itália havia sido aniquilado.

Meia dúzia de horas depois de terem partido os correios com as novas da vitória, partiram os mensageiros com a notícia do completo aniquilamento das forças de Melas. Foi esta notícia que Sciarrone, um dos esbirros de Scarpia traz, a meio do II Acto, ao Palácio Farnese, à câmara de Scarpia, onde estavam Cavaradossi, prostrado pela tortura, e Tosca regressada do sarau da Rainha de Nápoles. «Eccellenza! quali nuove!... Un messaggio di sconfitta... »
Scarpia - Che sconfitta? Come? Dove?
Sciarrone - A Marengo... Bonaparte è vincitor!
Scarpia - Melas...
Sciarrone - No! Melas è in fuga!...

E então Mário Cavaradossi, na agonia da tortura, encontra forças para entoar um belíssimo e comovente hino à liberdade:
Vittoria! Vittoria!
L'alba vindice appar
che fa gli empi tremar!
Libertà sorge, crollan tirannidi!
Del sofferto martîr
me vedrai qui gioir...
Il tuo cor trema, o Scarpia, carnefice!

Enquanto Tosca, sem pretensões políticas, apenas mulher, apenas amor, pressentindo as intenções de Scarpia, lhe pedia temerosa: «Mario, taci, pietà di me!».

Scarpia é o polícia sádico que procura o sofrimento e o ódio no objecto do seu desejo carnal. O seu fim último é a completa humilhação do objecto do seu desejo. O suplício de Cavaradossi é dirigido principalmente contra Tosca. Enquanto Mário é torturado, ouve-se o som do canto de Tosca no sarau da rainha. Mário é um mero, mas necessário, instrumento da dialéctica carrasco-vítima que une Scarpia e Tosca. Mesmo a notícia da derrota de Melas e do próximo fim do seu poder não perturba minimamente o seu percurso de carrasco sádico. E é morto por Tosca no momento em que ia gozar o prazer supremo de a possuir. Mas o seu poder e a sua arte da intriga perduraram para além da sua morte. O fuzilamento de Cavaradossi, que prometera a Tosca ser dissimulado, foi mesmo real. Tosca suicida-se lançando-se da plataforma do Castelo de Sant'Angelo, onde Mário acabara de tombar, fuzilado: «O Scarpia, avanti a Dio!». As suas derradeiras palavras seriam para Scarpia.

Já vi esta ópera ao vivo. Revi-a este fim de semana, em DVD, numa excepcional interpretação de Angela Gheorghiu, Roberto Alagna e Ruggero Raimondi (Scarpia). Não consigo ver a cena da ária «Vittoria! Vittoria!», de Cavaradossi, sem que uma lágrima furtiva (ou várias ... muitas) me embacie os olhos e me humedeça a face. É dos momentos mais belos e puros do espectáculo operático.

Publicado por Joana em 08:19 PM | Comentários (6)

dezembro 17, 2004

Balanços Cruzados

Miguel Cadilhe fez o balanço dos dois anos de actividade da agência a que preside. Foi genial e objectivo: «Continuamos a não ter o problema do tratamento de resíduos industriais perigosos resolvido em Portugal e isto é uma vergonha ... Desde a primeira hora que chamamos a atenção para isto e chegamos a encomendar um estudo sobre municípios com melhores possibilidades de receber uma estação mediante contrapartidas» desabafou, adiantando que «há empresas que transportam resíduos industriais de forma ilegal, clandestinamente, enquanto outras espalham-nos pelo território e um país que se quer desenvolvido não pode virar as costas ao problema.».

Foi luminoso como exemplo de rigor e adequação, abrindo novos e entusiasmantes caminhos para o trabalho a desenvolver pelas nossas agências e institutos. Quando o Presidente do Instituto de Resíduos fizer uma conferência de imprensa sobre o balanço da sua actividade, certamente alertará o auditório sobre os problemas graves decorrentes da má fiscalização da actividade dos areeiros e sobre a má utilização do domínio hídrico em Portugal, sugerindo soluções oportunas e necessárias e prometendo que agilizará a implementação da directiva da água de forma coerente e exemplar.

Como se espera e será óbvio, o Presidente do INAG fará um balanço da sua actividade no Instituto da Água, chamando a necessária atenção para o mau estado das estradas em Portugal, para a vergonha que tal representa para o país e para a imagem com que ficam os estrangeiros que nos visitam, enjoados pelos solavancos das viaturas e pelas apertadas e desnecessárias curvas e lombas à espera das devidas rectificações. E igualmente para as pontes que estão com limitações de tráfego, obrigando os utentes a trajectos muito mais longos.

Entretanto o Presidente do IEP, na sua anunciada conferência do balanço de actividade, não deixará de anunciar logo de início: Senhoras e senhores, estou aqui para vos comunicar que a situação da orla costeira é catastrófica, vítima de uma erosão persistente e odiosa que urge combater. E nossa Zona Económica Exclusiva está no mais lamentável abandono. É para esse combate que eu apelo a todos vós e que vos prometo que irei dedicar os próximos dois anos da minha actividade.

E assim, finalmente, o país começará a aperceber-se da gravidade dos seus problemas. O Presidente do Instituto Hidrográfico prestará contas da sua actividade, desabafando a sua comoção pelos problemas da adolescência desvalida e sujeita às piores tentações; o Presidente do Instituto de Reinserção Social virá a público clamar contra a baixa qualificação nas empresas e como a sua competitividade perante o exterior se ressente disso. O Presidente do Instituto de Emprego falará revoltado da situação dos vitivinicultores e da necessidade de apoiar essa actividade exportadora e com tantas e gloriosas tradições. O Presidente do Instituto da Vinha e do Vinho produzir-se-á em público arengando sobre a falta de iniciativas e promoções turísticas em Portugal, vitais para uma actividade que tantas divisas traz para o país. O Presidente do Instituto do Turismo industriar-nos-á sobre o tormentoso estado da agricultura em Portugal e da falta de apoios de que sofre; o Presidente do IDRHa elevará a sua voz de protesto contra os horários e o mau serviço público dos museus. O Presidente do Instituto dos Museus debruçar-se-á numa solene advertência sobre o facto de não estar a ser devidamente dinamizado o investimento estrangeiro em Portugal.

E a vida política e económica conhecerá um dinamismo maior e inesperado ... sobretudo inesperado. Quando o Presidente do IAPMEI entrar, todos os jornalistas estarão impacientes, roendo nervosamente as esferográficas, na expectativa da matéria que será abordada.

O Presidente do IAPMEI levanta-se, pigarreia, bebe um gole de água e começa entusiasmado:
- Chamei-vos para que compartilhem comigo as preocupações que tenho sobre a situação do controlo aéreo em Portugal e da gestão dos aeroportos. Nestes últimos dois anos tenho dedicado toda a minha actividade e sentido do dever público a analisar essa situação e tenho a dizer-vos que ...

Que país magnífico! Que exemplo de devoção pelo serviço público ... dos outros!

Publicado por Joana em 07:14 PM | Comentários (39)

A Tirania do Défice

Os défices orçamental e das transacções com o exteriores são apenas sintomas da crise económica estrutural do nosso país. O governo de Durão Barroso teve o mérito de atacar os sintomas. Mas como não conseguiu ministrar os remédios necessários para debelar a doença, quando se aproximava a hora da UE tirar a temperatura, afadigava-se a empanturrar o doente de febrífugos para que ele aparentasse boa saúde. Eu nunca esperei que o actual governo conseguisse, em quatro meses, resolver a crise económica, mas esperava mais discernimento na administração dos febrífugos.

O que se está a passar com a alienação ou o Lease Back dos imóveis para tal servir de receita extraordinário para trazer o défice orçamental para baixo do limite fatídico dos 3% é lamentável.

Na actual conjuntura, e enquanto não se conseguem realizar reformas estruturais que melhorem a nossa situação económica, estou de acordo que se vendam bens públicos. Cumprimos as nossas obrigações internacionais e o Estado pune-se a si próprio pela sua incompetência, e pune-nos, a nós, pelas nossas más escolhas políticas, por nos termos deixado embalar pelo cântico das sereias e por continuarmos inconscientes sobre a nossa realidade. Nunca o Estado nos representa tão perfeitamente como quando nos pune por darmos o nosso apoio aos vendedores de ilusões. É nessa conjuntura que o Estado somos nós e nós somos o Estado.

Todavia esperava-se que o governo soubesse o estado da contabilidade pública e preparasse este negócio com o tempo e a maturação suficientes para que ele fosse feito com rigor. Nomeadamente que tivesse previsto o agravamento da execução orçamental que tem ocorrido desde o fim do Euro 2004. A actual situação do mercado imobiliário (que já dura há três anos) desaconselha a realização de hastas públicas. O governo arriscava-se a vender bens por valores irrisórios. Acresce que este tipo de bens facilita o aparecimento de cambões em virtude de se dirigir a um mercado muito restrito. Portanto, o ajuste directo conduz, nas presentes circunstâncias e desde que seja feito com a necessária competência e isenção, a melhores soluções que a hasta pública.

A queda da «legitimidade política» e posterior demissão do governo tornou problemática aquela solução. Vender bens públicos não é propriamente um acto de gestão. Falou-se primeiro no Lease back e agora em privilegiar a operação do tipo de «cessão temporária» que não implica alienações patrimoniais (no Lease back o Locatário vende o bem ao Locador que posteriormente lhe cede o mesmo bem, em regime de leasing, havendo portanto uma alteração patrimonial, mesmo que, no fim do contrato, haja a alteração patrimonial inversa). Mas se não há alienação patrimonial não percebo como tal poderá ser aceite por Bruxelas, porque me parece ter uma característica similar à hipoteca, embora com a designação pomposa e anglo-saxónica de lease and lease back.

O Estado possui imóveis em excesso e nem sequer conhece com exactidão a extensão do seu património. Portanto poderá ser uma boa medida económica se ele se desfizer de parte desse património. Todavia essa operação terá que ser feita com rigor, de uma forma organizada e aproveitando as conjunturas mais favoráveis do mercado imobiliário, e não à última da hora, perante a premência do défice e alienando o que está mais à mão.

Publicado por Joana em 01:47 PM | Comentários (8)

dezembro 16, 2004

Atiradores Furtivos

Portugal está num pântano político, económico e social. Para resolver a grave crise económica em que se encontra, e da qual o descontrolo financeiro é apenas um sintoma, o país precisa de uma política adequada, rigorosa e firme. Mas para implementar essa política, cujos vectores principais já os referi aqui diversas vezes, é necessária uma direcção firme e segura. Uma política de rigor exige competência, mas também exige uma forte coesão da direcção política.

Essa coesão não existe nos partidos portugueses, se exceptuarmos a “paz do sepulcro da história” do PCP e o PP, mas cuja coesão se baseia numa direcção personalizada que depende apenas do crédito político do chefe, e que se pode desvanecer se esse crédito faltar. No BE nem vale a pena falar. O que o mantém coeso é o seu discurso anti-sistema. Se, para desdita do país, fosse chamado a integrar o governo, o BE ficaria desfeito ao fim de meia dúzia de medidas governamentais. Não há gente mais mesquinha e invejosa que no segmento intelectual urbano que se reivindica de progressista e onde o BE recruta os seus militantes e dirigentes. Não há gente que valorize tanto os mais insignificantes cambiantes de opinião e que utilize essas diferenças como biombo atrás do qual se aninha a inveja, como esse grupo social.

Infelizmente esse mal afecta igualmente as elites políticas do PS e do PSD, partidos cujo advento e os prelúdios da III República predestinaram para serem os únicos partidos do poder, sozinhos ou liderando coligações. O que é prodigioso nessa vertigem pelo abismo da cizânia é que ela tem origens diferentes, pelo menos as origens mais imediatas.

As diferenças dentro do PS resultam de opções políticas internas muito diversas. A distância política entre a ala mais esquerdista e a ala mais centrista do PS é muito superior às distâncias ideológicas no interior do conjunto da «coligação» PSD/PP. Refiro-me às questões político-económicas e não a questões éticas e sociais, como o caso da IVG.

No sector mais à esquerda do PS, muitos poderiam ter continuado no PCP se este partido desse mais merecimento às «mentes brilhantes». Mas o aparelho do PCP sente qualquer fulgurância política como carreirismo e envia todos aqueles que adquirem protagonismo mediático para o purgatório dos segundos planos. Na sua quase totalidade, esses políticos não saíram, ou foram expulsos, pela sua ânsia de democracia interna, pois conviveram muitos anos, incondicionalmente, com o centralismo democrático, mas pela sua ânsia de protagonismo. Houve obviamente excepções, mas a regra geral foi esta.

Outros, como por exemplo Ana Gomes, estão ideologicamente na área do BE, mas foram para o PS porque este partido está na área do poder, com as oportunidades que tal posição oferece.

Na outra extremidade do PS, muitos caberiam perfeitamente no PSD. Estão no PS por razões de oportunidade ou de percurso político.

Estas diferenças muito significativas tornam difícil ao PS conduzir uma política coerente. Acresce que no “centrão” que optou pelo PS, se encontram altos quadros da função pública e dos meios universitários, bastante relutantes a uma reforma profunda da administração pública, que é a primeira prioridade do país.

Para além destas diferenças, que têm substância política, existem as rivalidades pessoais, as políticas de campanário e as guerrilhas de algumas máfias autárquicas, especialmente virulentas na zona do Grande Porto. Mas essas diferenças acabam por ter uma importância menor que a diversidade política, até por que se submetem boamente a quem lhes garante o poder político e só estrebucham quando se vêem arredadas do poder por alguma circunstância, como foi o caso de Fernando Gomes.

A questão do PSD é muito mais paradoxal. O PSD ganhou as últimas legislativas mas só poderia formar um governo estável, para gerir uma situação económica e financeira excepcionalmente grave, em coligação. A necessidade de fazer uma coligação, evidente para qualquer observador sensato, foi o primeiro pomo de discórdia. Sobre as opções políticas, económicas e financeiras de base estavam todos de acordo. O pomo da discórdia foi o ódio de estimação que algumas elites intelectuais do PSD tinham por Paulo Portas.

Esse ódio sobrelevou tudo, principalmente as razões de oportunidade política. Os principais detractores da coligação e protagonistas da campanha de maledicência contra Paulo Portas encontravam-se dentro do próprio PSD e eram figuras proeminentes desse partido. E Durão Barroso acabou por se ver na emergência de constituir governo com figuras de segundo plano do seu partido. Até ao epílogo do «Caso Moderna» a campanha contra Portas prosseguiu sem desarmar e os seus principais motores estavam dentro do PSD. Esta campanha fragilizou bastante um governo já de si debilitado pela sua composição e por ser chefiado por um líder sem carisma.

A saída de Durão Barroso e a indigitação de Santana Lopes levaram as críticas ao governo ao paroxismo. Em causa não estavam opções políticas ou económicas, apenas rivalidades pessoais das elites intelectuais do PSD. A Jorge Sampaio apenas bastou gerir a situação, aproveitando as guerrilhas internas do PSD. O governo caiu face ao cerrado ataque de muitos dos seus barões por questões menores. E o absurdo de tudo isto foi que o parceiro de coligação, designado à partida como factor de instabilidade, foi o único factor estável na coligação.

Há uma maldição que pesa sobre o PSD. Conseguiu duas maiorias absolutas devidas ao discurso sólido de Cavaco Silva e ao facto dos portugueses estarem fartos de uma política baseada em discussões ideológicas estéreis. Mas o próprio Cavaco Silva abandonou o cargo quando viu que não conseguia ter mão nos barões do seu partido.

O PSD está presentemente órfão de alguma figura messiânica que se consiga impor eleitoralmente e que congregue as elites do partido não apenas pela detenção do poder (viu-se que não foi suficiente no que respeitou a Durão Barroso e a Santana Lopes), mas pela projecção nacional incontestável da figura.

Enquanto no PS é preciso primeiro conquistar o partido como meta para chegar ao poder, no PSD é preciso primeiro conquistar o país, de forma incontestável, para poder dominar sem contestação o PSD ... pelo menos nos primeiros anos, enquanto o domínio do país por essa figura parecer incontestável.

Atiradores furtivos há em todos os partidos. Apenas sucede que no PSD não há período de defeso. Atiram durante todo o ano.

E quando a estrela de Portas decair, também irá encontrar muitos atiradores furtivos em casa.


Nota - Ler ainda:
Divórcio de Conveniência

Publicado por Joana em 08:07 PM | Comentários (37)

dezembro 15, 2004

Prometemos o mesmo, mas ...

com a necessária mudança política

É certo que um périplo pelo centro e norte do país não ajuda à reflexão política. Aquelas gentes olham os lisboetas como vítimas infelizes da má alimentação e do fast food, amarelados e débeis. E quando lhes aparecem políticos da capital, alegadamente para lhes transmitir o evangelho da redenção do país, a primeira e, por vezes, a única preocupação que lhes suscitam é a imperiosa urgência de os alimentar. O político lisboeta enceta uma vigorosa tirada sobre a necessidade da mudança política e o íncola sorridente e solícito, estende a travessa e objecta: Pois ... é evidente ... e não vai mais este naco de entrecosto ... já reparou como não tem tirado os olhos de V.Exa? Ninguém na província lhe passa pela mente que um forasteiro vindo de Lisboa não esteja apenas empenhado numa excursão gastronómica.

Rodeado de morcelas, entrecostos, feijoadas, orelhas de porco, lombos de vaca, e etc., Sócrates não pode ser acusado de ter um discurso vazio. Qualquer político, por muito bom que fosse, não conseguiria arrancar qualquer ideia nova de um crânio fragilizado pela ascensão dos eflúvios provenientes de todo aquele manancial de colesterol devidamente misturado com encorpados tintos e espirituosos brancos.

Em vez do lombo de vaca, seria preferível terem-lhe servido o António Vitorino e o seu programa ... mas qual quê! ...Sócrates bem perscrutou por entre as cacholeiras, chourições e farinheiras, se divisava o lombo do Vitorino ... mas nem vestígios!

Nesta emergência, o ponto mais forte do programa que Sócrates apresentou foi o «Queremos a maioria absoluta». Sócrates não disse o que pretende fazer, mas apenas o que quer. Normalmente os políticos começam por prometer coisas e só quando estamos encurralados, sem alternativas, é que eles nos pedem coisas. Sócrates foi direito ao fim – começou por pedir. E para que quer tal coisa? «para que Portugal possa ter um governo preocupado apenas com a governação e possa aplicar um projecto coerente». Mas para que vai servir esse projecto coerente? «para que o país possa vir a ter um governo estável».

Querer estabilidade para ter um governo estável cheira a tautologia, pois Sócrates quer uma maioria, logo uma situação política estável (desde que o PR não se chame Sampaio), para levar a cabo o exaltante projecto de ter um governo estável. E tem razão. Precisamos de um governo tranquilo, sossegado, de pantufas e amodorrado no sofá, cabeceando face ao aparelho de TV, e não «uma governação que está sujeita aos humores do momento, aos caprichos de quem governa, ao espírito de quem acha que pode fazer política como um episódio de cada dia».

Falou todavia de um assunto concreto – a empresarialização dos hospitais e sublinhou: o Governo do PS não vai olhar com preconceito e deitar fora tudo o que tiver sido feito pelo PSD". "Vai olhar para o que existe e melhorar", prometeu, acrescentando que o PS considera a empresarialização dos hospitais "um bom passo, em termos de descentralização", ainda que mantenha "reticências" quanto à forma como os governos PSD-CDS concretizaram a medida.

Esta frase consubstancia as posições de Correia de Campos sobre esta matéria e que eu já referi neste blog: está de acordo sobre a solução, mas fortemente crítico por causa dos boys escolhidos para as administrações serem os do outro clube.

O momento alto do seu périplo foi quando Sócrates fez as promessas que até agora nenhum político jamais ousara fazer. Cheio de coragem, de peito feito e olhos nos olhos, perante um auditório estarrecido de emoção, prometeu «rigor nas finanças públicas, crescimento económico, justiça e coesão social e modernidade».

Sentindo o olhar carrancudo de Manuel Alegre pousado nele, apressou-se a acrescentar «crescimento acompanhado de uma consciência social». Foi inolvidável. Julgo que mais nenhum partido se atreverá a fazer promessas tão inovadoras.

Sócrates não responde a perguntas sobre eventuais coligações ou acordos pós-eleitorais, justificando que a conquista da maioria absoluta, nas legislativas de 20 de Fevereiro, é "o único cenário admitido”, pois uma «vitória dos socialistas sem maioria absoluta não seria "uma boa solução para o país». Sócrates tem toda a razão – seria uma situação péssima. E por ser uma situação péssima é que Sócrates deveria explicar, desde já, o que fará então. Quando alguém se abalança a um empreendimento, e só constrói cenários optimistas, arrisca-se a grandes dissabores. Neste caso Sócrates pretende conquistar o voto útil, mas correndo o risco de ficar refém de um acordo pós-eleitoral. O grave desta questão é que não seria apenas o PS a ficar refém, seria todo o país.

O início da campanha de Sócrates, para além das rescendentes morcelas e farinheiras, tem-se pautado pela negativa. Diz mal do governo anterior. Muito mal. Curiosamente não aponta as políticas erradas, mas apenas «episódios que desprestigiam as instituições e assinalam um estilo marcado por caprichos e por birras». E afirma peremptório que, em contrapartida, «apenas nos devemos concentrar nos problemas nacionais», enquanto pensa, melancólico, nas saborosas morcelas que estão à espera dele. Nos problemas políticos nacionais não pensa, obviamente, pois senão proporia soluções para eles.

O discurso de Sócrates até agora tem sido absolutamente vazio. Apenas generalidades e banalidades. Esperemos que quando Vitorino escrever o programa, esse discurso ganhe alguma substância.

Publicado por Joana em 11:57 PM | Comentários (21)

dezembro 14, 2004

Divórcio de Conveniência

Como já era público e notório, PSD e PP vão separados às eleições de Fevereiro de 2005. Ao terceiro dia rubricaram um acordo que será uma mistura de um pacto de não agressão durante a peleja eleitoral e uma promessa de que, após as eleições, a única coligação possível, para qualquer dos dois partidos, será entre eles. Foi um divórcio por mútuo consentimento e com a cláusula irrevogável que não se casarão com mais ninguém, a não ser entre si.

Os meios de comunicação gastaram solas, pneus, gasolina, saliva e a paciência, a leitores e a telespectadores, durante estes 3 dias, perseguindo os líderes de ambos os partidos e conjecturando as hipóteses mais imaginativas, para as derrubarem logo a seguir. A TVI contratou mesmo, em vez de uma analista política, uma especialista em leitura labial, a Constança Cunha e Sá, que nos trouxe as matérias discutidas no almoço entre Portas e Santana, com um pormenor tal, que não deixa margem para dúvidas sobre a sua proficiência naquela matéria. Só lhe falta clarividência política.

Foi uma espera que enervou imenso os jornalistas e a oposição, perfilada, em sentido, entediada, sempre perto de qualquer carro de exteriores, na ânsia de intervir no instante imediato. Os jantares que Sócrates tem feito pelo país nem têm caído nada bem, tal era o receio de aparecer a comentar de boca cheia, circunstância que, como é sabido, liquidou politicamente Cavaco Silva nas eleições presidenciais.

Para não se tornarem monótonos e manterem as audiências, os jornalistas foram arquitectando cenários. Como o que sabiam era nada, era esta a matéria que utilizaram para construir os sucessivos cenários. O nada é uma matéria leve, dúctil, mas muito volátil. Ao fim do 2º ou 3º cenário, os jornalistas tinham que arranjar um bode expiatório para consecutivos cenários tão díspares e hílares – a culpa era da inconstância daqueles líderes cujo silêncio ora induzia os jornalistas a pensarem uma coisa, ora os induzia a pensarem o inverso. Aqueles dois líderes conseguiam ser mais trapalhões calados que quando falavam!

Finalmente os líderes falaram e o país ficou em «serenidade emocional».

Três posts atrás, em Dois Registos, eu havia escrito sobre a óbvia ida às urnas em separado. Aliás, o ataque de Paulo Portas a Jorge Sampaio e à sua alegada capitulação perante o lobby bancário e segurador era sintomático de que os dois partidos nunca se apresentariam coligados. Foi um ataque que se destinava ao consumo do seu eleitorado, sem preocupações com o eleitorado potencial do PSD.

Por isso as criticas de João Salgueiro, Silva Lopes e Fernando Ulrich a Portas devem ter sido lidas por este com um sorriso escarninho. Ele fez aquelas acusações exactamente para isso. Um importante nicho de mercado de Paulo Portas é constituído pelos descamisados, onde só fica bem uma querela com poderosos banqueiros.

Enquanto isso, Santana Lopes não pode ter aquele tipo de discurso, nem provavelmente o desejaria ter. O PSD depende demasiado dos equilíbrios da sociedade portuguesa. Santana Lopes vai apostar no eleitorado do centro. Por sua vez, a escolha dos grandes agentes económicos radicará no grau de confiança que Santana Lopes souber transmitir a empresários e a banqueiros. Neste cenário não cabem discursos como o de Paulo Portas.

Portanto, era absolutamente despiciendo os meios de comunicação gastarem solas, pneus, gasolina e saliva durante estes 3 longos e penosos (para eles) dias. Constança Cunha e Sá terá que se matricular novamente num Curso de Leitura Labial, mas ... Constança ... por favor, outro curso por correspondência, não.

Bastava sentarem-se sossegados, raciocinarem sobre os factos ... e tirarem as conclusões. É simples.

Publicado por Joana em 10:54 PM | Comentários (30)

A Decisão em Democracia

E onde se fala de Ulisses, das Sereias e de Sampaio

Duas ocorrências recentes, relevantes, do ponto de vista da substância política, mas contraditórias entre si, trazem à colação a questão da democracia, do seu funcionamento e dos seus limites. A primeira foi a «democracia plebiscitária» que fundamentou a decisão de Jorge Sampaio de dissolução da AR, ao arrepio dos conceitos básicos da democracia representativa – a «tomada do pulso» à opinião pública como sucedâneo instantâneo do plebiscito. A segunda foram as afirmações públicas de conhecidos economistas que as questões orçamentais são demasiado sérias para serem tratadas por políticos, isto parafraseando o que Clémenceau disse há cerca de um século «La guerre est trop importante pour la confier à des militaires».

A Conferência sobre Sustentabilidade das Finanças Públicas no Médio/Longo Prazo, organizada pela Comissão de Execução Orçamental, foi consensual sobre o facto do actual modelo orçamental ser insustentável, sendo sugerida a criação de uma agência orçamental, independente do Governo, responsável pela realização de previsões, simulações e cenários de médio e longo prazo para as contas do Estado, assim como pela contabilização e estatísticas abrangendo todo o sector público.

Na opinião dos proponentes, «Contabilidade, previsões, estatísticas são assuntos técnicos que não devem ser tratados na esfera política. Politizar matéria técnicas esconde os problemas, adia soluções, mas não resolve nada». É a tese de Clémenceau aplicada às Finanças Públicas.

Em 2-11-2004 eu havia escrito aqui, (cf. A Sociedade dos Pigmeus Políticos) que «A nossa sociedade não pode ser governada tentando satisfazer opiniões “instantâneas”, ... Não se conseguem resolver os problemas, e os governantes que se colocaram de cócoras perante a opinião pública semanal, têm o respeito que normalmente se atribui a quem é apanhado com frequência inusitada nessa incómoda e desfavorável posição: nenhum.»

Esse post, para o qual chamo a atenção, era uma reflexão sobre o facto da capacidade de julgamento e de decisão dos político ser actualmente testada, dia a dia, pelas sondagens de opinião e pela dependência obsessiva de opiniões voláteis do público, e por se governar, ou pretender que se governe, ao sabor dos desejos diários da opinião pública determinada pelas sondagens e avalizada pelos analistas.

Nesse texto, em certa medida profético face à decisão de 30-11-04, eu advertia para o facto da democracia representativa estar a ser pervertida por um arremedo de democracia plebiscitária permanente, com a agravante de serem plebiscitos «instantâneos», sem campanha prévia. Esta perversão da essência da democracia representativa não é um fenómeno localizado unicamente em Portugal. Afecta todo o mundo ocidental altamente mediatizado, mas a sua influência em Portugal é particularmente gravosa porque potencia a tendência lusitana para o bota-abaixo, uma das características mais malignas do nosso défice de cidadania política.

O grande receio de Tocqueville, no seu ensaio clássico sobre a democracia na América era «a tirania da maioria». O Estado americano não tinha uma estrutura social como na Europa, uma classe de aristocratas que pudesse agir como estabilizador social. Sem tal classe ele temia que o país tombasse sob a influência de demagogos e de populistas.

Tocqueville equivocou-se, mas apenas parcialmente. A classe média tem agido, nas democracias ocidentais, como a força estabilizadora que Tocqueville temia que escasseasse. Nos países onde a classe média é forte e próspera há estabilidade. À medida que se desce na hierarquia dos países em termos de força da respectiva classe média (prosperidade e peso quantitativo) a estabilidade social e política diminui. A instabilidade e inexistência de democracia (ou a sua precaridade) nos países do terceiro mundo resultam de não existir uma classe média minimamente consistente.

Todavia o aumento da quantidade e da rapidez da informação tem permitido auscultações permanentes das opiniões públicas. E essa auscultação permanente, benéfica do ponto de vista da análise da sensibilidade imediata da população a ocorrências e decisões diversas na esfera política, torna-se perversa se for utilizada para tomar decisões políticas ao sabor dessa opinião imediatista. As decisões estruturantes da política só colhem efeitos a longo prazo. No imediato bolem com muitos interesses instalados e, se a situação social e económica for má, poderão mesmo ter efeitos a curto prazo desagradáveis para parte significativa da população.

A tirania da maioria, temida por Tocqueville, apareceria agora sob a forma de plebiscitos «instantâneos» às flutuações da opinião pública.

As economias desenvolvidas tomaram consciência desses inconvenientes e têm estabelecido entidades não sujeitas às pressões da opinião pública como os Bancos Centrais, por exemplo. Outras entidades que escapam às flutuações da opinião pública são as instituições da UE. Os “burocratas de Bruxelas” têm tomado medidas reguladoras no domínio da economia e das finanças que escapam ao vilipêndio da opinião pública ... são directivas comunitárias.

Se não fossem a UE e o PEC, quer se concorde ou não com a rigidez dos seus limites, Portugal estaria agora na situação para a qual a Argentina resvalou há alguns anos. O laxismo guterrista teria continuado na ausência da obrigatoriedade de se sujeitar às disposições comunitárias. Não foi a nossa opinião pública que salvou o nosso país da argentinização, foi um poder externo ao nosso país e invulnerável a uma opinião pública embalada pelo cantar das sereias da oratória de Guterres. Na ausência destas entidades “não eleitas”, os políticos portugueses deixar-se-iam embalar pelas vozes que se elevam das sondagens e legislariam para a rua, em vez de legislarem no interesse a longo prazo do seu país.

Muito antes de Tocqueville, da Conferência sobre Sustentabilidade das Finanças Públicas e de mim própria, há milénios, ainda nos primórdios da nossa civilização, alguém abordou esta questão. Foi a veneranda Circe, a poderosa e preclara deusa de belas tranças, que aconselhou Ulisses, e que se esqueceu agora de Sampaio e da maioria dos políticos portugueses:
«Encontrarás, primeiro, as Sereias, que encantam a todos os homens que se aproximam delas. Aquele que, sem saber, for ao seu encontro e lhes ouvir a voz, esse não voltará a casa, nem a mulher e os inocentes filhos o rodearão, alegres; mas será encantado pelo seu canto sonoro ... Passa de lado e tapa os ouvidos dos teus companheiros com cera amolecida, para que nenhum deles as oiça. Tu ouve-as, se quiseres, depois de te prenderem os pés e as mãos, erecto, junto ao mastro, e de teres sido ligado com cordas a ele, para que te possas deleitar com a voz das Sereias. Se, porém, pedires e ordenares aos companheiros que te soltem, que em vez disso eles então te prendam, com mais ligaduras ainda. Depois que tiveres passado pelas Sereias, não te direi com clareza qual de dois caminhos deverás seguir; decide isso tu próprio no teu coração».

Está tudo dito neste belo trecho da Odisseia. Há reformas indispensáveis no Estado Social cuja realização é virtualmente impossível sem fugir à pressão dos lobbies, nomeadamente dos sindicatos da função pública. As políticas monetárias tornaram-se mais responsáveis quando passaram a ser conduzidas por bancos centrais independentes. Sem Bruxelas, relativamente isolada de pressões políticas, não haveria a liberalização das indústrias e aumento da concorrência, não haveria a eliminação dos subsídios inúteis a empresas sem viabilidade, etc..

No Banco de Portugal e em Bruxelas o cântico das sereias dos políticos que decidem ao sabor das sondagens não é ouvido. Puseram cera nos ouvidos. E os nossos políticos estão “amarrados ao mastro” do cumprimento dos limites dos défices, embora soltem frequentemente gritos lancinantes a pedir que os desamarrem. Infelizmente deveria haver mais mastros para os amarrar. A Conferência que citei, propôs mais um mastro ao qual seria de toda a conveniência amarrar os nossos políticos. Todos.


Publicado por Joana em 08:01 PM | Comentários (18)

dezembro 13, 2004

A Fuga das Elites

Elites Run

Subitamente o país despertou para o desaparecimento das elites. Faltam-nos elites capazes de transmitir um projecto, dizem uns; as nossas elites económicas não interiorizam princípios fundamentais (logo, são pseudo-elites) asseveram outros; artigos em semanários de referência escritos pelos seniores da república lastimam a degradação da qualidade dos agentes políticos devida ao afastamento das elites; o senior seniorum da república turbou-se de tal jeito com a má qualidade do pessoal político, que confundiu políticos com beterrabas, diagnosticando ser problema porventura tão remediável quanto uma má colheita. Há algo de obscuro, telúrico e misterioso que assombra o país e que urge investigar.

Substancialmente, trata-se de responder às perguntas clássicas: Quando fugiram? como fugiram? porque fugiram? e para onde fugiram?

O modelo teórico para este problema foi proposto há alguns anos e cenarizado, não com beterrabas, como pretendia o senior seniorum da república, mas com galinhas que, como se verificou após estudos laboriosos, têm uma capacidade de locomoção superior à das beterrabas.

A base epistemológica deste modelo é o stress provocado pela incapacidade em conseguir cumprir a quota diária de ovos que é imposta exogenamente. O modelo foi depois refinado, introduzindo um operador vectorial que transformava em empadas os elementos do conjunto em análise.

Será que as elites portuguesas foram sujeitas à obrigação de pôr ovos com um ritmo frenético e inadequado? Não conseguimos responder cabalmente a esta questão. A elite mais evidente que sobejou no panorama português, o EPC, não é uma galinha, mas um elefante branco. Ora os elefantes brancos, como diversas experiências têm demonstrado, não põem ovos, mas uma massa disforme, flácida e conspicuamente fétida. Em qualquer dos casos esta via de análise teve algum merecimento porque permitiu determinar as causas da não-fuga daquele elemento da elite: ninguém está interessado em que ele aumente o ritmo da postura.

Parece pois consensual que as elites tenham desaparecido por terem sido objecto de exigências desproporcionadas. Mas desproporcionadas relativamente a quê? O nosso modelo opera com valores finitos, logo um valor só pode ser considerado desproporcional quando comparado com um valor supostamente normal. Como é um modelo fechado, o equilíbrio interno do conjunto obriga a que essa desproporção seja quantificada em termos das contrapartidas para os seus elementos, de modo a manter o equilíbrio.

Portanto parece que houve exigências excessivas às elites portuguesas sem as adequadas contrapartidas. Retomando o modelo das galinhas, além das exigências elevadas relativamente aos ritmos da postura, não se lhes dava milho, gritava-se-lhes permanentemente chô, galinhas, chô! chô! e corria-se atrás delas com varas de marmeleiro fustigando-as sempre que cacarejavam em busca de alimento para debicar.

A pergunta «Quando?» é de resposta imediata: desapareceram logo que se aperceberam que a situação no galinheiro estava num impasse.

As perguntas agora mais pertinentes são o «Como?» e o «Para onde?». Porém, quando chegámos a esta fase avançada da investigação verificou-se que o modelo das galinhas já não era suficiente e avançámos para outros modelos que tivessem, porventura, maior poder explicativo.

Um dos modelos testados foi a lei de Gresham, ultimamente em voga. Segundo este modelo, a população informe e mediana estaria a expulsar as elites da circulação. Mas expulsar, para onde? Para serem entesouradas em baús dispersos por alguns vetustos solares do país? Mas já não há solares vetustos, mas apenas casas em ruína e baús esgarçados sem capacidade de entesouramento.

Não, o modelo de Gresham não é suficientemente explicativo.

Mas subitamente fez-se luz! Se não era explicável a fuga, era porque as elites continuavam entre nós. Era evidente! E se não reparávamos nelas, era porque elas estavam disfarçadas. E então tudo se tornou claro para as centenas de bolseiros que conduziram durante anos esta investigação laboriosa, cujo relato apresento aqui e agora em primeira mão: as elites andam disfarçadas de gente medíocre, para não serem detectadas pelo resto da população e pela comunicação social. Assim, todos alinhados pela mediocridade já não há zangas, invejas, má língua, mesquinhez. O país fica tranquilo, em estabilidade política, social, económica e em serenidade emocional

Os portugueses não perdoam o sucesso, como afirmou outro dia um cientista português na diáspora, quando passava, fugidiamente, pela Portela. A solução é sermos todos medíocres.

Publicado por Joana em 09:06 PM | Comentários (35)

dezembro 12, 2004

Dois Registos

Ou como as Fontes de Belém (numeroso e poético pseudónimo sob o qual o PR envia recados à comunicação social) marulham selectivamente.

Tudo indica que PSD e PP concorram às eleições legislativas antecipadas com listas separadas. É notório que cada um dos partidos, em termos de percentagem eleitoral, vale mais concorrendo sozinho do que em coligação, embora não seja líquido que, em termos de deputados e dada a lei eleitoral, valham mais indo em separado. Por outro lado os discursos de cada um dos líderes colidem junto das franjas à direita e à esquerda de ambos os partidos. Essa diferença ressalta dos registos em que se situaram os discursos de Santana Lopes e de Paulo Portas no sábado à noite, na sequência do pedido de demissão do governo.

Santana Lopes limitou-se a extrair a conclusão lógica das severas críticas proferidas por Sampaio na noite anterior e apresentar a demissão do governo, recusando a esotérica figura que o PR havia proposto e que os constitucionalistas são unânimes em considerarem-na inexistente. Só por má fé, ou ignorância dos preceitos constitucionais, se pode considerar a decisão do executivo como uma birra ou um número de circo.

Por outro lado, Santana Lopes aproveitou a ausência de fundamentação e enumeração do juízo crítico emitido por Sampaio, para mostrar as razões pelas quais houve «continuidade nas políticas» e que foi o PR quem «considerou necessária a aprovação do OE», invalidando supostas divergências sobre a política orçamental; enumerou diversas medidas reformistas que o seu governo havia tomado e que o PR preteriu perante o que considerou «incidentes protocolares»; citou «gestos [do PR] que pouco favoreceram a harmonia institucional» e comparou os incidentes de que este governo foi acusado com incidentes muito mais graves ocorridos durante os governos de Guterres. Não extraiu destas comparações quaisquer conclusões – apenas perguntou «Porquê agora?».

A «central de comunicação social» que vigia em permanência as palavras e actos de Santana Lopes veio imediatamente a terreiro clamando que embora o PSD tivesse dito na noite anterior «respeitar» a decisão de Sampaio e que este «não é o adversário» nas eleições, a verdade é que as frases de Santana saíram como setas direitas a Belém. E a oposição criticou indignada os ataques ao PR. “Fontes de Belém” (numeroso e poético pseudónimo sob o qual se alberga o PR quando envia mensagens à comunicação social) afirmaram que a demissão foi recebida «com surpresa» e que aquela atitude «fragiliza o primeiro-ministro».

Ora uma coisa é respeitar uma decisão, outra é ser obrigado a aceitar essa decisão sem se poder justificar nem alegar a sua versão. Quem considerar que alguém pôr a circular a sua versão dos acontecimentos, despida de quaisquer juízos de valor, é fazer um ataque, não está apenas a criticar essa atitude, está obviamente a impedir um acto fundamental em democracia que é tão somente o poder exprimir uma opinião e ter o direito de defesa do seu nome e da sua honra. É uma crítica que está perigosamente viciada por uma visão totalitária do debate político.

Enquanto isto, o registo da intervenção de Paulo Portas foi substantivamente diferente. O discurso de Portas foi duro e incisivo. Tirou as conclusões das perguntas lançadas por Santana Lopes e acusou o PR de favorecer uma das partes (obviamente referia-se ao PS). Mais grave – concluiu da alegada aquiescência do PR às posições dos grandes empresários, que «foi a pressão de uma parte do sector financeiro, destinada a conseguir que permaneça um sistema fiscal injusto» que levou Sampaio a decidir-se pela dissolução da AR.

Acusar o Presidente da República de favorecer o principal partido da oposição e de ser permeável ao lobby bancário e segurador é muito grave, em si, e por se tratar de um presidente socialista com quem a esquerda fez agora as pazes. E é interessante ver que nem houve alarido da «central de comunicação social», nem qualquer poético marulhar das “Fontes de Belém”.

Portanto, o facto dos partidos se apresentarem ao eleitorado em separado permite que cada um deles se exprima, mais à vontade, no registo que é mais adequado ao segmento do eleitorado que corresponde à sua base social de apoio. Se Santana Lopes tivesse proferido as declarações de Paulo Portas teria caído o Carmo, a Trindade, a Rua da Emenda ... e o “Fontanário de Belém”. Mas como o eleitorado potencial de Paulo Portas não se revê, de forma alguma, no PR, acusarem Portas de atacar o PR, apenas o favorece.

Neste entendimento, os dois partidos podem fazer, cada um deles, uma campanha mais agressiva, mais adequada às suas bases eleitorais potenciais e sem se estorvarem mutuamente por receio de desagradarem à clientela eleitoral do outro partido. Provavelmente esta situação poderá dar muito mais dividendos eleitorais que uma coligação pré-eleitoral, obrigada a uma campanha mais cinzenta. Saber se estes eventuais dividendos eleitorais compensam as perdas resultantes do tipo de lei eleitoral que vigora, é uma questão que só o tempo o dirá.

Publicado por Joana em 11:22 PM | Comentários (51)

O Sismógrafo do Salsifré

Pedro Santana Lopes e o governo fizeram a única coisa sensata face às declarações do PR – apresentaram a demissão do governo. Não o fazer seria pactuar com a insólita situação de um governo numa alegada “plenitude de funções” mas com as “competências politicamente limitadas, com as consequências que isso impõe”. Situação insólita, aliás, com que Santana Lopes pactuou durante estes 4 meses de governo sob “vigilância presidencial”, que foram um incentivo ao que de mais baixo existe na sociedade portuguesa em termos da ânsia pelo reviralho governativo, da sordidez do debate político, privilegiando questões acessórias, protocolares ou de alegadas interferências governativas na comunicação social, em vez de discutir o essencial, as questões realmente substantivas para o futuro do país: as diversas reformas estruturais que este governo “vigiado” estava a tentar levar avante e cujos debates sobre a sua bondade e adequação passaram para segundo plano face ao acessório.

O consulado de Cavaco Silva havia modificado substancialmente a relação dos portugueses com a política e terminado com os vestígios do PREC e da inconsequência e da chicana políticas que haviam liquidado os anteriores regimes parlamentares – a monarquia constitucional e a 1ª república. Sampaio trouxe de volta toda essa sordidez ao dar o tiro de partida para o vampirismo político, com o seu discurso de indigitação do governo. E depois de 4 meses de um repasto suculento para os Nosferatus da flácida politologia caseira, pretendia, pelo seu discurso de dissolução da AR, prosseguir por essa via da chicana.

O governo tomou finalmente juízo e disse – basta!

Neste blog tentei sempre relativizar as questões acessórias, colocando-as no enquadramento que entendi ser o merecido, enquanto trouxe à colação as questões mais essenciais, como as reformas que o governo estava a implementar e sobre as quais, pela leitura dos respectivos textos, se pode verificar que, embora eu considerasse as reformas, naqueles domínios, essenciais e inadiáveis, os seus conteúdos não me mereciam total concordância.

Os blogs, tirando algumas excepções, são o receptáculo da pequena piada, da “conversa de botequim”, ligeira, maledicente e boateira. É um sinal estranho, e indiciador do estado a que o debate político chegou no nosso país, o “Semiramis” ter tido, nestes meses, uma maior preocupação pelo rigor e pela substância das coisas, do que a maioria da comunicação social e mesmo dos políticos. Isto, independentemente das teses aqui defendidas merecerem ou não a concordância dos leitores.

Sampaio, pela sua actuação leviana desde que se colocou a hipótese de Durão Barroso ir para Presidente da Comissão Europeia, introduziu na política portuguesa o conceito do Presidente-sismógrafo, que regista as mudanças de opinião pública e faz disparar os relés que comandam as dissoluções, demissões, indigitações, e outros actos políticos presidenciais.

Numa democracia adulta, os eleitores escolhem os seus representantes (os deputados à AR) porque têm (ou julgam ter) confiança no julgamento destes e na sua capacidade de o exercer, de acordo com o que esses deputados julgam ser os interesses mais imediatos do eleitorado, passados pelo crivo dos interesses, a longo prazo, do todo nacional. Isso significa, se for necessário, ter o dever de dirigir, informar, corrigir e, por vezes, ignorar a opinião pública de que foram eleitos representantes, conforme Kennedy afirmou uma vez.

Quando o percurso político português para a maioridade política parecia indicar que se caminhava para uma democracia adulta; quando o próprio PCP que, a seguir a qualquer eleição, passava a exigir a demissão imediata do governo, já tinha moderado essa ânsia do bota-abaixo; quando o salsifré folclórico e anti-sistema do BE apenas se dirigia aos adolescentes maximalistas na fase da pré-racionalidade política, económica e social; quando ... quando ... aparece um presidente, que sempre se havia pautado pela mais completa inanidade política, arvorado inesperadamente em sismógrafo do salsifré político.

Espero, para bem do país, que o espectáculo deprimente que o PR ofereceu nestes últimos meses não se repita futuramente, e que as decisões que tomou não se tornem o paradigma do comportamento presidencial. Espero que o próximo governo, qualquer que ele seja, governe com estabilidade sem estar sujeito aos humores de qualquer sismógrafo do salsifré político que se instale em Belém.

Publicado por Joana em 07:59 PM | Comentários (20)

dezembro 10, 2004

Belém pariu um rato

Para aqueles que estavam à espera que o PR expusesse finalmente as razões consistentes que o levaram à dissolução da AR só não estão desiludidos porque a maioria deles queria a dissolução com razões ou sem elas. O bota abaixo sempre foi um leit-motiv da conduta política da uma parte significativa da esquerda portuguesa.

Por isso a comunicação ao PR postergou as questões formais, que agora teriam ainda menos consistência que em Julho, e dispersou-se por uma análise política necessariamente fluida, para tentar que o seu discurso pudesse ser interpretado como sendo o de um PR e não o de um qualquer líder partidário da oposição. Julgo que falhou esse desiderato.

O Presidente da República deu a entender que o parlamento vai ser dissolvido porque ele pensa que a sua composição já não corresponde à vontade do eleitorado. Mas isso não é motivo para dissolução. Por essa razão, quase todos os governos da UE teriam sido demitidos após as eleições europeias. É normal que a meio de uma legislatura se situe o ponto mais baixo de popularidade dos governos. Se esta razão prevalecer como válida nos hábitos constitucionais portugueses, então qualquer próximo governo será obrigado a governar olhando permanentemente para as sondagens, até deixar o país na bancarrota.

O Presidente da República foi mais directo quando alegou como fundamento «uma sucessão de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo e capacidade de enfrentar a crise que o país vive». Mas esta é uma afirmação paradoxal para um PR que tutelou os episódios ridículos em que o governo de Guterres esteve envolvido, com ministros a saírem e a fazerem declarações insultuosas, convocando mesmo conferências de imprensa para o efeito.

Por outro lado, ao dizer isto, está a passar um atestado público de incompetência ao governo de Santana Lopes e seria exigível que sustentasse melhor e com mais rigor esse gravoso julgamento da competência do governo, pois ao deixá-lo no vago, ele pode ser interpretado como um mero discurso de abertura de campanha do Partido Socialista.

Por outro lado se o governo é tão incompetente e descoordenado, que justificação há para o ter pressionado a aprovar o Orçamento de Estado para 2005? Um Orçamento que é uma peça estrutural da governação em 2005, porquanto a margem de manobra dos orçamentos rectificativos não permite alterar as traves mestras do orçamento. A explicação que tal permitiu os aumentos de vencimentos na função pública, não colhe, visto serem os próprios sindicatos, embora contrafeitos por aquele motivo, a estarem contra a aprovação do orçamento.

Mas também não vale muito a pena conflituar sobre esta dissolução. Não passa de um epifenómeno de um período de 4 meses em que o PR indigitou o governo criando-lhe ab initio usque ad finem uma situação instável, perecível, ao sabor dos humores presidenciais, incentivando a sua permanente contestação por todas as forças com protagonismo mediático e tornando essa governação impossível. Não é a dissolução que é grave em si, o que foi grave foi toda a estratégia montada pelo PR desde a demissão de Durão Barroso, e que teve o seu culminar no anúncio da dissolução.

Por isso, ainda antes do anúncio da dissolução, no post Obviamente, Demito-me, eu havia afirmado, sem ambiguidades, que Santana Lopes não tinha condições para governar e escrevi então: «Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições ... O melhor é cortar o mal pela raiz, assumir a sua incapacidade, em face da actual situação social, em governar da forma que entende como a mais adequada ao país (se é que ele tem alguma ideia sobre qual a forma mais adequada ao país) e fazer as malas.». Não podia ter sido mais clara.

Aparentemente, a fazer fé nas palavras de Dias Loureiro, Santana Lopes já teria equacionado aquela solução, que era evidente face à estratégia de aranha que o PR estava a usar, com o apoio de parte substancial do poder mediático.


Nota - Ler ainda:
O Sismógrafo do Salsifré
Dois Registos

Publicado por Joana em 10:17 PM | Comentários (24)

Barómetro da Corrupção

O "Barómetro da Corrupção 2004", preparado pela organização Transparência Internacional, apresenta alguns números de bastante interesse e curiosidade acerca do modo como os portugueses encaram a corrupção no nosso país e, principalmente, a diferença entre a perspectiva que os portugueses têm da corrupção das diferentes instâncias e sectores e a perspectiva reinante nos países estrangeiros.

Os portugueses consideram os políticos no topo da corrupção mas, curiosamente, a sua perspectiva sobre a corrupção entre os políticos tem um índice inferior à média dos países estrangeiros. Esta posição dos políticos é fácil de explicar: eles são a classe mais exposta ao escrutínio público e aqueles sobre os quais há uma devassa maior. Em Portugal e em todo o mundo.

Eu nunca partilhei da opinião de que a classe política portuguesa era, na generalidade, mais corrupta que a média da UE. É indecisa, ou quando decide, decide, com frequência, mal. E, às vezes, as indecisões ou as más decisões são mais onerosas para o erário público que a corrupção. Em contrapartida existe a pequena corrupção nos serviços públicos: processos que só são agilizados mediante “lembranças”, etc.. Tenho ideia que, por exemplo, a corrupção entre a classe política francesa, principalmente no poder autárquico, é muito superior à portuguesa.

Em contrapartida a percepção que os portugueses têm da corrupção no fisco é tão elevada quanto à dos políticos e muito superior à média dos países estrangeiros. Já aqui fiz várias críticas ao despotismo fiscal do OE 2005, principalmente na sua 1ª versão. E essas críticas derivavam exactamente de eu ter a percepção dessa corrupção fiscal. Não só a corrupção passiva face aos grandes empresários, mas, mais abjecta, a chantagem que alguns funcionários do fisco fazem junto de pequenos empresários, aproveitando a sua ignorância e escassez de meios legais ao alcance, para lhes extorquir alguns dinheiros.

Curiosamente o ranking dos países face aos 15 sectores escolhidos (partidos políticos, parlamento, justiça, polícia, sector empresarial e privado, fisco, alfândega, media, serviços médicos, serviços educativos, registos e notários, serviços básicos (água e electricidade), militares, ONG e estruturas religiosas) coloca Portugal não só numa posição favorável em termos de corrupção, contrariamente ao que muitos dos nossos íncolas maldizentes pensam, como o coloca num alinhamento frequentemente inverso.

Por exemplo, a média dos 62 países coloca as ONGs e as estruturas religiosas, no final da tabela, como as menos corruptas. Em Portugal tal não acontece, nomeadamente no que se refere às ONGs onde a percepção dos portugueses sobre a sua corrupção é muito superior à média daqueles países.

Já aqui, neste blog, fiz várias referências à corrupção entre as organizações ambientalistas e não me vou repetir. Sempre me referi aos seus líderes e não aos militantes que lutam generosamente por um mundo com uma qualidade de vida ambiental melhor. Mas, na generalidade, se as ONGs aparecem em Portugal a pretexto de alertar a sociedade para problemas reais e para sugerir soluções, rapidamente usam o protagonismo, que adquiriram entretanto, como arma no combate político, servindo o seu objectivo inicial apenas de suporte à sua existência e à designação que têm. Começam por pretender ter uma intervenção cívica, mas são rapidamente anexadas e colonizadas por organizações políticas de pouca representatividade eleitoral que as usam para potenciarem o seu peso social.

Um dos dramas da intervenção cívica em Portugal é essa colonização partidária que descredibiliza a sua própria intervenção cívica. Por isso é natural que os portugueses as considerem corruptas.

Quanto às organizações ambientalistas (excepto os «Verdes», que caem na caracterização anterior) a questão é diferente. Usam e abusam do lobby para angariarem pareceres, ou para forçarem escolhas que possibilitem maiores financiamentos às organizações, ou para obterem financiamentos de empresas que trabalham na área ambiental. As opções políticas não são relevantes.

Publicado por Joana em 02:53 PM | Comentários (7)

dezembro 09, 2004

Santos do pé da Porta ...

Ou como o barato sai caro

O editorial de hoje da Capital, o émulo do New York Times na declaração pública de apoio a Kerry à presidência, traça um panegírico exaltante de Vasco Vieira de Almeida. E depois de tanto espanto e admiração por essa ínclita figura, esperar-se-ia, no fim da alocução daquele brilhante advogado e empresário no jantar de homenagem a Mário Soares, que Luís Osório acorresse para os braços do eminente causídico e, num exaltado amplexo, lhe murmurasse ao ouvido todo o arrebatamento político, económico, jurídico, oratório, social, culinário, etc., que lhe fizera brotar na sua alma de jornalista de causas presidenciais americanas.

Sussurrar-lhe-ia:«Vasco ... és um dos portugueses mais brilhantes, nunca ouvi ninguém que o fosse mais. Serias o Presidente da República ideal. Sobretudo, neste tempo em que o sistema é enxovalhado pela miserável mediocridade da maioria dos protagonistas políticos». Naquele enlevo de alma, ledo e fugaz, nem lhe acudiria à memória que a mais «miserável mediocridade» é a dos jornalistas do estilo dele.

Puro equívoco. Quando se esperaria esse intenso sobressalto cívico de Luís Osório, este deixou-se ficar tenazmente grudado à cadeira, a mão que segurava o copo, hirta e estática, os lábios arrepanhados numa cãibra rígida, cenho franzido e carrancudo. Liberto do efeito inebriante e anestesiante das palavras de VVA, o seu cérebro voltou à ronceirice contumaz e os pensamentos laboriosamente arquitectados traduziram-se no editorial de hoje. «A forma como Vasco Vieira de Almeida falou sobre o país, com um brilhantismo formal que poucas vezes vi, ao contrário do que se possa pensar, não me deu qualquer vontade de o conhecer pessoalmente. Aos meus olhos passou a ser alguém que tinha tudo para contribuir de outra forma por este país, mas que decidiu de uma forma egoísta enriquecer e viver para si e para os seus muito restritos

Vasco Vieira de Almeida, se se deu à pachorra de folhear aquele pasquim, por ter sido alertado para tal por algum amigo malevolente, deve estar a esta hora arrependido de ter comparecido naquela cerimónia pública. Ele, que havia fugido da política, poucos meses depois de ter entrado nela, exactamente para evitar as mediocridades e a devassa da vida privada por jornalistas pacóvios e mentecaptos, servir de pasto a um deles, apenas por ter acedido a comparecer a uma festa de aniversário, é uma sina malvada.

Pois é ... Vasco Vieira de Almeida é genial ... porque nunca foi desgastado pela vida política, porque nunca foi sujeito à devassa pública e privada feita por um jornalismo mesquinho, porque quando discursa, não tem milhares de jornalistas a folhear dicionários e a correr motores de busca na net, para inventariar todos os significados e anexações semânticas de todas as palavras, de forma a desconstruir o discurso segundo os eixos de orientação mais convenientes para zombar do orador e desdenhar dos conceitos. Quando Vasco Vieira de Almeida fala, tem por ouvintes apenas homens de negócio ou juristas, objectivos e que se interessam unicamente pelo exacto sentido das palavras e pelos resultados do seu discurso.

Não tenho dúvidas que Vasco Vieira de Almeida seja um homem brilhante. Mas tenho muitas dúvidas que seja um «egoísta» que decidiu «enriquecer e viver para si e para os seus muito restritos», utilizando as palavras do fariseu Osório. Enriqueceu porque é extremamente competente. Não foi egoísta, foi apenas sensato. E essa sensatez ficou provada pelos disparates do Osório.

Portugal está cheio de gente brilhante. António Borges é um deles. Ernâni Lopes, Medina Carreira e Silva Lopes são também gente brilhante, que têm em comum o terem estado sentados nos lugares governamentais apenas por pouco tempo e há muitos anos. Durante a campanha eleitoral de Durão Barroso perfilavam-se por detrás dele nomes brilhantes, sonantes e clarividentes. Tão clarividentes que, quando Durão Barroso quis constituir governo, desvaneceram-se por entre as brumas da memória, deixando-o na necessidade de se socorrer de gente medíocre como, por exemplo, Manuela Ferreira Leite, promovida entretanto a «ministra respeitada» pelo José António Lima e pela oposição em geral, não pelo que fez enquanto ministra, mas pelo que fez, depois de deixar de o ser.

Há muitos portugueses brilhantes, em Portugal e no estrangeiro. Mas são raros os que acedem a participar na vida política. Tudo impede essa participação: a suspeição permanente que a comunicação social e muitos políticos, medíocres e invejosos, lançam sobre os políticos em geral; o regime draconiano e estúpido das incompatibilidades, fruto da crise final do cavaquismo e da ânsia de auto-flagelação que os políticos de então estavam possuídos; os vencimentos que além de baixos, suscitam inveja; o desaparecimento do status social que estava ligado ao exercício de um cargo governativo; etc., etc..

E o mais anedótico é que todos nós, ou quase, reconhecemos isso. Mas continuamos sedentos de mexeriquices e cavilações políticas, irredutíveis sobre a necessidade da política ser um sacerdócio, inexoráveis sobre o desperdício que é pagar vencimentos aos políticos, e desdenhosos sobre o exercício de cargos públicos.

O barato sai caro e santos do pé da porta não fazem milagres. Quem inventou estes anexins populares devia estar a pensar na classe política portuguesa e na nossa relação com ela.

Publicado por Joana em 09:41 PM | Comentários (21)

dezembro 08, 2004

Um de nós mentes ...

Esta querela sobre o que foi dito entre o PR e o PM, nas reuniões de 29 e 30 de Novembro último, é o exemplo do grau zero de dignidade das instituições e da política a que chegou o país. Como é óbvio, consoante as paixões políticas de cada um dos que assistem a esta tragicomédia, assim cada um acredita naquilo que o coração lhe segreda ao ouvido. A razão está arredia destas conclusões. Aos emotivos pouco interessa quem está a falar verdade. E provavelmente nenhum estará a ser rigorosamente verdadeiro.

Enquanto isso Sampaio está remetido a um «silêncio protocolar», deixando o seu chefe da Casa Civil lançar algumas frases que ficarão certamente na história. Face às afirmações de Santana Lopes de que lhe tinha sido garantido, no dia 29, por três vezes, que não haveria dissolução, o chefe da Casa Civil da Presidência da República responde por um enigma: O Presidente da República não discute com o primeiro-ministro a decisão de dissolver a Assembleia da República. Este é um poder não partilhado. O chefe da Casa Civil aprendeu com o patrão, a Pitonisa de Belém, como eu o tenho apelidado desde o início deste blogue (*), a sentenciar por enigmas.

A única frase incisiva foi para desmentir algo que Santana nunca tinha dito. O chefe da Casa Civil do PR garantiu que «Santana Lopes soube as razões da decisão do Presidente na “reunião de terça-feira”, dia 30 de Novembro». Ora PSL apenas afirmara que era o país que desconhecia as razões. A menos que Sampaio identifique Santana com o país, o que é um precedente perigoso e anti-democrático. Nem sequer Mota Amaral, Presidente da AR e segunda figura do Estado sabia. Aliás Mota Amaral só soube pelos jornais que a AR ia ser dissolvida, circunstância que Sampaio reconheceu ser um “lapso de cortesia” e Mota Amaral, ironicamente, um esquecimento.

Acho de uma elegância extrema designar aquela «trapalhada» de Sampaio por “lapso de cortesia”. Numa visita de cerimónia, quando a dona de casa entra na sala e o visitante não se levanta dá-se um “lapso de cortesia”. Quando entro num restaurante, chego à minha mesa e alguém, do pessoal masculino, se deixa ficar sentado, sinto um ligeiro incómodo ... há qualquer coisa que falhou ... é isso – houve um “lapso de cortesia”.

Com as instituições não há “lapsos de cortesia”. Há faltas de respeito e atentados à dignidade das instituições.

Pergunta-se quem está a mentir, ou talvez, quem mente mais? Não sei responder pois, pessoalmente, conheço-os mal.

Só estive uma vez com Santana Lopes e descrevi esse facto, neste blogue, em Santana Lopes: A pessoa e Uma Homenagem. Não me vou alongar mais sobre ele, pois não o conheço da política. Descrevi-o como pessoa, tal como se me apresentou, e não sei como ele se porta nos meandros da política. Ser uma pessoa educada e um gentleman na vida social não garante, infelizmente, que não seja um mentiroso na política.

Sobre Sampaio, tenho algo mais a dizer. Há cerca de 13 anos, na sequência da tentativa de golpe de Estado contra Gorbatchev, um amigo da família, vereador da CML, independente, mas eleito pela CDU, votou a moção de protesto proposta pelos socialistas e não a moção proposta pelo PCP, alegando que não considerava esta suficiente. Tal bastou para que fosse proscrito pelo PCP, objecto de insultos na imprensa do partido e que lhe fosse exigido que abandonasse o pelouro que detinha.

Por mais de uma vez nos deu conta do incómodo que lhe causava o silêncio de Sampaio, então presidente da CML, perante as exigências do PCP. Afinal de contas, a questão decorria de ele ter votado a moção socialista. João Soares apoiava-o, mas João Soares era apenas um mero vereador. Foi-lhe então sugerido que tomasse ele a iniciativa e pusesse o cargo à disposição de Sampaio. Isso colocaria Sampaio perante a obrigação de tomar uma posição. A sugestão foi seguida.

A conversa foi amigável: Sampaio achou que com certeza ... obviamente ... que o tinha na mais elevada consideração ... mas não teve quaisquer efeitos práticos. Sampaio estava solidário, dava-lhe palmadinhas nas costas ... mas tornou-se depois óbvio que gostaria que ele se pusesse a mexer. Apenas não tinha coragem política e moral para lho dizer na cara. Esse nosso amigo suportou aquela situação, estoicamente, mais alguns, poucos, meses e demitiu-se. Houve uma pequena festa de homenagem. Sampaio também fez uma alocução de despedida. Ainda me lembro dele a dirigir-se para a mesa de honra, baixo, corcunda e hipócrita. Detestei-o.

Foi o meu primeiro e um dos raros contactos com os meandros da política partidária, embora de forma indirecta, e odiei o que vi.

Conheço bastante gente ligada à política, mas apenas por razões familiares (a quase totalidade) ou profissional (poucos). Provavelmente detestaria revê-los nos respectivos aparelhos partidários. Aliás, muitos estão fora da militância activa.


(*) Ler, por exemplo:
O Oráculo de Belém
A Pitonisa de Belém em Argel
Alguém tem que ceder
Sem Pressas
Dispromisso Político
Á Espera de Godot Sampaio
Síntese Política da Semana
Sampaio escreve direito por linhas tortas
Santana entregue à vigilância presidencial

Publicado por Joana em 09:04 PM | Comentários (30)

dezembro 07, 2004

Um país à beira mar pasmado

Em Portugal, quando os assuntos são abordados fora do calor do debate polítio-partidário, existem amplos consensos entre as elites políticas, económicas e intelectuais sobre os males do país e, também, sobre boa parte das reformas que têm de ser feitas. Apenas zonas muito marginais (o BE e a ala mais ortodoxa do PC) estão fora destes consensos, mas exceptuando essa franja política há muita gente a realizar idênticos diagnósticos e a apontar soluções semelhantes.

Há um amplo espaço político em que existem consensos sobre a reforma da administração pública, do sistema educativo e da justiça, a consolidação orçamental, a justiça fiscal, etc. Todavia esses consensos não se traduzem em acção. Não raras vezes assisti a políticos exprimirem opiniões na intimidade, para semanas depois, defenderem, exaltados, exactamente o oposto, no hemiciclo.

O grave é que o país afunda-se, com mais ou menos velocidade, mas continuamente, perante a incapacidade de reversão. Segundo estimativas de Medina Carreira, o PIB, em valores reais, cresceu 80% entre 1980 e 2004, enquanto as despesas totais aumentaram 200%; as sociais, 260%; e as das pensões (SS + CGA), 520%. Quanto aos impostos subiram menos que as despesas e cresceram 180%. Em termos anuais, a nossa economia cresceu durante um quarto de século à taxa anual média de 2% enquanto a despesa pública cresceu, anualmente, à taxa de 4,7%. Segundo Medina Carreira, se esta situação se mantivesse, as despesas públicas corresponderiam, em 2030, a 97% do PIB. Ora esta seria uma situação impensável, pois significaria o funcionalismo público, os pensionistas e os gastos públicos em consumíveis serem pagos pelo sector privado que ficaria apenas com 3% do PIB. Antes disso o sector privado iria à falência e com ele todo o país.

E não vale a pena insistir no estafado tema da evasão fiscal. Combater a evasão fiscal serve para obter uma melhor justiça fiscal, não para continuar a sustentar aquele sorvedouro de dinheiro. Durante aquele período as receitas fiscais cresceram 4,3% ao ano, mais do dobro do PIB e não será possível sequer manter esse ritmo, por muito que se combata a evasão fiscal – não se extrai sangue de um corpo exangue.

As causas para esta descida aos abismos são muitas. A primeira que me salta à vista é o sistema partidário. Os aparelhos partidários são constituídos por profissionais da política, gente que subsiste da actividade política partidária, e que por via disso depende, em termos profissionais, da situação em que o partido se encontra e do seu próprio posicionamento dentro do partido. Como têm, normalmente, uma formação académica fraca ou obtida em áreas do conhecimento com pouca procura e baixa remuneração no mercado de trabalho, não têm independência para se dar ao luxo de ostentarem opiniões próprias. Frequentemente entraram para o aparelho partidário ainda antes de se formarem ou de terem um currículo profissional capaz, o que os inabilita ainda mais.

Desgraçadamente são estes profissionais da política que mantêm em funcionamento as instâncias partidárias - Organizações Nacionais, Distritais, Concelhias, Locais, Profissionais, etc. São eles a mão de obra que coordena e mobiliza as campanhas eleitorais. E são depois recompensados, se o partido chegar ao poder, com lugares nas chefias da administração pública e dos institutos públicos. E mesmo no governo ou nas assessorias do governo.

O seu nível de rendimentos está inexoravelmente ligado ao partido. Se forem forçados a abandonar o partido não podem aspirar a um nível salarial minimamente comparável. Inclusivamente poderão ficar no desemprego.

Haverá entre os políticos profissionais gente que foi para a política com bom currículo e por vontade de servir. Mas muito poucos o farão actualmente e alguns dos que ingressaram na política já a abandonaram entretanto. Igualmente gente ligada à actividade privada cada vez mostra menos empenho em aceitar cargos no governo.

O resultado é um abaixamento do nível de intervenção política.

O sistema eleitoral ajuda neste mecanismo. As escolhas dos candidatos a deputados são feitas pelo aparelho partidário que vive na subserviência dos líderes que julga mais aptos para chegar ao poder e aos almejados cargos públicos. Não é a qualidade política, nem a justeza das políticas, nem o interesse do país que guiam as escolhas. Apenas o interesse do aparelho partidário.

Se cada candidato fosse directamente responsável por quem o elege, a questão colocar-se-ia de modo diverso – o interesse do partido seria o de escolher o candidato mais capaz de ser eleito e não uma lista com um ou dois nomes sonantes, atrás dos quais se perfilam diversas mediocridades. E o seu desempenho durante o mandato seria julgado pelos seus eleitores, na eleição seguinte, e não por um qualquer aparelho partidário. Por outro lado a possibilidade de candidaturas autónomas, fora dos partidos existentes, tornar-se-ia possível e poderia permitir uma mudança paulatina no actual espectro político, que está num impasse.

Sendo assim, uma das reformas políticas indispensáveis será a reforma eleitoral, responsabilizando individualmente cada deputado pelo seu eleitorado.

A segunda questão refere-se às reformas com incidência na economia e nas finanças. Uma delas, a mais urgente, é fazer uma reforma profunda no aparelho do Estado, pois tal é a única maneira de resolver, de forma sustentada, a questão da despesa pública. O que os últimos governos fizeram foram apenas paliativos. Essa reforma tem que ter 3 objectivos: 1) um emagrecimento substancial do aparelho do Estado, incluindo institutos, autarquias, etc.; 2) um melhor desempenho global, principalmente nas áreas vitais da educação, saúde e justiça; 3) mobilidade laboral de forma a optimizar a afectação dos recursos humanos.

Para realizar essa reforma é preciso eleger um governo capaz de a fazer, o que suscita algumas dificuldades, pois existem cerca de 4 milhões de pensionistas e funcionários públicos numa população de 10 milhões de habitantes. Portanto tamanha influência eleitoral dificulta a eleição de uma maioria que esteja disposta a reformas drásticas.

Mas suponhamos que era eleita uma maioria capaz de conceber e implementar as reformas adequadas. Seria praticamente impossível realizar essas reformas. Mesmo que o PR fosse da mesma cor política. Estão consagradas na Constituição disposições que impedem qualquer tentativa de liberalização da economia. O facto do PR promulgar as reformas não impediria que elas fossem posteriormente inviabilizadas pelo Tribunal Constitucional desde que a sua fiscalização constitucional fosse pedida.

Portanto é indispensável expurgar a Constituição da República das disposições que impedem a liberalização da economia e que dão uma ilusória sensação de segurança na caminhada para o abismo.

Mas essa possibilidade é, por enquanto, nula, pois para fazer uma revisão constitucional são precisos 2/3 dos representantes eleitos. Ora o número de eleitores directamente dependentes do Estado mais os eleitores que fazem parte dos seus agregados familiares, devem constituir cerca de 50% do eleitorado.

Portanto os sucessivos aumentos dos efectivos da função pública, conjuntamente com o envelhecimento da população está a colocar Portugal refém dos pensionistas e funcionários públicos. Portugal que, como havia escrito mais acima, está refém de políticos medíocres. Portugal que, como escrevi no post anterior, está refém do despotismo “iluminado” do PR.

Como se resolverá esta situação? É dar tempo ao tempo. Portugal estagnou nesta última década. A aparente convergência do PIB entre 1994 e 1998 deveu-se ao aumento da despesa decorrente das grandes obras públicas do cavaquismo e da Expo’98. Foi tão ilusório como terá sido o aumento do PIB grego em 2003 e 2004 devido às obras necessárias para os Jogos Olímpicos. Portugal está a divergir de forma “sustentada” pois a despesa pública continua, e continuará, a aumentar mais que a riqueza pública. E ninguém consegue garrotar os custos, por mais cortes que faça e medidas restritivas que tome. Cada vez mais portugueses entenderão que alguma coisa terá que ser feita antes que o país entre em falência. Mesmo os que se julgam protegidos por uma legislação socializante começarão a perceber que quando o país falir eles estarão no porão do barco que se afunda.

Por enquanto, aqueles que fazem contas e levantam estas questões são apelidados depreciativamente de neoliberais. Ninguém contesta os números, apenas tentam apoucar quem apresenta esses números. Se quem os apresenta for chamado de neoliberal, os números perdem substância ... é como não existissem.

Mas ano após ano a situação piora. Mesmo os dois últimos governos, que apareceram cheios de intenções reformistas, apenas ministraram paliativos. Em vez da indispensáveis cirurgias, fizeram-nos tomar febrífugos. Atacaram alguns dos sintomas, mas não as causas. Não o conseguiram porque nem tiveram competência, nem os deixaram fazer o pouco que sabiam.

Resta-nos esperar e alertar as consciências na expectativa que o país saia do torpor em que está mergulhado há vários séculos.

Publicado por Joana em 11:47 PM | Comentários (47)

dezembro 06, 2004

O Fim Anunciado da III República

Falar do Fim Anunciado da III República nestes dias conturbados talvez seja ainda despiciendo. Há muita gente inebriada pela satisfação da queda do governo de PSL; outros, como eu, que consideravam que, no ambiente que lhe fora criado, Santana Lopes e a sua equipa já não tinham condições para governar; uma minoria clubista que se mantinha ferrenha no apoio à continuidade governativa.

Todavia a decisão do PR, perfeitamente legal, veio mostrar que os governos, mesmo alicerçados em sólidas maiorias estão totalmente dependentes do beneplácito régio .... perdão, presidencial. Esta prepotência presidencial já existia, está fundamentada na Constituição e ainda não tinha sido exercida apenas por razões de oportunidade política.

Na realidade, e para além dos períodos em que legalmente não o pode fazer, quais as circunstâncias em que o PR não tem conveniência em dissolver a AR?

1 – O PR ter sido eleito pela mesma maioria que governa o país ... e estar de bem com os seus actuais líderes ...

2 – O PR ter receio que novas eleições conduzam a uma nova vitória da maioria e ainda mais folgada.

Mário Soares nunca dissolveu a AR durante os governos de Cavaco Silva (depois da primeira maioria absoluta deste) porque calculava que, se o fizesse, Cavaco Silva conquistaria uma maioria ainda mais sólida. Por isso adoptou a estratégia de ir utilizando a “magistratura de influência” para minar os alicerces do governo.

Jorge Sampaio nunca dissolveu a AR durante os governos de Guterres, apesar de terem acontecido coisas muito mais graves que no actual governo e desse governo ter conduzido o país à bancarrota financeira, porque Guterres pertencia à sua família política. Mesmo depois da demissão de Guterres ainda tentou a manutenção da AR, com a indigitação de um novo governo, mas os próprios socialistas reconheceram que não havia condições para tal.

Jorge Sampaio não dissolveu a AR após a saída de Durão Barroso, porque temia que o PS de Ferro Rodrigues sofresse uma derrota perante Santana Lopes. Preferiu dar tempo ao PS para encontrar um líder mais consensual para o eleitorado e menos fragilizado que FR e, em simultâneo, foi minando o actual governo, fragilizando-o logo no início com uma espera interminável, em que pediu conselhos a meio mundo, para decidir se dissolvia ou não a AR. Depois, condicionou a formação do Governo, obrigando o primeiro-ministro indigitado a ir sucessivas vezes a Belém mendigar a aprovação para os novos convites que ia fazendo. Em seguida ameaçou-o, na tomada de posse, que o iria colocar sob vigilância. Por diversas vezes, sempre que algum português, com um mínimo de mediatismo, tinha qualquer rixa, mesmo que imaginada, com alguém do governo, era chamado a Belém para ser consolado e dramatizar a situação. Desestabilizou em todas as circunstâncias a acção governativa. Paradoxalmente, dado ser um socialista, mostrou-se em extremo incomodado com as críticas dos grandes empresários ao OE 2005. Paradoxalmente, dado estar noutra área política, demitiu-o depois da publicação de um artigo em que Cavaco Silva colocava algum distanciamento face a PSL. Paradoxalmente, porquanto sucederam 4 episódios do mesmo género, mas mais graves, durante a governação de Guterres, anunciou a dissolução da AR após a demissão com pompa e alarido, do Ministro do Desporto.

E, tal era o seu desnorte, esqueceu-se de avisar o Presidente da AR e ainda exigiu à maioria responsabilidades pela aprovação do Orçamento de Estado que tanto o incomodara.

Com este figurino constitucional, e com a actual situação de crise orçamental e falta de competitividade perante o exterior que exigem soluções drásticas, o país não tem capacidade para resolver os seus problemas, independentemente dos maus políticos expulsarem os bons, ou vice-versa. Até agora, pensava-se que, com uma legislatura de 4 anos, o governo poderia utilizar a primeira metade da legislatura para fazer as reformas mais difíceis e conseguir algum fôlego para distribuir as benesses suficientes para concorrer às eleições seguintes com possibilidades de êxito. Verifica-se agora que esta solução depende da discricionaridade do PR.

Esta situação, traduzida em futebolês, para melhor compreensão, é idêntica a estarmos num jogo de futebol onde um árbitro pode, discricionariamente, acabar o jogo segundo a sua conveniência, na altura em que o seu clube está a ganhar. No calor do jogo, os adeptos do clube que é beneficiado pelo fim prematuro da peleja, poderão ficar satisfeitos. Mas quando estiverem a frio e começarem a raciocinar com discernimento, perceberão que se a actuação daquele árbitro for o paradigma da arbitragem, então algo terá que ser mudado, porque na semana seguinte poderá ser o nosso clube o penalizado por isso e, pior, com esse sistema qualquer jogo de futebol será uma espécie de roleta viciada pelo árbitro conforme conveniência.

Todavia a nossa Constituição, para ser revista, precisa de uma maioria de 2/3. Ora essa maioria exige que os dois maiores partidos estejam de acordo. Mas os dois maiores partidos só estão de acordo em questões menores, pois pensam que a manutenção de certas situações dúbias os pode favorecer um dia ...

Mas esta é apenas uma matéria entre muitas. Estou convicta que se algum dia um governo elaborar uma reforma a sério da função pública, esta será vetada por estar repleta de inconstitucionalidades.

Não são os maus políticos que expulsam os bons. Os bons políticos expulsam-se a si próprios por não pretenderem estar sujeitos a entraves permanentes e por não quererem ser objecto de devassa pública por uma comunicação social mesquinha e maldizente.

Sobejam os aparelhos partidários constituídos por gente que não tem habilitações para mais nada.

Nota - Ler ainda:
Um país à beira mar pasmado
Um de nós mentes ...

Publicado por Joana em 11:57 PM | Comentários (37)

A Sagração de um César

A França está entusiasmada com o 2º centenário da sagração de Napoleão como imperador dos franceses. Um Napoléon que era Napoleone e que se tornou francês por um acaso. O governo de Luís XV adquiriu a Córsega à República de Génova um ano antes do nascimento do futuro César. Mas a França sempre soube chamar a si as “glórias” dos “emigrantes” ou “anexados”, desde Napoleone a Vieira da Silva.

Dois nomes avultam nessa sagração: Napoleão, o protagonista principal, e David, que a pintou.

Napoleão foi um génio militar e um hábil político cujos retumbantes êxitos militares e políticos fizeram com que acabasse num general mediano e num político autista. Jovem capitão, dirigiu o cerco de Toulon e conquistou a cidade. Graduado imediatamente em General de Brigada pelo governo revolucionário de Robespierre, esteve a um passo da guilhotina quando, meia dúzia de meses depois, se deu o 9 Thermidor (27-7-1794). Foi Barras que o foi buscar à obscuridade para defender a Convenção contra a insurreição realista. A 13 Vendimário (5-10-1795) colocou os canhões no enfiamento das ruas que levavam ao Palácio da Convenção e liquidou os insurrectos armados apenas de mosquetes e espingardas. Foi a primeira vez na história que uma manifestação de rua, mesmo com gente armada, foi varrida a tiros de canhão.

Mas foi a 1ª campanha de Itália que lhe deu o estatuto de genial. O Directório havia concentrado as suas melhores tropas no Reno, sob o comando de Moreau. Bonaparte apresentou um plano para invadir o norte de Itália e o Directório aceitou-o como uma manobra de diversão. O exército que Bonaparte tinha ao seu dispor era pequeno, esfarrapado e mal armado. A corrupção nos abastecimentos era enorme. Com a chegada de Bonaparte tudo mudou. Em menos de um ano as tropas francesas estavam a poucas dezenas de quilómetros de Viena, as forças piemontesas e os vários exércitos austríacos enviados contra Bonaparte destruídos. O que seria apenas uma manobra de diversão, levou à capitulação da Áustria.

Os seus êxitos militares e a instabilidade política em França facilitaram o golpe de Estado do 18 de Brumario (9-11-1799). A democracia representativa havia substituído a legitimidade monárquica com a Revolução. Com o 18 de Brumario, o plebiscito populista prevalecia. O denominação “18 de Brumario” passou a designar a apropriação autoritária do poder referendada por plebiscitos populares. E foi com sucessivos plebiscitos que Napoleão Bonaparte se tornou 1º Cônsul, 1º Cônsul vitalício e Imperador.

E o estrépito das sua vitórias só tiveram paralelo com o fragor das suas derrotas. Após Waterloo, os limites da França regressaram às fronteiras de 1791, bem dentro das fronteiras que Napoleão encontrou quando começou a sua epopeia.

David é o paradigma do artista que se deixa seduzir pelos mitos políticos em voga, apoiando-os desapiedadamente, intolerantemente. Tornou-se um jacobino feroz, votou a morte do rei na Convenção, e foi um polícia impiedoso enquanto membro do Comité de Sûreté Générale. Imortalizou a figura de Marat, pintando A Morte de Marat, onde Marat aparece representado na sua banheira numa postura que lembra a Descida da Cruz de Cristo. As virtudes da caridade e do desapego do mártir revolucionário são acentuadas pelo vazio do fundo.

Preso após a queda de Robespierre, fez a sua travessia do deserto, até encontrar outro ídolo ... em Napoleão! Em 1801 pinta a Passagem do Grande São Bernardo, onde o então 1º Cônsul é representado numa alegoria prodigiosa do herói montado num cavalo empinado, apontando para as planícies de Itália, como o teriam feito Aníbal e de Carlos Magno outrora.

Finalmente, a suprema deificação do Ditador – David trabalhou durante 2 anos (1806-1808) na passagem à tela da coroação de Napoleão. É uma pintura imensa, de um pormenor exaustivo, retratando todo o fausto e a glória da cerimónia e acrescentando algumas liberdades próprias, ou exigências do patrão. Avatares de um artista ...

Fanático dos jacobinos, regicida e fanático de Napoleão era uma mistura explosiva. Após a queda de Napoleão, e o regresso dos Bourbons, viu-se obrigado a exilar-se de França, morrendo alguns anos depois em Bruxelas.

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David Imperial

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e David revolucionário ... A Morte de Marat

Publicado por Joana em 08:08 PM | Comentários (15)

Evangelho segundo São Paio

Aproximava-se o sessão dos pães ázimos, que se chama debate orçamental.
E os principais sacerdotes e os escribas andavam procurando um modo de o demitir; pois temiam o populismo.
Entrou então Satanás em Paio, que tinha por sobrenome Pitonisa de Belém, que era o PR;
E São Paio disse: Em verdade te digo, Pedro, que não abrirá hoje a bocarra da Manuela Moura Guedes sem que eu por três vezes não tenha negado que te demito.

Mas Pedro, em nova verdade te digo, Pedro, eis que Satanás me pediu para te cirandar como joio;
Porque, nesta verdade, o Filho do homem (eu, Paio!) vai segundo o que está determinado;
E eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, entres na vida secular;
E eu, pelo princípio da serenidade emocional, abrirei as veredas do Senhor para outro;
Pois está escrito que o J. Sócrates padecesse, e ao terceiro dia ressurgisse dentre os mortos;

Publicado por Joana em 12:05 AM | Comentários (13)

dezembro 05, 2004

O Tiro no Pé de Santana

Santana foi vítima da falta dos “princípios da ... boa fé e da lealdade institucional" de Jorge Sampaio, foi vítima dos tapetes que os seus correligionários, antecipadamente descrentes, lhe tiraram debaixo dos pés, foi vítima de um orçamento dirigido contra a sua base social de apoio (e contra as boas normas da economia e finanças públicas) para favorecer, mediocremente, camadas sociais que dificilmente votariam nele por razões ideológicas ou clubísticas, ou seja, contra todos.

Sucede que, em política há uma regra perversa e imutável: as vítimas são punidas por o serem – não merecem compaixão por tal. Os que por ingenuidade ou excesso de auto-estima se deixam trucidar em política, perdem irremediavelmente.

O pedido de Santana Lopes para a Comissão Política ser mandatada para iniciar negociações com o PP para estabelecer uma coligação eleitoral, condimentada pela possibilidade de integrar «várias forças políticas e movimentos cívicos independentes» é uma prova de fraqueza. Ou significa que Santana Lopes desistiu de conquistar votos no centro e centro-equerda, ou que pretende empurrar o ónus da responsabilidade da eventual inexistência de uma coligação eleitoral para o PP, ... ou ambas as coisas. Aliás há um aparente desnorte sobre esta matéria, com declarações contraditórias de vários dirigentes, e de cada um, conforme o dia.

No rescaldo das eleições europeias, Santana Lopes havia dado a entender que uma coligação com o PP era, em termos eleitorais, redutora. No último congresso do PSD foi evidente a oposição maioritária dos congressistas a uma coligação eleitoral. O próprio PP antecipou-se e começou já a tratar das listas e do programa. Portanto, qualquer acordo PSD-PP só poderá significar duas coisas: capitulação do PSD perante o seu parceiro governativo e uma confissão antecipada de derrota na próxima pugna eleitoral.

Quando a coligação governativa foi estabelecida pela necessidade de estabilidade legislativa, o PP era o parente pobre – P Portas estava fragilizado pelo caso Moderna. Durão Barroso construiu uma imagem de Estado à custa da campanha anti-Portas, pois o seu governo foi medíocre. No seu activo credita-se o ter garrotado o delírio despesista da governação PS, mas sem uma estratégia económica adequada. Reformas estruturais ficaram na gaveta, se se exceptuar um anémico pacote laboral. A reforma da administração pública, medida estruturante indispensável para eliminar a crise crónica nas contas orçamentais e nas contas com o exterior, ficou para as calendas gregas.

O PSD que se coligou com o PP, foi o PSD do aparelho partidário, expurgado dos notáveis que evitaram misturar-se num projecto liderado por um político em quem não acreditavam, coligado com um partido de que desconfiavam. O eleitorado, farto de uma política de austeridade sem luz ao fundo do túnel, sem sentir uma estratégia coerente e consistente e seduzido pelas promessas falazes de uma oposição sem sentido das responsabilidades e das realidades, infligiu, nas europeias, uma derrota pesada à coligação. Durão Barroso foi punido por passar todo o tempo da sua governação “ameaçando” com medidas impopulares, que nunca teve coragem de tomar, e por ter sido obrigado a medidas orçamentais muito restritivas, sem ter sido capaz de passar uma mensagem convincente ao eleitorado.

As grandes fragilidades do governo de Santana Lopes eram exógenas e já as sumariei no post anterior. Em matéria de capacidade de decisão constituiu todavia uma rotura com o cinzentismo do governo de Barroso. Alguns dos novos ministros revelaram-se igualmente mais competentes e dinâmicos que os que saíram. Todavia as medidas que tomaram colidiam como muitos interesses e algumas eram de eficácia duvidosa.

Assim, a introdução de portagens reais nas SCUT’s existentes concitava contra o governo autarcas e populações do interior, com um benefício para as finanças públicas muito duvidoso, como já escrevi neste blogue diversas vezes. Duvido que o saldo líquido dessas portagens fosse superior a 20% ou 25% das rendas anuais a pagar às concessionárias. A herança guterrista das SCUT’s é um ónus pesado com que teremos que conviver e que só diminuirá, em termos relativos, com o desenvolvimento económico do país.

Uma Lei do Arrendamento Urbano é necessária, mas a lei aprovada é uma lei mal feita, que não vai resolver a maioria dos casos, porque os deixa de lado, e os que parece resolver arrisca um terramoto social. Por outro lado é socialmente perversa porque privilegia os comerciantes face à habitação. Também a critiquei aqui diversas vezes.

O Orçamento de Estado para 2005 constituiu uma amálgama incoerente de medidas de um populismo ingénuo, como o abaixamento das taxas do IRS, de medidas de uma eficácia económica duvidosa, como a eliminação dos benefícios fiscais em sede de IRS, de um fundamentalismo fiscal contraditório com um Estado de Direito, como a diminuição das garantias dos contribuintes – inversão do ónus da prova e pôr o sigilo bancário à mercê discricionária de qualquer funcionário do fisco. Dar à administração fiscal poder ilimitado não aumenta as receitas fiscais – aumenta a corrupção através da chantagem dos agentes do fisco sobre os contribuintes. E os contribuintes mais atingidos são os da classe média. Os pobres são insolventes e os grandes empresários têm força política e económica suficiente para passarem incólumes perante as investidas de um qualquer funcionário. Se a justiça é ineficiente ou lenta, encontrem-se processos ágeis, nunca eliminar as garantias de um Estado de Direito. Quanto à aplicação imediata da nova directiva da poupança poderá ter efeitos mais negativos que positivos.

O Orçamento de Estado para 2005 não agradou nem a gregos nem a troianos. As medidas populistas seriam sempre insuficientes face ao monstro insaciável que parasita a sociedade, a economia e as finanças públicas portuguesas, e o mundo empresarial ficou furioso com disposições que considerava mais próprias de um BE ou de um PCP, que de uma coligação de direita. Curiosamente, ou talvez não, foi o PS que atacou “pela direita” aquele orçamento.

A oposição implacável do mundo empresarial facilitou a liquidação do governo de Santana e o pretexto desejado pelo PR para o demitir. Há a rábula surrealista da sua aprovação por uma AR com a dissolução anunciada, mas apenas porque o PR não quer ficar com o ónus da função pública viver mais um semestre sem aumentos. Sabe-se lá quem depois o vai aplicar e como.

O percurso deste governo foi errático e incoerente. Tentou fazer muito em pouco tempo, o que é psicologicamente compreensível para um governo sob a ameaça contínua da demissão, mas politicamente desastroso, pois as decisões apressadas prestam-se a trapalhadas por falta de amadurecimento das matérias. Tentou medidas populistas, mas não tinha margem financeira nem institucional para tal ... nem tempo.

Santana foi vítima de si próprio. Tentou conjugar uma postura subserviente perante o PR com algum populismo canhestro. Falhou em ambos. Nunca ganharia nada em ser subserviente face ao PR, pois se a estratégia deste fosse a dissolução, então essa dissolução aconteceria fatalmente de acordo com o calendário político do PR. Qualquer pretexto serviria, pois todos os dias a comunicação social, solícita, fornecia munições ao PR. E Santana Lopes falhou politicamente ao não se ter apercebido disso.

Também não se soube relacionar com a comunicação social. A comunicação social esteve sempre contra ele, mas esse era um dado do problema. A melhor solução era ignorar as suas críticas e boatos e não entrar em conflito com ela. Obviamente que o conflito, em vez de esvaziar as críticas, alimentou-as. Nesta matéria não soube ter mão em alguns ministros cuja incontinência verbal foi desastrada, o que permite fundadas dúvidas sobre a sua capacidade de liderança firme de uma equipa governativa.

No dia anterior ao anúncio da demissão, no meu post Obviamente, Demito-me, eu havia escrito que «Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições e um país que, devido aos paliativos e mezinhas que aplicou, ficou com alguma pequena mas enganosa margem para mais umas ilusões despesistas.» Para mim era evidente que ele não tinha condições para governar. Alguma vez as teve? Hoje, a minha resposta é não, embora me pareça que se ele tivesse agido com mais continência, perspicácia e sagacidade, poderia ter complicado muitíssimo a estratégia presidencial e, eventualmente, preveni-la.

Até ao anúncio da dissolução, o PR grelhou-o em fogo brando. A partir de agora, e até às eleições, os seus adversários internos prosseguirão com a receita culinária encetada pelo PR. Sobreviverá politicamente? Só um milagre ...

Santana Lopes teve tudo e todos contra ele ... incluindo ele próprio.

Publicado por Joana em 10:22 PM | Comentários (19)

O Túnel pela culatra

O Túnel do Marquês foi a obra emblemática da campanha de Santana Lopes à CM Lisboa. Nunca me pareceu, todavia, uma obra prioritária para Lisboa. O cruzamento desnivelado com a Rua Artilharia 1 era, sim, prioritário. Porém o Túnel do Marquês é uma obra muito complexa do ponto de vista estrutural, e portanto dispendiosa, o que me faz supor que outras obras teriam para a capital um rácio benefício-custo provavelmente mais elevado.

Todavia achei vergonhosa a campanha histérica e obstrucionista movida pela oposição e pelas associações «cívicas» que brotam do nada e não representam nada nem ninguém, a não ser os que protagonizam aparições televisivas. O advogado Sá Fernandes, especialista em acções populares na área ambiental, não perdeu a ocasião para adquirir mais protagonismo social e conseguiu uma forma legal de bloquear o prosseguimento da obra.

Essa vitória das «forças cívicas» portuguesas produziu então um enorme entusiasmo na comunicação social. Nos ecrãs televisivos só se viam rostos felizes zombando do fracasso do play-boy da política. Há dias, uma decisão do STA deu provimento ao recurso da CML e anulou as decisões dos tribunais das instâncias inferiores – as obras podem prosseguir.

Não houve manifestações de dor. O causídico das «causas populares» titubeou umas frases sobre o sentimento do dever cumprido e ficou-se por ali. Entrevistas a alguns comerciantes e moradores da zona mostravam a enorme satisfação por entreverem uma luz ao fundo do túnel do seu calvário. Foi com suspiro de alívio que os lisboetas e os suburbanos que demandam Lisboa por aquele eixo receberam a notícia do recomeço das obras e de haver um epílogo anunciado do seu sofrimento diário.

Mudam-se as situações, mudam-se as vontades. Os promotores da campanha sentiram o vazio à sua volta; a comunicação social sentiu o vazio à volta dos promotores da campanha; a população lisboeta e, principalmente, os utentes daquele eixo, começaram a sopesar a realidade face aos mitos, a comparar o empecilho dos factos com os inebriantes estouvamentos «cívicos» ... e o que parecia ser uma verdade irrefutável meses atrás, tornou-se um incómodo obstáculo a remover com urgência.

E o protagonismo mediático do advogado Sá Fernandes só lhe vai servir para ser cauteloso e evitar passear-se por aquela zona, enquanto os moradores e comerciantes locais não esquecerem o sofrimento por que têm passado.

No tempo da vereação de João Soares construíram-se túneis e parqueamentos subterrâneos e estes nunca precisaram de estudos de impactes ambientais. O parque subterrâneo da Praça do Município foi inclusivamente construído sem licenciamento municipal. Os serviços não se despachavam e João Soares procedeu à sua construção na mais completa ilegalidade. Se alguém protestou, não transpareceu para o público. E se eu critico João Soares não é por ter construído o parque, que foi uma obra útil para a cidade, mas por não pôr os serviços camarários a funcionar – porque, para além da presidência da CML, há muitas centenas de munícipes que esperam anos a fio por licenciamentos camarários ... sem mencionar os milhares que as realizam clandestinamente para evitarem aborrecimentos.

Pelas razões que invoquei inicialmente, nunca considerei esta obra prioritária. Todavia não partilho da ideia que tornar mais fáceis os acessos a Lisboa seja prejudicial, porque traz mais tráfego à capital. Essa tese malthusiana conduziria a não construir alternativas para as estradas estreitas e sinuosas que existiam, e ainda existem, no nosso país. Desincentivar o uso do automóvel não se faz mantendo as rodovias em estado precário. Faz-se fiscalizando severamente o estacionamento público, melhorando os interfaces com os transportes públicos e utilizando estes de uma forma mais integrada e adequada aos interesses dos utentes. Não basta investir na qualidade e quantidade do material circulante, esse investimento tem que ser complementado com uma mais eficiente organização do seu funcionamento e adequação às necessidades dos utentes. E faz-se, se tudo o mais falhar, impondo portagens nos acessos à cidade, ou a algumas zonas dela.

Resumindo: não a julguei nem a “melhor decisão”, nem uma “má decisão”.

Há uma questão, certamente do escopo metafísico e transcendental, que rodeia as decisões de Santana Lopes: estas provocam excitações frenéticas, histerismos fanáticos, emoções exaltadas. Qualquer decisão que ele tome, por mais elementar e comezinha que seja, provoca os arrebatamentos mais desmedidos. Enquanto ele permaneceu na Figueira, protegido dos olhares da capital pelo sistema Montejunto-Estrela, decidia numa obscuridade tranquila; mas assim que veio para a capital foi objecto de permanente linchamento público, quer como Presidente da CML, quer quando se atreveu a deixar-se indigitar como PM.

Foi o que aconteceu no caso do Túnel do Marquês. Nada do que se escreveu ou disse sobre esta matéria teve qualquer conteúdo racional, mas apenas emotivo. A obra é complexa do ponto de vista estrutural, mas o estudo de impacte ambiental não tem nada a ver com o rigor dos cálculos estruturais; se do ponto de vista da fluidez do tráfego a obra não for uma boa solução, tal não é matéria do EIA, mas dos estudos de tráfego. A necessidade do EIA foi apenas uma manobra política para protelar a obra e adiá-la o tempo suficiente para trazer dividendos eleitorais. O EIA nunca iria condenar a obra e evitar a sua realização, apenas iria protelá-la mais de um ano – o tempo necessário para executar o EIA, para a audiência pública e para a sua aprovação. O tempo suficiente para minar a credibilidade eleitoral do PSL no que respeita a uma então possível reeleição para a CML.

Quando a emotividade prevalece sobre a racionalidade, acontece disto ... há o fluxo e refluxo. As emoções não têm consistência para fundamentarem soluções. É como construir castelos na areia – a maré alta fá-los desaparecer sem deixar rasto.

Publicado por Joana em 09:32 PM | Comentários (23)

dezembro 02, 2004

Patchwork mal cerzido

O PSD deve ser o único partido da história parlamentar ocidental que tem condições para fazer funcionar, sozinho, uma democracia representativa, com o estatuto de partido único. O PSD não precisa de oposição externa para fazer soçobrar o seu próprio governo. Basta-lhe a oposição interna. O PSD solitário, sem mais partidos, completamente despiciendos para o efeito, reúne todas as condições para concretizar, apenas ele, uma democracia parlamentar fervilhante, agitada, cheia de demissões, chumbos de governos, diplomas reprovados, dissoluções, golpes palacianos, etc., etc.. O PSD tem os seus Barnabés próprios ... não precisa dos alheios.

No PSD, o que está a tornar cada vez mais complicado o trabalho de patchwork, a urdidura de uma manta de desenho harmonioso e unitário, é que os pequenos trapos dissolvem-se, encolhem, contraem-se, segundo eixos de inércia inesperados e confusos. O PSD não parece ter facções – tem personalidades. E essas personalidades funcionam como pólos de acumulação, ou de rejeição, das individualidades cuja soma aritmética é a totalidade de militantes ou simpatizantes do PSD, mas que, no seu conjunto, não representam uma entidade estável.

Às vezes a acumulação dessas individualidades parece fazer desabrochar uma super-nova, outras vezes o vazio que se gera parece implodir num buraco negro.

Desde as eleições de 2002, os contestatários mais consistentes encontraram-se dentro do próprio partido. O terrorismo parlamentar da dupla Ferro-A Costa ou o esboço de uma Aliança Povo-RTP eram apenas estertores de quem tem dificuldades em aceitar os resultados eleitorais. Não tinham, como não tiveram, futuro. Dissolveram-se no ar.

Primeiro foram as contestações internas sobre a coligação. Todavia não era possível um governo estável sem uma coligação. Mesmo um analista político estagiário perceberia isso. Era preferível ter o PP amarrado ao governo, que na oposição. Aliás, estes dois anos e meio provaram isso – o PP e os membros de governo que indicou mantiveram sempre uma postura de Estado e uma competência, salvo a excepção de Celeste Cardona, que teve atenuantes por questões de saúde, bastante superior à média do executivo. Refiro-me aos ministros, porque a nível de secretários de Estado houve algumas desgraças, como, por exemplo, o caso de Mariana Cascais na Educação.

Pacheco Pereira desde a primeira hora que criticou severamente o governo, embora inicialmente a sua militância anti-governamental incidisse no parceiro de coligação, nomeadamente Paulo Portas, atacado da forma mais soez pela oposição e comunicação social sob a alegação de estar implicado no Caso Moderna.

Mas Pacheco Pereira não passa de um intelectual blasé, cujo halo que ele orgulhosamente ostenta sobre a gaforina é apenas a auréola que a esquerda, que detém as «verdades veiculadas» pela comunicação social lhe faz reflectir por ele ser um intelectual de direita colonizado pelo marxismo-leninismo da adolescência. O efeito «Pacheco Pereira» apenas serviu para potenciar feridas mais graves que foram o pecado original do governo de Durão Barroso, personalidade fraca, sem carisma. O mais grave foi que Durão Barroso não conseguiu mobilizar para o governo as personalidades mais competentes da área do PSD. A ministra das Finanças poderia dar uma boa secretária de Estado do Orçamento, mas não tinha estatura para ministra. Foi uma controladora financeira sem estratégia económica consistente. E os resultados viram-se: fez cortes e mais cortes sem conseguir reduzir a despesa pública e o défice orçamental.

A Fronda dos notáveis do partido foi o primeiro revés para Durão Barroso e para o governo. Nenhum deles queria partilhar as canseiras e a exposição pública de um governo em que nenhum acreditava. Felizmente para Durão Barroso a oposição acabou entretanto – o escândalo Casa Pia fragilizou a direcção do PS e toda a estratégia de atirar lama ao adversário político, que tinha sido a arma contra P Portas, acabou por fazer ricochete e virar-se contra a clique ferrista.

Quando Durão Barroso decidiu ir para Bruxelas já não tinha qualquer estratégia para um governo cinzento, que se arrastava penosamente e que ele não tinha coragem de remodelar, ou não sabia como o fazer.

Santana Lopes formou governo numa situação de grande desvantagem. O PR arrastou a indigitação, sujeitando-o a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais da política portuguesa; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política – caso Marcelo, artigos de semanários, demissão de um ministro, etc.. Sampaio apenas indigitou Santana Lopes para o grelhar em fogo lento, à espera que o PS fosse uma alternativa política credível.

Enquanto isso acontecia, continuava a Fronda dos notáveis do partido – Marcelo, Marques Mendes, Manuela Ferreira Leite (que apesar da gestão medíocre nas Finanças foi recuperada e promovida ... por não apoiar PSL), etc., etc., e ainda um tal Miguel Veiga, que eu nunca percebi porque é que era um “notável”, mas cuja notoriedade é aparecer sempre, nestas alturas, a tirar o tapete debaixo dos pés de alguém ... do PSD. E o que era mais paradoxal é que este governo, apesar de muitas fragilidades e de todas estas contrariedades, meteu ombros a reformas que o governo de Barroso não tinha dado andamento.

Santana Lopes tem agido nestes quatro meses como um «patrocinado» do PR, um seu protegido, um seu cliente (no sentido romano do termo). O PSL tem sido um peão nas mãos do PR, que decidiu agora dá-lo a comer, para conseguir uma estratégia vitoriosa para o PS. O gambito Sampaio destina-se a promover Sócrates a “Dama” (honi soit ...). Mas era uma estratégia clara. Foi-o para mim, que estou muito longe destas andanças, e certamente seria mais óbvia para Santana Lopes, que calcorreava quase diariamente o caminho para Belém para ouvir mais uns remoques do PR. PSL ao aceitar estes quatro meses de humilhações, numa postura que lhe não é habitual, certamente não vai recolher quaisquer dividendos políticos.

Agora o martírio de Santana segundo Sampaio atingiu o acume. Após 4 meses de flagelação é obrigado a carregar a cruz do Orçamento de Estado para 2005, pela calçada de S. Bento, até ao alto do Gólgota, até à sede da representação nacional (que ainda nem sequer foi informada da sua dissolução!) – o PR, já depois de o ter demitido (apenas em efígie, por enquanto), ainda lhe exigiu a aprovação do Orçamento de Estado para 2005, considerando que terá que assumir a responsabilidade por essa aprovação. ... quem boa cruz fizer, nela se irá pregar ...

Não me parece que Santana Lopes, pese embora as muitas qualidades que tem nas competições eleitorais, tenha condições para um resultado airoso nas próximas eleições. Também não vejo ninguém no PSD capaz de se aventurar numa pugna eleitoral muito difícil. Santana Lopes assegura que pôs o lugar à disposição ... mas a troca de galhardetes entre ele e Macário Correia mostra que aquela oferta não deve ser levada muito ao pé da letra.

Os retalhos do PSD estão espalhados pelo soalho político. Não será fácil reuni-los e cerzi-los numa entidade homogénea. Nem eles se deixam cerzir facilmente, dada a sua volatilidade!

Mas as previsões em Portugal são falíveis. O país está numa situação económica catastrófica. A calamidade das finanças públicas é apenas um sintoma dessa doença profunda. Remediar esta situação só se consegue com medidas altamente impopulares. Não me parece que o PS, se ganhar as eleições, tenha condições políticas para as levar à prática, pois será eleito como contestação às políticas de austeridade dos governos desta coligação. Isto para além de não ter gente competente para o efeito. Portanto, nas próximas eleições, Portugal estará certamente mais um passo à beira do abismo e o PS desgastado por uma «política de direita» mal executada. E pode suceder que o poder caia inesperadamente no colo de algum líder do PSD ... a exemplo do que sucedeu com Durão Barroso.


Nota - Ler ainda:
A Aprovação do OE para 2005 é um exercício masoquista

Publicado por Joana em 11:06 PM | Comentários (57)

dezembro 01, 2004

A Aprovação do OE para 2005 é um exercício masoquista

Sampaio e os seus assessores têm-se multiplicado em afirmações, mensagens, dicas, sussurros, etc., de que querem ver o Orçamento de Estado para 2005 aprovado pela AR. Tanta pertinácia na aprovação de um orçamento que os sindicatos não querem, os empresários não querem, o deputado João Cravinho e os pré-socráticos não querem, o PCP e o BE não querem, e o PS socrático diz que não quer, deixa-me perplexa.

Mais perplexa fico por tudo indicar que seria por razão deste orçamento não se inserir na linha de austeridade, tal como o PR havia balizado quando indigitou Santana Lopes, que a AR vai ser dissolvida.

É certo que o PR ainda não explicou as razões porque decidiu a dissolução da AR. Mas não foi certamente pelas declarações do ex-ministro Henrique Chaves. Nesse caso teria demitido 3 ou 4 vezes o governo de Guterres – lembremo-nos da conferência de imprensa de Manuela Arcanjo, das declarações de Cravinho, dos dichotes de Sousa Franco, dos insultos de Fernando Gomes, etc..

Não foi certamente por alegadas interferências na comunicação social. Nesse caso teria demitido diversas vezes o governo de Guterres. Basta ler Arons de Carvalho e reparar nas inúmeras mudanças ocorridas na RTP e o estado em que ela foi deixada. Não foi por criticar comentários de Marcelo Rebelo de Sousa. Nesse caso, Jorge Sampaio teria demitido o próprio PR, quando fez idênticas críticas.

Não foi certamente pelas críticas à coligação de alguns congressistas do PSD em Barcelos. O congresso do PSD era um assunto interno do PSD e apenas os seus resultados interessavam, não as opiniões de alguns congressistas. E o PR não deve estar mandatado por nenhuma das facções presentes naquele congresso.

Tem sido evidente que a permanência de Santana à frente do governo, nas presentes circunstâncias, com toda a comunicação social e quase toda a classe política com as baterias assestadas contra ele, já só poderia ser entendida por alguma algolania misteriosa resultante de maus costumes adquiridos por frequência inusitada de bares e discotecas. Ele tinha que se livrar daquele cargo, nas condições em que o exercia. Mas esse era um problema dele. Aparentemente o PR também colaborava naquela sessão contínua de flagelação e sadismo políticos.

A única razão substancial que vejo para a decisão do PR é este orçamento não ser de austeridade, austeridade que é vital para o país; um orçamento que privilegia um aumento de consumo, mesmo modesto, em detrimento da poupança; um orçamento que privilegia a despesa em vez de privilegiar a competitividade das empresas.

O PR retirou a confiança a este governo e, portanto, a esta maioria. Logo a actual maioria não devia impor ao PR um orçamento cuja falta de rigor económico foi uma das causas da dissolução. Seria enxovalhar Jorge Sampaio. E o que é mais absurdo, masoquista mesmo, é Jorge Sampaio querer ser enxovalhado. Será que o masoquismo de Santana, nestes 4 meses de 1º ministro, contaminou Sampaio?

Obviamente que a maioria não deve votar contra o orçamento, visto tê-lo elaborado. Portanto, se a conferência de líderes parlamentares, convocada para amanhã, se decidir pela sessão sobre a votação na especialidade do Orçamento de Estado, marcada para terça-feira, a maioria, para ser coerente, deveria abster-se. Isso significaria que, embora estivesse de acordo com o orçamento, não quer que ele se torne um estorvo para quem vier a seguir e que respeita os fundamentos da decisão do PR.

Se ninguém gosta do orçamento, excepto uma maioria que, alegadamente, já não representa o país, para quê aprová-lo? Os aumentos das pensões estão assegurados, pois não dependem do orçamento, os aumentos dos funcionários públicos podem sempre ser pagos retroactivamente e um governo de gestão não tem autonomia para lançar grandes obras, para quê um orçamento, que só serve de empecilho a um futuro governo?

Só uma postura masoquista poderia levar a actual maioria a aprovar este orçamento. Para masoquista, já basta a pertinácia do PR em querer o orçamento aprovado.

Publicado por Joana em 10:55 PM | Comentários (36)

Deriva Continental

Eduardo Lourenço, num curso promovido pela Fundação Mário Soares e pelo Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa fez uma comunicação sobre um tema que já várias vezes trouxe aqui à colação(*) – a relação entre a Europa e os EUA e algumas similitudes que essa relação tem com a relação entre gregos e Roma na Antiguidade Clássica.

A tese de Eduardo Lourenço tem as mesmas raízes que as minhas, só que a sua análise dos acontecimentos e dos efeitos, actuais e potenciais, não consegue subtrair-se da influência da intelectualidade francesa que constitui a vivência cultural do ambiente em que vive e lecciona.

Para Eduardo Lourenço os «Estados Unidos são apenas o Frankenstein da História, feito dos pedaços da Europa que fugiram à Europa (e em seguida, ao mundo) e lá, depois de limparem a paisagem, (de índios), conservando a nostalgia dos seus ocupantes, se reconstruíram com energia quase desesperada, inventando, ao longo de quase duzentos anos ... uma identidade de tipo novo, não europeia, tendo no futuro o seu tempo utópico e messiânico».

Os Estados Unidos foram criados, mais ideologicamente que demograficamente, por europeus que fugiam às perseguições políticas e religiosas. Os Pilgrim Fathers eram, na maioria, aldeões ingleses que estavam numa situação social incomparavelmente superior à dos camponeses franceses e da Europa continental, subjugados pela sobrevivência de um feudalismo anacrónico. Um servo medieval nunca teria fundado as cidades livres a autónomas da Nova Inglaterra. O Canadá francês, formado na mesma época, foi a transplantação do camponês medieval sob a chefia do seu nobre feudal e do seu padre, enquanto a imigração colonial inglesa foi a transplante de uma sociedade muito mais moderna, semi-industrial e desperta para as transformações económicas e intelectuais (**). Era gente capaz de fundar instituições sólidas, onde podiam florescer, lado a lado, a agricultura, os ofícios mecânicos e o comércio. Mas simultaneamente fugiam da perseguição e da intolerância religiosa. Para eles, a liberdade individual era um bem precioso.

E as vagas que se lhe seguiram, ou fugiam dos despotismos e das coacções extra-económicas das sociedades feudais, ou fugiam da miséria e da escassez de recursos das suas terras. A emigração maciça de irlandeses durante o século XIX, que fez descer a população da ilha para cerca de um terço do que era anteriormente, foi causada pela miséria, mas também pelo colonialismo inglês. Dizer que os americanos, por serem descendentes de “retalhos” da Europa, são um Frankenstein da História é uma imagem enviesada por um intelectualismo blasé, pretensamente superior, tipicamente francês (ou português, na sua versão fotocopiada e ainda mais provinciana).

Quem demandou o Novo Mundo, fê-lo porque teve a coragem de quebrar as amarras e partir, enfrentando o desconhecido. Nas classes sociais economicamente mais desfavorecidas, entre as quais se recruta a emigração, são sempre os mais aptos, os que têm mais vontade em se afirmar e mais coragem em enfrentar o desconhecido que emigram. Os outros ficaram.

É evidente que as gerações se renovam e aquelas características não são genéticas. Mas as sociedades criadas por gente livre, quando os que ficaram eram servos, corajosa, quando os que ficaram lhes faltou ânimo, empreendedora, quando os que ficaram permaneceram apáticos, são sociedades que motivam os seus membros ao exercício da liberdade, às virtudes do trabalho e à busca da prosperidade e da felicidade. São sociedades que olham para a frente, para o futuro, enquanto as outras têm medo de encarar o futuro e reinventam o passado para explicarem, ou justificarem, a sua incapacidade e inanição actuais.

E se os EUA ganharam protagonismo na Europa, foi por necessidade vital desta, como reconhece Eduardo Lourenço: «Por mais imperialistas que nos pareçam hoje os desígnios hegemónicos dos Estados Unidos - pelo menos, de um dos EUA, aquele que se revê na tradição de Theodore Roosevelt e chega até Bush - esta intervenção nos assuntos europeus não foi (ou não foi só) de iniciativa, da então ainda inocente jovem América. Foi de conveniência da "velha Europa". Como, em tão pouco tempo, esse passado "salvador" dos EUA, se converteu - ao menos aos olhos de muitos europeus, em questão nossa, ou problema e, para alguns, - em "ameaça"?» ... «Como é que esta Europa, libertada duas vezes com a ajuda dos americanos (e, não pouco, dos soviéticos), se encontra nos alvores deste enigmático século XXI, de "candeias às avessas", para usar a expressão que convém ao nosso arcaísmo, com os detentores da luz do mundo, convertidos, como no mais puro dos seus sonhos de domínio, em "super-men" da História?»

Eduardo Lourenço não nos dá uma explicação, apenas reconhece que «O Império não tem exterior. Também a Europa, nos seus impérios sucessivos, o não tinha. Nós não jogamos já (ou ainda) na mesma divisão. A América não nos vê como nós gostaríamos de ser vistos para crer que ainda contamos no mundo. A maior parte do nosso tempo útil - político ou culturalmente falando -, gasta-se a saber o que a América "quer" ou "pensa". Mas esta aparente distracção, ou distanciamento da América e, em particular desta de Bush, em relação às "Europas" é um engano cego e pouco ledo. A América encarrega-se de "pensar" a Europa e na Europa, até porque ela está nela, mas não como estava quando lhe servia de escudo na sua luta contra o império soviético (e vice-versa). Ela pensa na Europa, onde reinou desde 1945 a 1989, como pensa nela como pedra de xadrez ainda importante no tabuleiro mundial. E só isso lhe interessa.».

E conclui: «Vae Victis. Ninguém venceu a Europa. Foi vencida por si mesma.», adiantando que «Pode ressuscitar», mas sem dar qualquer pista como essa ressurreição poderá ocorrer. Aliás, o estilo da comunicação é mais o de um epitáfio descoroçoado, que um apelo para que, no Dies Irae, o Senhor se compadeça da Velha Europa e a albergue no seu seio.

Há dias, no Público, José Manuel Fernandes, no artigo Derrotados?, propõe uma mezinha para a ressurreição da Europa. Segundo JMF, talvez «não seja inevitável sentirmo-nos derrotados como europeus se percebermos que o que hoje parece afastar irremediavelmente uma América triunfante de uma Europa acabrunhada teve origem no mesmo Velho Continente. E se sempre demos mais relevo ao Iluminismo francês, porque não questioná-lo à luz dos outros dois Iluminismos? [ JMF contrapõe aquele ao Iluminismo britânico]Talvez haja muito a aprender».

José Manuel Fernandes, os Iluminismos franceses, ingleses e alemães, para não referir os seus parentes mais pobres, não têm diferenças tão substantivas que possam justificar a Deriva dos Continentes que aflige Eduardo Lourenço. Há todavia no iluminismo francês uma diferença cortante, que está ligada à cabeça, mas não aos conceitos: os iluministas franceses que sobreviveram até 1793 foram todos guilhotinados!

A herança da França, do pensamento francês, mesmo o da direita, é a Revolução, que é glorificada no hino, com a sua letra sanguinária, nas comemorações da tomada da Bastilha, com as sua imponentes paradas militares, e cujos aspectos mais sanguinários do Terror, todos os intelectuais franceses (e da Europa continental) tentam branquear, ou varrer para debaixo do tapete. Mas esse vírus do terror e da intolerância como armas políticas ficou sempre latente na Europa Continental, agudizando-se nas épocas mais conflituais, elevado ao paroxismo do terror e da carnificina beligerante.

É essa a grande diferença entre os “Iluminismos” da Europa Continental e do mundo anglo-saxónico. Não é uma diferença em si, mas na forma como as suas heranças foram, ou não, subvertidas.

Notas:
(*) Ler, por exemplo:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus escrito em 4-Novembro-2004
Unilateralismo e poder escrito em 23-Janeiro-2003

(**)Basta observar a diferença entre a evolução da América anglo-saxónica e da América Latina. As gentes que as povoaram e moldaram as respectivas sociedades tinham vivências sociais diferentes, apesar de terem igualmente oribem na Europa.

Publicado por Joana em 07:10 PM | Comentários (26)

1640

Quem quiser recordar, leia 1640. Foi escrito há um ano. Que é um ano comparado com 364 anos?

Publicado por Joana em 06:45 PM | Comentários (3)