dezembro 21, 2004

Um País no Crematório

A questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos é o paradigma do cretinismo da nossa demagogia política, que aposta em emblemas para agitação eleitoral, vazios de conteúdo e nocivos para o país, pois que apenas servem para não fazer nada, para manter tudo na mesma. É perverso que as forças políticas e mediáticas do nosso país se tenham especializado e adquirido a máxima proficiência em mobilizarem o país ... para não deixar fazer nada.

Quando findou a governação de Cavaco Silva estava na calha um projecto para a construção de uma incineradora dedicada, destinada à eliminação dos resíduos industriais perigosos (RIP), em Estarreja, com o aval da autarquia respectiva. A equipa de Guterres fez abortar esse projecto.

Posteriormente o ministro Sócrates propôs uma solução diferente: a co-incineração realizada nos fornos cimenteiros. Esta proposta levantou imensa polémica, criaram-se e desfizeram-se comissões de iniciativa governamental e iniciativa cívica, choveram insultos mútuos entre figuras científicas, até então tidas como prestigiadas, foi, enfim, um enorme e pouco dignificante sururu. Não se percebe como cientistas e docentes universitários, com currículos volumosos, estejam em desacordo sobre, por exemplo, a quantidade de dioxinas emitidas pelas lareiras e que esse desacordo, entre os cientistas opositores e os cientistas da CCI, seja de 1 para 100! Ou de 1 para 1 milhão (!?) no caso da cremação de cadáveres.

Pelo que me apercebi, a co-incineração tem a vantagem de ser muito mais económica, pois os investimentos nos filtros das cimenteiras deveriam ter sido feitos em qualquer dos casos. Por outro lado, como os RIP são usados como combustível, poupa-se em fuel, o que é um factor muito positivo na nossa balança de pagamentos (o combustível fóssil constitui, de longe, o principal custo da fabricação de cimento).

Tem em contrapartida a desvantagem de só poder ser efectuada sobre parte dos RIP pois há restrições à queima de resíduos com elevadas concentrações de metais voláteis, como o mercúrio. Quanto às desvantagens ambientais tenho dificuldade em me pronunciar em face de contradições tão antagónicas de cientistas tão eminentes. Todavia parece-me que, desde que haja uma triagem prévia e que aos RIP mais nocivos seja dado outro destino, é uma solução que não causa prejuízos ambientais.

Quando Sócrates decidiu avançar com a solução ... caiu o governo de Guterres. Empolgado com a polémica anterior, Durão Barroso fez do não à co-incineração um dos seus emblemas de campanha. É profundamente estúpido que questões como esta se transformem em armas de arremesso político.

Durão Barroso ganhou as eleições e a questão da eliminação dos resíduos industriais perigosos voltou à estaca zero. Só uma coisa era sólida ... o não à co-incineração. O assunto ia ser estudado e seria encontrada uma solução ... desde que não fosse a co-incineração!

Dois anos e meio depois, uma nova solução entretanto estudada está em fase de implementação e o país, e sobretudo os ambientalistas, tranquilo. E é nesta tranquilidade de quem julgava que havia sido encontrada uma solução ... ou melhor, uma decisão, que Sócrates aparece a ressuscitar a polémica e a garantir que com ele haverá co-incineração.

Resumindo: há 10 anos o país estava à beira de implementar uma solução para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; após muita inércia, estudos e polémicas, o país, há cerca de 3 anos, estava à beira de implementar uma solução (diferente) para a eliminação dos RIP ... e um mês depois já não tinha solução; agora, após alguma inércia e muitos estudos, o país está à beira de implementar uma solução (igualmente diferente) para a eliminação dos RIP ... e ... aparece Sócrates.

Sócrates tem sido sistematicamente acusado de só dizer banalidades e ser um vazio total. É perverso que a primeira ideia concreta com que ele nos obsequiou tenha sido um disparate, tenha sido o reviver uma polémica inútil.

Se Sócrates fosse inteligente e tivesse consistência política, estaria calado sobre este assunto durante a campanha e, posteriormente, poderia implementar uma solução conjugando a que está actualmente em concurso, que é ambientalmente muito melhor, com a eventual queima, nos fornos de cimento, dos RIP mais adequados a tal operação, o que tem vantagens económicas.

Mas não, Sócrates além de dar um tiro no próprio pé, deu mais um tiro certeiro na credibilidade dos políticos, na (in)consistência das suas (in)decisões. Deu mais uma achega àqueles que estão convencidos que os políticos apenas estão empenhados nos seus interesses partidários, em guerrilhas mútuas e nocivas para o país e completamente alheios aos interesses do país.

Municiou aqueles que acham que a nossa actual classe política é o principal estorvo à solução dos nossos problemas e ao desenvolvimento do país.


Nota - Ler ainda:
Prometemos o mesmo, mas ...

Publicado por Joana em dezembro 21, 2004 07:45 PM | TrackBack
Comentários

Hear, hear ! Tem toda a razão !

Afixado por: julia em dezembro 21, 2004 08:53 PM

Isto quer dizer que Sócrates começou a perder as próximas eleições.

Afixado por: Senaqueribe em dezembro 21, 2004 09:12 PM

A firmeza de um político começa a ver-se quando põe à frente dos interesses partidários, o que julga ser o interesse do seu país.
Até pode estar errado, mas é pelo menos coerente e isso é um bom princípio.
Além de que ao avançar com o seu projecto não vai estragar o que ainda não existe.
Isto de se dizer que já havia solução para o problema, é tão verdade como para a história do deficit...
Depois, como vai haver votos, só vota nele quem quiser, não se pode agradar a todos, é a vida!

Afixado por: E.Oliveira em dezembro 21, 2004 10:58 PM

Aguarde mais cinco minutos, que ele já vai explicar que não era bem aquilo que queria dizer.

Afixado por: carlos alberto em dezembro 21, 2004 11:20 PM

E. Oliveira
"Até pode estar errado, mas é pelo menos coerente e isso é um bom princípio."
Tenho muito medo desse tipo de coerência. Hitler, Stalin, Mao, Cunhal, Pol Pot, Castro, Salazar e outros foram/são coerentes. A coerência na politica não é uma virtude em si mesma.

Afixado por: Helder em dezembro 22, 2004 11:59 PM

E.Oliveira em dezembro 21, 2004 10:58 PM:
O que você está aplaudir é o que os anteriores andaram a fazer e que deixaram so resíduos perigosos na situação em que se estava.

Afixado por: Rui Pereira em dezembro 23, 2004 12:16 AM
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