Ou como estas duas espécies protegidas só causam transtornos
Uma proprietária absentista de um pequeno monte alentejano (absentista porque precisa de um bom emprego em Lisboa para custear as despesas de manutenção do monte), tem veados na sua propriedade.
Eles foram para lá contra vontade dela. Provavelmente eles próprios também não teriam manifestado qualquer interesse em viver naquele monte, numa planura cálida e desarborizada, rodeados por uma vedação alta e intransponível. Igualmente não se sabe se entre as alegações do processo divórcio movido pela proprietária em questão, figurava a teimosia do ex-marido em ter comprado os veados. São assuntos passados e não interessam para esta história.
Os veados não são propriamente animais domésticos. O caseiro da proprietária, homem destemido e afeito à bicharada, alardeando a convicção segura que eles o conheciam perfeitamente, visto ser ele que lhes dá a ração diária, entrou um dia no cercado, de peito feito, para mostrar como os veados lhe eram afeiçoados. Saiu de peito desfeito para o hospital distrital, onde esteve vários dias internado a recuperar de uma marrada. Nem a eventualidade de ficarem sem o serviço de cattering levou os veados a uma postura mais civilizada.
A proprietária vivia a lamentar-se junto das amigas. Como são animais protegidos e com alvará, não é fácil vendê-los. Aliás, já nem se punha a questão de os vender. A proprietária estava de tal forma desesperada que os daria a quem os quisesse. Passou-lhe mesmo pelo pensamento a ideia de lhes facilitar a fuga, pela calada da noite, mas soube depois que poderia ter problemas, visto que seria fácil verificar a sua proveniência, quando fossem capturados. E o mais grave era que, contrariamente aos hábitos dos restantes alentejanos, os veados em questão evidenciavam uma forte taxa de natalidade.
Alguns de vocês, menos ligados à defesa dos animais, perguntarão: e porque não comê-los e dizer que morreram de paragem cardíaca?
Julgo que houve uma ou duas tentativas, mas não era fácil. Tem que se contratar alguém para os abater a tiro e pessoal para os esfolar e esquartejar, e tudo isto rodeado do máximo sigilo, em plena clandestinidade. Corre-se o risco, no mínimo, de uma coima elevada e os matadores e esfoladores ficam com mais de metade da carcaça. Julgo, todavia, que uns bifes de veado que comi, há uns anos, na casa paterna, devem ter sido provenientes de algum acidente com arma de fogo, misteriosamente ocorrido naquele monte.
Até que, finalmente, as preocupações da proprietária absentista pareceram que iriam findar. Uma colega dela, familiar de um técnico dos quadros da Tapada de Mafra, ouviu este lamentar-se que, com os recentes fogos, tinham sido dizimados os veados da Tapada. E lembrou-se da desastrosa situação da amiga.
Estava tudo resolvido: a tapada, deficitária de veados, poderia colmatar esse défice. A proprietária absentista, farta dos veados, ver-se-ia livre deles.
Estava configurado o cenário ideal para se resolver um problema com a administração pública:
Alguém (a proprietária absentista) entregava, a título gracioso, algo (os veados) ao Estado (Tapada de Mafra);
O Estado (representado por amigos e familiares da doadora) aceitava a dádiva;
Passava-se tudo entre amigos, naquele compadrio inocente, que é, em Portugal, a única forma garantida de resolver as questões entre o cidadão e o Estado.
A Tapada de Mafra ficou de tratar da papelada, da guia de transporte e de outras questões logísticas e a proprietária, do bolso dela, pagou a um veterinário para passar um certificado que assegurava que os veados estavam bons de saúde, desejavam ardentemente conhecer a Tapada de Mafra e ver as vistas do Convento e revelavam um forte instinto de sobrevivência em caso de fogos florestais.
Estava tudo a postos, quando telefonam da Tapada de Mafra: não tinha sido possível em tempo útil transferir o alvará da proprietária para a Tapada!
Um drama! As guias de transporte tinham uma validade de apenas um ou dois dias e o certificado do veterinário só era válido por 48 horas, o que se compreende: os veados têm uma constituição frágil, constipam-se com qualquer corrente de ar e são muito volúveis em matéria de opinião, logo, um certificado veterinário tem que ter um período de validade muito reduzido.
Portanto, todo o processo da obtenção da papelada terá que recomeçar de novo. A proprietária da nossa história será obrigada a chamar novamente um veterinário para observar os veados, etc., etc.. Nem estando em causa uma dádiva, nem usando o mais descarado compadrio, a burocracia estatal se compadece.
É mais fácil divorciar-se de um marido, que de uma manada de veados.
A forma como no Reino Unido foi dirimida a questão David Kelly mostrou que o UK está muitas dezenas de anos afastado do nosso país em matéria civilizacional. Eu não queria afirmar se esse afastamento será um avanço ou um atraso. A mim parece-me um avanço e muito significativo. Mas para não polemizar, fiquemos no “afastamento”.
E isto porque:
1 – O Sr. David Kelly era uma homem que prezava a sua honorabilidade, sabia que devia lealdade à instituição de que era funcionário e apercebeu-se que as suas eventuais declarações a Andrew Gilligan, bastante amplificadas segundo se depreende das afirmações que produziu no parlamento no âmbito da sua audição e agora pelos resultados do inquérito, o colocavam numa posição com a qual a sua honra, e o respeito que devia a si próprio, não podiam continuar a conviver.
Em Portugal, os detentores de cargos da Administração Pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. E isto é mais grave que um atropelo de ética – é uma violação grosseira e impune da lei.
2 – O Parlamento Britânico foi firme perante as fugas de informação e fez uma audição em que as questões relativas à obrigação de lealdade do servidor público prevaleceram sobre disputas partidárias ou opiniões divergentes sobre a questão das razões da guerra. O Parlamento Britânico sabe separar as instâncias e as situações em que se devem discutir uma e outra questão e que as eventuais razões, ou ausência delas, numa, não justificam o comportamento na outra.
Os parlamentares portugueses, ou parte significativa deles, não têm nem coragem política, nem autoridade moral para tomar uma atitude idêntica. Aliás, mesmo que alguns o quisessem fazer, e ao invés do acontecido no Parlamento Britânico, as querelas partidárias prevaleceriam sobre questões éticas e o debate afundar-se-ia na esterilidade sem futuro em que decorre a nossa vida política.
3 – A BBC, pode ter feito um mau jornalismo mas, em face da situação que se gerou, soube assumir as suas responsabilidades:
Em primeiro lugar, revelou a sua fonte.
Depois, admitindo que a sua actuação poderia não ter sido apropriada, sujeitou-se a um inquérito dirigido por um juiz.
Finalmente, em face dos resultados do inquérito, reconheceu imediatamente que eram falsas algumas alegações-chave avançadas pelo jornalista Andrew Gilligan sobre o dossier do armamento iraquiano que serviu para justificar a entrada dos britânicos na guerra.
E fez algo estarrecedor e incompreensível para os costumes lusos: pediu desculpas públicas.
Pior e mais enigmático para os puro sangue lusitanos, o Presidente da BBC demitiu-se!
Em Portugal, os meios de comunicação portugueses não fariam declarações públicas, como as que a BBC fez, revelando a sua fonte. Para os jornalistas portugueses, ou parte significativa deles, a sua liberdade informativa está acima das instituições e sobrepõe-se a quaisquer questões de ética, respeito pela dignidade e privacidade da pessoa humana, atropelos à lei, etc..
Por exemplo, no caso das Cartas anónimas anexas ao processo Casa Pia, estas foram tornadas públicas pelo JN, violando a deontologia profissional, comentadas, segundo o JN, por alegados especialistas de Direito Penal, o que era obviamente falso, visto que verdadeiros especialistas não diriam os disparates que o JN inseriu como tais e, em face dos protestos que choveram, entre eles do PR, o JN nem pediu desculpas, nem admitiu qualquer conduta menos própria.
Em Portugal, Gavyn Davies estaria esta noite a ser entrevistado em horário nobre, para todos os canais, explicando com convicção, firmeza e determinação que apenas tinha cumprido o seu dever indeclinável de informar o público e como esse era o valor mais elevado a que ele se sentia vinculado.
Ou Portugal ou o UK, um deles, tem muito, mas mesmo muito, que aprender (ou desaprender).
Em 27 de Janeiro de 1842 deu-se o pronunciamento militar no Porto que restaurou a Carta Constitucional de 1826 e levou ao poder Costa Cabral. O regime dos Cabrais (dois irmãos de António Bernardo da Costa Cabral, mais tarde Conde e Marquês de Tomar, eram igualmente importantes figuras políticas da época) durou até à Regeneração (1851), embora após a eclosão da revolta da Maria da Fonte (1846) e durante 3 anos, Costa Cabral tenha estado num semi-exílio, regressando posteriormente ao poder, com o apoio da rainha, sendo derrubado pelo movimento da regeneração chefiado por Saldanha.
O Cabralismo é normalmente associado à ala direita do liberalismo, enquanto o regime derrubado pelo pronunciamento militar do Porto, o Setembrismo, herdeiro do vintismo e que chegou ao poder em 1836, é normalmente associado à esquerda.
Aquela comparação só parcialmente é verdadeira. Portugal viveu, na sequência da instauração do liberalismo, uma vida política que estava longe de se considerar democrática. Não havia condições para isso. As eleições eram manipuladas quer pelos Administradores dos Concelhos, nomeados pelos sucessivos governos, quer por caciques locais. Frequentemente, eram eles que indicavam onde se devia votar.
Por isso, até à Regeneração, as alternancias governativas ocorreram sempre por via insurreicional, directa ou indirectamente, e nunca por via eleitoral
Além do que extensas regiões do país estavam infestadas de bandoleiros ou grupos armados agindo fora da legalidade, o que tornava ainda mais complicado o exercício da democracia. Aliás, muitos deles agiam consideravam-se a si próprios elementos armados apoiantes de determinadas facções políticas (Remexido – Miguelistas, Zé do Telhado – Setembristas, João Brandão – Cabralistas, etc.) quando eram, apenas e tão só, bandoleiros.
A noção de partido político com um programa ideológico e uma estrutura própria só aparece em Portugal nos fins do século XIX, embora com a Regeneração, a partir de 1851, comece a aparecer um embrião de partido.
Naquela época o que havia eram correntes de opinião que se digladiavam com ferocidade em alguns centros urbanos de maior expressão, mas perante as quais o país permanecia impassível, por incapacidade de compreensão dos programas políticos.
Sismondi escrevia, poucos meses antes da capitulação do absolutismo, que se houvesse eleições livres em Portugal, D. Miguel ganharia(*). Apenas uma pequena franja urbana apoiava as reformas sociais. Sismondi não pode, de forma alguma ser suspeito de simpatias pelo absolutismo. Logo, aquela sua afirmação corrobora o que escrevi acima sobre a capacidade da população portuguesa da época, maioritariamente analfabeta, isolada em aldeias de comunicações difíceis, em partilhar as disputas ideológicas furiosas que ocorriam entre as classes ilustradas de Lisboa, Porto e mais algumas, poucas, cidades de relativa importância.
Os liberais estavam divididos entre Cartistas, apoiantes de Carta Constitucional de 1826, Setembristas, herdeiros do vintismo e empenhados na defesa de garantias constitucionais mais latas que as reconhecidas na Carta de 1826 e na diminuição dos poderes ao trono (veto, dissoluçao das câmaras, etc.) e os Ordeiros, uma corrente de opinião intermédia, que oscilava entre as duas anteriores. Para além dos liberais, havia os absolutistas, mas que também não constituíam um conjunto homogéneo.
As eleições de 15 de Agosto de 1836 deram, como era costume, a vitória a quem estava no poder, isto é, aos moderados. Todavia no Porto havia ganho a facção chefiada por Passos Manuel, mais radical e anti-cartista. Com a chegada dos radicais eleitos pelo Porto, desencadeou-se em Lisboa uma revolta que forçou ao estabelecimento de um novo governo. Foi a Revolução de Setembro.
O Setembrismo tinha uma visão mais progressista da sociedade. Perguntar-se-ia todavia se, nas condições sociais existentes na época, o esvaziamento do poder do trono que propunha seria melhor garante da estabilidade social e do desenvolvimento do que o inverso. O que se passou a seguir mostra que provavelmente o Setembrismo, resultante de «em 1836 se estar em pleno domínio as ideias políticas filhas da metafísica e do romantismo que a França levara a todos os povos latinos», como escreveu José d’Arriaga, estava completamente fora da sintonia com o país real.
O primeiro ano do governo setembrista, cujo motor foi Passos Manuel , que nem um ano chegou a estar no governo, foi o período de ouro do Setembrismo. Passos Manuel teve uma extraordinária actividade legislativa no domínio da cultura e da instrução pública. Foi a grande herança setembrista.
Em Março de 1838 foi a morte da Revolução de Setembro, a partir daí esteve moribunda até 1842. Durante esses anos andou como navio sem governo, nem piloto pelo meio das tempestades. Sá da Bandeira não era visceralmente um democrata; serviu a Revolução de Setembro contra as suas convicções políticas, visto que era favorável a um maior poder do trono. Em Março houve a revolta do Arsenal, dos setembristas radicais, entre os quais estava Costa Cabral (e José Estevão). Sá da Bandeira, então chefe do Governo, pactuou com a revolta e mudou o governo num sentido mais radical que caiu em Abril de 1839. O novo governo saído dessa remodelação já era cartista, embora ainda estivesse em vigor a constituição setembrista. Era presidido pelo Conde do Bonfim, próximo dos cartistas e tinha como Ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca, notório apoiante da Carta.
Aliás, as discussões políticas decorriam mais de quezílias pessoais e rivalidades políticas que de confrontos ideologicamente consistentes. Eram polémicas estéreis e incompreensíveis para a quase totalidade da população. Por exemplo, Costa Cabral era inicialmente um Setembrista radical, ligado aos clubes maçónicos e então próximo de José Estevão. Posteriormente foi evoluindo no sentido de apoio à Carta de 1826.
No meio de todo este mar encapelado, uma profunda crise social: carestia de vida, atraso ou falta de pagamento dos vencimentos aos funcionários públicos, das pensões etc., em contraste com os elevados rendimentos dos titulares de altos cargos da administração.
Neste entendimento, o pronunciamento militar no Porto que restaurou a Carta Constitucional de 1826 e levou ao poder Costa Cabral foi o corolário lógico. O governo então existente, e em funções há cerca de um ano, era presidido por Joaquim António de Aguiar, destacado político cartista, e tinha Costa Cabral como Ministro da Justiça.
Muito se tem dito sobre o Cabralismo. Não queria entrar agora em pormenores sobre esta matéria, guardando para uma oportunidade futura, se ocorrer, quando falar da Regeneração.
O Cabralismo constituiu uma etapa necessária no liberalismo português. Costa Cabral consolidou o Estado liberal, assente numa forte centralização e complexa burocracia. Escudado no exército, na maçonaria (Costa Cabral foi Grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, de 1841 a 1846 e de 1847 a 1849) e em clientelas que beneficiavam da política económica e financeira, baseada nas obras públicas e fomento.
Todavia, o avanço das relações capitalistas nos campos, a supressão dos direitos comunitários, a pesada carga tributária, mal distribuída, os custos dos enterros e a proibição de serem feitos nas Igrejas, o descontentamento do clero pela supressão dos dízimos levou à revolta da Maria da Fonte, a Patuleia, aglutinação heteróclita de setembristas, miguelistas (General Póvoas e outros) e cartistas anti-Costa Cabral.
Esta revolta acabou com a intervenção estrangeira, pois a Europa era contrária a um regime de instabilidade e estava receosa do que porventura sairia de uma coligação absolutamente contra-natura. A Convenção de Gramido acabou com a guerra civil e houve uma amnistia geral.
Aqui, D. Maria II cometeu mais um dos muitos erros estratégicos do seu reinado. D. Maria II havia confiado a Saldanha a organização do gabinete ministerial, formado a 18 de Dezembro de 1848. Esse governo duraria apenas alguns meses, até Cabral, já investido Conde de Tomar, assumir a função, por decreto régio, em registo claramente ditatorial (29 de Junho de 1849). Saldanha foi demitido e sucessivamente humilhado.
Saldanha era o político e militar português mais carismático. Imediatamente se soube rodear da fina flor da inteligência portuguesa: Herculano, Rebelo da Silva, José Estevão, etc., conspirando contra o Cabralismo. Acima de tudo gente que tinha aprendido com os erros cometidos com o vintismo e com o setembrismo e que se tinha congregado para dar ao país uma solução mais coerente, moderna e sustentável, política e financeiramente, do que as questíunculas em que até então o país se tinha digladiado.
Foi com a Regeneração que o país entrou na modernidade. Mas o Cabralismo foi uma boa escola: no que teve de bom, mas também, e muito, no que teve de mau. Os erros são uma boa escola para quem sabe aprender com as experiências.
(*)Simonde de Sismondi – Étude sur les Constitutions des Peuples Libres Bruxelas 1836
O país acordou ontem alarmado. O Ministério da Justiça tinha, na douta opinião do eminente fiscalista Saldanha Sanches, que tem aliás uma pendência em tribunal com a ministra, “cometido um crime fiscal, pura e simplesmente”. E isto porque, como escreveria hoje, algo precipitadamente, F Madrinha, “o ministério da Justiça guardou no cofre as contribuições para a Segurança Social de meio milhar de funcionários, os quais viram o seu dinheiro descontado ao longo do ano, mas ficaram impedidos de receber os benefícios a que tinham direito”.
Imediatamente o país foi alertada para o facto de que a lei prevê pena de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias nos casos em que as entidades empregadoras, efectuados os descontos aos trabalhadores, não entreguem total ou parcialmente as contribuições devidas à Segurança Social. Todos os noticiários falavam em crime fiscal. O julgamento estava feito. Faltava a execução sumária.
Ontem glosei aqui este tema como julgo que ele merecia. E glosei-o em duas vertentes:
Uma, que era a que deveria preocupar mais as pessoas, a incapacidade da burocracia do Estado de resolver em tempo oportuno uma situação em que, tudo o indicava, os ministros envolvidos estariam de acordo. Culpa da burocracia do Estado e da pouca imaginação e/ou clarividência dos governantes envolvidos. Por isso, durante um ano os funcionários da justiça em causa estiveram em situação irregular.
Outra, metendo a ridículo a teoria da alegada burla do Estado cometida relativamente ao próprio Estado.
Porque era evidente desde o princípio que o único problema, e não era pequeno, era o da estúpida burocracia e do pouco empenho ou clarividência governativa em encontrar uma solução. Os restantes decorriam deste e não constituiam problema, pois a sua solução seria automática quando aquele problema fosse resolvido.
Mas não. Os meios de comunicação e os kamikazes da net estão ansiosos por sangue. Nem pensam nem ponderam as questões. Há crime, dizem eles!
Nem pensaram que se tratava da CGA e não da Segurança Social. Nem puseram a si próprios a questão de saber se, estando os trabalhadores em situação irregular, sem quadro definido, seria possível a entrega dos montantes retidos e sob que forma. Nada! Quando os vampiros estão sequiosos de sangue, não pensam. Cravam os dentes no que aparece, mesmo se depois se verificar que se trata de um líquido muito menos suculento, azedo e indigesto. É que os vampiros da natureza agem movidos pelo instinto; os vampiros a que me refiro, agem movidos pelo cretinismo político.
Porque:
Não houve crime fiscal pois o Estado não se apropriou ilicitamente de algo de outrem, porque não houve transferência do património do Estado para outrem ou de outrem para o Estado;
O vínculo contratual de um trabalhador a uma empresa só tem uma moldura contributiva (e para a Segurança Social) enquanto que no Estado pode haver enquadramentos diversos com molduras contributivas diferenciadas, o que faz com que não se possam comparar as situações;
O valor retido estava provisoriamente à disposição da DGT, não saiu do Estado nem foi usado para outros fins;
Os funcionários abrangidos «não» perderam durante esse período regalias sociais a que tinham direito; ficaram apenas durante algum tempo sem receber abono de família e subsídios equiparados que, ao que foi dito, irão receber agora, que a situação está regularizada, retroactivamente;
E o que é mais espantoso é que não se ouviu nenhum dos funcionários abrangidos queixar-se de nenhum destes problemas referidos acima. Queixavam-se, sim, e com toda a razão, da situação de indefinição contratual em que se encontravam.
Todos os hediondos crimes assinalados não passaram de uma tempestade que só ocorreu nos crânios de alguns políticos, meios de comunicação social e kamikazes da net.
O Estado (Ministério da Justiça) queria manter ao serviço 582 funcionários eventuais, cujos contratos terminavam a 31 de Dezembro de 2002. Para isso, elaborou contratos a termo certo e despachou nesse sentido.
O Estado (Ministério das Finanças) não despachou aquele despacho do Estado (Ministério da Justiça).
O Estado (Ministério da Justiça) manteve esses funcionários, ignorando a falta de vontade manifestada pelo Estado (Ministério das Finanças).
Como o Estado (Ministério da Justiça) não obteve despacho do Estado (Ministério das Finanças) sobre aquela matéria que já tinha despachado, não entregou os descontos ao Estado (Segurança Social), sobre os vencimentos de funcionários que, obviamente, não tinham existência para o Estado (Ministério das Finanças).
Ao fazê-lo o Estado (Ministério da Justiça) burlou o Estado (Segurança Social) em 670 mil euros e abusou da confiança do Estado (Ministério das Finanças), mantendo aqueles funcionários, inexistentes para o Estado (Ministério das Finanças), ao serviço.
Para Saldanha Sanches, douto especialista em Direito Fiscal "foi cometido um crime, pura e simplesmente", opinião partilhada por técnicos de várias consultoras ouvidas pelo "Jornal de Negócios".
A lei prevê pena de prisão de um a cinco anos para os casos em que as entidades empregadoras, efectuados os descontos aos trabalhadores, não entreguem total ou parcialmente as contribuições devidas à Segurança Social.
Portanto, o Estado (Ministério da Justiça) está na iminência de ser preso por aquela infracção. Resta saber qual a moldura penal para o crime de abuso de confiança no que concerne ao abuso de manter funcionários ao serviço, ignorando o não-despacho do Estado (Ministério das Finanças).
Como o Estado (Ministério da Justiça) contém em si (tutela) os estabelecimentos prisionais, irá, após pedir a comparência da comunicação social, dar voz de prisão a si próprio, conduzir-se aos estabelecimentos prisionais mais próximos, abrir as grades das prisões e encerrar-se lá dentro.
Contudo, sabe-se que o Estado (Ministério das Finanças) resolveu recentemente o assunto daquele despacho do Estado (Ministério da Justiça), despachando favoravelmente. Se despachou agora favoravelmente e antes não, e tendo em conta que essa situação irregular esteve na base da burla em questão, o Estado (Ministério das Finanças) é conivente na burla.
Por sua vez, os 582 funcionários eventuais só na véspera da assinatura do despacho favorável denunciaram a situação. Logo, durante um ano foram coniventes com a criminosa burla.
Portanto, quando o Estado (Ministério da Justiça) se encerrar nas masmorras, deverá levar consigo o Estado (Ministério das Finanças) e os 582 funcionários eventuais.
Resta saber o que fará às chaves.
Se estivéssemos na década de 30, esta curiosa história daria um bom argumento para um filme dos Irmãos Marx.
Ou de como Semiramis resolveu pedir, novamente, um parecer jurídico
Se o mediático processo Casa Pia já teve algum efeito positivo na relação dos cidadãos com o nosso sistema de justiça, esse efeito será, por certo, um maior conhecimento de alguns dos ‘meandros’ do processo penal português. A pressuposição deste maior esclarecimento poupa-me algum trabalho na exposição do meu raciocínio.
Na aplicação de uma medida de coacção, o julgador atravessa uma série de etapas lógicas, as quais não são mais do que os pressupostos ou fundamentos legais da decisão.
Assim, antes do mais, o juiz de instrução tem que julgar indiciariamente provados os factos que integram o crime - para algumas medidas de coacção, tem mesmo que julgar os factos “fortemente” indiciados.
Como a mediada de coacção não visa punir o arguido, mas sim acautelar um dos três afamados perigos - fuga, continuação da actividade criminosa ou perturbação do inquérito ou da tranquilidade pública -, o julgador tem que apurar se algum destes existe.
Constatada a existência de um perigo, o juiz deve procurar entre as medidas de coacção aquela que, evitando a concretização do perigo, se revelar como menos gravosa para o arguido.
Finalmente, deve o juiz verificar se a medida de coacção pode ser aplicada, atenta a natureza ou gravidade do caso concreto. Por exemplo, não se pode aplicar uma prisão preventiva a um crime punível com menos de 3 anos de prisão. Neste caso, mesmo que haja perigo de fuga, e mesmo que a prisão preventiva seja a única medida adequada a evitar tal fuga, não é admissível prender o arguido. Se, neste caso, de facto, a prisão preventiva for a única medida adequada a evitar a fuga, nenhuma medida, para além do termo de identidade e residência, será aplicada.
Consideremos, agora, um caso concreto.
Temos alguém fortemente indiciado da prática de um crime.
Este crime, atenta a sua moldura penal, admite a medida de coacção de prisão preventiva.
Existe o perigo desta pessoa perturbar o decurso do inquérito, pressionando testemunhas e, sobretudo, ocultando provas. Existe, ainda, o perigo de esta pessoa praticar ilegalidades idênticas àqueles relativamente às quais existem fortes indícios de ser sua autora.
O juiz vê duas medidas de coacção adequadas a evitar este crime. Tem que decretar uma das duas.
Uma delas é a medida mais gravosa - a prisão preventiva. Esta medida afastará a pessoa dos locais e das pessoas que lhe permitiriam concretizar os referidos perigos.
A outra medida tem este mesmo efeito prático, mas permite que o arguido permaneça em liberdade.
O juiz aplica a medida menos grave, permitindo que o perigo seja debelado e que o arguido permaneça em liberdade.
O Tribunal Constitucional entende que todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas que ao arguido dos autos não pode ser aplicada a medida escolhida pelo juiz.
A medida do Tribunal Constitucional não viola o princípio constitucional da igualdade por privilegiar injustamente este arguido, mas sim por lhe retirar o ‘direito’ a ser-lhe aplicada uma medida menos gravosa do que as medidas alternativas.
Em cumprimento da decisão do Tribunal Constitucional, o juiz retira a medida inicialmente escolhida do elenco daquelas que pode aplicar ao arguido em causa.
O elenco das medidas adequadas fica reduzido a uma: a prisão preventiva.
O juiz, em cumprimento do decidido pelo Tribunal Constitucional e por força da lei, aplica a prisão preventiva.
Por força da decisão do Tribunal Constitucional, um arguido que não ‘precisava’ de ser preventivamente preso terá que aguardar nesta situação os ulteriores termos do processo.
Autor: Pseudo Éter
Na sequência de um artigo anterior e de algumas questões que se levantaram, resolvi retomar o tema da Revolução Francesa de 1789-94 do ponto de vista da evolução da sua historiografia, isto é, como evoluiram as análises históricas e mesmo a descrição factual consoante as épocas em que foram escritas e os objectivos dos autores.
Durante a revolução produziu-se um acervo documental extremamente volumoso: jornais, manifestos, autos parlamentares e judiciais, memórias, etc.. Toda essa documentação reflecte, obviamente, o posicionamento político de quem a produziu e os conflitos que então se dirimiam e é, por natureza, contraditória entre si.
Seguiu-se uma época de refluxo revolucionário. As barbaridades cometidas durante o Terror, a forma como as Assembleias sucessivas e a Convenção ficaram reféns do terrorismo revolucionário da facção dominante nas ruas em Paris, criaram na opinião pública um horror à liberdade e às formas democráticas de governo que tornou complicada a retoma da luta pela democracia. Os conservadores agitavam permanentemente o espectro dos acontecimentos de 1792-4 para anatemizarem a democracia.
Na luta contra a Restauração, que culminou na Revolução de 1830 e no fim definitivo dos Bourbons como poder monárquico, começaram a aparecer obras históricas onde se tentava valorizar alguns dos heróis revolucionários, desvalorizando, justificando ou atribuindo a outros as acções mais reprováveis. Algumas das teorias atribuiam ao «ouro de Pitt», ou à conspiração dos emigrados, um pretenso suborno de elementos irresponsáveis que, alegadamente, estariam na base dos massacres e das barbaridades cometidas.
Actualmente, depois da experiência de inúmeras revoluções vividas em diversos paíes e situações, é possível ter uma visão mais distanciada dos acontecimentos. Em todas as revoluções houve sempre um período em que o poder caíu nas mãos dos extremistas e se cometeram massacres e barbaridades, ou se ameaçou com isso, como sucedeu no PREC em Portugal. Faz parte da lógica dos acontecimentos, e faz parte da aprendizagem cívica o saber opor-se a essa lógica.
Mas quem lutava pela democracia na primeira metade do século XIX ainda não tinha a experiência histórica dos mecanismos daquele processo e tentou, em maior ou menor grau, encontrar explicações enviesadas, conspirações absurdas ou exageradas, para justificar tais atropelos à liberdade feitos em nome da liberdade.
Portanto se no século XIX as teorias sobre a “conspiração do estrangeiro” e a necessidade da defesa da revolução como branqueamento das barbaridades cometidas podiam colher e encontrar justificação, embora ingénua, pelas razões que aduzi acima, essa teoria exposta nos dias de hoje, e ela continua a aparecer sob diversas formas, é apenas o reflexo da tentação totalitária que permanece endémica na nossa sociedade.
Passemos então à notícia bibliográfica sobre a Revolução Francesa, sublinhando que ela se refere apenas a autores franceses, que viveram os acontecimentos, ou que embora não os tenham vivido, foram contemporâneos de quem os viveu e tiveram, portanto, uma vivência indirecta. Notar que as datas e locais referidos no texto são das edições a que tenho acesso. Não serão necessariamente primeiras edições.
No que se refere a obras de historiadores situados temporalmente próximos dos acontecimentos, e por ordem da importância que lhes atribuo:
Thiers - Histoire de la Révolution Française Bruxelas 1834- 6 vols. É uma história muito bem documentada. Foi escrita no fim da restauração e já reflecte a ascensão das ideias liberais após o período de ocaso que se seguiu ao fim da revolução. Thiers tinha cerca de 30 anos quando iniciou a sua redacção. Thiers teria provavelmente escrito a sua obra de forma diferente após a experiência da insurreição da comuna de Paris em 1871, contra a qual ele foi o principal motor de resistência e liquidação. Todavia, permanece talvez a história mais actual, mais lúcida e neutra das histórias produzidas no século XIX sobre esta matéria.
Michelet Histoire de la Révolution Française Paris 1877-9 vols. A obra de Michelet reflecte as suas convicções políticas e o seu anti-clericalismo. Está literariamente muito bem escrita. É uma obra do seu período da maturidade (Michelet era aproximadamente da mesma idade de Thiers e do inglês Carlyle, também autor de uma história da revolução francesa). Enquanto a obra de Thiers é mais factual, Michelet preocupa-se mais com a análise sociológica. É uma obra imprescindível, mas que é indispensável ser cotejada com obras mais factuais. É erróneo estudar história em obras com uma perspectiva fundamentalmente de explicação social. Sem o suporte visível dos factos, a análise social não pode nem ser validada, nem correctamente apreendida. Isto não é uma crítica a quem escreve, nomeadamente a Michelet, mas a quem lê e julga que fica com a informação suficiente. Aliás, a sua belíssima História de França (17 vols, Paris 1861), a sua obra prima, deve ser lida com os mesmos cuidados.
No fim da Histoire de la Révolution Française, no último volume, no último parágrafo, Michelet conta uma história muito sugestiva de um conhecido seu, que tinha 10 anos na época da queda de Robespierre e que foi levado pelos pais ao teatro e assistia pela primeira vez ao brilho das carruagens e dos vestuários. À saída, solícitos, havia pessoas que perguntavam aos espectadores que saíam: «Faut-il une voiture, mon maître?». O miúdo não compreendia. Até então dizia-se citoyen. Os pais tiveram que lhe explicar que tinha havido uma grande mudança com a queda de Robespierre. A revolução acabara.
Buchez e Roux - Histoire Parlamentaire de la Révolution Française ou Journal des Assemblées Nationales de Juin 1789 jusqu'en 1815 Paris-1834 - 40 vols (os acontecimentos de 8-10 Thermidor estão descritos nos vols 33 e 34 e o 18 de Brumário no vol 39). Portanto, os primeiros 34 volumes abarcam os anos 1789-1794! Por aqui se pode fazer ideia do acervo documental que esta obra representa. É uma obra notável pela documentação que tem – todos os debates das sucessivas assembleias, autos dos principais processos do Tribunal Revolucionário, extractos de polémicas públicas, manifestos, etc. Há todavia que assinalar que os autores são favoráveis à facção de Robespierre. Isso nota-se nas introduções e notas explicativas que os autores vão apresentando ao longo da compilação e num “certo enviesamento” desta. É uma obra típica do espírito reinante na época da revolução de 1830. Mas a maioria da documentação está lá e é uma obra indispensável de consulta.
Ternaux, Mortimer_Histoire de la Terreur 1792-1794 Paris 1868 - 8 vols. Como o título indica, uma análise da revolução na sua vertente repressiva. Muito bem documentada.
Barante - Histoire de la Convention Nationale Paris 1851 - 6 vols. Barante era um conservador e embora seja um historiador de reconhecido rigor, a sua história reflecte o seu pensamento político.
Lamartine - Histoire des Girondins Paris 1881 - 6 vols (há uma ediçao portuguesa de 1854). Lamartine, pelas suas convicções políticas, era um fervoroso admirador dos Girondinos. A sua obra, eminentemente literária, é um belo panegírico dos Girondinos.
Duas obras eventualmente menores, mas com algum interesse:
Ferrand et Lamarque_Histoire de la Révolution française, du Consulat, de l'Empire, de la Restauration et de la Révolution de Juillet Paris 1845 - 5 vols (os 3 primeiros volumes cobrem o período até ao Thermidor)
Tissot_Histoire complète de la Révolution française Paris 1834 - 5 Vols
Débats de la Convention Nationale, ou Analyse Complète des Scéances Paris 1828 5 vols (Compilação dos debates das sessões da Convenção. Uma obra evidentemente neutra neutra)
Quanto a memórias ou historiografia de gente que viveu e participou nos acontecimentos:
Bertrand de Moleville_Histoire de la Révolution de France Paris 1801
1789-1791 (5 vols) 1791-1793 (5 vols) 1793-1799 (4 vols) - 14 volumes no total.
Esta obra é absolutamente imprescindível pois apresenta o “outro lado”. Moleville foi ministro de Luís XVI durante o período revolucionário e, aquando dos acontecimentos de Agosto de 1792, escapou milagrosamente à perseguição policial que lhe foi movida, escondido várias semanas numa situação rocambolesca, numa casa em Paris, até conseguir fugir para Inglaterra. Foi o homem então mais procurado de França e os jornais de Paris deram-no várias vezes como capturado ou morto. Se tivesse sido apanhado teria tido a sorte dos restantes ministros – a execução.
Ao ler Moleville é ler a história da Revolução Francesa, bem documentada, mas contada “de pernas para o ar” em comparação com as versões que costumamos ler. Para mim constituiu uma leitura fascinante, exactamente por isso mesmo ... por estar a ver o “outro lado do espelho”. É sempre útil ler “também” a “outra” versão, nomeadamente com o acervo documental que ela contém.
Durand de Maillane_Histoire de la Convention nationale Paris 1825. Estas memórias têm muito interesse porque Durand de Maillane fazia parte do chamado Marais, grupo numericamente dominante na Convenção, mas que vivia sob o terror dos líderes revolucionários de Paris. Durand de Maillane foi um dos interlocutores dos deputados do Marais com a facção da Montanha chefiada por Tallien / Collot d’Herbois / Billaud-Varenne na resistência contra Robespierre e St.-Just nas sessões de 8 e 9 Thermidor. As memórias de Durand de Maillane permitem compreender as razões e os argumentos que para si próprios invocavam, para se justificarem, os deputados do Marais, menos “progressistas” que, por exemplo, os Girondinos, mas que foram votando, nos momentos decisivos, sempre do lado dos extremistas, até às sessões de 8 e 9 Thermidor.
Frequentemente pensa-se que a força da Montanha correspondia à sua implantação eleitoral. Tal não é verdade. A força da Montanha resultava das instituições legislativas viverem reféns da Comuna de Paris e das secções mais extremistas de Paris. Ler Durand de Maillane e outros autores similares permite compreender os mecanismos que levaram a muitas das decisões da Assembleia Legislativa, Convenção, etc..
Mémoires de Meillan, député à la Convention nationale Paris 1823.
Apesar de deputado, Meillan teve que procurar na fuga a sua sobrevivência. Documento com interesse, mas sem o fôlego da obra de Durand de Maillane, embora escrito na mesma linha.
Billaud-Varenne - Mémoires inédits et correspondance, accompagnés de notices biographiques sur Billaud-Varenne et Collot-d'Herbois Paris 1893 Billaud-Varenne e Collot-d'Herbois foram dois membros de topo da Montanha, implicados em muitos morticínios. Collot-d'Herbois esteve implicado nas chacinas de Lyon. Todavia, juntamente com Tallien lideraram a resistência contra Robespierre que levou à queda deste. Os motivos dos 3 não seriam os mais nobres (Tallien estava principalmente interessado em salvar a sua apaixonada das garras do Tribunal Revolucionário, onde a esperava a certeza da guilhotina) mas o resultado salvou a França da continuação da ditadura sangrenta da Montanha e das suas consequências imprevisíveis.
Todavia, quer Collot-d'Herbois, quer Billaud-Varenne foram posteriormente, em face da pressão da opinião pública, confrontados com as carnificinas que tinham organizado ou apoiado e condenados à deportação para a Guiana. Foi pela sua participação no Thermidor que escaparam à sorte de Carrier, o carrasco de Nantes, que foi executado.
Collot-d'Herbois resistiu poucos anos ao clima da Guiana, mas Billaud-Varenne sobreviveu à queda de Napoleão e ao regresso dos Bourbons, tendo então fugido da Guiana e refugiado no Haiti, onde morreu em 1819. Manteve um grande ressentimento contra a forma como os acontecimentos evoluiram, tendo afirmado pouco tempo antes de morrer «Mes ossements du moins reposeront sur une terre qui veut la liberté; mais j'entends la voix de la postérité qui m'accuse d'avoir trop ménagé le sang des tyrans d'Europe».
Estas declarações de um dos maiores carrascos do período revolucionário dão que pensar. Billaud-Varenne profetizava já o novo refluxo revolucionário, mas esquecia-se que quanto mais distantes os acontecimentos ficam, maior lucidez há entre os historiadores, até porque precisam menos de maquilhar esses acontecimentos para justificar opções políticas. Eles já estão tão distantes e as sociedades evoluiram tanto, que essa justificação deixou de ter importância. Billaud-Varenne permanece e permanecerá, portanto, o que de facto foi: um carrasco.
Vilate, Joachim_Causes secrètes de la révolution du 9 au 10 Thermidor
Vilate, Joachim_Continuation des causes secrètes de la révolution du 9 au 10 Thermidor
Vilate, Joachim_Les mystères de la mère de Dieu dévoilés
Estes 3 volumes foram escritos na cadeia após o 10 Thermidor. São edições de 1794. Julgo que foram reeditadas em França no bicentenário do Thermidor. Vilate era membro do júri do Tribunal Revolucionário e foi preso juntamente com Fouquier-Tinville e incluído no mesmo processo. Vilate tentava justificar-se perante a opinião pública e influenciar “de fora” o processo. Não o conseguiu. Todavia são obras importantes porque feitas por alguém de dentro dos mecanismos da carnificina organizada pelo Tribunal Revolucionário. Obviamente contêm muitas falsidades, tendo em vista os objectivos do autor, por isso devem ser cotejadas com outras obras sobre o assunto.
Uma situação interessante e que se repetiu diversas vezes na história foi o facto dos acusados no processo sobre as acções do Tribunal Revolucionário terem alegado que “apenas cumpriam ordens”, o que dá uma triste ideia da forma como era então encarada a independência do poder judicial.
Como contrapartida, o branqueamento posterior da figura de Robespierre passaria por afirmar que ele não saberia da maioria das barbaridades cometidas pelo Tribunal Revolucionário, o que é falso, em face da documentação existente, e que a “conspiração” de Billaud-Varenne, Tallien e Collot-d'Herbois no 8 Thermidor foi destinada a eliminar Robespierre que quereria pô-los a julgamento pelos crimes cometidos. Esta explicação é completamente perversa. Após a liquidação dos girondinos, Robespierre foi procedendo à liquidação dos seus adversários mais radicais (Hébert e os exagerados) e menos radicais (Danton e os indulgentes) e provavelmente continuaria, dentro do mesmo espírito, de forma a obter uma liderança “pura”, à semelhança do que aconteceu, posteriormente na URSS, com as purgas estalinistas.
É todavia provável que Billaud-Varenne, Tallien e Collot-d'Herbois estivessem na calha para serem as próximas vítimas. Certo era Thérésa Cabarrus, a futura Mme Tallien e a «Nossa Senhora do Thermidor», estar indicada para comparecer a 9 ou 10 no Tribunal Revolucionário e ser executada no dia seguinte, como era norma naquela justiça “expedita”. Ter-se-ia perdido a figura de proa da sociedade francesa e dos salões parisienses do post-Thermidor, a organizadora dos “Bailes das Vítimas” onde cada conviva ia mascarado de uma vítima do Tribunal Revolucionário.
Dulaure_Causes secrètes des excès de la Révolution Paris 1815 – Dulaure tenta provar que foram os Bourbons emigrados que traíram Luís XVI e instigaram o regime de terror. Aliás uma das teses dos defensores da república, na época, era a de que tinha sido o ouro de Pitt que subvencionava os extremistas para desacreditar a revolução. Naquela época, sem a experiência histórica de outras revoluções, custava a perceber como arautos da liberdade podiam chegar a tamanha barbaridade. Ora revoluções posteriores mostraram que tal podia acontecer e que era o próprio processo que levava a tal, se não encontrasse uma força que o travasse e o fizesse encontrar o equilíbrio correspondente ao grau de consciência social existente.
Dulaure_Esquisses historiques de la Révolution française Paris 1823 - 6 vols
Prudhomme, Louis-Marie _Histoire Générale et Impartiale des erreurs et des crimes commis pendant la Révolution française Paris 1797 - 6 vols (Dictionnaire 3 vols, Assemblée législative 1 vol, Convention nationale 2 vols). Numa época de refluxo revolucionário, uma obra justificativa de alguém “de dentro”.
Mémoires de R. Levasseur de la Sarthe Paris 1829 - 4 vols. Levasseur de la Sarthe foi um partidário da Montanha, politicamente próximo de Robespierre, sendo após o 10 Thermidor um dos principais líderes da Montanha enfranquecida. Nunca renegou as suas opiniões e manteve-se convicto de que o que havia sido feito durante o Terror, tinha sido necessário. As suas memórias foram publicadas no período final da Restauração, numa época em que o branqueamento do Terror era uma das componentes da luta contra a monarquia. As ideias da liberdade e da democracia haviam ficado inquinadas pelas barbaridades cometidas. A luta pela liberdade teve passar pelo branqueamento dessas barbaridades, quer menorizando-as e considerando-as essenciais face à conspiração monarquica, quer atirando, total ou parcialmente, a responsabilidade para outros.
Thibaudeau_Mémoires sur la Convention et le Directoire Paris 1824 - 2 vols. Thibaudeau situava-se inicialmente próximo da Montanha, mas era contrário a Robespierre. Como a sua intervenção política foi mais visível após a queda de Robespierre, as suas memórias referem-se mais ao período post-Robespierre, embora tenha uma descrição muito pormenorizada dos acontecimentos do Thermidor
Georges Duval_Souvenirs de la Terreur de 1788 à 1793 Paris 1841 4 vols
Georges Duval_Souvenirs thermidoriens Paris 1844 2 vols (é a continuação da obra anterior)
São obras muito críticas sobre as acções dos revolucionários.
Des Essarts_Précis Historique de la vie, des crimes et du supplice de Robespierre Paris 1797
Mémoires de Madame Roland (Marie-Jeanne Phlipon) Écrits durant sa Captivité Paris 1864 2vols. Mme Roland foi guilhotinada no âmbito do processo dos Girondinos. O seu marido, ministro girondino, que havia conseguido fugir, suicidou-se ao saber da sua execução.
Mémoires de Barras Paris 1894 4 vols (o 1º volume é sobre a revolução e o 2º e 3º são sobre o Directório)
Mémoires de Lucien Bonaparte Paris 1836 (só foi publicado o 1º vol – Revolução e Directório).
Necker_Réflexions présentées à la Nation Française sur le procès intenté à Louis XVI Paris 1792
Necker, Jacques_De la Révolution françoise Paris 1797
Necker foi ministro de Luís XVI antes e depois da convocação dos Estados Gerais. Homem muito competente, foi vítima das intrigas da corte e da tibieza de Luís XVI. Sucessivamente chamado, em face do desastre iminente, e despedido depois quando parecia que a borrasca se afastava, a vida política de Necker foi o símbolo da desorientação da monarquia francesa desta época.
Staël-Holstein, Germaine de_Réflexions sur le procès de la Reine par une femme Août 1793
Staël-Holstein,Germaine_Considérations sur les principaux événements de la Révolution françoise 3 vols sem data (presumivelmente 1815 ou 1816). Mme de Staël, filha de Necker, foi uma mulher notável, uma observadora atenta e objectiva do seu tempo. Escreveu muitos outros opúsculos durante o período revolucionário e napoleónico.
Igualmente Olympe de Gouges escreveu dezenas de opúsculos durante o período revolucionário, alguns sobre os direitos das mulheres, até ser guilhotinada.
Montgaillard_Histoire de France depuis la fin du règne de Louis XVI Paris 1827 3 vols (vai desde 1791 a 93)
Documentos impressos nas semanas que se seguiram ao Thermidor:
Papiers inédits trouvés chez Robespierre, Saint-Just, Payan
Papiers inédits trouvés chez Robespierre, Saint-Just, Payan et supprimés par Courtois - 3 vols.
Esta compilação foi editada pela Convenção e visava carrear alegadas provas da Conspiração dos Triumviros Robespierre, Couthon e Saint-Just que seria desencadeada na sessão do 8 Thermidor. O primeiro inventário foi julgado incompleto e foi feito um segundo mais extenso.
Faits recueillis aux derniers instants de Robespierre et de sa faction
Vie secrette, politique et curieuse de M. J. Maximilien Robespierre
Roux, Louis-Félix_Relation de l'événement des 8, 9 et 10 thermidor sur la conspiration des Triumvirs Robespierre, Couthon et St.-Just
J.-J. Dussault - Portrait de Robespierre avec la Réception de Fouquier-Tainville aux Enfers par Danton et Camille-Desmoulins
Jornais:
Hébert_Je suis le véritable Père Duchesne foutre 1790-94 - 6 volumes. O Père Duchesne era uma espécie de blog da época, extremamente ordinário na linguagem (como pode observar-se pelo título), publicado num in-folio dobrado formando 8 páginas. Vivia da exploração do boato e da calúnia e, escrito numa linguagem muito popular e “vernacular”, era muito popular entre a populaça parisiense. A facção Robespierre achou que Hébert tinha atingido o limite do insuportável e que a sua continuidade poderia ser prejudicial politicamente. Hébert e os exagerados foram guilhotinados.
Brissot_Le patriote francois 1789/1793 - 6 volumes. Brissot era um dos principais dirigentes dos Girondinos, que foram os mais brilhantes oradores e publicistas da época, embora tivessem demonstrado pouca sagacidade política ao longo de todo o processo revolucionário, o que facilitou a sua liquidação física pela Montanha. O jornal de Brissot é um importante acervo documental para compeender esta época. Começou a publicar-se em 6 de Maio de 1789 e o último número saíu a 2 de Junho de 1793.
Journal de la Montagne 30 de Maio de 1793 /18 de Novembro de 1794 - 3 vols. Começou a publicar-se praticamente com o fim do jornal de Brissot e dos Girondinos e sobreviveu apenas 4 meses à queda de Robespierre.
Camille-Desmoulins_Le vieux Cordelier Paris 1793/94. Jornal com alguma influência nos meios revolucionários, iniciou a publicação em fins de 1793 com o intuito de tentar travar os excessos que estavam a ser cometidos. Camille-Desmoulins depois de ter sido um dos arautos da liquidação física dos “aristo” e dos girondinos, evoluiu no sentido de uma pacificação social. Embora inicialmente tivesse, ao que ele pensava, o apoio de Robespierre, rapidamente evoluiu para uma cisão e tornou-se crítico da política de Robespierre. Acabou quando Desmoulins foi guilhotinado, no processo de Danton e dos indulgentes. O último número, o sétimo, já foi póstumo.
Prudhomme, Louis-Marie _Révolutions de Paris 12-julho-1789 – 30-Abril-1791 7 vols
Não conheço nenhuma edição compilada do L’Ami du Peuple de Marat que será igualmente um importante documento de referência. Marat foi uma figura muito controversa e uma análise das suas acções já não cabe aqui, face à extensão que esta “notícia” tomou.
A sondagem realizada pela Universidade Católica mostra claramente os limites da influência dos meios de comunicação e o limiar a partir do qual a comunicação deixa de ser eficaz e se vira contra o emissor.
De acordo com a referida sondagem 61 por cento da população considera que os mídia que violarem o segredo de justiça devem ser punidos. Esta percentagem sobe para 76 por cento para a faixa etária entre os 18 e os 24 anos e 75 por cento entre os 25 e os 34 anos. As pessoas mais velhas, provavelmente valorizando mais a sua experiência dos tempos da ditadura e da censura, são bastante menos penalizadores para os mídia.
Quanto à forma como os mídia trataram o caso Casa Pia, e interrogados sobre uma apreciação geral sobre o papel dos mídia, 55 por cento responderam que este é mais positivo que negativo, enquanto 30 por cento responderam o oposto.
Ora o caso Casa Pia foi um das paradigmas da importância dos mídia no trazer para a opinião pública factos relacionados com o caso e em pressionar a justiça para não deixar cair aqueles actos no olvido. É sintomática a forma como a opinião pública encara, actualmente, o papel da comunicação social nesse caso. Se esta sondagem tivesse sido feita há um ano, ou mesmo há menos tempo, provavelmente os resultados seriam muito diversos. A opinião pública tem reagido mal aos excessos recentes dos mídia.
Os mídia portugueses sofrem da maleita geral da sociedade portuguesa: falta de profissionalismo e tendência para uma grande ligeireza de actuação, pouco respeitadora da deontologia profissional. Aliás, quando se é amador, não há, obviamente, deontologia profissional, quanto muito haverá “deontologia amadora”. E é isso que temos.
Se analisarmos a actuação de Bob Woodward, Carl Bernstein e das chefias de redacção do Washington Post durante o Caso Watergate, superiormente descrita no filme «Os Homens do Presidente» (All the President’s Men), vemos um grande rigor de actuação, um enorme cuidado com as fundamentações das notícias e com a forma como estas eram veiculadas e o preterir do sensacionalismo e do imediatismo perante o rigor e a ética.
Não me parece que este rigor e ética existam, na mesma medida, nos meios de comunicação portugueses. E isso tem os seus custos. Alguns benefícios a curto prazo, nas audiências, mas custos muito mais importantes, a médio e longo prazo, na sua credibilidade. E seria bom que os nossos mídia compreendessem isso
Na abertura do Ano Judicial os responsáveis pela justiça portuguesa foram unânimes em avisarem: a justiça precisa de mais dinheiro; sem mais dinheiro nós não teremos uma justiça a funcionar em condições.
Os portugueses andam há séculos a pagar uma administração pública. Há séculos que essa administração pública funciona com grandes deficiências ou, pura e simplesmente, não funciona.
Mas quem tem a culpa da justiça e da restante administração pública funcionar mal, não cumprir as suas responsabilidades e não satisfazer a sociedade e os cidadãos?
A culpa é nossa.
Mas, é nossa a culpa, porquê? Não lhe damos dinheiro?
Claro que damos. Uma parte muito significativa do valor acrescentado que produzimos é para pagar à administração pública.
Então o que é preciso mais?
É preciso mais dinheiro. A administração pública não custa caro, não desperdiça recursos, não tem nenhum desses vícios de funcionamento que levam as empresas privadas à falência e as famílias à penhora e ao despejo. Nada disso, a administração pública está escorreita, aprumada, impaciente para arrancar imparável e resolver todos os nossos problemas de aplicação de justiça, de assistência médica, de ministro da instrução pública, etc.. Está ali, na linha de partida, à espera, músculos retesados, aguardando ... aguardando o quê? Mais dinheiro!
A administração pública não precisa de dinheiro. Precisa de mais dinheiro.
Como a culpa das insuficiências da administração pública, da péssima prestação que fornece à população, nunca é da própria, mas sim dos outros, dos políticos e dos que precisam de se servir dela - as vítimas, os doentes, os alunos, etc., ela não é reformável. Uma organização só é reformável quando tem consciência que presta serviços insuficientes, que desperdiça recursos, que é cara.
Por isso os recursos financeiros orçamentados e os investimentos previstos para a administração pública serão sempre manifestamente insuficientes. Por isso pede permanentemente que os governos e a sociedade, que são, como se viu, os culpados do seu mau funcionamento, lhes dêem mais recursos.
É por isso que precisa sempre de mais dinheiro. E quando tiver mais dinheiro, precisará ainda de mais.
Não é um pecado original, é um vício original.
A Sorefame é uma das principais metalomecânicas portuguesas e a única no que respeita ao fabrico de material circulante.
As dificuldades pelas quais a Sorefame está a passar, pela ausência de encomendas em carteira, é um exemplo dos resultados que podem advir da apropriação de empresas portuguesas por capitais estrangeiros e da sua estratégia de mercado deixar de ser definida em Portugal.
Não é líquido pensar que se a Sorefame se tivesse mantido em mãos portuguesas estaria hoje melhor, ou se ainda existiria. As encomendas de material circulante num país pequeno como o nosso são pontuais e muito flutuantes. Em teoria, a sua absorção por um grupo maior poderia facilitar-lhe o ter uma carteira de encomendas mais estável.
Na prática, a Sorefame perdeu autonomia estratégica e ficou dependente dos interesses do accionista principal, primeiro a ABB e depois a Bombardier. Em vez de, eventualmente, diversificar a sua actividade, concentrou-se no material circulante.
Que fazer agora, em face da carência de encomendas? Jornalistas e políticos falam das carruagens do TGV. Todavia em obras financiadas pela UE têm que ser respeitadas as regras da concorrência e a adjudicação das compras do material circulante para o TGV ser objecto de concursos públicos internacionais. O Estado não pode dar de mão beijada a fabricação daquele material circulante à Sorefame. Só políticos chicaneiros e jornalistas ignorantes se arriscam a produzir declarações nesse sentido.
Por outro lado, o lançamento dos concursos para aquisição do material circulante não sairá, provavelmente, ainda este ano e, pelo tempo normal de andamento de um processo de concurso desse tipo, nunca antes de finais de 2005 seria adjudicada essa fabricação.
O aumento das redes dos metros e ferroviária obriga à aquisição de mais material circulante. Quando, por exemplo, uma rede aumenta o seu percurso em 10% e se se quer manter a mesma distância, no tempo e no espaço, entre composições, haverá necessidade de adquirir mais 10% de composições. Isto para além das reparações do equipamento existente ou da sua substituição. Poderá haver encomendas nessa área.
Não tenho mais elementos sobre esta matéria, para além das notícias dos jornais e de declarações de políticos, algumas delas absolutamente disparatadas. Apenas sei que é importante salvar a Sorefame, o know-how que ela tem e que se deve pôr a imaginação a funcionar para, no quadro institucional vigente e dentro das obrigações internacionais do país, encontrar uma solução para a manutenção daquela empresa e do seu quadro de efectivos.
Uma interessante faceta de alguns intelectuais da nossa praça é a de serem capazes de fazerem, sobre um dado tema, uma afirmação e a sua negação de forma peremptória, conclusiva e sem margens para dúvidas, quer quando afirmam, quer quando negam.
Esse fenómeno quase-hegeliano pode suceder quer em escritos espaçados no tempo – quem se afadiga a escrever nem sempre se lembra do que havia escrito dias ou meses antes – quer num único e contraditório escrito.
Rosas postulava ontem no Público mais uma definitiva tese sobre o envolvimento americano no Iraque. Nesse artigo seminal, para demonstrar como a posição americana estava irremediavelmente comprometida, Rosas afirmava que « as forças ocupantes anglo-americanas já não podem sair do Iraque como quereriam. Ou o abandonam expeditamente e a curto prazo, não garantindo o controlo político, militar e das matérias-primas da região, ainda por cima com o risco de deixar no governo uma reedição xiita dos "ayatollahs" iranianos que lhes fará ter saudades do cooperante Saddam de outros tempos e isso será o reconhecimento público de uma grave derrota da estratégia da "guerra infinita". Ou prolongam e intensificam a sua presença militar para ver se agarram alguma coisa, e arriscam-se a sair de Bagdad como um dia saíram dos terraços da embaixada de Saigão: pendurados nos helicópteros.»
Portanto, Rosas é claro: quer os americanos, quer os iraquianos estão «entalados». Os primeiros porque qualquer solução é uma derrota, os segundos porque, se os ocupantes coloniais e imperialistas retirarem, vão ficar à mercê dos "ayatollahs" iranianos, dos independentistas curdos no norte, da resistência armada dos apoiantes do Baas e do terrorismo islamista.
Um caos horrível, pavoroso, pior que o pior dos noticiários da TVI. Eu já me dispunha a fazer um zapping misericordioso para outro artigo, quando me lembrei que o Rosas é um intelectual cheio de recursos e deixei-me ler o resto. E o resto era uma mensagem de felicidade.
E era uma mensagem de felicidade, porque Rosas pretendia fazer um apelo à comparência na «segunda grande manifestação internacional contra a guerra que vai ter lugar no próximo dia 20 de Março». Agora, escreve ele, «é urgente que a possamos repetir para esconjurar a injustiça e a desumanidade resultantes de a não termos conseguido impedir.»
Mas como é possível convencer o pessoal a ir a uma manifestação para apelar à instalação do caos no Iraque, segundo os sábios e iniciais parágrafos do preclaro ensaísta e historiador?
Simples (e cito): «a despeito do caos, da destruição e da violação de direitos que a invasão do Iraque originou, só há uma solução possível para o problema: a retirada incondicional das tropas ocupantes; a instituição no terreno de uma entidade internacional reconhecida por todas as partes que viabilize a autodeterminação democrática e a independência nacional do povo iraquiano»
A varinha mágica de Rosas viabiliza, no seu último parágrafo, aquilo que tinha inviabilizado nos primeiros.
É que, ao entrar nesse último e salvador parágrafo, Rosas atravessou o Rio Lethes, o rio do eterno esquecimento. Com a sua memória «limpa» Rosas escreve « Continuo a surpreender-me com os "realistas", que dizem que uma solução deste tipo precipitará o país no caos».
Rosas post-Lethes surpreende-se com o Rosas anterior à travessia desse rio fatal.
É normal: os génios não param de se surpreenderem a si próprios!
O deputado do BE, Teixeira Lopes, afirmou que a maioria tinha «vergonha» do seu ministro e estava a «tentar escondê- lo» a propósito de uma alegada recusa de uma proposta de audição do ministro do Ambiente.
Finalmente um paralamentar do BE diz algo de sensato. Só se equivocou ao dizê-lo em tom de zombaria.
Na verdade, qualquer maioria teria «vergonha» em ter, como seu, aquele ministro. Sempre que se refere o ministro Theias perante políticos e autarcas do PSD, aparece logo a providência cautelar de serem eles a dizerem, imediatamente, que houve, na verdade, um erro de casting. Antecipam-se, antes que outro diga o mesmo ou pior.
O ministro Theias não tem qualquer perfil para o lugar. O ministro Theias tem opiniões sobre diversas matérias. Todavia, são sempre as opiniões de quem está com ele na altura em que emite essas opiniões. Quando muda a pessoa, mudam as opiniões do ministro Theias.
Só não se pode afirmar que o ministro Theias chuta na direcção para onde o viram, porque o ministro Theias não chuta, apenas balbucia que vai chutar.
O ministro Theias é uma excelente pessoa e de uma grande afabilidade. Pessoalmente é uma simpatia. Só não tem jeito absolutamente nenhum para ministro.
Em 21 de Janeiro de 1793, há 211 anos, Luís XVI foi guilhotinado. O seu processo e a sua execução foram o culminar de acontecimentos que se sucederam vertiginosamente e relativamente aos quais Luís XVI foi largamente responsável, não por malevolência, mas por omissões, tibieza, decisões erradas e contraditórias fruto do mau aconselhamento e da traição de familiares e próximos. A situação existente então exigia um rei firme e ministros hábeis. O rei era fraco e, quando tinha a sorte de escolher ministros hábeis, como Necker e mais tarde, em plena revolução, Narbonne, destituía-os por intrigas da corte.
Luís XVI era por natureza bondoso, mas incapaz e tíbio. As suas distracções eram a caça e a marcenaria. Quando se debateu o local para reunião dos Estados Gerais, falou-se sucessivamente de Tours, de Blois, de Cambrai. Necker, mais próximo dos liberais, propôs Paris, escolha perigosa, como se viu posteriormente. Luís XVI permaneceu sempre calado. Saint-Priest falou então de Saint-Germain. O rei, saído do seu entorpecimento habitual, declarou peremptoriamente: « Não, tem que ser em Versailles, por causa das caçadas. » Esta razão tão «decisiva» prevaleceu. Esta escolha teve as consequências que se sabe. O motor da barbárie persecutória, que acompanhou a revolução, foi a Comuna de Paris apoiada pelas secções dos bairros populares.
A França antes de 1789 era o país mais própspero da Europa continental. É certo que essa riqueza estava mal distribuída, que os impostos eram excessivos e discriminatórios e que uma burocracia estéril e as coacções feudais prejudicavam o funcionamento das actividades económicas. Mas o factor com maior peso foi que a principal detentora do poder económico, a burguesia, estava menorizada nessa sociedade, era postergada nos cargos públicos, na carreira das armas, por uma nobreza cortesã e fútil e por um alto clero anexado pelo poder monárquico. Foi o próprio desenvolvimento económico da França que gerou as contradições que acabaram por destruir a monarquia e o edifício feudal.
O que há de percursor na Revolução Francesa, mas que se tornou um paradigma noutras revoluções, foi o ter começado por uma revolta dos notáveis.Os notáveis (duques e pares, marechais, prelados, presidentes dos tribunais, prefeitos das 25 maiores cidades, delegados das províncias, etc.) reunidos em Versailles em Fevereiro de 1787 apesar de não representarem a verdadeira França, estavam de tal forma imbuídos da febre das reformas que não sancionaram os projectos fiscais de Calonne (que havia substituído Necker, homem capaz, mas destituído por Luís XVI devido a intrigas da corte) que foi obrigado a resignar, substituído por Brienne, que obrigou à convocação dos Estados Gerais e ao regresso de Necker, para tentar salvar a situação das finanças públicas.
Aliás, o principal inimigo de Luís XVI, o financiador de revoltas, de escrevinhadores de pasquins, de oradores das ruas e dos clubes, foi outro notável, o Duque de Orleães, Filipe, Grão-Mestre da franco-maçoanaria, guilhotinado mais tarde sob o «pseudónimo» que havia adoptado de Philippe-Egalité. Como eminência parda do duque, surge Choderlos de Laclos, célebre pelo seu extraordinário romance «As Ligações Perigosas», mas politicamente um crápula, de moralidade mais duvidosa que a das personagens mais imorais do seu romance, que se salvou in extremis da guilhotina que vitimou o seu patrão. A ambição do Duque de Orleães era ser o monarca constitucional. Acabou no patíbulo. Mas o seu filho, então Duque de Chartres, que emigrou quando se apercebeu como a situação iria evoluir, acabou por se tornar Rei dos Franceses, entronizado pela Revolução de 1830 e destronado pela Revolução de 1848.
Os acontecimentos sucederam-se vertiginosamente. Perante a não anuência do 3º Estado ao voto por Ordens, e a este se ter assumido, no juramento do Jogo da Péla, como Assembleia Nacional, o Rei capitula primeiro, mas decide resistir depois, face à insistência da rainha e do seu irmão mais novo, e despede Necker. A inepta resistência real e as mobilizações de rua culminam, dias depois, na tomada da Bastilha.
A 4 de Agosto de 1789 a Assembleia Nacional, no paroxismo das mais acendradas virtudes cívicas, proclama a Declaração dos Direitos do Homem, abolindo todas as corveias e servidões feudais. No fim propõe-se um Te Deum e Luís XVI é proclamado o «Restaurador da Liberdade Francesa».
A questão do direito de veto por parte do rei e os boatos sobre a conspiração da «camarilha da corte» conduzem a nova insurreição revolucionária que obriga o rei e a família real a abandonar Versalhes e a passar a residir em Paris, nas Tulherias, em Outubro de 1789. Entretanto os irmãos do rei, os futuros Luís XVIII e Carlos X, emigravam.
Incapaz de tomar uma decisão acertada, Luís XVI, ficou cada vez mais isolado e presa da populaça parisiense. Mirabeau, que a Corte havia subornado para tentar travar o processo revolucionário, morre em 2 Abril de 1791, deixando a monarquia sem quaisquer apoios na Assembleia Constituinte.
Foi então que a família real tomou a decisão mais fatal. Fugir. Mas a fuga mal organizada, a inabilidade do rei durante a viagem, levaram à sua descoberta e ao regresso a Paris sob escolta. A fuga de 20 Junho de 1791, equivaleu à demissão do rei. Entre essa data e a data em que manifesto do Duque de Brunswick é conhecido em Paris, quando as Tulherias são assaltadas e a família real presa no Templo (10 Agosto de 1792), o rei não passou de uma figura sem qualquer poder, assistindo à ascensão da Montanha em detrimento dos Girondinos que, embora republicanos, eram pela legalidade e avessos a soluções de força e à barbárie extremista.
A vitória dos exércitos franceses em Valmy e os massacres de Setembro marcam o início da ditadura da Montanha, chefiada por Danton e depois por Robespierre e baseada no terror que a Comuna de Paris impunha à maioria dos deputados da Convenção, entretanto eleita e que substituiu a Assembleia Legislativa. Enquanto na Assembleia Legislativa os Girondinos se sentavam à esquerda, na Convenção sentaram-se à direita. Sinais dos tempos. Nas revoluções o que é verdade hoje, passa a falso amanhã.
Coube à Convenção proclamar a república e fazer o processo do rei. O processo e a condenação do rei e, posteriormente, da rainha, foi um gesto bárbaro e inútil. O rei tinha sido deposto. Era um fraco, sem capacidade de decisão. Não era a sua morte que iria impedir o restabelecimento da monarquia, como se viu depois da queda de Bonaparte, em que reinaram sucessivamente os seus dois irmãos. Thomas Paine aconselhou vivamente a que os revolucionários franceses desistissem da ideia, pois ela seria prejudicial para a república. Os girondinos tentaram manobras de diversão de forma a que um eventual julgamento se dirigisse ao conjunto dos Bourbons e tivesse apenas um aspecto político.
Mas Robespierre, que subia no favor da torrente revolucionária, rompe com o legalismo, considerando que prevalecia o interesse superior da Revolução, exige a condenção à morte, mesmo sem processo como medida de salvação pública. Durante o processo alerta para que não haja sensibilidade e clemencia para com a tirania. O julgamento tornou-se numa questão política.
A maioria absoluta, tendo em conta os deputados ausentes e os que se recusaram a votar, era de 361 votos. Votaram pela morte 365. Entre eles o Duque de Orleães, entretanto redenominado Philippe-Egalité. Foi apenas uma maioria de 5 votos. Sem a pressão das secções parisienses, da Comuna e da populaça das tribunas, isto é, se o voto fosse realmente independente, certamente que aquela maioria se teria transformando numa clara minoria. A história não quis assim.
Mas a história também foi cruel para os regicidas e para a França. O processo revolucionário prosseguiu, com as secções populares de Paris e a Comuna cada vez mais extremistas, e a província cada vez mais distanciada e revoltada com os acontecimentos de Paris. A maioria dos líderes revolucionários foi executada sucessivamente, cada segmento mandado executar pelos que lhe sobreviviam: os girondinos (em Outubro), os Hébertistas (em Março do ano seguinte), em Abril, Danton e os indulgentes e, finalmente, Robespierre e a ala mais totalitária dos jacobinos (9 Thermidor- 27 de Julho de 1794). A república tinha feito o seu suicídio durante o ano e meio que decorreu entre a execução do rei e a execução de Robespierre e dos seus apoiantes.
O regime Thermidoriano, corrupto, oscilando entre um forte movimento realista e um sentimento republicano ainda importante, sobreviveu durante cinco penosos anos e caiu como um fruto maduro nas mãos de um general vitorioso, Bonaparte, no 18 de Brumário, inaugurando um novo regime ditatorial, que só sobrevivia da guerra e pela guerra, que ensanguentou a Europa durante quase 2 décadas, até à queda de Napoleão e ao regresso dos Bourbons.
Tirando um curto episódio em 1848, a república só regressaria a França depois da humilhante derrota na guerra de 1870/71. Nessa época a França já não era o país mais próspero da Europa Continental. A Alemanha tinha-a ultrapassado no desenvolvimento industrial e social.
Executar o rei teve o carácter de destruir o símbolo. Em todas as épocas, em todas tormentas sociais, em todos os conflitos políticos, há a ideia ingénua que a liquidação de um símbolo, a promulgação de uma legislação definitiva, cristaliza uma situação e impede qualquer modificação no sentido que se quer evitar. A revolução francesa, e outras que se lhe seguiram, mostrou que uma ideia não se liquida, liquidando algo que se julga que a simboliza. Liquida-se retirando-lhe as condições objectivas e subjectivas para que ela subsista. Isso não se faz por decreto nem por execuções sumárias. Ao ordenar a execução do rei, a república francesa, acabada de nascer, suicidou-se. Os poucos anos que se seguiram até Bonaparte foram apenas o seu estertor.
A propósito da cimeira que se realizou ontem sob os auspícios da ONU e que terminou inconclusiva, queria tecer algumas considerações.
A forma com a questão iraquiana está a ser encarada no mundo ocidental não é mais que a velha querela dos limites da nossa civilização, da nossa relação com os outros e da nossa relação com nós próprios.
Criámos uma civilização tolerante, democrática e próspera. Mas ao fazê-lo, relacionámo-nos com os restantes de uma forma paternalista, discriminadora, mesmo desdenhosa. Embora muitos de nós não o reconheçam e acreditem sinceramente o contrário, consideramo-los inferiores.
Mas a nossa tolerância e democracia também criou dentro de nós o oposto: aqueles que teorizam, em diversos matizes, que “se é branco e rico, é culpado, se é de cor e pobre, é inocente”, de que há sempre desculpa para o ditadorzeco que rouba os seus concidadãos e reclama em Fóruns Sociais Internacionais indemnizações pelo tráfico de escravos de há mais de 150 anos e de que nós teremos que estar sempre com “má consciência” perante o terceiro mundo.
Essa conflitualidade que, em certa medida, impediu a convergência entre os EUA e o eixo franco-alemão, tem prejudicado em muito o apressar de uma solução para o Iraque e o combate ao terrorismo.
A administração Bush não parece ter avaliado todas as consequências da intervenção no Iraque tal como foi feita. Não a vitória militar que, excepto entre os tiffosi anti-americanos, nunca esteve em dúvida, mas a possibilidade de gestação rápida de um Iraque democrático.
O eixo franco-alemão apostou na rotura com as posições americanas convencido que os americanos não dispensariam o seu apoio e que a sua atitude lhes traria dividendos no xadrez do Médio Oriente. Foi um equívoco total. A França acabou por ter que contratar gestores de imagem para melhorar a sua imagem nos States e os dividendos foram para quem tem dinheiro e força política e militar, não para os tíbios e para quem mendiga as boas graças. Quando os governos francês e britânico cediam perante Hitler para esmolar a sua boa vontade, apenas obtiveram o seu desprezo e o prosseguimento da sua política belicista. Julgaram comprar a paz pelo preço da honra e perderam a paz e a honra. E quem ascendeu ao poder e guiou a Grã-Bretanha à vitória foi Churchill, antes considerado belicista.
Para que exista convergência, a administração americana terá que se aperceber que o unilateralismo das suas acções, mesmo que militarmente possa impor-se, tem limites na fase subsequente ao conflito. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E as potências ocidentais terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode esperar muito mais.
Por sua vez a Europa terá que se aperceber que o combate ao terrorismo e à intolerância em nome da religião não se pode fazer pactuando com os mentores directos ou indirectos desse terrorismo e dessa intolerância e tentando cair-lhes nas boas graças. Uma política de cedências só conduz à necessidade de mais cedências, até se ficar encurralado.
O objectivo é tentar encontrar uma solução que tenha o apoio da comunidade internacional, convencendo a Administração Bush que essa solução terá que ser encontrada fora do quadro do unilateralismo americano vigente, mas que não será nem uma solução anti-americana, nem uma solução pantanosa, sem operacionalidade.
Nessa medida, esta cimeira deveria ter sido mais consistente nas suas conclusões. A ONU não parece empenhada em regressar ao terreno, não parece haver condições para eleições democráticas no calendário desenhado pelos americanos e a situação continua muito fluida, com o segmento social iraquiano mais forte numericamente a tentar fazer valer a sua força e a sua visão do mundo.
Parece óbvio que a comunidade internacional terá que aceitar uma «pseudo-democracia», pois não haverá condições para mais. Julgo todavia que deverá ficar com os instrumentos que lhe permitam evitar que essa «pseudo-democracia» resvale para uma teocracia populista dominada pelos xiitas. Senão, teria sido em vão todo o esforço feito, os mortos, os incapacitados, os que sofreram.
Este fim de semana Durão Barroso e Marques Mendes fizeram um repto ao PS para um consenso nacional sobre a questão das finanças públicas, correspondendo ao apelo constante na mensagem que Jorge Sampaio enviou à Assembleia da República, na passada semana.
Este fim de semana o secretário-geral socialista, Ferro Rodrigues, reafirmou que o Governo não pode contar com o PS para o apoiar nas políticas financeiras, económicas e sociais em nome de "uma unidade nacional" porque tais políticas são erradas, sublinhando que o Governo não tinha entendido a mensagem de Jorge Sampaio.
Finalmente, o Governo e a oposição estão de acordo: cada um entendeu perfeitamente a mensagem do PR e cada um tem a firme e definitiva convicção que o outro não entendeu o pungente apelo do PR.
Aliás, no que se refere a mensagens e discursos do PR toda a classe política está absolutamente de acordo: cada político entende perfeitamente o que o PR diz ou escreve, regozija-se pelo apoio iniludível que a mensagem ou discurso constitui para as suas convicções políticas e felicita o PR pela importância dessas palavras para a continuidade da política em que está empenhado. E isto acontece, quaisquer que sejam as suas convicções políticas e quaisquer que sejam as políticas em que está empenhado.
Todo este dissenso consensual ocorre apenas na classe política. Na sociedade não política, nos restantes 99,99% dos portugueses, ninguém percebe nada do que o PR diz, não entende aonde ele quer chegar e olha-o como um bibelô sem utilidade prática, mas também sem nenhuma perigosidade, que pode estar à mão de uma qualquer inocente e indefesa criança, sem que daí lhe possa advir dano algum.
É o pressentir que o que o PR diz é insosso, incolor, inodoro e inócuo que o tem catapultado para níveis elevados nas sondagens. Desconfiados como são os portugueses, no que tange à classe política, a existência de algo inócuo é um bálsamo que tempera as preocupações da população sobre o que é que os políticos andarão a tramar.
Bagão Félix a propósito do incumprimento, por parte de algumas empresas, da legislação sobre a maternidade disse que tem que haver «uma mudança mais rápida das mentalidades». A propósito de alguns favorecimentos na colocação de professores na Zona Centro, e da “cunha” que permanece endémica na Administração Pública, também se referiu que tem que haver «uma mudança das mentalidades». Quando se fala da persistência da evasão fiscal igualmente se insiste que tem que haver «uma mudança das mentalidades» nos contribuintes na sua relação com o Estado.
Toda a população, ao que parece, necessita «uma mudança rápida de mentalidades». São os professores, os alunos do ensino básico e secundário e os pais destes; são os professores e alunos universitários; são os funcionários públicos e quem recorre aos serviços públicos; são os contribuintes e quem lhes gasta o dinheiro; são os empresários e os trabalhadores; são os condutores rodoviários e os peões; são os médicos e os doentes; são os jornalistas e quem os lê ou escuta; são os jogadores de futebol do Benfica e quem assiste aos seus jogos; etc.; etc.
Portanto, o nosso problema é o da reforma de mentalidades. Se reformarmos as mentalidades passaremos a educar adequadamente os nossos filhos que se tornarão alunos cumpridores, ensinados por professores competentes e dedicados; a Universidade verá o seu numerus clausus duplicado ou triplicado pela acção devotada dos docentes e tornar-se-á uma escola de excelência, onde alunos empenhados aprenderão com professores disponíveis a tempo inteiro para o ensino e investigação; os funcionários públicos trabalharão com eficiência e quem os utiliza não mete «cunhas» para acelerar os processos ou para obter favorecimentos pessoais, «cunhas» a que, aliás, a função pública seria doravante imune; os contribuintes seriam diligentes e sinceros a preencher as declarações de impostos (que deixariam de ser alteradas e armadilhadas anualmente) e a pagá-los nos prazos legais; os empresários passariam a ter visão estratégica de mercado, apostando na inovação e na qualificação laboral e os trabalhadores, cumpridores e dedicados, empenhar-se-iam na sua formação contínua e na melhoria da sua qualificação profissional; os condutores rodoviários cumpririam o Código da Estrada, rolando em estradas bem sinalizadas e sem pontos negros, mantendo um permanente cuidado com o estado de segurança da sua viatura, enquanto os peões seriam disciplinados e não atrapalhariam o trânsito fazendo-se atropelar desnecessariamente; os médicos dedicar-se-iam a tempo inteiro à sua missão, nos locais onde são estipendiados, enquanto os doentes não inundariam os serviços com acessos de hipocondria aguda; os jornalistas deixariam de de ser mensageiros do macabro e da catástrofe, pressionados aliás por um público entretanto empenhado na escolha da qualidade informativa e cultural da comunicação; os jogadores de futebol do Benfica tornar-se-iam ... bem ... não exageremos ... nem tudo será possível.
Está feito! Reformemos as mentalidades!
Mas como? As mentalidades não se podem reformar por decreto governamental. Nem por lei aprovada na AR. Ainda menos por mensagens do PR. Nem por campanhas televisivas.
O Homem faz-se a si próprio, na acção. O Homem aprende com o fazer, com a experiência. Im Anfang die Tat, escrevia Goethe. O civismo, a educação, a solidariedade social, a deontologia profissional, o sentido do dever, aprendem-se exercitando-os.
As empresas mais dinâmicas têm melhorado a sua competitividade e aumentado os seus lucros, o seu nível de emprego e o bem estar dos seus funcionários introduzindo procedimentos no seu funcionamento e no processo produtivo, e uma estrutura organizativa adequada, que melhoram a qualidade do serviço prestado aos clientes, a sua eficiência produtiva e o âmbiente de trabalho. É um processo complexo e iterativo que envolve sacrifícios, incompreensões, mas que se for seguido com determinação e empenho, acaba por produzir frutos.
Se numa empresa este desiderato é complexo, na administração pública, com situações tão diferenciadas como a educação, saúde, justiça, administração central, regional e local, institutos públicos, etc., sê-lo-á muito mais. Há que haver uma grande determinação governativa, coragem para arrostar com as incompreensões, dúvidas e receios de quem vê os seus interesses imediatos atingidos. Interesses ilusórios porque se baseiam na ineficiência do aparelho de Estado e no desperdício geral de recursos. Interesses apenas de valor relativo perante uma situação geral de baixo índice de desenvolvimento social.
E como é difícil e leva tempo, tem que se começar já.
O administrador financeiro da Jerónimo Martins aconselhou o Estado a seguir o exemplo daquele grupo, relativamente à estratégia para a redução de dívida e abandono das actividades não estratégicas, assegurando que, por essa via, a Jerónimo Martins alcançou as metas propostas ao mercado, superando as expectativas dos investidores.
Na opinião deste imaginativo gestor, o Estado deveria assumir com «obsessão» a redução da dívida e do défice orçamental, recorrendo a «alguns sacrifícios», tal como aconteceu na Jerónimo Martins, e também abandonar as actividades não core (nucleares). Com estes objectivos de fundo, o Estado saneava as suas contas, à semelhança da JM. Desde 2001, a JM vendeu 24 companhias e oito negócios, na sua maioria que não faziam parte do «core business», ou que num horizonte de três anos não criavam valor.
O problema com o Estado português é saber quais as actividades que fazem parte do seu «core business»;
O problema com o Estado português é que as actividades que desenvolve, quer façam ou não parte do seu «core business», não criam valor.
Porém há um dado importante adiantado pelo administrador financeiro da JM: embora a maioria das companhias e negócios vendidos não fizesse parte do seu «core business», subentende-se que algumas fariam.
Logo o Estado, se pretender seguir aqueles conselhos, escusa de se preocupar com as minudências do “ser ou não ser” do «core business».
Por exemplo:
1 – o Governo Regional da Madeira e as suas instâncias, a fossa orçamental do Atlântico – são ou não são «core business»? Não interessa: vendem-se.
2 – as autarquias locais, o maior sorvedouro de dinheiro do país – são ou não são «core business»? Não interessa: vendem-se.
3 – os Hospitais Públicos que não conseguem controlar a despesa em consumíveis e equipamentos e o absentismo dos seus colaboradores – são ou não são «core business»? Não interessa: vendem-se.
4 – as Universidades públicas onde os docentes pensam que a autonomia universitária serve para os contribuintes pagarem a factura e não pedirem explicações sobre o seu funcionamento – são ou não são «core business»? Não interessa: vendem-se.
5 – as escolas do ensino básico e secundário, onde parte dos professores tem horário zero, o ensino é medíocre e os currículos são experiências que os especialistas laboratoriais do ministério andam a fazer na convicção que os alunos são cobaias – são ou não são «core business»? Não interessa: vendem-se. E atenção ... como bónus, na aquisição deste pacote, o adquirente pode levar o Ministério, com todo o pessoal, as DRE’s e todos os restantes organismos dependentes dele.
6 – as instâncias do poder judicial que quando não apanham os poderosos, é porque há apenas justiça selectiva, e que quando os apanham, é porque têm poder excessivo e o usam discricionariamente – são ou não são «core business»? Não interessa, são um elemento de perturbação da opinião pública: vendem-se! O bónus na aquisição deste pacote é a posse de todos os estabelecimentos prisionais e institutos de reinserção. Se alguém conseguir encontrar a ministra, esta será evidentemente incluída no pacote.
7 – o Ambiente, dependente de um ministro que, conforme o lado para onde o viram, afirma que vai chutar ... mas nunca chuta. O Ambiente é ou não é «core business»? Não interessa: vende-se. Com a vantagem que se obtém, como sub-produto, a extinção de algumas organizações ambientalistas que deixam de conseguir angariar estudos e pareceres, através da ameaça da sua força mediática poder lançar o pânico na opinião pública.
8 – as Forças Armadas, que quando se fala em dotação orçamental para o seu equipamento, nos perguntamos porquê despender aquele dinheiro e que, quando são necessárias, zombamos da sua penúria – são ou não são «core business»? Não interessa, para nós não são: vendem-se. Com a vantagem de que se o ministro estiver incluído no pacote, lá se vai o «core business» do Expresso.
9 – as instituições culturais? Obviamente não são do «core business». A população tem um elevado analfabetismo funcional e os agentes culturais só produzem para eles próprios, em circuito fechado. É vender tudo. Tudo ... bem ... tudo talvez não seja possível, porque o ministro desapareceu após a tomada de posse.
10 – A AR será «core business»? Não interessa, faz leis, mas só os ingénuos cumprem as leis, ninguém fiscaliza o seu cumprimento e ao fim de poucos meses caiem em desuso: vende-se! O PR, que nem é «core», nem «business», nem nada ... obviamente vende-se ou dá-se, nem que seja como contrapeso. O governo? Bem, o governo depois deste leilão monumental ficou sem objecto. Vende-se!
11 – as Finanças deixaram entretanto de serem necessárias. A questão de serem ou não «core business» passou a irrelevante. Está tudo vendido, não precisamos de receitas para despesas inexistentes – é vender urgentemente e, se não houver licitante, que se faça uma doação a alguma instituição de caridade.
A estratégia está traçada. Resta nomear a comissão liquidatária e um bom pregoeiro para animar o leilão!
Em 31 de Outubro passado escrevi aqui que há cerca de 6 anos atrás, quando a Resitejo lançou um projecto de Aterro Sanitário, no timbre das cartas da Resitejo aparecia a lista dos municípios (sócios) do sistema: Alcanena, Chamusca, Constância, Torres Novas, Tomar, etc., etc, e ... a Quercus! Então foi-me dito que havia sido o Sr. Presidente (era então presidente da Resitejo o Presidente da Câmara de Alcanena) que "tinha achado boa ideia, para eles depois não nos chatearem".
Hoje foi noticiado que os responsáveis pelo aterro sanitário da Resitejo, na Chamusca, admitiram que alguns problemas naquela estrutura poderão ter afectado a ribeira onde escoa o esgoto, mas garantem que são situações pontuais. Agricultores da zona estão preocupados «com a poluição que começou a surgir há dois anos e se agravou nos últimos seis meses», deixando «um rasto negro de morte», e há relatos que dão conta de ovelhas que costumavam beber água da ribeira e começaram a aparecer «com feridas na boca e inchaços no papo».
O responsável da Resitejo garantiu ser "impossível" que a causa da poluição possa estar no aterro, porque os relatórios e análises feitos com a periodicidade exigida por lei e enviados para as entidades competentes "estão bem", mas admitiu a ocorrência de uma situação anormal, "pontual", no final de Novembro, quando caiu uma forte chuvada e, porque não foi adoptado um procedimento que deveria ter sido tomado, «houve escorrências que passaram a tela, mas não era lixiviado puro».
Relativamente a esta questão queria sublinhar o seguinte:
1 – O Aterro sanitário, embora ambientalmente melhor que as lixeiras anteriormente existentes, é, do ponto de vista ambiental, a pior solução para o destino final do lixo urbano (R.S.U.)(*). As emissões de metano são, do ponto de vista do efeito estufa e para a mesma quantidade, 21 vezes mais nocivas que as do Dióxido de Carbono. Parte do biogás originado nos aterros (cerca de metade é metano) poderá ser aproveitado, mas uma parcela significativa escoar-se-á sempre para a atmosfera.
2 – A construção de aterros gigantescos, como o da Resitejo, que demoram muitos anos a encher, é uma solução errada. Os aterros devem ser construídos divididos em células muito mais pequenas que se vão sucessivamente construindo e enchendo, de forma a que o seu enchimento não ultrapasse um ano ou ano e meio. As telas são, em princípio, estanques e, sendo assim, uma invernia mais rigorosa transforma um aterro assim dimensionado numa gigantesca piscina, com os RSU a boiarem. Isso traz vários inconvenientes: 1) a humidade acelera a formação do metano; 2) a estanquidade pode não ser perfeita, levando a que haja o que a Resitejo designou hoje por «escorrências que passaram a tela, mas não era lixiviado puro». É óbvio que se vieram do aterro eram produtos lixiviados. O dizer que não eram “puros” é pura retórica. Por outro lado, com células muito mais pequenas aumenta-se a parcela do biogás que pode ser valorizado energeticamente.
Adicionalmente, não há experiência do comportamento das telas anos a fio expostas, quer à intempérie, quer ao sol abrasador do verão. Nada garante que após 3 ou 4 anos as telas continuem “saudáveis” e as suas soldaduras perfeitas.
Resta agora ver como os ambientalistas da Quercus, que se têm desmultiplicado nos últimos meses com comunicados terroristas sobre a eventualidade de novas incineradoras, nomeadamente a da ERSUC, em que ignoram inclusivamente as directivas da UE, mentindo sobre as premissas da questão, vão reagir aos problemas do aterro de um sistema de que eles foram sócios (presumo que já não o sejam) e apadrinharam a concepção.
(*) Não estou a falar de aterros sanitários de apoio a outras instalações de tratamento do lixo (aterro de apoio a uma incineradora, por exemplo) onde os lixos orgânicos não entram porque foram tratados e valorizados previamente.
Ou de como a Pitonisa quis fazer de Temístocles e se afundou em Salamina
O PR enviou ontem uma mensagem ao Parlamento. Normalmente seria um acontecimento pacífico: depois do desfiar de um rosário de banalidades, os ouvintes aplaudiriam em uníssono, cada um extraindo as conclusões que provariam, sem margem para dúvidas, que aquela mensagem vinha no sentido das suas orientações e pretensões políticas. A habitual profecia de Pitonisa, com direito a centenas de leituras contraditórias.
Todavia, nesta mensagem, o PR foi mais directo:
Por um lado, o PR elogiou o actual governo pelas políticas de contenção orçamental que devem ser prosseguidas com todo o rigor, quando se sabe pelas estatísticas, que o governo não está a conseguir conter a despesa pública, seja por incompetência própria, seja por falta de mecanismos de intervenção no funcionamento da Administração Pública (que em último caso serão, ou incompetência governamental, que não reforma a Administração Pública, ou incompetência e/ou hipocrisia presidencial que mantém a espada de Damocles do veto, sobre legislação relativa àquela matéria).
Por outro lado, elogiou a política de “coesão social” do governo anterior que, como se viu, resultou em dissenso social pela crise financeira que provocou, ao distribuir o que não tinha, quer à “pobreza extrema” que precisava e era justo ( mas distribuído sem o rigor e a fiscalização necessários), quer em empregos no funcionalismo público, que nem precisava, nem era justo. Pior, ao elogiar o anterior governo pela sua política de descontrolo orçamental, deixa-se de perceber como se pode elogiar o actual governo pela política de contenção orçamental. É o paralogismo que filosoficamente se designa por contradição nos termos.
Mantendo o seu protagonismo grego da época clássica, o PR sugeriu a quadratura do círculo: reduzir o défice e aumentar a despesa.
E ilustrou esse intento com as banalidades usuais, incontestáveis em matéria de princípios, mas inexequíveis na prática por ausência de mecanismos para as realizar.
Uma delas é o estafado tema da evasão fiscal. É fácil agitar a bandeira do combate à evasão fiscal. O difícil é travá-lo com êxito. E isto porque esse combate, para ter êxito, tem que ser travado em várias frentes:
1 – A reforma da Administração Pública e a melhoria da sua eficiência e desempenho. Ora tem-se verificado que qualquer legislação que se faça nesse sentido é um atentado contra os direitos dos trabalhadores e sofre a contestação da oposição em peso e a má vontade do PR. Não é com o aumento da despesa que se melhora a Administração Pública – isto está demonstrado pela política seguida nas últimas décadas – mas sim com a introdução de mecanismos e procedimentos que permitam que a sua gestão se faça de forma eficiente;
2 – O Estado tem que se tornar uma pessoa de bem na sua relação com o cidadão. Há um ditado que diz que «Ladrão que rouba a ladrão tem 100 anos de perdão». A relação da administração fiscal, e dos serviços público pagos com os nossos impostos, com o cidadão é tal que só por receio de punição o cidadão cumpre as sua obrigações fiscais. Mudar a mentalidade do contribuinte, passa por mudar a postura do Estado face aos cidadãos em geral;
3 – O Estado tem que terminar com a voracidade que tem pelo dinheiro dos cidadãos. Na sua voracidade, o Estado tenta ganhar em todos os tabuleiros. Ao fazê-lo, faz com que a sociedade civil tenha vantagem em conluiar-se contra ele: o empregador e o empregado, o comprador e o vendedor, etc.. Quando, em qualquer transação, é vantajoso para ambos os contraentes enganarem o Estado eles fá-lo-ão. Se o empregado não vir vantagem em que a sua remuneração seja documentada, aceitará essa situação; se o comprador e o vendedor não tiverem vantagem em documentarem a sua transação não o farão; se tiverem que a titular por necessidade (transação de imóveis), mas se não tiverem vantagem em o fazer pelo valor real, declararão um valor muito inferior; etc.; etc.; a política fiscal tem que ser inteligente e não estupidamente voraz;
4 – O aumento excessivo de impostos, para além de injusto, tem como resultado o incremento da economia paralela. Quanto maior for o nível de impostos, mais compensadora é a evasão fiscal, calculada em termos de esperança matemática do rácio benefício-custo dessa evasão e mais gente será tentada a “evadir-se”;
Adicionalmente, e isto é o que há de mais perverso na mensagem do PR, o combate à evasão fiscal deveria servir para aliviar os cidadãos que têm uma carga fiscal excessiva e não para continuar a alimentar o sorvedouro inexaurível da despesa pública, como o PR deu a entender. Dizer que o combate à evasão fiscal serve para pagar a ineficiência da máquina do Estado é injusto para os contribuintes cumpridores, e é muito pouco motivador para os cidadãos em geral. Além do que a excessiva carga fiscal diminui a competitividade das empresas, a riqueza do país e mata a galinha dos ovos de ouro que sustenta a Administração Pública.
Quanto à elaboração do Orçamento do Estado numa base plurianual e a sua discussão e aprovação "em duas fases", é uma questão pacífica num país em que houvesse políticos com sentido de Estado. Aliás, é uma questão consensual há vários anos, só que nunca posta em prática.
E porquê? Porque o Estado português tem o hábito inveterado de fazer agora, para desfazer amanhã; de mudar drasticamente as regras do jogo, a meio do campeonato; de fazer que o que é uma verdade incontestável agora, é uma rematada mentira amanhã; etc.. Tecnicamente é possível elaborar um Orçamento do Estado numa base plurianual, só que, com estes hábitos perniciosos, no ano seguinte deixarão cair tudo e recomeçar-se-á de novo.
No Público, JMF considerou que o conteúdo da mensagem do PR «resultou redondo e inconclusivo». Concordo que foi redondo, porque «não tinha ponta por onde se pegasse». Todavia só foi inconclusivo porque todos, quaisquer que fossem as suas orientações políticas, o aplaudiram e porque, apesar do apelo do PR a um consenso das principais forças políticas sobre a gestão orçamental, assim que a voz da sua mensagem se calou, choveram as "recriminações recíprocas" e as "picardias inúteis".
A mensagem, no que não foi inconclusiva, foi perversa. E foi-o, não apenas pelas suas contradições, mas porque veio do PR, que tem responsabilidades acrescidas naquilo que afirma perante a Nação.
Ou como os economistas acertam sempre, respondendo sim, não ou talvez, à mesma questão, consoante as circunstâncias e locais.
Welteke, presidente do Bundesbank e membro do Conselho de Governadores do BCE, declarou ontem que estava preocupado pela ameaça que a valorização da moeda única representa para a recuperação da economia alemã. «Tememos que a apreciação do euro possa colocar um travão na recuperação» da economia, afirmou Welteke, acrescentando que «estamos a acompanhar de muito perto o impacto directo e indirecto da apreciação do euro».
Todavia, em 19 de Dezembro último, Welteke, contradizendo Romano Prodi, presidente da Comissão Europeia, havia afirmado que o crescimento da economia europeia «está muito mais dependente do desenvolvimento da economia mundial como um todo, do que esta ou aquela taxa de câmbio», mostrando pouca preocupação pelos efeitos da subida do euro face ao dólar americano. Todavia, entre estas duas declarações contraditórias, o euro apenas se apreciou cerca de 2,4%, passando de 1,245 para 1,275.
Na altura escrevi que as declarações de Welteke de 19-12-03 eram mais uma matéria de fé que uma análise científica da situação. Todavia, em Economia, têm aplicação inexorável as 3 virtudes teologais na sua sequência doutrinal: quando abordamos uma questão com fé, ao fim de algum tempo buscamos apoio na esperança e acabamos recorrendo à caridade. Portanto, a fé de Welteke poderia ter uma continuação pouco satisfatória.
Há dias, Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu, havia produzido uma declaração contraditória, afirmando que a valorização do euro face ao dólar podia ameaçar a subida das exportações, à saída de uma reunião onde o BCE havia decidido manter as taxas de juro de referência, uma das causas daquela valorização. Como havia expectativas que o BCE diminuísse aquelas taxas, o euro, que tinha descido ligeiramente perante essas expectativas, voltou a subir em face das não decisões da reunião. Com a agravante que foi dado um sinal negativo aos empresários europeus – afirmou-se uma preocupação e, por omissão, gerou-se um movimento no mercado cambial, que agravava essa preocupação.
É estranho, e muito preocupante, figuras do topo das finanças europeias produzirem afirmações tão contraditórias, com poucos dias de intervalo, contradizendo-se entre si e intra si. O BCE reproduz, no fundo, as contradições da unidade europeia: é difícil conciliar o interesse colectivo com os interesses diferenciados dos diversos países; é difícil conciliar as decisões baseadas em critérios económicos com decisões baseadas em critérios políticos; é difícil conciliar a eficiência económica e financeira com os constrangimentos políticos e os lobbies dos Estados mais poderosos. Começou logo com a forma como o presidente do BCE foi escolhido: ele e o seu sucessor.
Mas para aligeirar esta questão, e em homenagem à fé e esperança do Welteke (esperemos que não chegue a recorrer à caridade), aqui lhe dedico um:
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
Miguel Torga, «O Outro Livro de Job». Coimbra, Ed. Autor, 1936
Ou o paradigma das «Conquistas Irreversíveis»
Um dos paradigmas mais enformadores da política portuguesa é o das «Conquistas Irreversíveis».
É certo que esta terminologia das «Conquistas Irreversíveis» só foi cunhada e posta a circular nos tempos do PREC, na sequência do 25 de Abril. Mas o seu conceito esteve sempre latente na sociedade portuguesa e há fundados receios que faça parte da mutação genética que produziu a raça portuguesa.
As «Conquistas Irreversíveis» têm uma característica importante e única: são conquistas de um dado segmento social contra toda a sociedade portuguesa. São conquistas internas. No que se refere ao exterior somos menos rígidos: quando a tropa portuguesa sob o comando dos ínclitos infantes conquistou Ceuta, ninguém falou em «Conquista Irreversível»; nem em Ceuta, nem nas que lhe sucederam. Apenas somos rígidos, irreversíveis e definitivos contra nós próprios.
As «Conquistas Irreversíveis» atravessam transversalmente toda a sociedade portuguesa. Por exemplo, é uma «Conquista Irreversível» o facto das universidades portuguesas estabelecerem os respectivos currículos de acordo com os lobbies internos, e os respectivos numerus clausus de acordo com tempo que têm disponível para conceder à docência. Outra «Conquista Irreversível» é a da Economia Paralela: o fisco tem como ponto de honra só se preocupar e esquadrinhar minuciosamente quem declare rendimentos; todos os outros estão imunes à avidez do fisco. Há outras «Conquistas Irreversíveis» que estão agora a ser contestadas, mas certamente com efeitos despiciendos: o posto de trabalho como direito ao asilo, por exemplo.
Porém, a «Conquista Irreversível» mais irreversível é a da Despesa Pública. Toda a Função Pública: Directores Gerais, Directores de Serviço, ... , contínuos, ... etc., uma vez habituados a um determinado nível de despesa pública, já não há forma de retrocesso. Aquela despesa está conquistada e é irreversível. Se o nível da despesa pública for 30% do PIB e se se pretender passar para 29% é impossível, pois o país deixa de funcionar. Se anos depois se elevou para 40% e se pretender passar para 39%, continua a ser impossível, porque paralisaria o país, e assim sucessivamente.
Alguns leitores, mais aferrados a raciocínios lógicos e a sistemas cartesianos perguntarão: mas então, quando era 30% o país funcionava e agora com 39% fica paralisado?
Pergunta estulta, apesar do aparente rigor lógico! A administração pública sempre esteve paralisada. Trata-se portanto de uma ameaça vã. Quer se diminua, quer se mantenha, quer se aumente percentualmente a despesa pública, a administração pública continuará paralisada.
Não há nada a fazer. A Ministra das Finanças pode emitir despachos draconianos, fazer declarações sinistras, congelar vencimentos dos funcionários, tudo o que entender: a despesa pública lá está, incólume, não apenas incompressível, mas sempre a crescer acima da inflação.
Quanto mais a Ministra corta, mais a despesa aumenta. Há nesta estratégia um equívoco evidente da Ministra: a despesa pública portuguesa não é uma categoria orçamental. Isso será noutros países. No nosso é um buraco negro, cuja força gravítica atrai tudo o que está no seu campo de acção e não deixa escapar nada. A despesa pública portuguesa não é um caso do âmbito económico ou político: é um problema astrofísico.
Basta ver como os políticos mostraram a sua incapacidade para resolver este caso. O Guterres foi acusado, justamente, de laxismo. Durante o seu consulado a massa e a densidade do buraco negro da despesa pública aumentaram desmedidamente. Mas o apregoado rigor do actual governo não tem impedido que esse aumento cataclísmico continue imparável.
É que a irreversibilidade está assegurada pela própria massa e densidade do buraco negro da despesa pública – quanto maiores aquelas são, mais intensa é a força de gravidade, mais distante é a acção do campo gravítico, maior é a velocidade com que os bens que produzimos com o nosso suor e/ou talento são atraídos para aquele vórtice infernal e definitivo.
Suspeita-se mesmo que a própria Ministra já esteja amalgamada naquela massa de átomos informes e comprimidos num plasma ultradenso, não passando actualmente de um elemento transuraniano de número atómico superior ao do défice público expresso em cêntimos. O que vemos na televisão podem muito bem ser cassetes gravadas que ela deixou para a posteridade.
Há um evidente paralelismo entre o campo gravítico criado pela massa física, e a «Conquista Irreversível» criada pela massa monetária orçamentada e pelo nosso fatalismo. Ambos são campos vectoriais que originam forças fatais que atraem irreversivelmente para o abismo.
Que fazer? Esperar que a densidade seja de tal forma incomensurável que expluda e o buraco negro se transforme numa estrela? Mas como se traduzirá esse impressionante fenómeno astrofísico na pacata vida política e económica portuguesa?
Como não percebo nada de astrofísica e cada vez menos de economia, faço daqui um apelo a algum cientista da NASA que nos tente elucidar, a mim e aos portugueses em geral, que continuam a ser sugados para alimentarem esse monstro, explicando-nos os efeitos a que podemos estar sujeitos e como havemos de sair deste buraco negro.
Com os políticos não vale a pena contar. Se atendermos ao âmbito em que se insere esta questão, como o acabei de demonstrar de forma inovadora e seminal, precisamos sim de físicos de renome, peritos em astrofísica.
Uma prática corrente nos despotismos orientais era o monarca mandar decapitar o mensageiro portador de más notícias ou, pelo menos, notícias que lhe desagradavam: as suas hostes terem sido desfeiteadas numa batalha; ter eclodido uma insurreição tumultuosa numa província distante; a fuga misteriosa de uma azémola com os alforges carregados com a colecta de impostos; uma concubina mais voluptuosa ter sido apanhada em teres e haveres de carne com algum musculoso capitão dos janízaros, etc., etc..
Actualmente, e sempre que censurados por políticos, ou por outros sectores da sociedade civil, pelo conteúdo e forma das notícias que propalam, os jornalistas aparecem a protagonizarem-se, a si próprios, como os mensageiros dessas épocas despóticas face à sanguinária ambição de lhes verem as cabeças separadas dos troncos. Cada vez que surge uma crítica sobre o excesso de algumas notícias, sobre a eventualidade de estarem, desnecessariamente, a invadir a privacidade ou a menoscabar o direito ao bom nome de alguém, os jornalistas, pressurosos, em coro, clamam que o que querem é matar o mensageiro, pois eles não passam de mensageiros, que quem critica o estilo noticioso não é senão um aprendiz de déspota oriental, uma aberração do passado que resistiu à voracidade do tempo e que aparece agora em pleno século XXI, pulverulento, com o bolor dos séculos, a reproduzir costumes de épocas bárbaras.
Julgo que os senhores jornalistas exageram nessa comparação. Se, por absurdo, ela fosse verídica, todo o pessoal da TVI já estaria decapitado. Todas as noites, no horário nobre, qual Hidra de Lerna, Manuela Moura Guedes seria decapitada pelo sujeito da notícia, em travesti de Hércules. Mais macabro ainda - seria decapitada dezenas de vezes por noticiário. Haveria uma fila de Hércules à porta dos estúdios da TVI, à espera de vez (*). E o mesmo aconteceria, com maior ou menor carnificina, com os outros operadores de televisão. Não haveria lanças suficientes para enfeitar com tanta cabeça!
Quanto aos jornais, a chacina seria enorme. Nem quero pensar no que sucederia ao Expresso, esse respeitável semanário, com a cabeça do J A Lima a ser cortada semanalmente durante a fase mais mediática do processo do Caso Moderna. A própria Clara Pinto Correia, por muito que alegasse que apenas traduzia mensagens do New Yorker, veria a sua delicada cabeça ser separada do tronco e o algoz mostrá-la, triunfalmente, à populaça reunida ao redor do patíbulo.
Não, meus caros senhores jornalistas: os costumes actuais estão muito distantes dos dessas épocas bárbaras. Não asseguro se melhores, se piores, mas são, seguramente, diferentes.
Mas mesmo nessas épocas os mensageiros de então não poderiam ser equiparados aos jornalistas actuais.
Os mensageiros dessas épocas apareciam rastejando aos pés do soberano e balbuciavam, com voz tremente e suplicante, uma versão sucinta e favorecida do desastre. Depois eram escoltados até ao terreiro público onde o algoz, sob o rufar dos tambores, procedia à execução com todo o ritual da época. Decorria tudo com o máximo profissionalismo e respeito pelo direito consuetudinário.
Um jornalista actual surgiria pletórico de prosápia e descreveria a infausta ocorrência com a máxima acutilância e levando ao requinte a descrição dos pormenores mais sanguinolentos, sádicos e macabros, como é habitual nos horários nobres das TV’s. Esse jornalista dificilmente passaria da segunda frase, pois o próprio sultão, por muita indolência contraída pelo longo e fastidioso exercício do cargo, teria alento suficiente para puxar da sua cimitarra e, num golpe rápido e faiscante, decapitar logo ali o verboso jornalista. O déspota oriental não ordenaria a sua execução, antes liquidá-lo-ia imediatamente, de preferência ao incómodo de continuar a assistir à sanguinária descrição. Não lhe daria o tratamento de favor do imponente ritual de uma execução pública.
A menos que o sultão tivesse um comando à distância que apagasse o mensageiro e fizesse o zapping da imagem para o Canal Hollywood, People & Arts ou Discovery.
(*) Não é seguro que o Departamento de Marketing da TVI não se entusiasme com esta ideia e a ponha em prática, afim de aumentar as audiências e recolocar a TVI no primeiro lugar do share.
Nesse caso aviso que tenho o direito de cobrar uma quantia apropriada ao êxito da iniciativa.
António Sardinha morreu em 10 de Janeiro de 1925 (em Elvas) com apenas 37 anos, faz hoje 79 anos. António Sardinha foi, sem quaisquer dúvidas a principal figura do Integralismo Lusitano e a sua morte prematura foi um dos factores decisivos para o rápido enfraquecimento daquele movimento político e cultural.
A doutrina política e cultural que desenvolveu constituiu a base e a evolução do Integralismo Lusitano, Sardinha foi o seu mais destacado dirigente e aquele que mais influência deixou, a tal ponto de alguns chegarem a propor a substituição de D. Manuel II, considerado incapaz e desinteressado pela causa monárquica, pela sua pessoa.
O nascimento “institucional” do movimento dá-se em Abril de 1914, com o aparecimento da revista Nação Portuguesa, que se torna progressivamente no núcleo de combate à República, e às suas expressões mais variadas na cultura, na política e sobretudo na religião. Este último ponto é particularmente importante pois o Integralismo Lusitano encontrou grande apoio nos sectores católicos da sociedade, a quem desagradava o cariz anti–clerical da 1ª República.
O primeiro director da Nação Portuguesa foi Alberto Monsaraz, mas foi sob a direcção de António Sardinha que ela alcançou plena pujança. Após a morte de Sardinha a revista foi vegetando durante mais de uma década até se extinguir.
O Integralismo Lusitano reveste um carácter eminentemente nacionalista. A concretizar esta tendência está a perspectiva apologética e patriótica: uma visão heróica, quase mítica, dos feitos portugueses de outrora, carácter supremo da Alma nacional; a ideia de uma pátria predestinada, por mandamento divino, à grandeza imperial, líder no progresso material e espiritual dos povos, enfim, a ideia da grandeza histórica de outrora, das épocas dos nossos gloriosos antepassados, dos “nossos Maiores”, grandeza hoje perdida, mas que urge recuperar.
Escrevia António Sardinha que « O que se nos impõe é restituir à Pátria o sentimento da sua grandeza - não duma grandeza retórica ou enfática, mas naturalmente, da grandeza que se desprende da vocação superior que a Portugal pertence dentro do plano providencial de Deus, como nação ungida para a dilatação da Fé e do Império. Dilatar a Fé e o Império, equivale a sustentar o guião despedaçado da Civilização. Os motivos de luta e de apostolado que outrora nos levavam à Cruzada e à Navegação, esses motivos subsistem» (Ao Princípio era o Verbo - 1924)
Ao que qualificava de ilusões das doutrinas liberais, o integralismo opõe uma doutrina de vida e salvação. Longe de se basear nos princípios abstractos da razão pura, como os teóricos do liberalismo, o integralismo parte do estudo do que julga serem as realidades. É a experiência e a história, essa experiência do passado, que nos dão a conhecer as leis por que se hão de reger as sociedades. Enquanto a República é o regime em que as instituições e as leis são impostas pela razão de teorias abstractas, independentemente da índole dos diversos de povos, a Monarquia é o regime do facto, e as suas leis são o produto da experiência particular de cada nação.
Portanto a unidade social não se pode basear no indivíduo, um átomo de consciência, que só vale enquanto parte de um grupo social. A unidade social base de uma nação, constituída pelos vivos, pelos mortos e pelos que ainda hão de nascer, pela Pátria eterna, é a família. A Monarquia integral fará, pois, tudo para aumentar a coesão social e não para a dissolver, como fazem os regimes liberais, que pretendem desagregar a sociedade em átomos dispersos e sem coesão.
A Monarquia integral assenta nos municípios, dotados de autonomia administrativa, onde se agrupam as famílias. A Câmara Municipal deve ser a representação económica, técnica ou profissional, mas não política. Os Municípios agrupam-se, por sua vez, em províncias, administradas por Juntas Provinciais, dotadas também, como o município, de autonomia económica. Essas Juntas são constituídas pela delegação dos respectivos Municípios, pela representação dos sindicatos operários e patronais, pelos directores das escolas e dos institutos de utilidade pública, enfim, por todos aqueles que representam interesses corporativos e sociais organizados.
Acima de todos estes organismos representativos há, como chefe natural da Nação, o Rei hereditário. E é na transmissão hereditária do poder do Rei que consiste precisamente a maior superioridade da Monarquia. «Ninguém escolhe o Rei, como ninguém escolhe o próprio pai para lhe obedecer». O simples facto do nascimento já dá ao Rei amplas garantias de bom governo. Filho de rei sabe reinar. Além disso, a sua educação especializada habilita-o superiormente para o desempenho da função a que o destino o chamou.
O poder pessoal do Rei é soberano. Escolhe livremente os seus ministros e os conselhos que os assistem e elaboram as leis, ministros e conselhos que não ficam dependentes de nenhuma sanção e de nenhuma vontade, a não ser a sanção e a vontade exclusivas do Rei. «Na paz e na guerra, dentro e fora das fronteiras, o Rei personaliza a Nação, a sua vontade é soberana, e nenhum poder mais alto se lhe impõe, embora ela deva ser sempre esclarecida pelo conselho dos órgãos competentes». «Esse poder é ilimitado, é arbitrário? Será. É, na verdade, menos ilimitado e arbitrário do que o poder paternal, que se não limita nem arbitra pelo controlo do agrupamento familiar».
Um papel fundamental neste corpo social idealizado pelo integralismo cabe à nobreza, mas à nobreza de sangue. Escrevia Sardinha «Não somos conservadores - dada a passividade que a palavra ordinariamente traduz. Somos antes renovadores, com a energia e a agressividade de que as renovações se acompanham sempre. O nosso movimento é fundamentalmente um movimento de guerra. Destina-se a conquistar - e nunca a captar. Não nos importa, pois, que na exposição dos pontos de vista que preconizamos se encontrem aspectos que irritem a comodidade inerte dos que em aspirações moram connosco paredes-meias. É este o caso da Nobreza, reputada como um arcaísmo estéril em que só se comprazem vaidades espectaculosas. A culpa foi do Constitucionalismo que reduziu a Nobreza a um puro incidente decorativo, volvendo-a numa fonte de receita pingue para a Fazenda. Foge, cão, que te fazem barão!- chacoteava-se à volta de 1840. Mas para onde, se me fazem visconde?! E nas cadeiras da governança o cache-nez célebre do duque de Avila e Bolama ia esgotando os recursos do Estado em matéria de heráldica.» A nobreza idealizada por Sardinha era a nobreza medieval, perante a qual os reis eram primus inter pares, não as fornadas de títulos nobiliárquicos criadas pela monarquia constitucional.
Neste sistema os conflitos sociais são resolvidos dentro da própria estrutura da Monarquia orgânica. Cada classe constitui-se em sindicatos autónomos. Entre os capitalistas e os traba1hadores estabelece-se o contrato colectivo do trabalho. «O capital é necessário para desenvolver a indústria. O trabalho é necessário para produzir. De forma que entre um e outro há uma comunidade de funções. Um sem outro nada é.». O operariado deve, nestas circunstâncias, confinar-se nos seus interesses profissionais, sem se envolver em lutas po1íticas, na tarefa utópica da reorganização da sociedade. Tarefa utópica, porque o nivelamento das classes é contrário à própria natureza das coisas e porque a hierarquia é a condição de toda a vida social.
O Integralismo baseia a sua visão social no regime medieval português, idealizado: o Rei, a Nobreza e o Terceiro Braço agrupado nos municípios. É certo que admite a representação administrativa e profissional. Mas não é, por esse facto, um regime democrático, pois que não há democracia onde não há representação da opinião pública e a sua fiscalização. Em vez de um Parlamento de pura representação política e eleito pelo sufrágio popular, o Integralismo preconiza um organismo de representação de classes, recrutado exclusivamente no seio dessas classes para a representação dos seus interesses, com voto puramente consultivo, tendo por funções a aprovação dos impostos e do orçamento e «a consulta sobre a aplicabilidade, na prática, das leis que os ministros e os respectivos conselhos técnicos elaboram». Essa assembleia (ou Cortes) não se pode sobrepor à vontade esclarecida do rei e dos seus ministros: está limitada à única missão de ponderar e de esclarecer.
A Monarquia integral é, portanto, a solução necessária e suficiente de todos os problemas, o lugar geométrico de todas as medidas de salvação nacional.
As ideias e os princípios liberalistas e igualitários são o produto de doutrinas estrangeiras, invasoras. Ao eliminarmos essas ideias da nossa sociedade, entraremos na plena posse dos nossos destinos, das nossas tradições, das nossas crenças e das características originais da nossa raça. Depois das «medidas purgatórias» da crítica e da higiene intelectual, voltará a haver novamente um Portugal dos portugueses.
Sardinha morreu muito novo, com 37 anos, antes da queda da 1ª República. As suas ideias constituem o núcleo das ideias fascistas que eclodiram em diversos países europeus, entre eles Portugal. Mas não assistiu ao resultado da aplicação prática da sua doutrina. Teria ficado horrorizado? Actualizaria as suas teorias por forma a acolher as monstruosidades que se praticaram decorrentes das suas premissas? Tentaria justificar-se alegando que a sua doutrina tinha sido pervertida?
Na verdade os regimes autoritários que se estabeleceram na Europa levaram a situações diametralmente opostas às que Sardinha fazia entrever na sua visão idílica de uma sociedade harmoniosa, onde cada um na sua função, que lhe cabia pelo sangue ou pela inteligência, ordeiramente, concorria com a sua quota-parte para o bem comum.
O Integralismo Lusitano e a Seara Nova foram os principais grupos doutrinadores na 1ª República. Tinham uma coisa em comum: o erro de pensarem que a pedagogia política conseguia, por si só, modificar a sociedade. Politicamente estavam em pólos opostos. A pujança de ambos não sobreviveu à queda do regime democrático. O Integralismo perdeu a sua razão de ser porque não tinha possibilidade de constituir uma alternativa prática ao salazarismo. A Seara Nova foi amordaçada pela censura e foi sobrevivendo penosamente até reflorescer em meados da década de 60. Mas estava ferida de morte. Já não era a Seara dos eminentes pensadores que lhe tinham dado vida. O PCP era, por via de alguns dos seus membros, o accionista maioritário, e logo que julgou que já não precisava de uma plataforma unitária, no início de 1975, tomou conta da revista e sucedeu à Seara Nova o que aconteceu às restantes publicações do PC: faliu por diminuição das vendas e respectivas receitas
Nota: Curiosamente, o nacionalismo de Sarinha não o impediu, como se pode ler no seu “Aliança Peninsular”, de defender os Filipes, considerando que se tratava de uma monarquia dualista, como o Império Austro-Húngaro, e que a liberdade, cultura, língua e identidade nacionais não estavam ameaçadas pelos reis estrangeiros. Para Sardinha havia uma grande complementaridade entre Portugal e Espanha e ele visionava a futura grandeza portuguesa alavancada pelo maior peso da Espanha, seguindo uma via comum.
Amar os nossos inimigos - o pensamento dos nossos inimigos e a crítica dos nossos inimigos - é o verdadeiro sinal do espírito combativo. Que importa que eles me guardem ressentimento e rancor? Eu preciso deles como do ar que respiro; eu agradeço-lhes o contribuírem para a clarificação das minhas ideias e para a fortificação dos meus motivos de viver; eu afirmo-lhes, para além de todas as minhas disputas, a minha fraternidade e a minha lealdade de inimigo.
Esta parágrafo, da autoria de Raul Proença, mas que eu partilho inteiramente, dedico-o àqueles que discordam frontalmente do que escrevo (os “inimigos”), quer o escrevam aqui, quer apenas o pensem. E aqueles que apenas o pensem, que não se acanhem. Escrevam-no aqui, neste blogue, porque o que é válido para mim, o será certamente para vocês.
Ontem, em Leiria, numa inusitada e surpreendente crise de lucidez, Ana Gomes declarou que «há uma clara falta de nível na política que se faz em Portugal». Ana Gomes caiu em si e reconheceu, finalmente, que a sua «produção política» nos últimos meses tem tido uma clara falta de nível.
Todavia aduziu que «o papel perverso dos media», atrás dos quais estão muitas vezes «poderes ocultos», determina também o comportamento de muitos agentes políticos.
Ana Gomes, estás desculpada! Retiro o que tenho dito sobre a tua incontinência verbal. Vou imediatamente oficiar ao José Lamego, para ele apagar as declarações em que afirmou que «Ana Gomes está a destruir a credibilidade que o PS acumulou em matéria de política externa nos quase 30 anos que levamos de vida democrática» e que «O PS merece melhor e diferente». Mais, vou pedir-lhe para ele se retratar de ter dito que as afirmações de Ana Gomes constituíam "insinuações reles" e "impropério grosseiro".
Ana Gomes é apenas uma pobre, indefesa e instrumentalizada vítima do «o papel perverso dos media» e dos ominosos «poderes ocultos» que se perfilam por detrás desses instrumentos de perversão. Mídias que, conforme os próprios asseveram, não são mais do que meros instrumentos de forças ocultas, como escreveu Madrinha anteontem no Expresso.
Quando Ana Gomes, em diatribes incendiárias, se fez eco de boatos postos a correr por uma revista francesa meses atrás, estava apenas a ser uma vítima inocente desse «o papel perverso dos media». Ana Gomes não passa de um títere cujos engonços são manipulados pelos mídia malvados. Por sua vez, continuando a seguir o pensamento escatológico de Ana Gomes, aquela revista também estaria a ser instrumento de «poderes ocultos».
Resta saber quais as alegações dos «poderes ocultos» para agirem assim. Provavelmente também agem determinados por forças malignas ainda mais ocultas, que por sua vez …etc. … É uma cadeia de forças ocultas que se instrumentalizam numa série cujo início nos transcende. Onde se encontra o privilegiado deus ex machina de todas estas maquinações e instrumentalizações que ele mesmo engendra para usufruto dos amantes de sensações fortes das rábulas mediáticas? Onde mora a prima ratio de todos estes desconchavos?
Que força estranha é esta que está a mover o mundo de Ana Gomes e a transformou numa marioneta insensata e ridícula?
Ou como o Sr. Trichet deu um tiro no pé
Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu, expressou hoje, pela primeira vez, a preocupação da autoridade monetária da Zona Euro com a apreciação da moeda única face ao dólar, afirmando que esta valorização pode ameaçar a subida das exportações. «Os recentes desenvolvimentos nas taxas de câmbio deverão ter um efeito negativo nas exportações», disse Trichet.
O mais curioso é que Trichet produziu tal afirmação à saída de uma reunião onde o BCE decidiu manter os juros em 2%, valor bastante superior à taxa americana.
Ainda mais curioso, ou talvez não, foi que o euro, que tinha descido nos últimos dias de 1,28US$ para 1,26US$, depois das declarações de Trichet voltou a subir quase 1%, ultrapassando os 1,27US$.
Durante semanas as chefias do BCE «desvalorizaram»a valorização do euro face ao dólar americano. Finalmente mostraram preocupações mas, simultaneamente mantêm as taxas de juro, quando se esperaria que as descessem, e têm um discurso ambíguo quando Trichet afirma que a subida do euro «está a ter um impacto negativo» nas empresas exportadoras, que, no entanto, deve ser «parcialmente compensado» por uma aceleração económica global. Portanto, o arrazoado de Trichet (e a cacofonia do seu nome alimenta sérias dúvidas sobre a sua fiabilidade) conduziu à subida do euro e, implicitamente, ao aumento dos receios de «um impacto negativo nas empresas exportadoras».
Ora o que tem preocupado muitos agentes económicos europeus é que a procura interna na UE não é suficientemente forte para superar o fraco crescimento das exportações, induzido pelo alto valor do euro. Ou seja, Trichet, ao produzir aquelas declarações, deu um tiro no pé.
Quanto a Portugal, segundo sábios economistas, não temos problemas, porquanto a quase totalidade das nossas exportações se dirige para os restantes membros da UE. Eu não estaria tão segura, porquanto nesses países as nossas exportações concorrem com produtos vindos de países terceiros, cujos preços, ligados ao dólar, devem ter descido. Mas são economistas sábios, avençados pelas televisões e jornais, que peroram no horário nobre, portanto acima de qualquer dúvida.
Uma coisa é certa: os economistas são excelentes a explicarem o passado; trapalhões a descreverem o presente; imperscrutáveis a preverem o futuro.
Demonstrou-se, no capítulo precedente, que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tinha poder explicativo na sua formulação tradicional.
A minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.
A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos Livros (cujo território se cinge a um espaço exíguo na Baixa lisboeta; rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); “o Rei” (Elvis Presley); etc..
Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.
A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?
Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.
Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?
Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?
As respostas são doravante simples e elementares:
Quem são esses especialistas? – Economistas;
Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;
Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra.
Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo o parecer que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluído no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal se deixava embalar com balelas.
Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.
Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar as prendas para festejar as Saturnalias e a bolsa estava sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.
Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.
Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.
Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela?
Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.
Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus.
Um primeiro cenário era elementar por uma questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram em conjunto centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante dos camelos, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.
Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:
1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato “Santanista” de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;
2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice público nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública reagiria mal à saída para destino incerto, atrás de uma estrela, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias.
3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese de os Ministros da Defesa, eventualmente indicados por facções de menor expressão eleitoral, quisessem evidenciar o seu protagonismo político. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar verba para custear a escolta.
4 – Mas o que definitivamente invalida este cenário é a inexistência de jornalistas embedded na caravana régia. Nem sequer jornalistas perdidos na imensidão do deserto, segundo os usos de um país do extremo ocidente europeu, sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.
Portanto, apenas hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice público e de défice de transacções com o exterior; ausência de escolta; ausência de jornalistas embedded ou apenas transviados, etc.
Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam.
Sendo assim impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, a estudar no próximo capítulo.
Ontem fui verrinosa para com o Madrinha. Mas hoje sinto-me na obrigação de citar um novo artigo publicado no Expresso online, da autoria do José António Lima, bem escrito, como o JAL é capaz quando não anda obcecado pelo fantasma de Paulo Portas, envolto num horrendo lençol branco, arrastando as correntes, com tilintares sinistros, e a entrar em jaguares flamejantes.
JAL põe o problema correctamente, sem preocupações de defesa corporativa. Impecável.
Há um pormenor em que discordo, mas pouco relevante. O JAL sugere que teria sido preferível arquivar as «tais cartas anónimas, irrelevantes» à parte, embora reconheça que tal «não obstaria à sua posterior publicação por quem estivesse e está, como se constata, tacticamente interessado em fazê-lo, para desacreditar a investigação judicial».
Não tenho formação jurídica, mas o bom senso (admitindo que eu o tenha) leva-me a considerar que, sendo o risco de divulgação praticamente idêntico, o lugar delas é junto ao processo, anexadas a ele.
O que Fernando Madrinha publicou hoje no Expresso online é do corporativismo mais bacoco que se pode imaginar, nomeadamente vindo de alguém que sempre havia mostrado contenção e bom senso, mesmo nas épocas mais insensatas que o Expresso atravessou.
Fernando Madrinha escreve “No caso da famosa carta anónima, parece evidente que os jornalistas foram, como muitas vezes acontece, meros instrumentos de fontes com propósitos bem mais criminosos do que os deles. “
Instrumentos, Madrinha? Os jornalistas, na hierarquia animal, estão assim tão baixo? Pior, instrumento nem sequer pertence à hierarquia animal. Você relega os jornalistas para o mundo dos objectos inanimados.
E que instrumento será então um jornalista? Bem, para lidar com excrementos, só me lembro de um: o piaçaba.
Mas o piaçaba serve para ajudar a vazar os excrementos para a rede de saneamento. Neste caso será um piaçaba que traz os excrementos para fora, para a opinião pública.
Madrinha, aviso-o que você acabou de definir o jornalista como um retro-piaçaba.
O Relatório do Banco de Portugal veio dar razão aos textos que têm sido publicados nas últimas semanas no Semiramis. Trata-se todavia de algo de tal forma evidente que não constitui qualquer glória eu ter produzido as afirmações constantes nos textos em causa.
Começando pelo sector privado verifica-se uma ocorrência importante – o modelo de crescimento português - tradicionalmente assente no aumento da procura interna (consumo e investimento) – tem vindo a alterar-se e as exportações de bens e serviços, depois de terem aumentado 3 por cento em 2003, deverão subir acima dos 5,75 em 2004 e dos 7,5 em 2005. A parcela do PIB apenas referente à actividade privada para os próximos anos, mostra um crescimento de 1,5 por cento este ano e de 3 por cento em 2005 - precisamente o dobro das previsões para o conjunto da economia. Ora isto é extremamente salutar.
Por outro lado, não se prevê um aumento do nível de emprego. A taxa de desemprego não deverá descer. Isto é evidente. Todos estão de acordo que o modelo de desenvolvimento para o país não pode continuar a assentar em baixos salários. Simplesmente quem mais apregoa essa máxima irrefutável, quer “sol na eira e chuva no nabal”, isto é, quer salários europeus em indústrias terceiro-mundistas e quando essas indústrias não conseguem elevar os salários ou despedem pessoal, chovem os recriminações contra o “modelo de desenvolvimento” do país.
O que é evidente é que temos que aceitar uma fase em que muitas indústrias tradicionais irão desaparecer e os respectivos trabalhadores, a menos que tenham qualificações para outras actividades, ou tentem melhorar o seu nível de qualificação, ficarão no desemprego. A alternativa é aceitar salários de miséria.
Portanto, se queremos (e temos que querer) mudar o “modelo de desenvolvimento” do país, o Estado, os sindicatos e os trabalhadores terão que se preparar para as “dores de parto” que isso envolve e, em conjunto encontrarem as soluções adequadas que minimizem os “estragos”. Porque esta mudança é um “parto” difícil com muitos estragos. Tenho a certeza que, nos próximos anos, iremos manter uma taxa de desemprego elevada. Mas uma política de requalificação profissional poderá minorar muito esses estragos. Mas para isso todos os protagonistas deste drama terão que se pôr de acordo. E só será possível esse acordo quando os protagonistas mais obstinados, os sindicatos, se convencerem que não há alternativa, pois em Portugal as indústrias terceiro-mundistas têm o destino traçado.
Portanto, se o sector privado não tem razões para festejar, tem pelo menos razões para ter confiança no futuro.
O consumo privado vai manter-se moderado. Mas isso também tem a ver com o excesso de endividamento das famílias durante a última década. Por exemplo, nos últimos cinco anos foram vendidos em Portugal 1,7 milhões de veículos novos. O que significa que, em média, uma em cada duas famílias comprou carro novo desde 1999. Com ou sem crise, era pouco expectável que o ritmo frenético de vendas dos últimos anos continuasse. Em 2003 foram vendidos menos 15% de carros que em 2002 e menos 37% quando se compara com 2000. E o mesmo sucedeu com outros bens de consumo duradouro.
Esta situação também é boa para a nossa economia, porque tem reflexos muito positivos na nossa balança com o exterior. Os bens cuja queda no volume de vendas mais se acentuou são importados.
A questão grave na nossa economia é a do sector público. O governo tem-se revelado incapaz de suster a despesa pública. O Estado é um sorvedouro inexaurível de dinheiro e, apesar das recomendações draconianas, o dinheiro continua a esvair-se de forma inexplicável.
O Relatório do Banco de Portugal assinala que tem que ser feito um esforço sério, com verdadeiros cortes no consumo e no investimento públicos: "É importante não alimentar ilusões porque o crescimento económico moderado que se perspectiva não será suficiente para gerar automaticamente um significativo aumento de receitas fiscais".
Ora esta é uma matéria na qual o governo não tem dado conta do recado que a ele próprio havia dado.
Quando numa empresa a administração não consegue controlar os custos, os accionistas demitem-na e elegem outra. Se este governo gerisse uma empresa, já há tempos que teria sido demitido.
Vendo bem, talvez me tenha excedido: se os accionistas apenas tivessem, como soluções para o Conselho de Administração, os actuais políticos, deitariam as mãos à cabeça, não demitiriam já o actual CA, visto não terem alternativas, e fariam imediatamente uma OPV para se desfazerem das suas acções a arranjaram uma aplicação menos desastrosa para os seus capitais. Seria todavia duvidoso encontrarem alguém interessado na compra desses papéis sem valor!
A esquerda radical tem como ideário de base a teoria de que todas as formas de governo são opressivas e indesejáveis e devem ser abolidas; a resistência activa contra o Estado e a rejeição de todas as formas coercivas de controlo e da autoridade. Para ela, o despotismo não reside somente na forma do Estado, mas no próprio princípio do Estado e do poder político. "A novidade da política vindoura é que ela não será mais uma luta para a conquista ou o poder do Estado, mas uma luta entre o Estado e o não-Estado (humanidade)...". É questionando os fundamentos do sistema e abrindo horizontes alternativos que é possível criar a relação de forças que dá consistência à batalha anticapitalista.
Estas teorias são sólidas, para quem acredita nelas. Todavia, como asseverou Marx, é o ser social que determina a consciência social, primeiro, e, depois, a expressão ideológica dessa consciência. A partir daí as antigas teorias, mesmo as mais sólidas, podem ser derrogadas, por transformação do ser social, mesmo que continuem a serem exibidas, tais trajes de cerimónia, apenas usadas em recepções mundanas e oficiais. Basta observar a curiosa trajectória que Louçã e os líderes bloquistas têm descrito, desde que Ferro Rodrigues assumiu a liderança do PS e, mais nitidamente, desde que este começou a ficar fragilizado com o desenvolvimento do processo Casa Pia.
Sendo o PS um partido da área do poder, cujos dirigentes têm, ao sabor da alternância democrática, gerido o Estado, estando por isso implicados em “formas de governo que são opressivas e indesejáveis e que devem ser abolidas”, comprometidos com “formas coercivas de controlo e da autoridade”, que devem ser rejeitadas e enredados no “próprio princípio do Estado e do poder político” onde reside o despotismo, os seus políticos são, por este postulado teórico incontestável, opressores indesejáveis, déspotas, gestores da exploração dos trabalhadores, logo potencialmente ladrões e corruptos. Sendo assim, os políticos (PS e restantes da área do poder) estarão permanentemente sujeitos, de acordo com este sólido postulado, ao “prejuízo da dúvida” – isto é, são culpados até provas irrefutáveis em contrário, e obviamente, a menos que provem o contrário, objecto permanente de enxovalho público.
Durante anos toda a esquerda radical, antes e depois do nascimento do BE, se indignou face à inacção da justiça perante a malversação da coisa pública, a corrupção dos políticos e os roubos e fraudes dos detentores do poder económico.
Mas isso foi antes do BE ter entrevisto a miragem de se tornar um partido da área do poder. Agora é a justiça, que alegadamente persegue os políticos opressores indesejáveis, déspotas e gestores da exploração dos trabalhadores, que está na mira do BE. O Bloco de Esquerda não está satisfeito com os comunicados produzidos pela Procuradoria-Geral da República e quer levar o assunto à Assembleia da República. Luís Fazenda afirmou que Souto Moura "deve mais explicações ao país" sobre a razão que explica a permanência de cartas anónimas irrelevantes no processo da Casa Pia. "Após as notícias vindas a público, esperava-se uma declaração clarificadora e não foi isso que aconteceu", resumiu o deputado.
De acordo com Luís Fazenda, a situação é "grave" e "tem que haver algum grau de responsabilização na estrutura da Procuradoria". O Bloco de Esquerda critica o facto de "sem qualquer finalidade visível ou utilidade para o processo, diferentes personalidades são salpicadas de lama". Por isso mesmo acrescenta que é "na Assembleia da República que este debate vai ocorrer".
Portanto, na sua actual metamorfose, o BE recusa liminarmente qualquer lama lançada sobre os políticos (entenda-se, os políticos amigos que o BE julga que o vão levar ao colo até ao ambicionado poder). Enquanto a justiça não perseguiu os poderosos, o BE repreendeu-a por não ser capaz de pôr a grilheta no pé aos políticos obviamente culpados. Quando a justiça começou a agir e se prefigurou o risco da grilheta no tornozelo de políticos, o BE tornou-se tão descrente da justiça, como anteriormente o era dos políticos. Se críticas faz, são críticas à justiça: “entendemos que há gente de mais a comentar, juízes a comentarem decisões de outros juízes” discreteava Louçã, quando há meses era questionado sobre os “erros de Ferro Rodrigues na gestão deste processo da Casa Pia”, adiantando que compreendia bem a “emotividade” do Ferro amigo, face à prisão e ao regresso de Paulo Pedroso à AR…
Uma das críticas da Esquerda Radical ao marxismo é a de que as lutas sociais já não estão dominadas pela luta entre o proletariado e o capitalismo. Há uma série de novos espaços de dominação e novas áreas de antagonismo - racismo, discriminação sexual, minorias étnicas e sexuais, etc. - que não cabem na categoria marxista de luta de classes e que geram novos movimentos sociais e identidades. Isto é, as classes em luta já não são caracterizadas pela posição que ocupam face aos meios de produção e pelas relações de produção daí decorrentes.
Todavia, o que é curioso neste processo de aproximação do BE ao “poder” é que ele está a decorrer em simultaneidade com a mudança de discurso. Ou seja, a transfiguração do BE comprova a tese marxista que é o ser social que determina a consciência social (tese da qual deriva toda a teoria da luta de classes entre proletariado e burguesia no capitalismo). Logo, o BE está a agir, “determinado” pela concepção marxista do devir histórico, cuja validade contesta. O BE mudou o discurso porque entreviu a possibilidade de ser um partido da área do poder, em vez de ser, como até há pouco tempo, um partido anti-poder.
Recordo, para terminar, uma das mais belas frases de Marx (e/ou Engels) do Manifesto, quando se referia à desregulamentação de todo o edifício feudal durante a génese do capitalismo: “Tudo o que é sólido se dissolve no ar”. O que hoje parece “sólido” – o PS estar politicamente refém do BE – dissolver-se-á no ar quando o PS sair desta crise de identidade em que se debate, agravada pelas posições insensatas do seu actual líder e as tontices da Ana Gomes, e a inexorável lógica de poder, de um partido da área do governo, vier ao de cima e se impuser entre as suas chefias.
Ou de como Semíramis se muniu de um parecer de um jurista para evitar incorrer nos dislates dos jornalistas
Um escrito contendo uma declaração de ciência, sem identificação do declarante, pode ter dois ‘significados’ jurídico-processuais.
Com efeito, tal escrito pode consubstanciar uma ‘denúncia’, trazendo ao conhecimento das autoridades a chamada ‘notícia do crime’, tal como pode corporizar a prova documental de um facto - ou, melhor, uma prova a um tempo documental e testemunhal.
Como denúncia, o escrito anónimo é perfeitamente válido, devendo merecer das autoridades competentes a atenção que o mesmo imponha - cfr. o art. 246.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen. (que reza assim: “A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais”). Se, por meio de escrito anónimo, for dado conhecimento às autoridades que, dentro de uma semana, terá lugar um assalto a uma concreta dependência de uma instituição de crédito, tais autoridades competentes - Ministério Público e órgão de polícia criminal - não podem, obviamente, deitar a denúncia para o lixo, devendo, antes, autuar a mesma como inquérito e tomar as medidas necessárias a evitar a consumação do anunciado crime.
Esta denúncia anónima deve permanecer nos autos - embora a sua publicidade possa ser vedada a pessoas estranhas ao processo (cfr. o art. 86.º, n.º 3, do Cód. Proc. Pen.) - , não tendo, todavia, qualquer valor probatório. Ou seja, a denúncia anónima serve para dar início ao processo, mas não serve como meio de prova - um facto não pode ser dado por provado com fundamento em constar ele de um documento (denúncia) anónimo.
Diferente da denúncia, é o documento anónimo que visa demonstrar a realidade de um facto, que visa ser um meio de prova. Se o processo já adquiriu a notícia do crime, uma carta anónima remetida aos autos relatando tal crime não tem a natureza de denúncia, mas sim de meio de prova do mesmo.
Todavia, como escrevi, este relato anónimo não pode servir de prova, pelo que não pode ser admitido, devendo ser recusada a sua junção aos autos, sendo tal ‘expediente’ arquivado separadamente nos serviços do Ministério Público - cfr. o art. 164.º, n.º 2, 2.ª parte, do Cód. Proc. Pen..
Se, no âmbito de um processo pendente, é remetida aos autos a denúncia anónima da prática de crimes diferentes dos investigados, mas com eles relacionados, o titular do processo não pode eliminar esta denúncia, sendo certo que a mesma não tem qualquer valor ou préstimo probatório - quer quanto aos factos agora denunciados; quer quanto aos factos já anteriormente objecto do processo. O titular do processo deve tomar tal denúncia na devida consideração.
Se ao processo Casa Pia Noticiado - que é, certamente. diferente do real - chegou uma denúncia anónima, era vedado ao Ministério Público destruir tal denúncia anónima ou entregar a mesma ao visado - esta segunda solução, se não estivéssemos a falar do Presidente da República, pareceria absolutamente insólita: entregar a denúncia ao putativo criminoso...
A denúncia deve ser sumariamente analisada, avaliada e, se for caso disso, investigada.
Nos casos de a denúncia contenha factos respeitantes à intimidade da vida privada, se o processo entrar numa fase pública, não deve a mesma deixar de estar sob o segredo de justiça, apenas podendo ter conhecimento da denúncia o Ministério Público, a Defesa, o Assistente e o Tribunal.
Concluindo: no caso Casa Pia, o procedimento do Procurador titular do processo foi, a este nível, processualmente correcto.
Talvez só um reparo se possa fazer à sua conduta: dizendo a denúncia respeito ao Presidente da República, o processo que a mesma desencadearia deveria, por força da lei, correr os seus termos junto do Supremo Tribunal de Justiça. Assim, poder-se-ia sustentar que o Procurador titular do processo deveria ter remetido a denúncia para o Procurador Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, para que este investigasse o denunciado crime.
Esta solução, embora processualmente mais ‘aprimorada’, é um pouco excessiva, só se justificando quando o Procurador titular do processo, depois de analisar e avaliar a denúncia, entenda que a mesma merece ser efectivamente investigada - o que não será, certamente, o caso.
Em casos como o vertente, a conduta o Procurador titular do processo foi ajuizada: receber a denúncia, avaliando a mesma, e ordenar que fosse ela desentranhada do processo - por não ser credível e por, por outro lado, não constituir meio de prova válido -, mantendo-se, todavia, ‘anexada’ a este.
Autor: Pseudo Éter
Ou onde Semiramis Holmes tenta decifrar um mistério
Há uma carta anónima anexada ao processo da pedofilia, onde estão mencionadas 12 pessoas, distribuídas sexualmente por 9 homens e 3 mulheres e politicamente por 7 PSD, 3 PS e 2 PP. Ao que parece há perto de uma centena de cartas anónimas anexadas ao processo. Todavia só aquela carta foi citada publicamente e tem merecida a atenção quotidiana de todos os meios de comunicação e, dos 12 nomes, só o PR e o comissário europeu, ambos do PS, foram publica e quotidianamente citados.
Vem-me à memória esta curiosa passagem de Conan Doyle:
– Queria chamar-lhe a atenção para o curioso incidente do cão durante a noite.
– Mas o cão não fez nada durante a noite!
Foi esse o curioso incidente – observou Sherlock Holmes.
Ou, numa versão mais actualizada
– Queria chamar-vos a atenção para o curioso incidente da carta anónima anexada ao processo.
– Mas o carta anónima não tem qualquer significado!
Foi esse o curioso incidente – observa Semiramis Holmes.
O que é relevante neste curioso incidente é justamente a carta não conter acusações fundamentadas, isto é, não ter qualquer significado;
O que é relevante neste curioso incidente é justamente esta carta sem relevância ter vindo a público, entre a centena de cartas anónimas anexadas ao processo;
O que é relevante neste curioso incidente é justamente o serem apenas citados publicamente dois políticos do PS, de entre os 12 políticos que constavam da carta;
O que é relevante neste curioso incidente é justamente essa citação ser usada para alegar que a anexação daquela carta, com aquelas 2 citações, poderá configurar uma violação de uma norma do Código de Processo Penal pelo procurador João Guerra;
O que é relevante neste curioso incidente é justamente o coro dos meios de comunicação, citando "diversos juristas", afirmar que a atitude do procurador, anexando aquela carta ao processo, com aquelas 2 citações, no meio da outra centena de cartas e de mais de uma dezena de nomes citados, pode sujeitá-lo a um processo disciplinar;
O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana, que cada vez declama mais alto e mais forte, não se sabe se para dar inteligibilidade ou ininteligibilidade aos espectadores sobre o drama que se desenrola no palco e, principalmente, nos bastidores, dar a entender que é pior uma carta anónima caluniosa, mas disponível para consulta, que destrui-la, criando as condições óptimas para fomentar boatos, incontestáveis face à destruição da carta;
O que é relevante neste curioso incidente é os iluminados exegetas do processo que escrevem nos meios de comunicação, sugerirem que “aquela” carta deveria ter sido destruída, por ser irrelevante, acto que a ocorrer, abriria caminho para que se instalasse a dúvida, face a cartas entretanto destruídas no âmbito de um dado processo, se seriam ou não realmente irrelevantes, ou se sendo-o irrelevantes naquele momento, não poderiam tornar-se relevantes mais tarde; ou pior, possibilitar a destruição selectiva de documentos, pois a sua destruição dependeria do entendimento do responsável pela investigação;
O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana não se mostrar minimamente preocupado com o conteúdo da carta, que é irrelevante, nem com os restantes nomes não citados, o que são inúteis, o que indicia que além de inúteis, serão porventura perniciosos para os objectivos do coro;
O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana ter decorado o papel que está a declamar de forma tão determinada, que o PGR foi obrigado a fazer declarações sucessivas, porquanto o coro interpretava cada declaração do PGR de acordo com o papel que desempenha tão devotadamente, e não de acordo com o sentido que o PGR pretendia dar;
Portanto o que é relevante nesta carta é ela não ter relevo, conter o nome de 2 políticos socialistas de nomeada (um deles o PR) e poder, por via disso, ser usada numa campanha contra a equipa do Ministério Público que conduziu as investigações.
Campanha que atingiu tal dimensão que o PGR teve que vir a terreiro sublinhar que "autores da campanha de intoxicação da opinião pública a que temos assistido" são avisados de que não é "descredibilizando artificiosamente o trabalho de investigação feito" e "pondo em causa a correcção de procedimentos levados a cabo pelo Ministério Público" que "atingirão os seus objectivos". E fazê-lo desta forma tão clara para evitar que os meios de comunicação o continuassem a interpretar ao invés.
Elementar, meu caro Watson, este curioso incidente interessa a quem pretende que estejamos a discutir questões processuais do processo da pedofilia e não a questão da pedofilia e da justiça para as suas vítimas.
Nota: o texto de Conan Doyle é o seguinte:
"Is there any point to which you would wish to draw my attention?"
"To the curious incident of the dog in the night-time."
"The dog did nothing in the night-time."
"That was the curious incident," remarked Sherlock Holmes.
Correspondendo ao seu apelo sobre os efeitos da liberalização dos combustíveis tenho a dizer-lhe que não sei o que se irá passar.
Não pense que a afirmação anterior pode indiciar ignorância. Longe disso. O papel de um consultor é dar pareceres em face de cenários possíveis. Portanto acontece sempre aquilo que o consultor previu, porquanto se pode explicar qualquer acontecimento a posteriori, mesmo o mais gravoso, referindo que tal ocorreu apenas por ter acontecido o cenário pior. As previsões até estavam certas.
Depois desta introdução, que funciona como providência cautelar, passemos à matéria: A distribuição de combustíveis funciona em oligopólio. Sabe-se que em oligopólio, em matéria de política de preços tudo pode acontecer. Alguns economistas ilustres têm inclusivamente afirmado que se trata de um problema com solução indeterminada.
Admite-se, como dado seguro, que na zona dos custos marginais crescentes, as firmas com menor quota de mercado prefiram praticar o preço mais baixo, enquanto na zona dos custos marginais decrescentes, é a firma com maior quota de mercado que prefere praticar o preço mais baixo. Se o custo marginal é constante para uma relevante amplitude da produção, as diferenças entre quotas de mercado não têm reflexos nas preferências dos preços.
Provavelmente foi por aquela razão que as firmas com quota de mercado superior (a GALP, p.ex.), e portanto com maiores sinergias na distribuição, desceram a sua margem em 0,01€/litro, mantendo o preço (o Imposto sobre Produtos Petrolíferos tinha aumentado aquele valor), enquanto as firmas com menor quota de mercado optaram por manterem as suas margens, aumentando o preço ao público.
Quanto à questão da cartelização, ela não é necessária para as firmas alinharem os preços. Frequentemente a firma com maior quota de mercado (maior rede de distribuição ou maior capacidade produtiva) anuncia as novas listas de preços e as concorrentes limitam-se a segui-la. Entrar numa guerra de preços pode ser contraproducente. Se não houver uma política comercial agressiva, o consumidor pode nem sequer dar pela diferença de preços.
Esta política não permite preços muito acima do custo marginal. Normalmente a firma-líder age como barómetro do mercado. Um aumento superior ao "aceitável" tem o risco de conduzir a uma guerra de preços, quer movida por firmas existentes no mercado, que podem julgar que será favorável para elas não acompanhar o preço da líder e tentarem conquistar uma quota de mercado significativa, quer por firmas que possam penetrar no mercado, por acharem que os preços praticados compensam os custos de entrada no mercado.
Portanto, não é necessária a cartelização para haver um certo alinhamento de preços. Aumentos mais substanciais só com conluio. Todavia, num negócio deste tipo, a cartelização (ou o conluio na fixação de preços e/ou quantidades) é facilmente detectada (e é ilegal). Poderá haver circunstâncias conjunturais que induzam um conluio oligopolista, mas na maioria dos casos a luta pela conquista de maiores quotas de mercado sobrepõe-se à vontade de manter os preços artificialmente mais elevados. Além do que não há a garantia que uma ou mais firmas não furem o esquema e baixem os preços (ou não os subam) unilateralmente. Ou não há a garantia que um novo distribuidor, seduzido pelos preços praticados, não entre no mercado, criando dificuldades às firmas existentes pela progressiva erosão das suas quotas de mercado, tal como é explicada pela teoria dos monopólios contestáveis.
Tudo depende das políticas de preços e dos riscos que as distribuidoras de combustíveis estão dispostas a correr. Em princípio, a tendência será um ligeiro abaixamento do preço de mercado, embora não seja de excluir que as firmas tentem manter as margens actuais, esperando que as concorrentes não as baixem, ou seja, a manutenção dos actuais níveis de preços.
O que foi escrito refere-se à situação global no país. Localmente, induzidos pelo efeito da discriminação espacial de preços, poderão ocorrer ligeiros aumentos de preços. Um distribuidor local, sem concorrência nas imediações, pode aumentar ligeiramente a sua margem, sabendo que não é compensador para os consumidores deslocarem-se a uma bomba longínqua para encherem os depósitos.
Portanto, quando a Deco declara “que o preço dos combustíveis vai disparar nos próximos meses, sobretudo nos postos das auto-estradas e nas pequenas cidades, devido à livre fixação de preços”, terá, embora muito parcialmente, razão: em zonas onde a discriminação espacial de preços for possível poderá haver aumentos de preços. O resto do discurso da Deco é a tendência normal dos portugas para a notícia catastrófica.
Uma situação oposta é a de uma bomba recém instalada que tentará atrair e fidelizar clientela através de um abaixamento significativo do preço. Será uma situação conjuntural que tenderá, a médio prazo, para a normalidade em termos de preço, à medida que for angariando clientela.
Como vê, e como lhe dizia no início … tudo pode acontecer.
Romano Prodi é o presidente da Comissão Europeia. Normalmente um presidente é suposto representar toda a população a que preside, mesmo aqueles que não votaram nele. É a regra dos países democráticos, onde a democracia representativa está alicerçada e desenvolvida.
Todavia, em entrevista ao jornal italiano «La Republica», hoje publicada, Romano Prodi afirma que «é claro que se a situação não for desbloqueada em 2004 então alguns países poderão, e se calhar deverão, tomar a iniciativa e prosseguir em frente».
Portanto, para Romano Prodi haverá várias visões da Europa, mas apenas uma “visão” correcta, a sua, ou seja, a de alguns países que poderão, e se calhar deverão, tomar a iniciativa e “prosseguir em frente”.
Para o presidente da Comissão Europeia, os Estados que podem vir a tomar a dianteira da Europa «podem ser membros fundadores» da UE, mas também, e esta situação é «mais provável e desejável», poderá ser «um grupo misto de antigos e novos Estados que partilhem a mesma visão da Europa».
Romano Prodi está equivocado. Ele é o presidente da Comissão Europeia e não o presidente do Fórum Social Europeu, onde há a visão “correcta”, a nossa, a das vanguardas conscientes, e a “obnóxia”, a dos outros, dos ignaros, das massas transviadas pela sociedade de consumo.
Uma Europa a 2 velocidades é um erro a curto prazo e absolutamente insustentável a longo prazo. Seria a destruição da unidade europeia. E Prodi sabe isso.
Mas Prodi não pretende a destruição da unidade europeia. Pretende apenas chantagear aqueles que se opõem ao diktat franco-alemão. Prodi esquece-se todavia que a própria política “imperial” franco-alemã já começa a ser contestada dentro dos próprios países. Os revezes internacionais sofridos pela França e pela Alemanha no ano passado, fruto das suas nostalgias de grandes potências e de uma grande inabilidade política ainda não penetraram “dans les petits crânes de Paris et Berlin”, mas já agitam as mentes de muitas personalidades influentes daqueles países.
Prodi arrisca-se a ter falado fora do tempo, a estar noutra velocidade, a ter engrenado a velocidade errada.
Onde Semiramis relata a Glauco, e à blogosfera em geral, o aprisionamento da percepção da verdade
Nós estamos, desde o início desta história da pedofilia, dia após dia, aprisionados na caverna subterrânea da justiça. Os nossos raciocínios e sentimentos estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas na direcção da informação que nos é veiculada, não podendo abri-los em qualquer outra direcção, nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna da justiça permite que uma ténue luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar as sombras que se movem no interior.
Por causa da luz exterior, enxergamos na parede do fundo da caverna algumas sombras processuais: documentos, depoimentos, escutas, testemunhas, etc., mas sem os podermos ver nem os factos, nem as pessoas a que dizem respeito.
Como nunca vimos as coisas “em si”, nós, os prisioneiros, imaginamos que as sombras que vemos são as próprias coisas. Ou seja, não podemos saber que são sombras, nem podemos saber se são factos, nem se são aquelas as pessoas a que respeitam, ou se há outras pessoas relacionadas esses factos fora da caverna. Também não podemos saber o que enxergamos porque imaginamos que toda a luz feita sobre os factos é a que reina na caverna.
Que aconteceria se algo nos libertasse? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria a opinião pública agrilhoada e a luz intensa vinda da abertura. Embora dorido por meses de imobilidade, começaria a caminhada rumo à entrada da caverna.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a verdade é como a luz do sol, e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se à claridade, enxergaria as próprias coisas e factos, descobrindo que, durante o ano que passou não vira senão sombras de imagens projectadas no fundo da caverna e apenas as relativas aos factos que quiseram projectar, e que somente agora está contemplando a realidade em si.
Liberto e conhecedor do real, o prisioneiro regressaria à caverna, contaria aos outros o que vira e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse regresso? Os demais prisioneiros troçariam dele, não acreditariam nas suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo, tentariam fazê-lo por qualquer outra forma e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por o hostilizar e eliminar do seu convívio.
E assim estamos nós. A imagem que nos chega das peças acusatórias é a que nos querem mostrar, reflectida segundo os ângulos que pretendem. O poder mediático e político dos arguidos e o poder corporativo da justiça são, ou podem ser, cristais refractores que criam ilusões onde deveria transparecer a verdade, que nos mergulham na sombra quando a nossa natureza humana anseia por viver banhada na luz da verdade.
Ou de como Semiramis resolveu iniciar o ano a filosofar