O Ambiente em Portugal está péssimo. Pior é impossível. O Ministro é um homem que não percebe nada de Ambiente, sem personalidade e permeável às opiniões dos que o rodeiam. Também não esconde isso: pessoa de trato simpático e de conversa agradável, Amilcar Theias fala de ambiente sempre com um jeito de estar a pedir desculpa pela sua ignorância. O Ministro Theias emite opiniões ... mas cada opinião é a opinião do último com quem falou.
O Secretário de Estado do Ambiente, José Eduardo Martins, também não percebe nada de ambiente mas, ao invés de Theias, é firme no que diz, mesmo que diga agora uma coisa e outra, contrária, mais logo. Tem opiniões firmes sobre a incineração. Só não se sabem quais. Haverá uma incineradora na ERSUC? Uns dias é sim, outros dias é não. A incineradora da Valorsul será ampliada? Uns dias é sim, e parece querer inviabilizar as soluções programadas para outros sistemas contíguos, para ter volume de resíduos suficientes para incinerar. Outros dias é não e parece que as soluções planeadas nos outros sistemas têm luz verde para avançar.
Como não percebe nada, quer de ambiente, quer de economia das instalações industriais anda com a ideia peregrina de construir mais de uma dúzia de mini instalações de digestão anaeróbia, sensivelmente 20% da dimensão mínima óptima (DMO). A digestão anaeróbia, embora uma boa solução do ponto de vista ambiental, é uma solução relativamente cara. Se se admitir um factor de escala de 0,6, normal neste tipo de instalações industriais, o custo por unidade de resíduos tratados nas mini-unidades de digestão anaeróbia é o dobro do das unidades de digestão anaeróbia de DMO. Ou seja, o dobro de um valor já de si elevado. Quem paga esta ineficiência económica? Os munícipes?
Como estas ideias, suficientes para o desqualificar nos meios técnicos, não lhe angariavam notoriedade entre o público em geral, afirmou há dias que está a pensar implementar um sistema de coimas variando entre 25 e 100 euros a aplicar a quem não separar devidamente o lixo.
A remoção selectiva e reciclagem é uma solução que depende menos do investimento que da boa organização de recolha selectiva e do empenhamento e civismo de toda a população. É uma solução que terá que ser implementada iterativamente, melhorando os processos de remoção selectiva e levando as populações a aderirem em cada fase. É o próprio mecanismo da organização da recolha que enquadra e pressiona a população para o cumprimento das regras da separação e deposição dos resíduos. Terá que haver penalizações para os incumprimentos, mas essas penalizações só poderão funcionar se a organização da recolha selectiva for eficiente e bem estruturada e, portanto, houver a possibilidade de o grau de incumprimento ser determinado com critérios objectivos e para todo o universo dos utentes. É assim que se faz na Europa Central e do Norte.
O sistema de coimas lançado a lume pelo Secretário de Estado do Ambiente é ridículo na situação actual. Será que o senhor Secretário de Estado do Ambiente está a pensar colocar fiscais permanentes nos milhares de ecopontos existentes e nos milhares que ainda faltam instalar?
E se os cidadãos, em vez de colocarem voluntariamente o lixo nos ecopontos, apenas utilizarem a recolha indiferenciada, isto é, não separarem o lixo e colocarem tudo, de forma indiferenciada, à porta? E, nesse caso, quem depõe o lixo nos ecopontos paga coimas se se enganar (admitindo que o Secretário de Estado do Ambiente instalava os tais milhares de Fiscais do Lixo) e quem mistura tudo, para a recolha indiferenciada diária do camião do lixo, não paga coimas?
E que explicação vai o Secretário de Estado do Ambiente dar aos cidadãos que forem multados (admitindo que ...) e que vêem em simultâneo os operadores da remoção selectiva misturarem todo o conteúdo dos 3 contentores no camião de recolha?
O senhor Secretário de Estado do Ambiente está finalmente a conseguir ter notoriedade pública. Infelizmente pelos piores motivos.
Um leitor deste blog inseriu um comentário a um texto que eu escrevi sobre António Sardinha, na data da efeméride da sua morte. Como se trata de um comentário muito extenso e com bastante interesse documental, resolvi transcrevê-lo aqui, no corpo do blog, agradecendo em simultâneo ao Rodrigo a sua inserção.
Queria ainda acrescentar que o meu texto sobre António Sardinha foi objecto de uma série de comentários com bastante interesse sobre essa notável figura que eu julgava mais esquecida do que afinal está, a avaliar pela polémica que despertou.
-----------------------------------------------------
Integralismo Lusitano uma síntese
Por José Manuel Alves Quintas
1. A formação, 1913-16
A expressão "Integralismo Lusitano" foi usada pela primeira vez por Luís de Almeida Braga na revista Alma Portuguesa (Gand, 1913) designando um projecto de regeneração de Portugal.
Em 1913, Almeida Braga exprimia-se em termos religiosos e filosófico-estéticos, se bem que com evidente intencionalidade político-cultural, reagindo ao Saudosismo gnóstico de Teixeira de Pascoaes (O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, 1912) e ao movimento da "Nova Renascença" (criado pelo grupo de republicanos portuenses da revista A Águia). Na vertente político-religiosa, estes defendiam que o regime republicano abria novas possibilidades de regeneração para Portugal, mas que esta só se concretizaria se fossem quebrados definitivamente os laços com a Igreja Católica; Almeida Braga, interpretando o recém-implantado regime republicano como uma nova etapa no processo de decadência, advogava que a regeneração só seria possível através de um retorno à integralidade do espírito católico que fizera Portugal.
Esta era uma visão partilhada por um grupo de jovens estudantes monárquicos, exilados na sequência da sua participação nas incursões da Galiza comandadas por Paiva Couceiro entre os quais se contava também Simeão Pinto de Mesquita e Francisco Rolão Preto , que contestavam, afinal, no plano religioso e filosófico-estético, uma das expressões culturais da ofensiva anti-clerical republicana.
O projecto integralista lusitano, porém, depressa transbordou para o plano político. Em 1914, na revista Nação Portuguesa, sob a direcção de Alberto de Monsaraz, a expressão "Integralismo Lusitano" designava já um índice de soluções sob o título "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar". Tanto quanto promover o renascimento do espírito católico na alma dos portugueses, criar uma nova literatura e uma nova arte despojada do espírito romântico do século anterior, havia agora que trazer de novo à luz do dia os princípios políticos da antiga Monarquia portuguesa.
Para os integralistas, não haveria uma verdadeira regeneração portuguesa sem o retomar das suas antigas tradições políticas. A Monarquia do absolutismo Iluminista (introduzida em Portugal pelo Marquês de Pombal no século XVIII), bem como a sucedânea Monarquia da Carta (importada pelos liberais de novecentos), tinham sido estrangeirismos descaracterizadores, responsáveis pela subversão dos princípios democráticos e populares da antiga Monarquia.
Se bem que os integralistas recuperassem o espírito dos Vencidos da Vida ao defenderem o imperativo regeneracionista de um "reaportuguesamento de Portugal", iam agora mais fundo: era necessário recuperar o antigo pensamento político português que, do mesmo passo, reconhecera os foros e liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecera as regras da sua representação em Cortes e definira o conteúdo dos pactos que os Reis, sob pena de Deposição, juravam respeitar.
E foi em torno desse princípio orientador - "reaportuguesar Portugal" - que um grupo de jovens monárquicos, que não se reconheciam na Monarquia deposta como Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, José Pequito Rebelo , se reuniu com um grupo de republicanos entretanto convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada António Sardinha, João do Amaral, Domingos Garcia Pulido, entre outros.
Em 1914, os integralistas apresentaram um índice de soluções politicas e afirmaram obediência a D. Manuel II. O seu propósito, no entanto, ainda não visava uma intervenção política na direcção da conquista do poder. Antes de mais, havia que lembrar aos próprios monárquicos o que fora a antiga Monarquia portuguesa; era necessário voltar a semear as ideias do pensamento político português, ler de novo autores como Álvaro Pais, Frei António de Beja, Jerónimo Osório, Diogo de Paiva, Frei Manuel dos Anjos, Frei Jacinto de Deus, Sousa de Macedo, Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia
A primeira reacção dos políticos que defendiam os regimes constitucionais modernos, tanto monárquicos como republicanos, foi a de se fazerem desentendidos, acusando os integralistas de cópia de um movimento político neo-monárquico que, naquela época, fazia furor em Paris a Action française. Bem diversa foi a reacção do velho "Vencido da Vida Ramalho Ortigão que, na Carta de um Velho a um Novo (1914), depôs as suas armas perante aquela nova ala de namorados, explicando em que consistia a sua incontestável superioridade: estes tinham admiravelmente pressentido a necessidade culminante da reeducação integral do povo português («Filhos de Ramires» - a herança de «Os Vencidos da Vida»).
Em 1915, na vaga de crescente activismo monárquico, os integralistas acabaram sendo catapultados a um lugar de destaque entre os manuelistas, apesar do seu programa contrastar vivamente com o modernismo político da maioria. Ao realizarem um ciclo de conferências na Liga Naval de Lisboa, alertando para o perigo de uma absorção pelo Reino de Espanha, o seu violento desfecho as instalações da Liga Naval foram assaltadas e destruídas, sem que Luís de Almeida Braga tivesse apresentado A Lição dos Factos acabou por projectá-los para a ribalta política.
2. A esperança restauracionista, 1916-19
Com a entrada de Portugal na Grande Guerra, em Abril de 1916, os integralistas lusitanos decidem anunciar a sua transformação em organização política. No Manifesto subscrito pela Junta Central recém-constituída, reafirmaram obediência a D. Manuel II e a sua confiança na aliança luso-britânica, chamando os restantes monárquicos a cerrar fileiras em torno da Pátria em guerra.
Com a chegada ao poder de Sidónio Pais, os integralistas colaboraram activamente na situação presidencialista que se esboçou. O propósito Sidonista de acolher uma representação socioprofissional no Senado tinha para eles profundo significado político: pôr fim ao monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos (regime parlamentar), permitindo a representação dos municípios, dos sindicatos operários, dos grémios profissionais e patronais, etc., era dar um primeiro passo no sentido do restabelecimento da democracia orgânica da antiga Monarquia portuguesa.
Na sequência do assassínio de Sidónio Pais, os integralistas entenderam que soara a hora da restauração do Trono. Face à imediata reacção dos partidos, que de novo se arrimaram ao poder com o intuito de restabelecer o parlamentarismo, os integralistas vêm a desempenhar activo papel no desencadear do pronunciamento restauracionista de Janeiro de 1919 (ver Os combates pela bandeira azul e branca, 1910-1919), no Porto e em Lisboa (Monsanto). A Restauração declarou em vigor a Carta Constitucional, mas isso não impediu que os integralistas manifestassem aceitar a nova ordem. Primum vivere, deinde philosophare era o princípio que adoptavam; agarravam a parte prática e positiva" da obra restauradora.
3. Redefinição estratégica, 1919-22.
Durante a denominada "Monarquia do Norte", houve destacados monárquicos, como Alfredo Pimenta, que só souberam dos acontecimentos através dos jornais. Os integralistas, directamente envolvidos nas acções político-militares que rodearam os pronunciamentos, retirarão graves conclusões da derrota, procedendo a uma completa reavaliação da sua posição, tanto na questão dinástica, como na questão política.
Na questão dinástica, interpretando o imobilismo de D. Manuel II, no decurso dos acontecimentos, como um sinal de incapacidade e fraqueza, decidem desligar-se da sua obediência, declarando colocar o interesse nacional acima da Pessoa do Rei.
Na questão política, desfeita a aliança com os manuelistas, resolvem assumir a integralidade do seu ideário. Em 1919, ficara definitivamente enterrada a Monarquia da Carta. A resolução do problema nacional teria doravante que passar por um Pacto a estabelecer entre o Rei, os municípios, e os trabalhadores de todas as classes e profissões organizados corporativamente.
Estabelecidas negociações com o ramo legitimista da Casa de Bragança vem então a obter-se o Acordo de Bronnbach (1920), pelo qual a Junta Central do Integralismo Lusitano e o Partido Legitimista fizeram o reconhecimento conjunto do neto do Rei D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança.
Perto de 2 anos depois, o pacto dinástico de Paris ainda veio colher de surpresa os partidários de D. Duarte Nuno. Porém, e enquanto os manuelistas rejubilavam com os termos do acordo, no dia imediato, os Integralistas Lusitanos e os Legitimistas recusaram-se a reconhecê-lo e a acatá-lo.
A questão criada pelo Pacto de Paris só ficou definitivamente resolvida em 1926, quando a Tutora de D. Duarte Nuno, D. Aldegundes de Bragança, o repudiou formalmente, mas, para os integralistas, havia um equívoco maior que, mais tarde ou mais cedo, acabaria também por ceder: o de se alicerçar um regime nas clientelas partidárias, fossem elas monárquicas ou republicanas. A 1ª República, ao reproduzir o modelo parlamentar da Monarquia deposta, organizando-se por hierarquias de políticos e de caciques, acabaria também por ruir. Para os integralistas, era decerto necessário continuar a promover o princípio monárquico, mas era agora absolutamente imprescindível refazer as corporações, os sindicatos, e organizar uma acção nacional paramilitar com forças voluntárias e audazes. Deixava de bastar uma simples restauração do Trono. A luta a travar não se podia cingir ao plano estritamente político. Estava aberta a via que vem a desembocar no Movimento Nacional-Sindicalista: Alberto de Monsaraz reedita a Cartilha do Operário e Francisco Rolão Preto é cooptado para a Junta Central do Integralismo Lusitano (1922).
4. Os esfacelamentos, 1922-34.
Durante os anos 20 os integralistas vêm a alimentar muitas esperanças e a sofrer não menos contrariedades e decepções.
Em 1925, a morte de António Sardinha, quando tinha apenas 37 anos, foi sentida como uma grande perda. A Junta Central ficava sem aquele que, dada a força mística do seu Verbo, e apesar do ascendente de Hipólito Raposo, muitos consideravam ser o líder dos integralistas.
De imediato, o Integralismo Lusitano desempenhará papel de relevo nas movimentações político-militares que levaram ao derrube do regime parlamentarista, em 28 de Maio de 1926. Pouco depois do general Gomes da Costa ter sido afastado da direcção da Ditadura Militar, porém, a Junta Central integralista ("Primeira Geração") começou a fazer sentir as suas reservas acerca da evolução da situação política. As prevenções e cautelas que estes faziam sentir junto da sua hoste acabaram por não encontrar acolhimento. Muitos persistiram colaborando com a Ditadura, sucedendo-se as dissidências e cisões: em 1927, desvincularam-se José Maria Ribeiro da Silva, Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias, Rodrigues Cavalheiro, Marcelo Caetano, Pedro de Moura e Sá; em 1928, Manuel Múrias consumou a sua dissidência; em 1929, deu-se a ruptura definitiva de Teotónio Pereira e Marcelo Caetano, dissolvendo o Instituto António Sardinha; em 1930, deu-se a dissidência de João do Amaral.
Consumada definitivamente a ruptura entre os mestres do Integralismo Lusitano e a Ditadura, em 1931, e perante a referida sucessão de dissidências e deserções, Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, in extremis, ainda tentaram recuperar alguma influencia no curso dos acontecimentos, suspendendo a reivindicação do Trono e autonomizando o Movimento Nacional-Sindicalista. O insucesso foi total. Ao tentarem aliciar as juventudes influenciadas pelos fascismos, recorrendo a métodos similares de organização e de propaganda, acabaram por ser confundidos com os próprios fascistas. E se não deixavam de denunciar os princípios políticos dos fascismos, por modernistas ou retintamente jacobinos totalitarismos divinizadores do Estado, foi a expressão usada por Rolão Preto em entrevista à United Press , a verdade é que a natureza comunitária e personalista do ideário Nacional-Sindicalista acabou por confundir e desiludir mais do que atrair.
Tal como acontecera com a "Segunda Geração" integralista, também a juventude atraída para o Nacional-Sindicalismo, que os integralistas pretendiam manter no campo do sindicalismo orgânico e das liberdades, acabou por se transferir para o campo estatista-autoritário do salazarismo emergente que, além do mais, oferecia melhores garantias de realização para ambições profissionais e pessoais.
Em 1932 o Integralismo Lusitano estava já em completa desagregação, impotente para influenciar o curso dos acontecimentos políticos, quando D. Manuel II morreu sem descendência. A par dos restantes organismos monárquicos, acabou por se dissolver para integrar a Causa constituída em torno de D. Duarte Nuno. Uma profunda diferença, no entanto, vai persistir entre o comportamento dos integralistas lusitanos e o dos restantes monárquicos: enquanto a maioria dos antigos apoiantes de D. Manuel II, cedendo ao convite de Salazar, passou a colaborar com o Estado Novo em formação, os integralistas decidiram passar ao combate contra essa nova face do modernismo político português a Salazarquia (expressão de Hipólito Raposo).
5. Sob a «Salazarquia», 1934-74.
Entre os anos 30 e 50, dissolvido o Integralismo Lusitano enquanto organismo político, e desfeita a experiência negativa do Nacional-Sindicalismo, os integralistas da primeira geração não deixaram de denunciar o falso monarquismo de Salazar e a natureza modernista e autocrática do regime do Estado Novo. Entre os restantes monárquicos, porém, a indiferença foi geral, apesar dos sobressaltos: Rui Ulrich, embaixador em Londres, em 1936, foi forçado a demitir-se por ter convidado, para almoçar na Embaixada, D. Duarte Nuno de Bragança; Afonso Lucas foi demitido do Tribunal de Contas, na sequência da publicação de um artigo publicado em A Voz; em 1940, Hipólito Raposo foi preso e desterrado para os Açores, por ter publicado o livro Amar e Servir, onde denunciava a "Salazarquia".
As 3ª e 4ª Gerações do Integralismo Lusitano, porém, vão sendo reunidas e endoutrinadas em torno de revistas como a Gil Vicente (Manuel Alves de Oliveira), jornais como o Aléo (Fernão Pacheco de Castro), editoras como a GAMA (Leão Ramos Ascensão, Centeno Castanho, Fernando Amado), criando-se mesmo, em 1944-45, o Centro Nacional de Cultura.
Em meados dos anos 40, os integralistas espreitam oportunidades de colaboração com o chamado "reviralho": Francisco Rolão Preto vem a ressurgir politicamente através do Movimento de Unidade Democrática; em 1947, Vasco de Carvalho está a conspirar ao lado de Mendes Cabeçadas; dois anos depois, na eleição dos deputados da Assembleia Nacional, é a vez de Pequito Rebelo entrar em concertação com o republicano Cunha Leal, desafiando as candidaturas da União Nacional, respectivamente em Portalegre e Castelo Branco.
Em 1950, os jovens estão já em condições de receber o legado integralista através de uma reactualização doutrinária intitulada "Portugal Restaurado pela Monarquia". Pela mesma altura, surgiram novas publicações, como a revista Cidade Nova (José Carlos Amado, Afonso Botelho, Henrique Barrilaro Ruas) ou jornais como O Debate (António Jacinto Ferreira, Mário Saraiva).
O movimento dos chamados "monárquicos independentes", reunindo grande parte das novas gerações formadas junto dos Mestres do Integralismo Lusitano, apresenta o seu manifesto em 1957. No ano seguinte, Almeida Braga e Rolão Preto surgem a apoiar a candidatura de Humberto Delgado à presidência da República. Terminavam ali os "anos de chumbo do Estado Novo" (expressão de Fernando Rosas), com os integralistas em melhores circunstâncias para atrair os monárquicos desiludidos.
Até ao derrube do regime do "Estado Novo", em Abril de 1974, sucedem-se as iniciativas com a crescente responsabilidade das novas gerações integralistas, como a Comissão Eleitoral Monárquica, o Movimento da Renovação Portuguesa, ou a editora "Biblioteca do Pensamento Político", promovida por Mário Saraiva. Em 1970, é ainda por intermédio de Mário Saraiva que o ideário integralista vem a obter significativo acolhimento no seio da Causa Monárquica: o livro Razões Reais, no qual ficou sucintamente exposta a sua doutrina política neo-integralista, vem a obter aprovação e adopção pela Comissão Doutrinária da Causa.
7 de Abril de 2000
Inserido por:
Rodrigo
rodrigalfreitas@hotmail.com
A situação económica portuguesa é preocupante e a nossa balança de transacções com o exterior continua negativa, apesar do rendimento disponível das famílias ter estagnado ou mesmo diminuído. O país precisa urgentemente de aumentar as suas receitas na área de exportação de bens e serviços.
Tenho-me dedicado devotadamente a investigações nesta área, intentando obviar o fraco desempenho do Ministro da Economia e a nulidade da acção cadilheana da Agência Portuguesa para o Investimento, diligenciando salvar o país da embrulhada em que está. Essa minha investigação, apesar de não ser subsidiada (ou talvez por isso mesmo) está já a revelar-se frutuosa. Acabo de inventariar um importante nicho de mercado que, devidamente trabalhado, pode salvar o país do atoleiro em que se encontra. Em face do relevo e da importância da comunicação que decidi fazer sobre essa matéria, entendi revelá-la aqui, por considerar ser este o local mais apropriado.
Um recente relatório britânico revelou a emergência de um novo e extenso fenómeno social, que esse relatório designa por «turismo do desgosto». Os britânicos trocaram gradualmente a sua lendária fleuma por uma espécie de «desgosto», expresso após a morte de celebridades, vítimas de crimes ou desgraças alheias o que parece configurar um «desgosto recreativo» puramente egoísta e voyeurista. Este «desgosto», acrescenta o relatório, é consumido «como um acontecimento agradável, um pouco como assistir a um jogo de futebol».
Portanto está definido um enorme segmento de procura. Ora sucede que nós somos os que temos a oferta mais inovadora neste domínio. Quotidianamente os Jornais da Noite (e da Tarde), Jornais Nacionais e TVI Jornais, Telejornais, etc., em horários nobres, em horários plebeus e em horários servis, servem-nos um manancial inesgotável das desgraças mais definitivas, das misérias mais acabrunhantes, dos desgostos mais pungentes, casas que ressumam humidade, com soalhos desfeitos, ou mesmo sem soalhos, choças que albergam a mãe, o pai, a madrasta, os ascendentes, os colaterais e dezenas de descendentes, gente envenenada por monóxido de carbono desprendido de esquentadores, braseiras, etc., toneladas de chapas retorcidas e fumegantes espalhadas por todas as Auto-estradas, IPs, ICs e estradas municipais, todos os cataclismos nacionais e internacionais, ocorridos nos últimos dias, com os pormenores mais sanguinários, miseráveis e aviltantes, que as cameras conseguiram captar. Cada desgraça é repetida, dias a fio, até à exaustão, para que o «turista do desgosto» (por enquanto apenas turistas nacionais) possam aperceber-se de toda a amplitude, pormenores, consequências, etc., da desgraça em causa, e usufruí-la toda, libá-la até ao fundo, sem que lhe escape o mais ínfimo pormenor.
O relatório diz que o desgosto é desporto favorito dos britânicos. Ora apenas nós conseguimos aliar desporto e desgosto com tanto saber e com um requinte tão malevolente e recreativo. Durante uma semana transmitimos a morte de um jogador num estádio dezenas de milhar de vezes, de todas as perspectivas possíveis e sob todos os ângulos imagináveis e inimagináveis, com as imagens correndo à velocidade normal ou a todas as velocidades intermédias possíveis. Numa semana, aquele jogador foi morto dezenas de milhar de vezes com um requinte e um talento que apenas os nossos editores televisivos são capazes.
Portanto, há uma procura enorme, cerca de sessenta milhões de britânicos, e uma oferta imbatível, inovadora, única no mundo cada TV portuguesa passa, por sessão (com várias sessões diárias), uma hora e meia de uma descrição massacrante de desgraças de tal monta que nem os 4 (ou mesmo 4 mil, ou 4 milhões) Cavaleiros do Apocalipse, nem a abertura de todas as Caixas de Pandora, poderiam fornecer um painel tão completo e um cardápio tão variado.
Apenas nós estamos aptos a satisfazer os anseios de uma época «caracterizada por lágrimas de crocodilo e emoções pré-fabricadas» e produzir em tão larga escala «manifestações vazias de compaixão pública». Temos que aproveitar.
Portanto propõe-se o estabelecimento de uma ponte aérea entre o Reino Unido e Portugal e a legendagem em inglês dos telejornais, embora esta última medida possa não ser necessária, porquanto as imagens são de tal forma arrepiantes e significativas que qualquer palavra é nociva, pois apenas desvia a atenção do «turista do desgosto» da crueza e sanguinária beleza da imagem. E nós queremos que o «turista do desgosto» frua todo aquele sangue, membros retorcidos, corpos decapitados ou a arder, mortes em directo, etc., em toda a sua plenitude, em toda a sua beleza natural e selvática.
E este turismo tem outra vantagem - é complementar do turismo baseado no sol e praias. Como as desgraças maiores acontecem com a intempérie, chuva, neve, etc., a procura turística será maior no inverno que no verão, o que manterá a indústria hoteleira com ocupações elevadas durante todo o ano. Aliás, se o êxito desta iniciativa induzir uma ocupação superior à da época estival, podemos colmatar essa sazonalidade, deitando fogo às florestas na época baixa (Julho, Agosto). Temos boas condições para manter uma elevada procura nesta área: excelentes pirómanos (alguns acumulam com o serem bombeiros, o que lhes dá um know-how específico muito elevado), bombeiros que alugam a terceiros os seus equipamentos de combate aos fogos, florestas que não são desmatadas, quer por iniciativa dos particulares e do Estado, quer porque o ICN quer proteger a biodiversidade, etc.. E acima de tudo temos extraordinários captadores e editores de imagens cruéis, catastróficas e sanguinárias.
Os portugueses têm importantes vantagens comparativas neste nicho de mercado e seria estulto não as aproveitar imediatamente.
Augusto Santos Silva foi, como dirigente político, um nítido nulo. Como Ministro da Educação entrou na ocasião propícia, quando o ano lectivo havia começado e portanto já nada havia a fazer, e saiu na altura perfeita, antes do fim do ano lectivo, pelo que ninguém se lembraria de lhe pedir responsabilidades, no início do ano lectivo seguinte, pelas lacunas ou pelo que tinha ficado por fazer. Foi perfeito. Tão perfeito que ninguém se lembra dele como ministro, para além dos compiladores das cronologias ministeriais.
Transitou para a Cultura. Carrilho tinha deixado o Ministério da Cultura num caos. Havia-se pavoneado enquanto o orçamento o permitiu e assim que as migalhas que restavam no fundo do tacho se revelaram insuficientes para cobrir o despesismo, saiu. Sasportes, o entreacto, foi apenas o inocente útil dos abutres da cultura portuguesa que debicam o erário público. Sem energia para lhes resistir, sem gosto para lhes fazer a vontade, foi um permanente derrotado. Precisava-se de uma completa nulidade para aquietar os vampiros, para que eles não se apercebessem que havia alguém à frente do ministério. Foi escolhido Santos Silva. Um homem que fala bem e não diz nada. Perfeito para a Cultura.
A sua curta actuação à frente do Ministério da Cultura foi a que se esperaria dele: a mais total discrição. Conformou-se com tudo aquilo que encontrou e nada procurou mudar, não fosse acontecer-lhe o mesmo que ao seu antecessor. A partiu da demissão de Guterres atingiu o Nirvana político: estava encontrada uma razão para continuar a não fazer nada - estava em mera gestão corrente.
Finalmente, após as mudanças eleitorais, Santos Silva encontrou a sua vocação: escrever artigos de opinião e dar entrevistas. Enquanto Paulo Pedroso esteve em prisão preventiva inundou os jornais com queixumes cruciantes sobre a injustiça da justiça portuguesa, sobre as cabalas e malevolências de que o PS era vítima. Durante meses Santos Silva dissertou abundantemente sobre a Sociologia da Cabala e a Política Portuguesa Contemporânea.
Há semanas participou num debate televisivo sobre educação. Foi, como se viu, um lamentável equívoco. Esteve sempre dessintonizado com os restantes participantes: Ministra, docentes universitários, etc. Estes nem se davam ao trabalho de comentar a retórica de Santos Silva tanto ela nada tinha a ver com a matéria em apreço. Ele botava discurso e, quando acabava, voltavam todos à matéria anterior, como se a fala de Santos Silva fosse uma página em branco, ou um intervalo publicitário.
O editor do programa, com as mãos na cabeça, relia os curricula dos intervenientes e lá estava: Santos Silva, Ministro da Educação (2000/2001), Ministro da Cultura (2001/2002), Secretário de Estado da Administração Educativa (1999/2000). Como explicar aquele desempenho? Elementar, meu caro Watson basta ler os três primeiros parágrafos deste texto, para ver como se faz um ministro.
Ultimamente deu a lume duas teses seminais. A primeira foi a transposição do Dilema do Prisioneiro, da Teoria dos Jogos, para a Sociologia Palavrosa. A Sociologia Palavrosa é a Sociologia daquelas universidades em que a escolástica ainda não cedeu o passo à abordagem científica e onde, em vez de «mentes brilhantes», se têm palavras brilhantes e mentes vazias. Na dissertação desta palavrosa tese, Santos Silva mostrou igualmente o porquê da inanidade da sua carreira governativa: não percebeu nada do que se estava então a passar, ao escrever agora que «Faz caminho uma reavaliação positiva do ciclo guterrista: afinal, esses perseguiam um objectivo, reforçar o "social", e parece terem conseguido, no conjunto, melhores indicadores de crescimento e bem-estar». Não percebeu então, não percebe agora e é altamente improvável que venha alguma vez a perceber. Mas como dizia Douglas-Home, «Há dois tipos de problemas na minha vida. Os problemas políticos são insolúveis e os problemas económicos são incompreensíveis».
Dias depois, nova tese seminal, imorredoira, postulada sob a forma de uma entrevista: «Santana e Portas querem criar partido peronista». Esta tese teve, nos seus alicerces, obviamente, um enquadramento sintagmático baseado numa semiótica clara que permitiu postular aquela proposição, anisótropa e logoelíptica, desconstruindo a matriz lógico-verbal da indiferenciação contextual, deduzindo-a como valência ontológica de uma sólida exegese de sociologia histórica, documental e teleológica. No que tange à parte histórica o elemento imprescindível de consulta foi inequivocamente a versão em swahili do «Príncipe» de Maquiavel. Na parte documental teria uma importância não despicienda a leitura da colecção de 2003 do «Le Point». No término, uma diegese arrebatada, disseminada pelas páginas do DN.
A tese é genial e fecunda e o evento pode ocorrer já nos próximos meses. O cenário, os personagens e o argumento são o corolário deste postulado.
O cenário é evidente: a varanda de São Bento pejada de bandeiras, estandartes e insígnias, ondulando ao sabor do vento e da exaltação popular das massas justicialistas derramadas desde o Quelhas à Rua Amália.
Os personagens inevitáveis: Santana Lopes ataviado de general, em grande uniforme, farda comprida e direita com grande bordadura e dragonas em ouro, o chapéu de plumas na cabeça, ao vento, como em campo de batalha, e à sua direita, docemente apoiado no seu braço enérgico, Paulo Portas, com uma peruca loira de Catherine Deneuve, «Le Point style».
O argumento da acção é logocêntrico e axiologicamente determinado: Santana e Portas, em uníssono, a proclamarem à nação o estabelecimento da IV República. Atrás, batido pela luz dos projectores, Alberto João Jardim saracoteia-se em traje de Gonçalves Zarco, ilustrando a necessária continuidade histórica entre a IV República e a época áurea das descobertas, consolidando a imagem do Portugal perene e dos nossos egrégios avós. No meio do público arrebatado pelo entusiasmo, nas escadarias, Maradona limpa uma lágrima rebelde.
No encerramento da cerimónia, irrompe a voz de Paulo Portas, vibrante e plena de coloratura, a elevar-se, poderosa e altissonante, por sobre o coro popular em delírio, a entoar emocionada:
Dont cry for me Portugal
The truth is I never left you
All through my wild days
My mad existence
I kept my promise
Don't keep your distance
Junto ao leão da esquerda, Santos Silva, em traje de bobo, multiplica-se em entrevistas, falando, como sempre, muito, e dizendo, como sempre, nada.
José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, é conhecido por o seu nome ter sido envolvido em várias polémicas e ter resistido ao "caso da cunha", que levou à demissão do seu chefe, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, e do ministro da Ciência e Ensino Superior, Pedro Lynce. Acumula também com a posição de ser um dos membros do governo cuja demissão mais vezes tem sido pedida o que é uma façanha notável, se se tiver em conta que, exigir demissões, é a pièce de résistance do cardápio da elaborada conceptualização política em que se baseia estratégia oposicionista.
Mas José Cesário, no que respeita a cunhas relativas a acessos ao ensino superior está certificado: o seu filho (a família continua a viver em Viseu) está a repetir o 12º ano pela terceira vez porque ainda não conseguiu entrar na faculdade.
Louvemos a previdência deste prudente membro do governo e o amor filial implícito no comovente sacrifício do rapaz, que assim certificou o pai como imune a este tipo de cunhas.
Outras certificações poderão ser assim obtidas. Por exemplo, para imunidade à fuga ao imposto de sisa, uma das viroses políticas mais endémicas e mortíferas, o cenário certificador ideal será um ministro ser entrevistado no seu tugúrio, um humilde pardieiro construído penosamente com tábuas apodrecidas sobrantes das carpintarias de toscos, alcantilado num talude da zona de protecção da A1, à saída de Lisboa. Enquanto lá fora a devotada esposa do ministro monda uma pequena leira onde crescem, numa liberdade desordenada, couves portuguesas e outras hortaliças patrióticas, a voz do ministro, sobrepondo-se à zoada infrene do trânsito, insiste na excelência da localização:
- O meu motorista pára na faixa de segurança, buzina e eu saio da barraca, salto a vedação metálica e entro no carro ... são só 10 metros e é muito prático. Preparei-me desde pequeno para a política. Os meus pais e os meus sogros doaram os bens a instituições de caridade e eu construí esta choça para nossa residência permanente logo que me acenaram com um cargo político. Como este local, durante os fins de semana, com a diminuição do tráfego e dos gases de escape, tem bons ares, serve simultaneamente de residência secundária nos poucos momentos de ócio que a coisa pública me deixa.
Outra certificação importante é a relativa a esquecimentos de entregas das declarações de IRS, uma virose política com alguma frequência e sinistralidade. Neste caso, o cenário certificador ideal será o ministro, ao ser indigitado, ser entrevistado em plena função de arrumador de automóveis. Enquanto o indigitado ministro vai gesticulando desnecessariamente para um automobilista arreliado pela insistência daquela figura esquálida, explica ao jornalista:
- Preparei-me longamente para este cargo político para o qual acabo de ser indigitado. Há bem mais de 5 anos, prazo de prescrição das obrigações fiscais, que eu exerço em permanência o mister de arrumador. Para além da certificação necessária, esta actividade tem-me permitido uma relação mais íntima com a população e com o país real. Esta actividade exige enorme perseverança e capacidade de enfrentar a incompreensão e rejeição do público cuja causa servimos com tão dedicada devoção patriótica. A arenga política, treinei-a nas diatribes que lanço ao pessoal que se escusa ao óbolo. Este gesticular desenvolve o meu gesto como elemento dramatizador da oratória e serve-me de ensaio para as minhas posturas nos comícios. Tenho as certificações, as imunidades e as qualificações que o país exige de mim nesta hora crucial para o nosso futuro. É apenas o tempo de fazer a barba, tomar finalmente um banho e estarei apto para a tomada de posse.
Nestes tempos de impiedade e corrupção, onde nem os sacerdotes estão ao abrigo das viroses políticas e onde a vida pública e privada dos detentores de cargos políticos é escrutinada e devassada ao mais recôndito e íntimo pormenor, temos que procurar formas inovadoras e seguras de recrutar gente para preencher os cargos públicos. Nem a mais leve sombra de suspeição pode recair sobre essa gente. Nem uma factura de almoço sem o necessário suporte documental do pagamento pelo próprio. Neste caso, e para evitar distracções fatais, aconselha-se quem tenha projectos de vida política a comprar uma marmita e a trazê-la consigo, em permanência e cheia.
Reconheço que é um risco enorme. Por isso é que eu o tenho evitado, apesar dos pungentes apelos que tenho recebido para o fazer. Mas hoje teve que ser, apesar da dificuldade do tema. É que Santana Lopes é um homem imprevisível. Todos os vaticínios que fiz sobre Santana Lopes, saíram furados. Nunca acertei, ... nunca ... e eu raramente me tenho enganado nas previsões que faço.
Após ter deixado a Secretaria de Estado da Cultura, vaticinei o fim da sua carreira política. Como era possível aquele play-boy, após tantas gaffes que cometera, voltar a encarar os agentes culturais portugueses? Naquela época, falar em Santana Lopes, em qualquer meio com pretensões culturais, só com a providência cautelar de uma sonora gargalhada, salteada com algum epigrama cáustico sobre o seu défice cultural.
Errei. Continuou como figura de topo dentro do seu partido e arrasou nas eleições para a Câmara da Figueira da Foz.
É agora, disse para mim e para quem me quis ouvir! Como é que Santana Lopes vai sobreviver, posto perante os problemas quotidianos de uma câmara, aquela estrada além que está esburacada, o jardim acolá que está a ser invadido pelas ervas, os cães, desdenhosos da contenção política, que adquiriram o hábito inveterado de alçar a perna à porta do Sr. Francisco, munícipe austero e influente, as obras que não andam nem desandam e a lama que sobrevem, inesgotável, desses estaleiros, etc., etc. e, ainda para maior padecimento, longe e nostálgico da night do eixo Lisboa-Cascais? Nem dois anos lhe dou! Vai sair de lá em passo de corrida, à frente dos munícipes enfurecidos.
Errei. Aparentemente, por razões inexplicáveis para mim e para a intelectualidade que forma a opinião publica(da), o homem somou êxitos e tinha a Câmara da Figueira na mão para o resto da vida. Pois que ficasse por lá!
Mas não ficou. Para surpresa geral do país, apresentou-se como candidato à Câmara de Lisboa. Foi a zombaria geral na nossa comunicação. Vaticinei, sem quaisquer receios de errar: «O Santana não tem nenhuma hipótese». Nem quando a candidatura do João Soares foi buscar o Álvaro Cunhal ao mausoléu para o exibir na campanha, eu duvidei que o João Soares ganhasse. Entre Soares e Santana qualquer eleitor normal escolheria Soares. Foi o que eu fiz, mesmo apesar de pensar que o PS precisava de ser punido pelo desastre governativo de Guterres e pelo estado em que estava a deixar o país. Simplesmente, não confundi a governação da cidade com o governo do país, embora, depois das figuras tristes que o Soares andou a fazer após a derrota, ele tivesse passado a ser, para mim, uma carta fora do baralho político. Nunca mais, em circunstância alguma, votarei naquele sujeito ... nem para administrador de condomínio.
Pois o Santana ganhou. Eu estava a ver os resultados eleitorais a aparecerem nos ecrãs das TVs e nem queria acreditar. Como era possível entregarem a gestão da capital àquele play-boy, que nem percebe de Chopin?
Não fui só eu quem ficou surpreendida. Penso que também Santana Lopes não estava à espera de ganhar as eleições. Não tinha equipa (excepto Carmona Rodrigues) nem tinha experiência camarária ao nível de um município tão complexo como o de Lisboa. Mas não se intimidou. Garrotou algumas despesas inúteis fruto de compadrios da gestão anterior e preocupou-se principalmente com o Show-business, deixando aos seus colaboradores as tarefas monótonas e chatas do quotidiano camarário. No fundo onde ele é bom é no Show-business. Então seria nesse pelouro que se teria que produzir.
Nos finais de 2002 vi uma sessão dos Prós e Contras sobre o projecto do Casino do Parque Mayer. Fiquei perturbada. E fiquei perturbada porque, naquele debate, Santana Lopes era o mais coerente, o mais linear e quem concitava os apoios dos artistas. Como escrevi então, fiquei siderada! Pois quê? Os artistas a beatificarem um play-boy de direita e um intelectual de esquerda, o Miguel Portas, a exorcizar o pecado? Estaria eu no Universo Anti-matéria?
Quem nesse debate se opôs às opções de Santana Lopes, fê-lo mostrando a maior das hipocrisias, desde a teoria do pecado para inviabilizar o casino, até ao desconforto do Prado Coelho, o elefante branco da nossa cultura, no ingrato papel de ser contra algo com o qual colaborava e a quem vendia o seu talento. Eu olhava para o ecrã, estupefacta, e nem me parecia possível que gente da cultura ficasse assim menorizada e fizesse aquela triste figura perante um gaffeur cultural como o Santana Lopes.
Actualmente deixei de fazer vaticínios sobre o futuro do Santana Lopes. Estou farta de me enganar. Um amigo meu, politicamente muito distante de Santana Lopes, mas que mantinha com ele, na gestão municipal, relações institucionais muito estreitas, mercê do cargo que ocupava, confidenciou-me mais que uma vez, perplexo, que «aquele sujeito parece que tem mel».
Marcelo Rebelo de Sousa, o Guru dos nossos comentadores políticos, o Velhaco Genial, tem apontado como defeitos de Santana Lopes a sua «superficialidade e ignorância». Mas são essas, justamente, as características que melhor definem o político português tipo. O que Marcelo tem estado a proclamar, embora não fosse essa provavelmente a sua intenção, é que Santana Lopes é o paradigma do político português.
Alguém sabe de político mais superficial e ignorante de dossiês que Mário Soares (notem que eu não lhe estou a chamar inculto)? E de governo mais impopular que o último governo dele? Pois foi presidente ... e segundo parece, teria nas primeiras sondagens menos de 8%
O que Marcelo tem dito, no seu estilo oblíquo, é que Santana Lopes tem todas as "qualidades" para presidente. Com menos bochechas e menos cultura que Soares, mas com uma capacidade de encaixe muito maior ... Que Deus se amerceie de nós, como o tem feito até agora.
Agora, sobre Santana Lopes, só faço previsões no fim do jogo.
Portugal assemelha-se a um navio que se está a afundar, com um rombo no casco, onde, face à água a entrar em catadupas, as chefias da tripulação, em vez de tomarem medidas eficazes para consertarem o rombo, discutem as causas do rombo, discordam interminavelmente acerca da forma como está a ser medido o caudal de água que penetra pelo rombo, gesticulam irados pela quantidade de madeira e pregos que outros dizem serem necessários para o arranjo, confrontam-se sobre a calendarização do eventual remendo a efectuar, que materiais e mão de obra se devem utilizar, o tipo de calafetagem, etc., e a água sempre a entrar ... a entrar, inexoravelmente. Alguns, como o PC e o BE, acham mesmo que a causa de haver o rombo é a existência do casco. Se não houvesse casco, o conceito de rombo não teria cabimento logo, elimine-se o casco: Não temos trabalho a remendar o casco e há água para todos em abundância. As bóias e os coletes salva-vidas hão de aparecer.
E os tripulantes, que pensarão?
Foi recentemente efectuada uma sondagem, feita pela Universidade Católica, no âmbito do programa «Prós e Contras» da RTP, que é muito curiosa.
A primeira questão respeita aos sacrifícios que a política de combate ao défice está a induzir. Questionados sobre se tais sacrifícios valem ou não a pena, 53% dos inquiridos responderam que sim e 36% que não. Ora esta resposta é muito significativa e isto porque:
- O combate ao défice pelo governo tem sido feito, com tenacidade e furor público, mas com pouca competência;
- As medidas restritivas que acompanham esse combate foram tomadas numa conjuntura extremamente desfavorável, o que potenciou os efeitos negativos no que toca ao rendimento disponível das famílias (por exemplo, o congelamento bienal salarial na Função Pública);
- Esses dois factores agravaram substancialmente o desemprego e o poder de compra da população;
- Tem sido feita uma campanha demagógica contra a política governamental, não a propósito da sua medíocre qualidade técnica, mas a pretexto dos cortes e das restrições orçamentais;
- O governo tem revelado uma notável inabilidade política em explicar o que anda a fazer.
Tudo isto levaria a pensar que os inquiridos teriam uma postura crítica mais acentuada e muito menos favorável à tese dos «sacrifícios necessários»
Ora o que aquela resposta indicia é a existência, no nosso país, da opinião que os ajustamentos económicos e sociais que Portugal tem que fazer e os respectivos custos são necessários e indispensáveis. Isto é, a população prefere uma estratégia de médio e longo prazo em detrimento do facilitismo de curto prazo. Ou seja, os líderes políticos e sindicais que protestam e algum pessoal que acompanha esse protesto, faz greves, manifesta-se, etc., são claramente minoritários.
Uma outra questão incidia sobre como os políticos se devem comportar face à situação actual. Neste caso, a sondagem indicava que 46% dos inquiridos eram favoráveis a um pacto inter-partidário sobre as finanças públicas e apenas 6% o achavam mau para a economia. Ou seja, grande parte do eleitorado da oposição, nomeadamente do PS, entendia que as dificuldades relativas à consolidação orçamental, exigiam uma resposta que devia congregar uma maioria significativa do actual espectro político e que, para essa união de esforços, um pacto inter-partidário constituiria um primeiro e indispensável instrumento.
Ora no que toca a esta matéria, o que se tem visto é a descida do Maelstrom dos líderes políticos portugueses.
Logo que abriu a actual legislatura o PS adoptou a táctica da chicana e terrorismo parlamentar, sem ter qualquer pudor pelo estado em que tinha deixado o país. O governo retorquiu com a tese do país de tanga. A partir daí as posições extremaram-se e as pontes foram cortadas. Os partidos sentiram-se com legítimas razões de queixa e contas a ajustar. O PS não perdoava as entradas de Durão Barroso, o discurso da tanga e do peso do passado e o Governo a oposição sistemática do PS e a falta de sintonia nas grandes questões de Estado, desde a revisão constitucional às grandes reformas.
O governo enveredou por uma política que, em termos de estratégia que enunciou, está certa. Mas que, em termos das medidas que tem aplicado e da legislação que tem produzido, é insuficiente, inábil, tardia e, em alguns dos casos, erra o alvo. A oposição enveredou por uma chicana política sórdida, contestando tudo de uma forma demagógica, aproveitando o facto das medidas restritivas serem, normalmente, impopulares, porque bulem com regalias e rendimentos disponíveis.
Há tempos o PR fez um apelo ao entendimento dos principais partidos sobre o controlo orçamental. Logo a seguir, personalidades de diversos quadrantes fizeram idêntico apelo. Na sessão seguinte, na AR, foi uma pantomina parlamentar que se passou. Um deputado da maioria propôs um consenso para uma estratégia conjunta, a médio e longo prazo, sobre finanças públicas, relativo a um conjunto de medidas que, aliás, faziam parte das 50 medidas propostas por Pina Moura em Junho de 2001, nos finais do guterrismo, quando se avizinhava a borrasca em que então ninguém entre as hostes socialistas (exceptuando Pina Moura e o Ecordep) acreditava, tal era a anestesia propinada pelo Guterres.
O PS avançou, em contrapartida, um conjunto de propostas para a revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento, como se o prioritário fosse discutir um assunto cuja sede de resolução (e mesmo de agendamento) não é a AR, mas sim Bruxelas. Relativamente à proposta da maioria, O PS votou favoravelmente três pontos, absteve-se noutros e votou contra o diploma na generalidade. Tudo inútil, portanto.
Pina Moura, favorável ao consenso (aliás, as medidas propostas, também o haviam sido por ele, no anterior governo), foi encostado à parede: «Ou estás connosco ou estás com eles», foi-lhe dito. Em 2001 foi demitido, agora apenas ostracizado. A actual direcção socialista acha que, ao votar propostas da maioria, está a degradar a sua capacidade de ser oposição e a legitimar políticas anti-populares o que poderia levar a que os eleitores se distanciassem do PS na próxima refrega eleitoral. Portanto, o PS não está disponível, apesar da abertura para o debate, para se comprometer com as consequências do consenso.
Quer isto dizer que, se e quando voltar a ser governo, o PS vai demitir-se de prosseguir políticas de reforma do Estado, que contribuam para o aumento da sua eficiência e maior controlo da despesa? Não é possível. Quando voltar a ser governo o PS vai, como depois será acusado pelo BE e PC, meter «o socialismo na gaveta». Não há alternativa à política de restrição, nem as benesses encontradas pelo governo de Guterres (descida abissal das taxas de juro, pela adesão ao euro e receitas do IVA geradas pelo faça agora as SCUTs e pague depois) se poderão repetir.
Qualquer governo que suceda a este terá que ter uma estratégia financeira semelhante à do actual. Poderá executá-la com maior (ou menor) competência e habilidade, mas continuará a ser uma política restritiva a nível salarial e da despesa pública corrente.
Poderá é não ser fácil fazer essa política sem dispor do apoio da oposição num conjunto de princípios mínimos. Isto é, fazerem-lhe o mesmo que o PS faz actualmente ao governo.
Se não houver inversão das actuais posturas políticas, o melhor para os tripulantes do navio Portugal é apressarem-se a vestir os coletes salva-vidas, a enfiarem as bóias e esperar que com a estadia na água não sobrevenha a hipotermia.
Se há matéria onde os meios de comunicação e a opinião publica(da) estão unanimemente de acordo é sobre a descriminalização do aborto. Há uma completa e absoluta unanimidade. Quem se atreve a emitir uma opinião contrária àquela é um troglodita fundamentalista, fanático, contumaz e medieval.
Infelizmente essa opinião unânime não coincidiu com a opinião da população expressa em referendo. Mas, pela leitura que tem sido feita e repetida por vários líderes políticos, os resultados do referendo indicam, sem ambiguidades, que uma parte significativa da população portuguesa é troglodita e a maioria, a que se absteve, está à beira do trogloditismo. Ah! Mas havemos de fazer os referendos que forem necessários até os trogloditas abandonarem as cavernas mentais, onde a ignorância os mantém, e se lhes revele a luz da verdade.
Para essa opinião poderosa e imperiosa, a lei é a sua verdade.
Por exemplo: quando populares se juntam perto do local onde Carlos Cruz está preso, ou fazem almoços de solidariedade, logo vozes se elevam para protestar contra as pressões inaceitáveis que se estão a fazer sobre a justiça. E logo a comunicação social se enche de gente afadigada a censurar tamanho desconchavo e desrespeito pelo funcionamento da justiça.
Todavia, dezenas de pessoas lideradas por individualidades com responsabilidades políticas como Odete Santos, Ilda Figueiredo (ambas do PCP) e Miguel Portas (Bloco de Esquerda) manifestaram-se no exterior do Tribunal, enquanto decorria a audiência do Tribunal de Aveiro que julgava arguidos do processo de aborto clandestino, sem quaisquer escrúpulos sobre se estariam ou não a pressionar a justiça, nomeadamente tratando-se de representantes da nação, gente que deveria ter especiais cuidados no respeito pelos fundamentos do Estado de Direito.
Uma acção que, segundo o próprio juiz, não perturbou a audiência nem pressionou o tribunal, decorrendo, ao que afirmou, com o devido respeito. Tratou-se, disse, de "um saudável sinal de vitalidade da sociedade, que vale como impulsionador de tomada de posição do poder político sobre a matéria".
Portanto, em Portugal, há dois tipos de opinadores:
Aqueles cujas opiniões são as verdadeiras, mesmo que sejam minoritárias e, para os quais, as leis do Estado de Direito não são aplicáveis, se da sua aplicação resultar contrariedades para que as suas opiniões tenham o relevo que merecem e vinguem como é imprescindível. É uma regra evidente porquanto as opiniões contrárias às suas são próprias de trogloditas e indignas de uma sociedade civilizada.
Os trogloditas que, mesmo que sejam maioritários nas urnas, não passam, segundo os detentores daquela verdade, de meia dúzia de fanáticos fundamentalistas que têm que se cingir às estritas normas do Estado de Direito e, por acréscimo, aceitarem que, os que os tomam por trogloditas, não cumpram essas normas. É o castigo por terem opiniões fanáticas, fundamentalistas e medievais.
E, castigo maior, hão de fazer os referendos que forem necessários até acertarem com o raio do «sim»! E enquanto eles não acertarem com esse advérbio monossilábico, qualquer referendo não passará de um treino para o referendo final, aquele que irá valer definitivamente, o referendo do «sim».
Os meios de comunicação portugueses têm sido percorridos nestes últimos tempos pelo espectro do iberismo.
A Espanha estará a comprar Portugal? Essa aquisição não será a primeira fase da anexação? E que tal uma jogada de antecipação e pedirmos nós a incorporação no Reino da Espanha? E se selarmos essa união com o matrimónio de Filipe VI com Ana Sá Lopes (ela já lançou a escada ...) que, pelo menos, não corre o risco de despertar qualquer emoção estética a algum pintor estival?
José Manuel de Mello, que liderava a CUF antes do 25 de Abril, e que viveu a sua vida empresarial espojado nas delícias de Cápua da protecção do Estado Novo, encostado ao regime, ao abrigo da imprensa, das greves, dos sindicatos e da concorrência graças à Lei do Condicionamento Industrial que lhe facilitava um mercado monopolista, alargado ainda às colónias, está muito pessimista quanto ao futuro de Portugal. Não vê saída para os portugueses - «talvez sermos arrumadores de carros», diz - e defende que «devíamos dividir Portugal em duas ou três regiões e juntarmo-nos rapidamente à Espanha».
Alguns opinion makers interrogam-se angustiados: Será Portugal viável? Poderemos continuar a ser independentes?
Mas que se passará no nosso país, para esta celeuma? Celeuma que, felizmente, não sai do âmbito dos meios de jornais que serão comprados por menos de 10% da população, lidos por 2 ou 3% e compreendidos por menos de 1%.
Quais seriam as nossas probabilidades de sobrevivência nacional em 1383, perante a legitimidade dinástica de um poderoso rei estrangeiro, apoiado por parte significativa da nobreza portuguesa, émula de José Manuel de Mello? 20%? 30%? Nessa época não havia ainda corretores para sabermos a nossa posição no mercado de apostas. Todavia sobrevivemos e inaugurámos uma época de prosperidade e expansão que nos colocou de forma duradoura na História Universal.
E quando proclamámos a restauração da independência, em 1640, sem exército, sem marinha de guerra, sem tesouro público, face à principal potência militar da Europa continental? Que probabilidades de sobrevivência nacional teríamos? 10%? 5%? Provavelmente menos, pois logo que fez a paz com a Espanha, Mazarino nem quis saber de incluir Portugal no Tratado dos Pirinéus. Portugal era apenas um sítio dispensável, um ninho de irresponsáveis condenados à anexação, que só tinham valia para incomodarem a Espanha enquanto durasse a guerra com a França. Todavia sobrevivemos e mantivemos a parte mais significativa do nosso domínio colonial.
Foi no início do século XIX que uma série de ocorrências aproximaram Portugal e Espanha pois as violentas invasões francesas destruíram muitos dos valores tradicionais criados durante séculos e é neste quadro que se compreende a cumplicidade quer entre os liberais quer entre os absolutistas de ambos países: as guerras civis desta época são vividas em Espanha e Portugal como fenómenos ligados.
Por sua vez, e face à decadência dos povos peninsulares, ganha força a ideia de que só uma união ibérica permitiria fortalecer a Península frente ao poderio cada vez mais evidente das outras nações europeias. Vivia-se então a ilusão de um darwinismo dos países, em que os maiores devorariam, inexoravelmente, os mais pequenos. E era um facto que, na Europa da segunda metade do século XIX, se exceptuarmos Portugal, Países Baixos, Dinamarca e Suiça, só havia grandes potências. Diversos intelectuais portugueses (e espanhois) comungaram destas ideias (Geração de 70, por exemplo - Antero Quental propõe em 1872, para a península ibérica, uma federação republicano-democrática, Oliveira Martins avança com as ideias sobre a reconstrução federativa, etc.).
O iberismo tem estado sempre ligado a uma crise de valores e de identidade. Portugal, no século XIX, depois da secessão do Brasil e das violentas guerras civis, ficou numa situação muito fragilizada, política e economicamente. A melhoria económica e social do último quartel do século XIX e o renascer da expansão colonial nos finais desse século permitiu, senão resolver a crise de valores, pelo menos colocá-la num nível diferente para o qual o iberismo era irrelevante e a identidade nacional muito vivaz.
O “iberismo” do início deste milénio está igualmente ligado a uma crise de valores, mas não de identidade. Há a convicção na sociedade civil da incapacidade da classe política em nos governar satisfatoriamente e dos impasses e estrangulamentos sociais existentes em todo o tecido social e produtivo português. Essa crise de valores agravou-se sobremaneira pela crise financeira e pela sensação de que não seremos capazes de sair dela: o governo não tem coragem política, a oposição está presa de concepções retrógradas e não constitui alternativa viável, o empresariado é, numa percentagem significativa, pouco competente e tenta resolver a sua incapacidade de gestão pelo recurso a métodos autoritários, os sindicatos continuam a ver a relação trabalhador-empresário em termos de luta de classes obstinada e sem tréguas, o trabalhador português que, no estrangeiro, subtraído ao enquadramento sindical e à gestão deficiente pública e privada, trabalha disciplinadamente e com competência, em Portugal tem escassa produtividade e pouca disciplina, etc..
A reunião do Beato mostrou, porém, um conjunto de empresários e gestores portugueses de uma geração que não viveu das prebendas do anterior regime nem foi traumatizada pela revolução de Abril. Uma andorinha não faz a primavera e, para além destes empresários e gestores de ideias modernas e arejadas, ainda há uma larga maioria de empresários pouco preparados e com concepções retrógradas. Mas este movimento pode ser um núcleo dinamizador do tecido empresarial português. Não foi certamente por acaso que o nome que serviu de epígrafe à reunião foi «Compromisso Portugal». Constituiu igualmente uma tomada de posição face à descrença de alguns portugueses perante a alegada invasão espanhola. Foi principalmente o assumir público da ideia que se a Espanha constitui uma ameaça, também constitui uma oportunidade e que aproveitar essa oportunidade depende exclusivamente de nós. E ainda que a viabilidade como país depende de nós e que ninguém nos governará melhor que nós próprios, por muito mal que nos governemos.
Não me parece que a actual crise de valores constitua igualmente uma crise de identidade. Portugal tem nove séculos de história, tem uma forte identidade nacional, homogeneidade linguística e a nossa língua é o quinto idioma mais falado no mundo. Isso são valores que estão bem alicerçados na nossa consciência colectiva. São valores que julgamos em crise quando ouvimos algum chiste sobre a nossa inviabilidade como Estado. Mas são apenas chistes. A experiência da nossa existência como nação multi-secular mostra que é exactamente quando sentimos em risco a nossa identidade nacional que nos unimos e que opomos uma resistência inamovível à perda dessa identidade.
Queria apenas terminar com a transcrição da parte final de um belíssimo e notável texto do Eça, «A Catástrofe», muito apropriado a esta problemática, publicado no fim do «Conde d’Abranhos»»:
---------------------------------------------------------------------------------------
Dias amargos! Todos os meus cabelos encaneceram.
E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira da Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários, fazendo de cada cidadão um soldado, e preparando assim, de antemão, um grande exército nacional de defesa, armado, equipado, enérgico e tendo recebido, no hábito da disciplina, o orgulho da farda...
Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!.. O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!
Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda – é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal!
Ah! Se nós tivéssemos sabido!
Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão. Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração! Já não se vê pela cidade aquela vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir.
As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de preparar cidadãos. Agora trabalhamos. Agora, lemos a nossa história, e as próprias fachadas das casas já não têm aquela feição estúpida de faces sem ideias, porque, agora, por trás da cada vidraça, se pressente uma família unida, organizando-se fortemente.
Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam, sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e, sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.
Como me lembro! íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças, dizer indolentemente:
– Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...
E em lugar de nos esforçarmos por salvar "isto" pedíamos mais conhaque e partíamos para o lupanar.
Ah! geração covarde, foste bem castigada!...
Mas agora, esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que "isto" está perdido: cala-se e espera; se não está animada, está concentrada...
E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festa, tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa, contando que celebre uma data nacional. Não em público – ainda o não podemos fazer – mas cada um na sua casa, à sua mesa. Nesses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe –se em evidência a linda velha Bandeira, as Quinas de que sorríamos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família cantamos em surdina, para não cha mar a atenção dos espias, o velho hino, o Hino da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!
E há uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum mundo quase religioso, as antigas festas da Pátria!
----------------------------------------------------------------------------------------
Gostaria que todos reflectíssemos sobre este trecho
A redução ao silêncio e o castigo imposto a Galileu de pôr fim à sua actividade de investigação científica foi um acontecimento que marcou profundamente a nossa história cultural, científica e religiosa.
Não se tratou apenas de um conflito entre ciência e religião, ou da arrogância da autoridade social a oprimir uma opinião minoritária, mas principalmente o conflito entre o racionalismo dogmático da metafísica tradicional, instalado nas universidades e nas instituições religiosas da época, que postulava ontologicamente os conceitos e o ideal da razão e que, em relação à experiência, a reduzia ao princípio de um ordenamento teleológico e o método científico, um racionalismo metódico empenhado em definir universalmente as constantes estruturais da experiência. A Igreja foi o elemento mais notório da oposição a Galileu, embora o elemento motor fosse o escolasticismo académico. A Igreja estava dividida e mesmo quando condenou Galileu, três cardeais, entre os dez responsáveis, negaram-se a assinar a condenação.
Essa condenação acabou por ser muito mais prejudicial à Igreja que a Galileu. Ela tornou-se o símbolo do obscurantismo, da arrogância dogmática do poder instituído e continua sendo uma das manchas mais negras da história eclesiástica.
Galileu Galilei nasceu em Pisa, em 15 de Fevereiro de 1564, há 440 anos, completou os primeiros estudos de humanidades e de lógica em Florença e matriculou-se, em 1581, na Faculdade de Medicina de Pisa. Mas, fosse porque lhe faltasse interesse por esta disciplina, fosse porque o método do seu ensino ainda ligado à tradição peripatética não se adequasse ao seu engenho perspicaz na observação e na reflexão, voltou quatro anos depois a Florença. Aí se encontrou em contacto com uma cultura livre de estorvos académicos e que correspondia às exigências da vida civil e à própria natureza do engenho de Galileu. Tratava-se dos estudos voltados para a solução de problemas técnicos de mecânica, de hidráulica, de balística segundo métodos matemáticos.
Esses estudos permitiram a sua nomeação para a cátedra de matemática da Universidade de Pisa. Aqui continuou os seus estudos sobre o problema do movimento e a ele se referem de facto as conhecidas experiências sobre a queda dos graves. Manteve a sua relação de hostilidade com o ambiente académico de Pisa, cuja vida acanhada ele escarnece num capítulo «Del portare la toga». Curiosamente, em 1588, fez uma comunicação na Academia de Florença sobre a localização, tamanho e disposição do Inferno, a partir do Inferno de Dante, o que mostra que o percurso de Galileu no caminho para o pensamento científico despido de preconceitos escolásticos foi longo. Em 1592 foi nomeado para a cátedra de matemática da Universidade de Pádua, nos domínios da Sereníssima República, ponto de encontro de eruditos italianos e estrangeiros, um ambiente muito mais aberto à orientação empírico-técnica e às novas pesquisas científicas. Veneza era o Estado mais tolerante da Itália de então. As lições públicas e privadas de Galileu em Pádua tiveram larga audiência, frequentadas por gente desejosa de apreender os instrumentos essenciais da matemática para os aplicar às soluções dos problemas técnicos, mecânicos e artísticos. Em casa de Galileu depressa surgiu uma pequena oficina para a preparação de instrumentos de precisão. Foi deste período Le meccaniche, onde os princípios matemáticos são postos ao serviço da solução de problemas técnicos e onde os conceitos mecânicos empíricos são enunciados recorrendo à fundamentação científica. Todavia, no seu Trattato della sfera o Cosmografia, de 1603, Galileu revelava-se ainda um adepto do sistema ptolomaico, embora já estivesse familiarizado com a obra de Copérnico. Aliás, o dinamarquês Tycho Brahe, o maior astrónomo da época, postulava uma cosmografia em que o Sol girava à volta da Terra e os planetas em órbitas à volta do Sol, rejeitando o movimento da Terra como contraditório com a Bíblia e com os factos vulgares vistos na Terra. Do ponto de vista puramente matemático, o sistema de Tycho Brahe era idêntico ao de Copérnico. É tudo uma questão de relativismo do movimento.
A sagacidade da pesquisa, a agilidade do pensamento, a precisão cada vez maior do método, são acompanhadas em Galileu por uma notabilíssima habilidade técnico-prática. A esta deve ele a fabricação, a partir de notícias vagas provenientes do norte da Europa, em 1609, de um telescópio que foi durante anos o mais perfeito modelo do género e que se tornou instrumento para as descobertas astronómicas. Dedicado, com a ajuda do telescópio, à observação do céu, este revelou-lhe, no breve decurso de algumas semanas, segredos que se mantiveram ocultos durante milénios ao olhar humano. A Via Láctea e as nebulosas apareceram como longínquos amontoados de estrelas, o número dos astros multiplicou-se no firmamento, foram descobertas as rugosidades da superfície da Lua, os quatro satélites de Júpiter, os anéis de Saturno, as manchas solares, etc..
O anúncio das descobertas que Galileu lançou ao mundo com o Sidererus Nuncius, publicado em Março de 1610, abalou todo o mundo do saber, entre adesões entusiásticas e objecções malevolentes e invejosas. Os filósofos e astrónomos na sua maioria (com excepção de Kepler que aceitou as descobertas como reais) declararam que se tratavam de ilusões de óptica e de uma fraude de Galileu. Em contrapartida, astrónomos jesuítas de Roma, que haviam construído nesse ano um telescópio muito potente, confirmaram as descobertas de Galileu. Mas para Galileu esboçava-se aqui uma nova tarefa científica, porquanto a interpretação dos fenómenos descobertos levava a pôr em dúvida todo o conjunto dos dados empíricos sobre que se apoiava a antiga astronomia e, sobretudo, a negar os princípios tradicionais da perfeição e inalterabilidade dos corpos celestes, da unicidade do centro de movimento, da luz própria dos planetas.
Para ocupar-se com liberdade de tais estudos Galileu precisava de um mecenato esclarecido. Encontrou-o na pessoa do grão-duque da Toscana, Cosimo II, que o nomeou primeiro matemático e filósofo do grão-ducado e primeiro matemático da Universidade de Pisa, sem obrigação de residência e de ensino.
Em Março de 1611, foi a Roma defender as suas descobertas das dúvidas dos seus opositores. Ainda não havia sinais de oposição teológica a Galileu ou às suas descobertas. Nesse mesmo Verão, num encontro científico promovido pelo grão-duque, combate o princípio da incorruptibilidade dos corpos celestes e aponta claramente para a verdade da hipótese coperniciana, defendendo os direitos da experiência e do método indutivo.
Quando Copérnico (1473-1543) propôs a teoria heliocêntrica (a sua obra foi publicada poucos dias antes da sua morte), os astrónomos já conheciam os movimentos dos planetas. A teoria heliocêntrica permitia apenas uma explicação científica coerente. Todavia essa explicação era “estranha” – afinal qualquer pessoa podia “ver” que a Terra não se movia. Ora as observações de Galileu e do seu telescópio mostravam as manchas solares a girarem, as fases de Vénus (que mostram que os planetas não brilham com luz própria, mas reflectida), os satélites de Júpiter e os seus eclipses, realidades só explicáveis admitindo a teoria de Copérnico.
Assim, a actividade de Galileu, e a entusiástica adesão de discípulos cada vez mais numerosos, levantavam críticas progressivamente mais insistentes, e entre estas a mais fácil de compreender e mais grave, de que as novas doutrinas eram incompatíveis não só com os princípios da filosofia tradicional mas também com a palavra das Sagradas Escrituras. Galileu procurou esclarecer, reconhecendo a incondicional validade das Escrituras no que se refere aos princípios morais e religiosos, afirmando todavia, no tocante aos problemas de filosofia natural, os direitos do pensamento científico.
A primeira acusação é formulada de um púlpito e transmitida à inquisição romana por um frade dominicano. Essa acusação caiu muito mal nos meios cultos de Florença. Galileu replica e em fins de 1615, está em Roma a defender a tese coperniciana. Mas em 24 de Fevereiro de 1616, a Sagrada Congregação condena a doutrina heliocêntrica como absurda e herética e a teoria do movimento diurno da terra como errónea. Galileu, cuja pessoa, protegida pela fama, pelas altas amizades, pela autoridade do grão-duque, tinha sido retirada da causa, recebia do cardeal Bellarmino a intimação de abandonar a opinião coperniciana, renunciando a ensiná-la ou defendê-la, quer por escrito quer de viva voz.
Galileu inclinou a cabeça à sentença que cortava cerce as suas esperanças, não convencido e não resignado. Os seus principais acusadores eram os filósofos da época para os quais o método científico de Galileu era contrário ao seu sistema escolástico. Foram eles que primeiro afirmaram que as teorias de Galileu contradiziam as escrituras e foram eles que aliciaram o frade dominicano para a denúncia pública.
A elevação ao pontificado de Urbano VIII, prelado culto, curioso das novas doutrinas, persuadiu Galileu de que tinha chegado a hora da desforra e da plena afirmação da nova orientação de pensamento. Assim, de 1623 a 1630, ele recolheu-se num trabalho assíduo e tranquilo de revisão dos problemas postos pela hipótese coperniciana à luz dos novos métodos e resultados científicos, que lhe pareceram adquirir em relação àquela um significado mais coerente e definitivo. Não é apenas uma nova orientação metodológica e sistemática de pensamento que neles alvorece e se determina numa oposição cada vez mais clara ao saber tradicional; é a sensação segura de que tal orientação teórica é a garantia para o desenvolvimento de uma civilização humana livre, progressiva e senhora dos seus destinos. Foi nesse período que Galileu compôs o Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo. A sua publicação encontrou muitas dificuldades da parte da autoridade eclesiástica. A necessidade de exames, de revisões, de juízos, o adiamento inútil, a incerteza das decisões, o jogo do alijar de responsabilidades, mostra, da parte das autoridades inquisitoriais, uma incerteza e uma perplexidade facilmente explicáveis: por um lado, era o decreto de 1616, a hostilidade de muitos ambientes académicos e dos grupos de estrita ortodoxia; por outro, era a fama do autor, as suas incessantes pressões, o apoio do grão-duque, a expectativa do público; e no meio de tudo isto, as intrigas de cúria e o humor inquieto e dificilmente determinável do Pontífice, autoritário e altivo. Finalmente, a autorização foi concedida e a obra saiu em 21 de Fevereiro de 1632.
Galileu tinha consentido nas poucas modificações impostas: a atenuação de algumas expressões, o acrescento de uma introdução explicativa e de algumas frases finais inspiradas pelo Papa e a modificação do título. Mas, quando já de todos os lados chegavam assentimentos entusiásticos, era ordenada a suspensão das vendas e Galileu citado perante o tribunal do Santo Ofício, em Roma. Tinham assim triunfado o tradicionalismo académico, a ortodoxia, repentinamente reforçado pela ira pessoal de Urbano VIII, quer porque suspeitasse de ser evocado sob a figura de Simplício, o peripatético do diálogo, quer porque não quisesse, com a tolerância perante uma obra contrária no seu conteúdo aos decretos, reforçar a fama de pouca ortodoxia que lhe era lançada em rosto pelos inimigos da sua política antiespanhola e anti-imperial (as duas principais potências defensoras do catolicismo romano) no complexo xadrez político da Itália de então.
A forma dialógica da obra galileiana devia servir para testemunhar o respeito formal ao decreto da Sagrada Congregação, mas oferecia a Galileu a possibilidade de uma exposição mais viva e agradável, de debate de ideias. O diálogo, que se desenvolve no palácio Sagredo, em Veneza, divide-se em quatro jornadas: a primeira contém a crítica aos princípios fundamentais da física aristotélica e aos fundamentos teleológicos da teoria ptolomaica. A segunda e a terceira têm como objectivo a defesa da teoria coperniciana, uma refutando as dificuldades físico-mecânicas da hipótese do movimento diurno, a outra corroborando com razões físico-astronómicas a hipótese do movimento anual da terra. A quarta, por fim, expõe a teoria da maré, que Galileu considerava erradamente como uma segura contraprova da teoria coperniciana.
Galileu partia para Roma em fins de Janeiro de 1633. Alojado primeiramente na embaixada da Toscana, ficou em seguida detido na prisão do Santo Ofício, num isolamento cada vez mais penoso. A acusação era a de ter violado a ordem pessoalmente recebida em 1616, sustentando e defendendo no Diálogo a teoria coperniciana já condenada como falsa e herética. O processo desenvolveu-se em quatro sessões entre Abril e Junho. De início, Galileu defendeu-se sustentando que tinha pedido e obtido a licença de publicação e que, por outro lado, a sua obra não concluía nem a favor nem contra qualquer das teorias. Mais tarde, replicando o tribunal que ele tinha transgredido uma precisa ordem pessoal e que a intenção do Diálogo era claramente manifesta, Galileu afirmou ter agido de boa fé e que a sua insistência nos argumentos copernicianos era por pura paixão dialéctica. Finalmente, apertado pelo exame da intenção, pela ameaça da tortura, não teve outro remédio senão, humilhado e angustiado, pedir piedade para a sua velhice atormentada. Condenado a prisão perpétua no cárcere do Santo Ofício, em 22 de Junho de 1633, recitou publicamente a abjuração. Assim, um decreto de um tribunal eclesiástico impôs os limites ao pensamento científico e o princípio da incondicional autoridade da Igreja em relação às verdades teológicas e filosóficas e à interpretação dos textos sagrados.
Houve então mais brandura: foi concedido a Galileu que se transferisse, em regime de prisão domiciliária, primeiro para a embaixada da Toscana e finalmente para Arcetri, onde ele tinha comprado poucos anos antes uma pequena casa de campo. Enfraquecido, envelhecido atormentado pela humilhação sofrida, Galileu permanecia sob a vigilância da inquisição, que vigiava os seus passos, espiava os seus contactos, lhe impedia quase o contacto com outras pessoas que não fossem os familiares mais directos; só quando a cegueira lhe tirou totalmente a visão e a artrite lhe contraiu os membros em contínuos espasmos, só então lhe foi permitido transferir-se para Florença, continuando no entanto sob custódia.
Mas o seu pensamento não se abate: é retomada a correspondência com os discípulos mais fiéis, os estudos efectuados nos anos anteriores sobre os princípios da dinâmica organizam-se, e daí sai a nova obra: os Discorsi intorno a due nuove scienze que são publicados na Holanda, em 1638. Está escrita em forma dialógica e as personagens são as mesmas dos diálogos. Nela aborda a estrutura da matéria, a queda dos corpos, o movimento pendular, o problema da resistência dos sólidos com base nas leis sobre a alavanca, a trajectória dos projécteis, etc..
O êxito europeu da nova obra reanima o espírito do cientista. Correspondem-se com ele, não obstante a vigilância da inquisição, uma plêiade de homens de ciência que são um incitamento à confiança no futuro da ciência e a certeza da imortalidade da sua obra. Ainda de 1640 é a carta, cheia de ironia polémica, Sul candore lunare, sobre a luz secundária da Lua devida à reflexão terrestre. Galileu manteve-se lúcido até à morte em 8 de Janeiro de 1642.
A abordagem de Galileu não foi a abordagem das universidades do seu tempo, baseadas no pensamento de Aristóteles, nem a de Bacon ou de Descartes, uma abordagem filosófica, que procura causas e não leis. O pensamento de Galileu fundamentou-se nos seus próprios cálculos experimentais e observações. O percurso do seu pensamento assentou na libertação progressiva da rigidez dogmática e no desenvolvimento especulativo. Galileu só aos 50 anos aceitou como válido o modelo coperniciano.
Ao abstracto ideal da razão, postulado como o absoluto ser em si, o método científico, iniciado por Galileu, substitui a lei do processo infinito da própria razão resolvendo os dados empíricos da experiência. O sistema metafísico fechado à experiência, baseado num racionalismo dogmático, dá lugar a uma racionalidade aberta aprofundando e alargando o campo da experiência e das valorações a ela inerentes. Foi a grande herança de Galileu.
O actual presidente da Agência Portuguesa para o Investimento e antigo ministro das Finanças do governo de Cavaco Silva continua igual a ele próprio.
Cadilhe tem uma enorme confiança em si mesmo e no que faz, e é extremamente céptico relativamente ao resto. Quando Medina Carreira, sempre curioso, perguntou como é que a DGCI ia apurar o rendimento real dos contribuintes, após a reforma fiscal de 1989, Cadilhe respondeu-lhe convincente e confiante: “cruzam-se os dados com a informática, e pronto!”. O “pronto”, 15 anos e diversos ministros das Finanças depois, ainda não chegou.
O seu comportamento perante as obrigações fiscais, como a sisa, ficaram célebres. Mais notável foi a forma como, durante o seu ministério, foi alterando o regime da sisa, e das respectivas isenções, ao sabor das suas próprias transacções imobiliárias: compras, vendas, permutas, etc..
Esta sua actuação valeu-lhe o cognome de Sisa Ligeiro, por comparação com o seu conterrâneo Siza Vieira.
Recentemente declarou que Portugal não tinha meios para projectos como a Expo'98, o Porto Capital da Cultura e o Euro 2004. Ora é de um extremo mau gosto um detentor de um cargo público produzir afirmações destas sobre eventos já passados ou à beira de ocorrerem, com os investimentos já realizados. E de um gosto ainda mais duvidoso, no caso de Cadilhe, que deu o seu beneplácito à obra que, depois de Santa Engrácia, é o mais lídimo símbolo da dificuldade portuguesa de planear obras públicas e executá-las dentro dos prazos e custos orçamentados: o CCB.
O CCB foi feito da forma mais atrabiliária, sem respeito por planeamentos e controlo de custos, e constituiu provavelmente a maior derrapagem de custos vista em obras públicas portuguesas.
Em contrapartida a Expo'98, e refiro-me apenas à área de intervenção do Departamento da Construção, realizou-se nos prazos previstos e sem derrapagem orçamental significativa. Os excessos orçamentais no âmbito da Expo'98 referem-se à Gare do Oriente, gerida autonomamente, (derrapagens provocadas principalmente pelas indecisões e incompetência da CP e por se ter escolhido uma prima-dona como arquitecto, o Calatrava) e aos eventos, alugueres de barcos, etc., geridos por uma caterva de boys (e girls) postos lá por compadrio político.
O Porto Capital da Cultura era um evento necessário. O que ocorreu foi o que é habitual actualmente na região do Porto. Os seus líderes são muito unidos a pedirem fundos mas, após os receberem, desentendem-se, cada um tem uma ideia diferente e contraditória, entram em guerras uns com os outros e não é possível, com essa postura, fazer uma obra respeitando prazos e custos. Há inúmeros exemplos de situações destas que poderia citar. Mas esta é uma questão de líderes que cabe às gentes do Porto resolver e estou certa que, mais ano menos ano, resolverão.
O Euro 2004 pode ter sido uma opção errada, quando foi lançada a candidatura. Mas foi uma opção tomada há alguns anos e não é agora altura de a pôr em dúvida. Agora, o que há a fazer é tentar extrair desse evento os maiores benefícios possíveis. E os benefícios de um evento como o Euro 2004 não podem ser medidos apenas pelas receitas directas. Essas interessam aos promotores. No caso do Estado, parte substancial dos fundos que entregou, recebeu-os de volta através do IVA. Existem todavia muitos outros benefícios, as chamadas externalidades, que se dirigem a toda a comunidade: turismo, restauração, maior conhecimento do país com reflexos futuros em torná-lo atractivo em diversas vertentes, etc.. Cabe à sociedade civil organizar-se para as aproveitar, mas cabe igualmente ao Estado um papel importante, criando as melhores condições para que tal ocorra.
E por falar no papel do Estado, continuo extremamente curiosa sobre o que é que a Agência Portuguesa para o Investimento tem feito para atrair o investimento para o nosso país e para proporcionar à sociedade civil um enquadramento que favoreça o investimento nacional. Até agora não vi nada. E foi para gerir essa Agência que Cadilhe foi convidado e não para ser profeta da desgraça ou para proferir publicamente dislates que apenas visam aumentar a confusão em que o país vive.
Quando a Agência Portuguesa para o Investimento foi criada e a sua sede posta no Porto por exigência de Cadilhe, diversos investidores estrangeiros queixaram-se que pôr a API fora de Lisboa não seria o mais adequado. Espero sinceramente que a acção (ou a inacção) do ex-ministro Cadilhe não venha a dar razão a esses investidores. Embora neste caso, não será a localização no Porto que estará em causa, mas a gestão do ex-ministro Cadilhe.
Mas se actuação do ex-ministro Cadilhe a chefiar a API tem sido decepcionante e apagada, outro tanto não se dirá da sua intervenção pública. Cadilhe não fala sobre as tarefas de que foi encarregado, mas fala muito e é de uma total incontinência verbal sobre as outras matérias. Agora pretende que a Agência Europeia de Segurança Marítima, atribuída a Portugal pela União Europeia, deva ficar fora de Lisboa, noutra cidade costeira que tenha um porto e uma universidade.
Se for para lhe acontecer o mesmo que à API, não me parece, obviamente, uma boa ideia. Já há um precedente até agora muito negativo. E esse precedente foi justamente criado pelo ex-ministro Cadilhe.
Um grupo de individualidades, empresários e gestores, reuniu-se ontem, no Convento do Beato, sob o tema «Compromisso Portugal». Na sua quase totalidade representa uma geração cuja adolescência já foi vivida em regime democrático (o «Manifesto dos Quarentões» como alguém lhe chamou), sem o lastro da vivência em ditadura com o que a experiência dessa vivência possa ter tido de bom como de mau.
Embora me pareça que o nome encontrado para servir de referência ao encontro não seja feliz, pois a exibição de uma semiótica patriótica está frequentemente associada ao receio que a prática subjacente seja julgada contrária aos interesses patrióticos, reputo de extrema importância aquela reunião, menos pelas conclusões que se possam extrair do que lá foi dito e proposto, do que pelo significado da reunião em si.
O que se terá passado para que os partidos políticos e os dirigentes das instituições económicas tenham sido mantidos totalmente à margem de um debate que visava, segundo os seus promotores, instalar um novo modelo económico e de desenvolvimento para Portugal? A resposta parece clara.
Reina um enorme mal estar na sociedade civil, e principalmente nos meios empresariais, acerca do que aparenta ser o impasse da sociedade portuguesa. O país precisa urgentemente de reformas profundas, nomeadamente a nível da administração pública que pesa excessivamente nas bolsas dos portuguesas e na competitividade das empresas e cujo serviço prestado a troco dessa punção no orçamento das empresas e das famílias é muito mau. Pior, a burocracia dos serviços públicos é uma arma terrível assestada ao bom funcionamento da economia e à modernização do tecido produtivo. É impossível aproximarmo-nos do pelotão da frente da UE com o baixo nível educacional que temos; com a extraordinária morosidade da justiça, que só favorece os faltosos; com uma máquina fiscal despótica, incapaz, arbitrária e desleixada (como alguém referiu, "Com a actual competitividade fiscal não há hoje nenhuma razão para que os investidores venham para Portugal"); com a morosidade geral de toda a tramitação administrativa, excesso de papelada, etc.. Isto para além da necessidade de haver mobilidade dos factores de produção e bom funcionamento dos respectivos mercados: liberalização dos contratos de trabalho, reforma da legislação do arrendamento urbano, etc., etc.. Em suma, um figurino institucional que nos ponha a par dos restantes países da UE.
Ora a convicção geral é que este governo é incapaz de levar a cabo essas reformas, quer por incompetência, quer por falta de coragem política e está acossado por uma oposição que tem uma visão suicidária da economia portuguesa que só nos pode levar à ruína e à miséria geral, a pretexto de preservar os ilusoriamente denominados legítimos interesses e conquistas da classe trabalhadora. E o que é grave é que essa visão suicidária é partilhada pela actual direcção socialista, eventual futura alternativa a este governo. Não há alternativa válida entre um governo incompetente e inábil e uma oposição e sindicatos situados no parque jurássico da política e da economia.
O que parece importante do que foi dito nesta convenção foi o sentir-se a convicção de que a vassalagem perante o poder político não conduz a nada de sólido. Pode pontualmente resolver problemas particulares, mas os custos para a economia em geral são muito superiores. Outra convicção que parece estar instalada é a de que já não é possível pedir «tempo» para recuperar atrasos. A experiência tem demonstrado que esse «tempo» apenas redunda na protecção à ineficiência por mais algum «tempo». Se vinte anos depois da integração europeia e das privatizações, vinte anos depois de muitos e muitos milhões de fundos comunitários, quem não foi eficiente até hoje como pode garantir que o será amanhã? Finalmente, outra das conclusões aponta para que um novo modelo económico terá que assentar num cidadão qualificado.
António Borges, deu o mote ao afirmar que Portugal precisa de uma "mudança de liderança" que traga uma abordagem mais confiante e com maior optimismo e rigor. Sustentou que em Portugal "falta vontade" de aceitar as regras do jogo da economia de mercado, ou seja, "premiar quem merece". Mas António Borges foi mais longe, na sua crítica ao empresariado, referindo que a única solução para a economia portuguesa é "evoluir para produtos cada vez mais certificados e com valor acrescentado, o que implica um redireccionamento para novas indústrias e empresas". Os empresários são "os grandes agentes de mudança", mas que também devem "assumir responsabilidades" e recusar "desempenhos medíocres". Os nossos capitalistas têm medo do capitalismo. Têm o pânico da exposição. Não é só à invasão espanhola, mas também aos investidores. Por isso desprezam o mercado, mesmo o de capitais, embora capital seja hoje a coisa mais fácil de arranjar na economia global.
Estas afirmações foram importantes pois se as nossas empresas são, em geral, ineficientes, é porque alguém não fez bem o seu trabalho, e muitos deles são os próprios empresários e provavelmente alguns estariam no Beato. Quanto à ruptura com a visão subserviente para com o poder está bem expressa na afirmação de um dos intervenientes: "Mais do que saber o que é que o Governo pode fazer, ou se está a fazer bem ou mal, esta é a altura para os empresários e gestores provarem que são empreendedores"
Uma das propostas ontem formuladas foi a de "promover a constituição duma entidade de cúpula do mundo empresarial". Essa proposta vem em sintonia com as afirmações de António Borges que "em Portugal são sempre as mesmas empresas e as mesmas pessoas". O Presidente da CIP tomou-a à letra e alguns dos promotores deste encontro irão integrar a nova direcção da CIP, pois assim "Vão ter oportunidade de levar à prática o que acabaram de defender aqui".
As conclusões poderão ser acusadas de serem desoladoramente teóricas. Repetem muitas das exigências que têm aparecido em diversos sítios, inclusive neste blog, entre as quais:
Seleccionar conjunto de instrumentos de medida (Kpi’s – Key performance indicators) da qualidade de cada serviço público; estabelecer objectivos do peso da despesa pública face ao PIB abaixo dos 40% até 2008, e da despesa corrente primária abaixo dos 33%; fazer de Portugal um dos países menos burocráticos da UE e promovermo-nos externamente como tal; dotar os órgãos de soberania de adequadas condições de recrutamento dos melhores de entre os Portugueses; assumir o compromisso de no espaço de três anos se adoptarem as medidas adequadas a que o prazo de registos relativos à compra e venda e hipoteca de imóveis não exceda as 48 horas; planear a quebra de sigilo bancário para entrar em vigor a partir de 2005; incrementar a transparência fiscal e atribuir um maior respeito para com o contribuinte; disponibilizar aos serviços de inspecção fiscal o cruzamento de dados relativos, nomeadamente, ao registo comercial, predial e automóvel, segurança social, litigância pendente, empréstimos contraídos; aprofundar a reforma da legislação laboral introduzindo uma maior flexibilidade; etc., etc..
O que há de teórico nas 30 medidas é que, na sua maioria, não se diz como será possível o seu estabelecimento e aplicação. Programas, todos nós, com maior ou menor discernimento, somos capazes de os elaborar. Aprová-los e aplicá-los em face das resistências dos interesses estabelecidos e da inércia social é muito mais complicado. Ensinar é fácil, realizar é difícil.
Espera-se por isso que algumas das afirmações que foram produzidas no encontro de ontem, as mais relevantes e inovadoras, sejam interiorizadas pelo mundo dos negócios e pelo mundo da política, que assistiu de fora, através da comunicação social, e tenham seguimento no futuro. A sociedade portuguesa só teria a ganhar com isso.
António Vitorino é, sem margem para dúvidas, um homem brilhante, competente e tem tido um óptimo desempenho no cargo de comissário europeu.
Surge agora a hipótese de António Vitorino poder ser o sucessor de Romano Prodi na Presidência da Comissão Europeia. É uma hipótese ténue, porquanto estará dependente da vontade dos principais países da UE e terá contra ela a oposição do bloco de direita, porventura maioritário no Parlamento Europeu quando for a votação para a sucessão de Prodi. Mas é uma hipótese que o governo português deve explorar com empenho e firmeza.
Quando foi a escolha do novo secretário-geral da NATO, aventou-se o nome de Vitorino. Todavia era uma hipótese claramente sem viabilidade face à situação internacional e à correlação de forças dentro da NATO, apesar das declarações cheias de fé dos nossos meios de comunicação e da classe política. Os socialistas europeus, e principalmente os ibéricos, fizeram declarações públicas extremamente críticas contra a guerra e, principalmente, contra a política americana. Dificilmente o governo americano aceitaria um nome oriundo do agrupamento político que tanto o criticava.
Presentemente, e se as eleições para o Parlamento Europeu derem a maioria à direita, dificilmente Vitorino poderá suceder a Prodi. Mas isto é uma guerra que o governo português deverá travar com obstinação, independentemente das dificuldades que enfrentar. E se o desfecho não nos for favorável, não cairmos em acusações mútuas estéreis, ou lamentos improfícuos: termos um português na Presidência da Comissão Europeia é apenas uma questão de prestígio; a prosperidade e o bem estar do país não depende disso, mas apenas de nós próprios.
Porém, e é uma mensagem frequentemente passada para a opinião pública, se Vitorino não suceder a Prodi, deverá ser reconduzido no cargo de comissário europeu.
Esta exigência é absolutamente sem sentido. A menos que na distribuição dos futuros pelouros dos comissários europeus calhe a Portugal o mesmo pelouro que actualmente é sobraçado por Vitorino, não há qualquer razão para Vitorino ser reconduzido.
Imaginemos que calhava a Portugal o pelouro do Comércio, e se inquiria:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta imediata e obrigatória.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Excelente! Apesar das suas dimensões reduzidas, tem sido visto com grande frequência em Centros Comerciais onde tem demonstrado uma elevada capacidade de escolha e decisão. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.
Imaginemos que se resolvia atribuir a Portugal o pelouro da Agricultura e se sondava:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta liminar e intransigente.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Admirável! Embora nunca tenha tido actividade neste domínio, sabe-se que, nas suas deslocações periódicas a Portugal, costuma sobrevoar os nossos campos e adquiriu com isso uma visão muito abrangente e uma perspectiva perfeitamente vertical dos problemas campestres. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.
Imaginemos que Portugal ficava com o pelouro da Concorrência e se questionava:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta límpida e irrefutável.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Perfeito! Nunca praticou, mas tem concorrido com pertinácia a diversos cargos e a sua percentagem de êxitos nesta área é elevada. Tem um elevado espírito competitivo. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.
Não, António Vitorino não é o nosso homem em Bruxelas. António Vitorino é apenas, e já é muito no nosso panorama político medíocre, um homem brilhante, competente e muito capaz.
Um político suficientemente brilhante e competente para fazer temer a actual liderança incapaz do PS, que o quer ver em Bruxelas, a fazer seja o que for, desde que esteja afastado das controvérsias locais.
O realizador, encenador e actor Jorge Silva Melo recusou um prémio de 25 mil euros, que lhe fora atribuído por um organismo do Ministério da Cultura.
Na altura declarou: «Não gosto de prémios do Estado, porque acredito que o artista é por natureza um traidor ao poder instituído». Ou seja, o artista, o verdadeiro artista, desenvolve a sua arte contra o Estado. Sendo assim, só pode ser apreciado e reconhecido por uma assembleia de traidores ao poder instituído do mesmo tipo de traição: a comunidade dos verdadeiros artistas.
Além do seu desejo de serem considerados traidores ao Estado, os verdadeiros artistas têm, na sua indiscutível opinião, o estatuto de monumentos nacionais. Também eles se libertaram da lei da morte e desdenham serem avaliados pelo seu desempenho. Estaremos em condições, nós, efémeros mortais, de dar um prémio ao Mosteiro dos Jerónimos pelo seu desempenho na forma excepcionalmente garbosa como tem albergado as cinzas de Vasco da Gama? Ou Camões? Ou, quiçá, Amália? E se esse gesto insensato se produzisse, como reagiria o Mosteiro, na sua frieza marmórea?
Mas cinco séculos são segundos face à idade provecta da pegada do dinossauro. Seria lícito avaliar o desempenho daquela pegada, distraidamente deixada por um dinossauro em busca sabe-se lá do quê ... provavelmente da imortalidade.
Não, definitivamente, não.
Os verdadeiros artistas, assim como os monumentos, desdenham prémios, desdenham êxitos comerciais, desdenham o público, estão acima das pequenas misérias deste mundo, mesmo do jurássico.
Todavia, os verdadeiros artistas, assim como os monumentos, sabem que a sociedade está em permanente dívida para com eles. A sociedade não está em condições de avaliar o seu desempenho, mas tem a obrigação moral e material de prover ao seu sustento e manutenção.
Assim, quando se sabe que Silva Melo e a sua companhia vivem do Estado, de que receberam, em 2003, 450 mil euros, só podemos louvar, quer o Estado pela sua dedicação posta na manutenção do nosso património, quer Silva Melo e a sua companhia, por se deixarem subsidiar sem pruridos de passarem por cúmplices de alguma traição. Foi sábia essa aceitação de Silva Melo. Imaginemos que o Mosteiro dos Jerónimos, sentindo-se desconsiderado pela presença hostil do CCB, oficiava o Estado recusando qualquer subsídio e enviava cartas de protesto para os jornais. Quem reabilitaria as suas fachadas e coberturas? Como poderia a Gulbenkian produzir sessões musicais no seu refeitório? Provavelmente, apenas sessões gastronómicas.
Não. Silva Melo conhece os deveres do Estado na manutenção do nosso património e os deveres do nosso património em se deixar manter pelo Estado. Subsidiar o nosso património não se discute. É o que têm em comum a Pátria e o património: não se discutem.
Silva Melo sabe igualmente que subsidiar a manutenção do nosso património deve obrigatoriamente ser independente do êxito deste junto do público. A comunidade dos verdadeiros artistas produz-se unicamente para ela própria, porque apenas os verdadeiros artistas têm estatura cultural para entenderem essa produção. Quanto menor for o êxito junto do público, quanto menos afluência a sua produção tiver, mais perto se encontra da arte absoluta e imortal.
Também os monumentos foram construídos com total desprezo pela opinião dos vindouros. Acaso Keops, quando mandou construir a pirâmide, estava preocupado com a futura opinião dos turistas japoneses e das suas máquinas Nikon? O público é despiciendo: um conjunto de ignaros cuja afluência apenas pode ser sinónimo de má qualidade artística e de descrédito intelectual do autor. Acaso interessa que as gravuras de Fozcoa tenham uma audiência ínfima? Audiência que custou muitas dezenas de milhões de contos ao país. Ao pé disto, o que são uns míseros 90 mil contos anuais atribuídos a Silva Melo?
Premiar Silva Melo, as gravuras de Fozcoa, a pegada do dinossauro e outros monumentos do nosso património rebaixava-os à classe das obras efémeras, transitórias. Não podemos pactuar com tamanho desvario: Exegi monumentum aere perennius.
No caso de Silva Melo, esse desvario assume contornos mais clamorosos, visto Silva Melo ser mais versado na comunicação que a pegada do dinossauro, embora provavelmente menos inteligível. Se o prémio tivesse sido atribuído à pegada do dinossauro, esta permaneceria atónita, mas muda. Silva Melo protesta no Público, assegurando que foi violado. E o ominoso violador seria o Instituto das Artes, impondo a sua lasciva vontade nas relações com os artistas.
Silva Melo confessa-se, pois, vítima de monumentofilia, perversão inconfessável, de contornos ainda pouco claros, provavelmente à espera de uma moldura penal definida, mas que poderá vir a tornar-se um futuro entretenimento das noites televisivas, quando o caso Casa Pia desaparecer das manchetes. O arguido seria agora o Instituto das Artes, colocado sob prisão preventiva, e as vítimas os artistas, mas com uma diferença: a atracção dos artistas pelo protagonismo mediático faria com que estes aparecessem, dando o rosto, sem máscaras, nem vozes entarameladas, contando com pormenores requintados as peripécias escabrosas das horríveis violações.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.
................................................................
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
...........................................
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar.
...................................................
Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae.
..............................................
Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
..........................
Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
..............................................
Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
.............................
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe.
.....................................
Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
......................
A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Extractos do Sermão de Santo António pronunciado em São Luís do Maranhão a 13 de junho de 1654.
O Padre António Vieira nasceu a 6 de Fevereiro de 1608, faz hoje 394 anos, quase 4 séculos.
É ponto assente que existe uma enorme evasão fiscal no nosso país. Também é consensual que essa evasão deve ser combatida.
O problema é saber como. Há dias, num matutino, um Juiz de Tribunal Administrativo de Círculo e de Tribunal Tributário escrevia um artigo sobre justiça fiscal deveras interessante, nomeadamente provindo de um juiz.
Entre outras coisas, este juiz propunha que a lei deveria sancionar publicamente os infractores das leis fiscais, por forma a implementar a censura social: assim, todos os contribuintes que, após sentença, tivessem de pagar ou devolver à Fazenda Pública montante elevado de impostos, seriam condenados também a custear a publicação em jornal de grande circulação de um extracto da parte decisória da sentença. Assim, além da censura social, também o ideal da concorrência leal seria beneficiado, porque as empresas infractoras seriam conhecidas pelas outras empresas e pelos consumidores.
O douto juiz sabe que esta medida não é inovadora. Por exemplo, nos autos da fé os acusados ostentavam dizeres que informavam os assistentes dos pecados que haviam cometido. Também quem cometia qualquer crime era enforcado publicamente, tendo pendurado algures, no respectivo cadáver, um elucidário pormenorizado do crime. Mesmo um pequeno delinquente era passeado publicamente, ostentando a lista delituosa e parando a cada esquina, por entre o rufar dos tambores e as vozes dos arautos. Era uma prática interessante que as perniciosas ideologias liberais e as filosofias do século das luzes baniram dos nossos costumes, mas que o juiz Paulo H. Pereira Gouveia quer ver ressuscitadas e novamente consagradas.
Mas o juiz Paulo H. Pereira Gouveia acresceria ainda que aquela prática mediática teria ainda a vantagem de eliminar o excesso de litigância fiscal: os infractores das leis fiscais pensariam duas vezes antes de recorrerem aos tribunais tributários. O que é evidente: Se cada vez que uma sentença é lavrada, o condenado for passeado publicamente, por entre rufares de tambores e o vozeirão dos arautos, ostentando reclamos de gosto duvidoso sobre os seus alegados actos pecaminosos, ele desistirá de litigar. Provavelmente desistirá de muitas coisas mais. Entre elas de viver num país em que o juiz Paulo H. Pereira Gouveia julgue.
É óbvio que com medidas destas o juiz Paulo H. Pereira Gouveia vai conseguir arrecadar muitos milhões. Logo que esta legislação entrasse em vigor a população acotovelar-se-ia às portas das tesourarias das finanças a entregar os seus teres e haveres para evitar as pesadas penas e o enxovalho público decretados pelo juiz-inquisidor.
E para que queria o émulo fiscal do Torquemada tantos milhões? Porque esses milhões dariam para equipar melhor os hospitais e as universidades, informatizar uniformemente toda a máquina fiscal, remunerar melhor os bons funcionários públicos e os políticos em regime de exclusividade e até para reduzir um pouco o défice público (comove até às lágrimas ver como o juiz Paulo H. Pereira Gouveia se preocupa, mesmo que “apenas um pouco” com o nosso défice público).
Porque, na opinião do juiz Paulo H. Pereira Gouveia, o que o Estado necessita é de investimentos privados e públicos extraordinários na formação de quadros técnicos superiores e médios, bem como na inovação tecnológica e na gestão moderna e racional na administração pública.
Senhor Doutor Juiz Paulo H. Pereira Gouveia, meretíssimo Juiz de Tribunal Administrativo de Círculo e de Tribunal Tributário, venho por este meio corroborar e certificar que o Estado precisa de um investimento extraordinário e vultuoso na formação de um quadro técnico e na sua inovação e modernização. E este quadro técnico, Senhor Doutor Juiz Paulo H. Pereira Gouveia, que necessita urgentemente dessa formação indispensável, é justamente Vossa Excelência.
Não ... decididamente, não. Hoje recuso-me a escrever sobre o Rosas.
É certo que o Rosas se produziu hoje, com a roseiral pesporrência, perante O Público.
É igualmente certo que o Rosas mostrou, nessa sua produção, que continua a viver na dependência de imagens obsessivas que lhe povoam o cérebro e onde os jovens de direita têm sempre, e todos, o aspecto engomadinho e pomposo de vendedores de Alfa-Romeos e de estagiários pretensiosos de escritórios de advogados chiques.
É ainda certo que a iconolatria do Rosas se centra nas matrioshkas, onde se abrindo o vendedor de Alfa-Romeos se encontra um estagiário pretensioso, onde se abrindo o estagiário pretensioso se encontra um convencionalista postiço, onde se abrindo o convencionalista postiço se encontra um caceteiro instintivo e onde se abrindo o caceteiro instintivo se encontra ... nada ... absolutamente nada, rigorosamente nada, apenas o vazio ideológico.
Para quê falar de um sujeito que reduziu a ciência política a ícones? O Jardim da Madeira é, segundo Rosas, um Gauleiter. Saberá Rosas o que era um Gauleiter? Jardim é, sem dúvidas, um Leiter. Mas será a Madeira um Gau? E o iconólatra Rosas já experimentou abrir um Gauleiter? E está seguro que ao fim de 4 ou 5 aberturas sucessivas não encontrará um vendedor de Volkswagens?
Rosas (de quem hoje não vou falar, garanto-vos) está irritado por a direita, ao que parece, ter posto a correr « a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e início dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa».
Rosas está cheio de razão. É que aquele facto não foi uma lenda, foi uma realidade.
Há duas maneiras de expressarmos a nossa discordância relativamente a situações com que não concordamos:
1 – Argumentar que se trata de uma lenda «posta a correr» pela direita trauliteira: é um argumento fortíssimo e seguro, posto que haverá gente que não precisa de mais argumentação para ficar exaltada e convicta; também não seria difícil, porque ela já estava antecipadamente exaltada e convicta. Esta é a forma de discordar daqueles que discordam, mas não sabem porquê. Isto é, sabem: não concordam porque não gostam daqueles que concordam.
2 – Analisar objectivamente a questão. E se a analisarmos, verificamos que, embora a economia crescesse, no período marcelista, a um ritmo muito elevado, tratava-se de um modelo de crescimento que não era possível sustentar a longo prazo, visto basear-se em salários muito baixos e na existência de mercados fechados ao exterior e pouco exigentes em matéria de qualidade (os mercados coloniais) que também não eram sustentáveis a longo prazo. É evidente que se não houvesse o 25 de Abril, aquele modelo poderia continuar a funcionar durante mais algum tempo, nomeadamente se as intenções marcelistas de acordo com a Guiné-Bissau vingassem. Poderia ter havido uma transição mais pacífica, «à espanhola», e uma descolonização mais satisfatória, quer para os nossos interesses, quer para os interesses dos povos em causa. Mas o modelo existente seria sempre insustentável a longo prazo.
Portanto, não vale a pena iludir a questão, considerando lenda algo que afinal era uma realidade. O que se deve fazer é analisar a questão e ver para além da superfície das coisas, o que está por debaixo, camada a camada.
Mas quanto a ver para além da camada superficial, o iconólatra Rosas (de quem hoje não vou falar, garanto-vos) apenas conhece a matrioshka pintada de vendedor de Alfa-Romeos, que lhe ensinaram a abrir.
Num ponto tem que se dar razão ao Rosas. Ele não tem nada a ver com a direita caceteira. Esta, segundo Rosas, « não esqueceu nada, nem aprendeu nada.». Rosas esqueceu tudo e não aprendeu nada.
Como vêem, hoje não falei do Rosas.
Durante o ano passado perderam-se, segundo um balanço provisório, 18 mil empregos nos sectores dos têxteis e do calçado. Esta perda de postos de trabalho foi consequência da vaga de encerramentos de empresas de capitais estrangeiros, sobretudo alemães. Alguns tiveram bastante protagonismo mediático, mas a grande maioria permaneceu anónima.
Quer uns quer outros têm, todavia, uma coisa em comum. Independentemente das promessas que autarcas, sindicatos ou governo possam ter feito, independentemente das ilusões que possam ter sido criadas, são postos de trabalho irrecuperáveis na sua quase totalidade – o desemprego nos sectores dos têxteis e do calçado é estrutural.
É óbvio que este processo foi acelerado pela crise financeira. O aumento da despesa pública e dos vencimentos da função pública acima da respectiva produtividade induziu uma situação inflacionária e um efeito imitação a nível salarial que acelerou a perda de competitividade do sector privado exportador e, principalmente, dessas empresas já fragilizadas. Mas mesmo na ausência da crise financeira e do défice, este processo de reajustamento industrial iria acontecer fatalmente. Poderia não ter ocorrido em 2003, mas aconteceria em 2005 ou 2006, independentemente ou não de quaisquer retomas.
Não é possível, com as qualificações e as tecnologias do Sueste Asiático, ter salários europeus (mesmo que sejam da cauda da Europa) e regalias sociais europeias. Qualquer um que diga o contrário apenas está a criar falsas ilusões. Aqueles 18.000 desempregados apenas poderão voltar ao mercado de trabalho se tiverem qualificações suficientes e adequadas para tal. A maioria, actualmente, não as tem.
Impõe-se a requalificação profissional daqueles efectivos, pelo menos daqueles que estiverem interessados nessa requalificação.
Não sei em que moldes essa requalificação será possível, que programas poderão ser implementados para assegurar que essa requalificação se faça de acordo com as necessidades do mercado de emprego, nem como conseguir a adesão desses desempregados ao esforço de uma requalificação.
Apenas sei que o Fundo Social Europeu drenou durante muitos anos verbas consideráveis, a fundo perdido, para programas de formação que apenas serviram para estabelecer um regime perverso de sub-emprego em que os formandos iam transitando de um curso de formação para outro, unicamente com o objectivo de continuarem a receber as respectivas ajudas. Durante muitos anos existiram empregos artificiais cujos efectivos eram formadores e formandos pagos pelos contribuintes europeus e cuja utilidade social, para além da manutenção precária daquele emprego artificial, era nula.
Como vamos explicar agora que se tratou de um equívoco monumental e que a maioria daqueles cursos não tinha qualquer interesse do ponto de vista da formação, servindo apenas para criar a ilusão de um emprego precário?
É mais uma herança da ausência de estratégias e dos desleixos governativos, que não se resumem apenas aos desleixos dos governos de Guterres, pois já vêm bastante de trás.
Nunca estive convicta que Saddam tivesse armas de destruição maciça (ADM) em quantidade suficiente para se tornar um perigo para o mundo, embora acreditasse que havia programas para o desenvolvimento dessas armas e não pusesse liminarmente de lado a existência eventual de arsenais de ADM. Aliás, quando os inspectores das Nações Unidas foram expulsos do Iraque em 1998 era convicção geral entre as potências mundiais que os arsenais de ADM ou armas proibidas, que não tinham sido descobertos, existiam efectivamente. Se não existissem, qual a razão para Saddam expulsar os inspectores? Como acreditar que Saddam tivesse destruído esses arsenais e tivesse impedido os inspectores de verificarem esse facto que permitiria o levantamento das sanções que tanto transtorno e sofrimento causavam à população iraquiana? A questão que então se punha era descobrir as evidências dessa existência.
Também nunca acreditei que as ADM fossem a causa principal da invasão no Iraque. Se se derem ao trabalho de lerem os artigos que escrevi na altura dos acontecimentos, poderão verificar isso. Para apoiar as sanções da ONU, os EUA e o Reino Unido tinham instalado um importante dispositivo militar no golfo, nomeadamente na Arábia Saudita, que era muito dispendioso, que implicava baixas e que causava graves problemas políticos. Basta assinalar que foi a presença maciça de militares americanos na Arábia Saudita que foi considerada por bin Laden a principal razão da guerra da Al-Qaida aos EUA e dos ataques de 11 de Setembro. Portanto, entre uma guerra de baixa intensidade que se eternizaria, e uma guerra aberta que se julgaria mais rápida e definitiva, os americanos optaram pela segunda hipótese.
O relatório de David Kay, a ser fidedigno, e espera-se pelos inquéritos ordenados pelos governos britânico e americano ao funcionamento dos respectivos serviços de informação relativamente a esta crise para conclusões mais fiáveis, retrata uma realidade surrealista, passe o paradoxo.
Aparentemente Saddam andou a fazer bluff e só parou, tarde demais, quando o dispositivo militar americano estava instalado no terreno e muito dificilmente os americanos desistiriam da intervenção. Aparentemente, e pelas informações dos próprios inspectores da ONU, os comandantes das unidades de elite iraquianas, embora afirmando não disporem das ADM, davam a entender que outras unidades poderiam possui-las.
Uma situação semelhante ocorria com os cientistas dos programas de armamento que exageravam, em muito, a importância das suas investigações para cairem nas boas graças do ditador ou, pelo menos, para evitarem a sua fúria. Adicionalmente, obtinham financiamentos para as suas investigações e experiências.
Esta postura dos cientistas e técnicos dos programas de armamento não custa a acreditar se nos lembrarmos do que ocorreu na Alemanha nazi, nos últimos tempos do regime. Hitler foi sistematicamente enganado pelos seus generais e responsáveis pela produção de armamento com o intuito de evitarem a fúria do ditador, que apenas queria ouvir coisas que lhe dessem a esperança de poder inverter o curso dos acontecimentos.
No último ano do seu regime, Hitler, vivendo numa semi-clausura, já não tinha a noção das capacidades humanas e materiais da Alemanha e deixava-se iludir por conselheiros bajuladores para os quais essa adulação representava a sua sobrevivência física ou, pelo menos, política. Hitler já só ouvia aquilo que queria ouvir, e à medida que esse distanciamento da realidade aumentava, seria cada vez mais perigoso confrontá-lo com a realidade nua e crua. Quando Goebbels e outros chefes nazis ameaçavam o mundo com armas definitivas e com a guerra total estavam provavelmente convictos que elas se encontravam em vias de se tornarem operacionais.
Não custa a crer que um fenómeno idêntico tivesse ocorrido com o ditador iraquiano e com as chefias militares iraquianas. Igualmente aqui se criaram muitas ilusões e se perdeu o sentido das realidades. Basta ver que o Ministro da Informação iraquiano também ameaçou a coligação com a guerra total numa altura em que o descalabro das forças iraquianas era visível e irreversível.
A burocracia é a forma capciosa de que se serve a administração pública para transferir o ónus da sua incompetência para o cidadão.
Não sabendo ou não sendo capaz de exercer uma fiscalização sobre a forma como as empresas, as famílias ou os cidadãos em geral cumprem as leis, a administração pública, ou melhor, os legisladores e fazedores de portarias, quer da administração central, quer da administração autárquica, estão permanentemente a criarem formas enviesadas de controlo, aumentando e complicando as papeladas a preencher no intuito de conseguirem por essa via o que não conseguem pela sua acção competente.
O reverso desta acção persecutória é a recusa da sociedade civil em cumprir a lei e o incremento da economia paralela. É sabido, por exemplo, que a maioria das obras é clandestina porque as pessoas não querem passar pelas complicações burocráticas do licenciamento camarário das obras.
Um caso extremamente aberrante e perverso está a acontecer agora com a legalização dos imigrantes. Para um imigrante se legalizar, a empresa que o emprega tem que apresentar, na Inspecção-Geral do Trabalho, o contrato de trabalho em triplicado, a prova do pagamento do imposto de selo, o comprovativo da autorização de funcionamento do estabelecimento, certidões das obrigações fiscais e de contribuições à Segurança Social, prova de que tem serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho e, por último, cópia autenticada de título profissional válido.
Resultado: dos 31 500 brasileiros que se registaram para se legalizarem ao abrigo do acordo entre Portugal e Brasil, apenas 1466 processos entraram na Inspecção-Geral do Trabalho, dos quais apenas obtiveram provimento (foram legalizados) 118 brasileiros.
E isto porquê? Porque as empresas recuam perante a sanha controladora da IGT. Aparentemente, a menos que haja uma explicação melhor (*), o Governo aproveitou esta oportunidade para obter receitas e fiscalizar as empresas sobre matérias que é incapaz de fiscalizar de outra forma. E quem fica prejudicado? Em primeiro lugar, os imigrantes que continuam ilegais, com o risco e a insegurança que tal acarreta. Em segundo lugar, as empresas e famílias (no caso do trabalho doméstico) que se arriscam a pagar coimas em caso de se descobrirem ilegais a trabalharem para elas.
Mas neste último caso, como em muitos outros no relacionamento do cidadão com a administração pública, compensa o crime de não cumprir a lei, face aos custos e aborrecimentos em cumpri-la.
Este fim de semana, no DN, António Pires de Lima fez uma exposição moralista sobre as virtualidades da nova lei. Aparentemente esqueceu-se de uma coisa: ela foi feita para não ser cumprida. Quem a fez ou é hipócrita, ou não percebe os mecanismos pelos quais as leis em Portugal não são cumpridas. Quer num caso quer noutro, não devia estar em situação de legislar. Legislar não é nem para hipócritas, nem para ignorantes. Só pondo gente de bem e competente a legislar se pode exigir que os cidadãos se comportem como gente de bem.
À falta disso, resta-nos ir para os meios de comunicação fazer discursos moralistas e estéreis. Não servem para nada, mas mostram boas intenções. E mostram como se mantém válido o aforismo popular «de boas intenções, está o inferno cheio».
(*) A explicação relativa à falta do registo criminal é perfeitamente ridícula em face da diferença abissal entre os que pretendem a legalização, e os que a obtiveram (0,3%). Será que os restantes 99,7% são cadastrados?
Depois de algumas horas de estupor perante a visão de uma mundividência estranha e contrária aos nossos costumes, os jornalistas puro sangue lusitano começaram a reagir ao relatório Hutton.
E era urgente, porquanto o próprio PR, que normalmente só diz banalidades, quinta-feira à noite afirmava peremptoriamente, no Porto, que Portugal «precisava era de um Lord Hutton». O PR teria a desculpa de estar adrenalinizado pelo caso das cartas anónimas, mas os jornalistas portugueses estavam confrontados com um péssimo exemplo, que instava erradicar antes que frutificasse.
No Público de hoje, dois nomes tão distantes como Mário Mesquita, o guru do jornalismo português, e Ana Sá Lopes, provavelmente a jornalista portuguesa em que o emaranhado das teias de aranha ideológicas que lhe sedimentaram o crânio mais distorcem a objectividade dos factos, congregaram forças e investiram contra o Relatório Hutton.
Uma das formas de viciar a objectividade dos factos é explicá-los inserindo-os numa ameaça conspirativa. E se essa ameaça for protagonizada pelas omnipotentes forças do mal (os patrões dos grandes grupos multimédia) contra as indefesas forças do bem ("serviços públicos" de televisão), então temos os condimentos necessários para empolgar os que querem ser convencidos. A prova era evidente e não escapou à mente perspicaz do nosso guru: o relatório Hutton foi noticiado, em primeira-mão, pelo tablóide "Sun", propriedade de Murdoch, através uma "fuga de informação"- eis a «prova» evidente e irrefutável da conspiração.
E o nosso guru, com um poder dedutivo potenciado pela necessidade de acudir à corporação dos jornalistas pouco escrupulosos em matéria de objectividade e de rigor ético, apercebeu-se, com limpidez, dos «bem encenados protestos de Blair e de Hutton» contra a violação do segredo de justiça que permitiu antecipar a publicitação do relatório e denuncia-os. Os factos que permitiram ao nosso guru uma dedução tão brilhante sobre a «boa encenação dos protestos», não foram aduzidos. Mas que importa, aos jornalistas puro sangue lusitano, o embaraço incómodo dos factos?
Está tudo explicado. E o nosso guru acrescenta “três quartos da reportagem investigativa do jornalista Andrew Gilligan era rigorosa e exacta. A acusação do "Hutton report" centra-se num único ponto, justamente considerado muito grave. Gilligan "apimentou" a sua reportagem com extrapolações abusivas. Este procedimento é condenável, mas não contamina toda a reportagem”.
Portanto, na opinião corporativa de Mário Mesquita, o facto de 25% da reportagem estar apimentada com extrapolações abusivas e serem estas justamente o motivo da polémica, e que indirectamente estiveram no suicídio de David Kelly, não contaminava a reportagem. Pois não, Mário Mesquita, não contaminava a reportagem para aqueles que queriam acreditar nas extrapolações abusivas; não contaminava a reportagem para quem tem uma ideia pouco escrupulosa do que deve ser o rigor da informação, nomeadamente quando as extrapolações abusivas incidiam sobre as informações de David Kelly, deixando de rastos a integridade profissional do infeliz biólogo britânico.
Outra forma de viciar a objectividade dos factos é inquiná-los com alegações moralistas. E, nesta vertente, também brilhou o nosso guru. Para Mário Mesquita, as passagens do "Hutton report" relativas às causas da morte de David Kelly representam um exercício conjugado de positivismo jurídico e de psicologia de cordel, e desrespeitam a sua memória. Portanto, julgar condenável a desobediência de um funcionário ao "código de conduta" da função pública, é desrespeitar a memória do mesmo.
Mário Mesquita está redondamente enganado. A forma de respeitar a memória de David Kelly é sublinhar que foi a sua integridade e as extrapolações abusivas sobre as suas declarações que o levaram ao suicídio. Para Mário Mesquita não existem "códigos éticos", mas para a integridade profissional de David Kelly existiam. Por isso ele se suicidou; por isso Mário Mesquita não percebe porquê; por isso eu escrevi há dias que estamos perante duas civilizações diferentes.
Quanto à depoente Ana Sá Lopes não vale a pena perder tempo com ela. O seu escrito é típico da facção que julga que os fins legitimam os meios. A intervenção militar no Iraque foi, na sua opinião, uma guerra injusta e Blair deve ser condenado. Portanto, qualquer que seja a matéria sobre que esteja a ser julgado, tudo o que ilibe Blair e o governo britânico, mesmo quando não é a justeza dessa intervenção que esteja a ser julgada, como foi o caso do inquérito Hutton, é de «um maniqueísmo extremo».
A invasão do Iraque é, para Ana Sá Lopes, o pecado original de Blair. Pior, visto o pecado original poder lavado na pia baptismal, enquanto que o pecado do apóstata Blair não tem lavagem possível. A partir deste vício de julgamento, qualquer comportamento de Blair sobre qualquer matéria ou objecto, está condenado à partida – pois quê, então ele não invadiu injustamente o Iraque?
Delenda Blair