Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.
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Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
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Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar.
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Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae.
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Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
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Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
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Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
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Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe.
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Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
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A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Extractos do Sermão de Santo António pronunciado em São Luís do Maranhão a 13 de junho de 1654.
O Padre António Vieira nasceu a 6 de Fevereiro de 1608, faz hoje 394 anos, quase 4 séculos.
Uma pequena sugestão, minha cara Joana (e restantes visitantes):
A propósito do Sermão de Sto. António aos peixes, não deixe de escutar a deliciosa canção, inspirada neste tema, que integra o ciclo "Des Knaben Wunderhorn" de Gustav Mahler.
A canção é um pequeno, mas magnífico, Scherzo que o compositor aproveitou para construir o 3º andamento da sua 2ª Sinfonia.
Por sinal, acabei de chegar a casa, e ainda assisti a um soberbo final desta Sinfonia, no Canal A2, num concerto ecuménico realizado no Vaticano. Não sei se transmitiram a Sinfonia completa ou apenas o último andamento, mas a interpretação foi muito boa, destacando-se, em especial, as duas solistas.
Cumprimentos a todos!
:-))
De realçar, também, que 3 dias após esta pregação aos peixes, Vieira parte em segredo para Lisboa com o fim de conseguir obter leis que favorecessem os índios.
Um ano depois, regressa ao Maranhãojá com as leis que solicitara.
Em 1661 acaba por ser expulso do Brasil pelos colonos exactamente por tentar que as leis fossem acatadas e praticadas.
Ainda hoje muitos dos peixes esperam pela sua volta...
Afixado por: re-tombola em fevereiro 7, 2004 12:49 AMO meu caro RE-TOMBOLA tem razão.A carta escrita pelo missionário ao Rei em que diz que os colonos haviam liquidado dez mil indios numa noite foi um despertar de consciências.
Mas como é que haviam de funcionar os engenhos de açucar com indios nómadas?
Quase me fez lembrar o desenvolvimento da Europa com o Plano Marshall.Quem foram os escravos do século XX?
Afixado por: ZEUS8441 em fevereiro 7, 2004 06:31 PMDe passagem por este sítio, não posso deixar de notar a escassez de comentadores. Será que Semiramis está a ter a mesma sorte do Big Brother?
Afixado por: (M)arca Amarela em fevereiro 9, 2004 06:26 PM(M)arca Amarela: Obrigada pelo incentivo. Sei que o diz sinceramente e isso torna este agradecimento mais efusivo.
Afixado por: Joana em fevereiro 9, 2004 08:12 PMOs peixes são um auditório muito mais compreensivo que os humanos. Sempre admirei esse sermão.
Joana em fevereiro 9, 2004 08:12 PM
Ora, ora... não leve as coisas tão a peito. Já sabe que não posso passar sem você.
# : - ))
Os peixes têm a vantagem de que, depois do sermão, se pode fazer uma fritada com eles, o que seria mais complicado com um auditório de humanos
Afixado por: Mendes em fevereiro 10, 2004 10:54 PMZEUS8441 em fevereiro 7, 2004 06:31 PM :
"Quase me fez lembrar o desenvolvimento da Europa com o Plano Marshall.Quem foram os escravos do século XX?"
Ora aí está um bom tema para a Semíramis "mergulhar" na biblioteca...
Afixado por: re-tombola em fevereiro 10, 2004 11:57 PMEste é o sermão mais interessante de todos os que António Vieira escreveu. Reler excertos dele é um prazer
Afixado por: venancio em fevereiro 21, 2004 12:50 PMé mesmo? Por favor faça a porcaria do meu trabalho então.. Afinal tenho que fazer isso como trabalho obrigat´rio e eu não vejo pq ter que obrigar o estudante a isso.
Afixado por: Karoline em junho 4, 2004 04:31 AMEfectivamente, se tu como estudante sentes que tens que fazer as coisas apenas por obrigação, então, cara Karoline, a tua tarefa tornar-se-á deveras árdua. Todas as tarefas da vida devem ser impregnadas de amor. Põe amor no que fazes e tudo será mais fácil.
Tenta colocar-te no lugar do Padre Vieira, e sentir o que ele sentia, imagina como se estivesses lá, naquele local, e naquela época, e talvez ajude a criar entusiamo pelo teu trabalho.
Provavelmente já o fizeste, mas serve o exemplo.
Tudo de bom para ti!
epah.. se for bem percebido o sermão até não é xato.. é preciso ter um bom professor :P eu tnh :D lolol
Afixado por: Dekadence em outubro 16, 2004 07:49 PMEstou a iniciar o Sermao aos Peixes. Acho o tipo de leitura dificil, requer bastante atençao e estudo. Não tenho uma boa professora, o que dificulta as coisas, faz-me perder todo o interesse, mas ha q fazer um esforço e tenho esperança q 1 dia consiga gostar do Sermao e recomendar a sua leitura =P, Esperemos k sim! beijokas p todos vós
Afixado por: Mara em outubro 21, 2004 10:52 PMComia-te toda Joana
Afixado por: judasssss@hotmail.com em novembro 21, 2004 04:19 PMoi, hoje fiz uma directa para estudar o sermao... amnha é teste... eu ate curto, mas n andei a estudar nada, acho q me vou tramar. Gostei da ideia de nos colocarmos na pele so Pregador, Vieira é de facto um grande autor, pena ja ter morrido, dava-me umas explicaçoes... LOL
boa noite
o sermao ñ é dificil é preciso é ter paciência.Até tem umas ideias que(infelizmente)se adaptam aos dias de hoje...Como estudante, que ouviu o sermao(lido por 1padre),também acho que ñ o dao da mlhor maneira mas tmos que o aguentar se queremos ter boa nota.
A todos que estão a dar o sermao(como eu)tntm ñ estar logo d pe atras porque custa mais acrditm...
Fiquem bem
O sermao ta bem apresentado é seca mas k representa a realidade na altura representa,e ate é engraçado como ela critica os homens.
SLIPKNOT RULES
Óla colegas!! Estive a ler o k escreveram e mesmo assim nao consigo encarar o Sermão e tenho k fazer um trabalho sobre ele...tenho k falar se ele é actual e a pretinencia do conteudo. O grande problema e k eu nao consigo fazer nada,nao me sai nada da cabeça. Meus amigos sei k nao me conhecem ms será k alguem ja fez um trabalho parecido e me possa ajudar? Mil obrigados!! Boa sorte para a escola!! Abraços...muah.
Afixado por: Daniel em janeiro 17, 2005 11:34 PM