A burocracia é a forma capciosa de que se serve a administração pública para transferir o ónus da sua incompetência para o cidadão.
Não sabendo ou não sendo capaz de exercer uma fiscalização sobre a forma como as empresas, as famílias ou os cidadãos em geral cumprem as leis, a administração pública, ou melhor, os legisladores e fazedores de portarias, quer da administração central, quer da administração autárquica, estão permanentemente a criarem formas enviesadas de controlo, aumentando e complicando as papeladas a preencher no intuito de conseguirem por essa via o que não conseguem pela sua acção competente.
O reverso desta acção persecutória é a recusa da sociedade civil em cumprir a lei e o incremento da economia paralela. É sabido, por exemplo, que a maioria das obras é clandestina porque as pessoas não querem passar pelas complicações burocráticas do licenciamento camarário das obras.
Um caso extremamente aberrante e perverso está a acontecer agora com a legalização dos imigrantes. Para um imigrante se legalizar, a empresa que o emprega tem que apresentar, na Inspecção-Geral do Trabalho, o contrato de trabalho em triplicado, a prova do pagamento do imposto de selo, o comprovativo da autorização de funcionamento do estabelecimento, certidões das obrigações fiscais e de contribuições à Segurança Social, prova de que tem serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho e, por último, cópia autenticada de título profissional válido.
Resultado: dos 31 500 brasileiros que se registaram para se legalizarem ao abrigo do acordo entre Portugal e Brasil, apenas 1466 processos entraram na Inspecção-Geral do Trabalho, dos quais apenas obtiveram provimento (foram legalizados) 118 brasileiros.
E isto porquê? Porque as empresas recuam perante a sanha controladora da IGT. Aparentemente, a menos que haja uma explicação melhor (*), o Governo aproveitou esta oportunidade para obter receitas e fiscalizar as empresas sobre matérias que é incapaz de fiscalizar de outra forma. E quem fica prejudicado? Em primeiro lugar, os imigrantes que continuam ilegais, com o risco e a insegurança que tal acarreta. Em segundo lugar, as empresas e famílias (no caso do trabalho doméstico) que se arriscam a pagar coimas em caso de se descobrirem ilegais a trabalharem para elas.
Mas neste último caso, como em muitos outros no relacionamento do cidadão com a administração pública, compensa o crime de não cumprir a lei, face aos custos e aborrecimentos em cumpri-la.
Este fim de semana, no DN, António Pires de Lima fez uma exposição moralista sobre as virtualidades da nova lei. Aparentemente esqueceu-se de uma coisa: ela foi feita para não ser cumprida. Quem a fez ou é hipócrita, ou não percebe os mecanismos pelos quais as leis em Portugal não são cumpridas. Quer num caso quer noutro, não devia estar em situação de legislar. Legislar não é nem para hipócritas, nem para ignorantes. Só pondo gente de bem e competente a legislar se pode exigir que os cidadãos se comportem como gente de bem.
À falta disso, resta-nos ir para os meios de comunicação fazer discursos moralistas e estéreis. Não servem para nada, mas mostram boas intenções. E mostram como se mantém válido o aforismo popular «de boas intenções, está o inferno cheio».
(*) A explicação relativa à falta do registo criminal é perfeitamente ridícula em face da diferença abissal entre os que pretendem a legalização, e os que a obtiveram (0,3%). Será que os restantes 99,7% são cadastrados?
Cara Joana,
O seu texto revela exactamente o "virus burocrático".
Eu explico:
Em vez de se impedir que qualquer organismo do Estado solicite um documento passado por outro organismo do Estado, inventam-se mais formas de os organismos do Estado estarem entretidos a passarem declarações e certificados entre eles mesmos.
Em qualquer sociedade civilizada bastaria apresentar cópia do contrato de trabalho.
Cabe ao Estado saber se a empresa está ou não dentro da legalidade. (e agir em conformidade).
O ridículo da questão está, por exemplo, quando mais que um imigrante tenta legalizar-se com base num contrato de trabalho com um empregador que lhes é comum: para cada um deles, o Estado pede exactamente os mesmos papéis certificativos.
Porquê?
A entidade empregadora é a mesma; os certificados exigidos são os mesmos...
A única razão que encontro é a ESTUPIDEZ...
Só pode ser isso.
Como diz Carlo M. Cipolla (in "Allegro Ma Non Troppo - As Leis Fundamentais da Estupidez Humana"):
"O facto é que as pessoas razoáveis têm dificuldade em conceber e em compreender um comportamento não razoável. Mas deixemos de lado a teoria e observemos, ao invés, aquilo que nos acontece na práctica do dia-a-dia.
Todos nós nos lembramos de casos em que infelizmente nos relacionámos com um indivíduo que obteve um ganho causando-nos um prejuízo: deparámos com um bandido.
Até nos podemos lembrar de casos em que um indivíduo practicou uma acção cujo resultado foi um prejuízo para ele e um ganho para nós: deparámos com um crédulo (note-se o promenor "um indivíduo practicou uma acção" ; o facto de ter sido ele a iniciar a acção é decisivo para estabelecer que é um crédulo; se tivesse sido eu a empreender a acção que determinou o meu ganho e o seu prejuízo, a conclusão teria sido diferente: neste caso eu teria sido um bandido).
Podemos recordar também casos em que um indivíduo practicou uma acção com a qual ambas as partes obtiveram vantagem: tratava-se de uma pessoa inteligente.
No entanto, pensando bem, temos que admitir que estes não constituem a totalidade dos acontecimentos que caracterizam o nosso dia-a-dia.
A nossa vida é também pontuada por acontecimentos em que nós incorremos em percas de dinheiro, tempo, energia, apetite, tranquilidade e bom humor, por causa das improváveis acções de alguma absurda criatura que, nos momentos mais impensáveis e inconvenientes, nos provoca prejuízos, frustrações e dificuldades, sem ter absolutamente nada a ganhar com o que fez. Ninguém sabe, percebe ou pode explicar porque é que essa criatura faz o que faz.
De facto não há explicação, ou melhor, há uma única explicação: a pessoa em questão é estúpida."
Como remate, deixo aqui a Quinta Lei Fundamentalsa Estupidez Humana:
A Quinta Lei Fundamental
A pessoa estúpida é o tipo de pessoas mais perigosa que existe.
(Corolário: O estúpido é mais perigoso que o bandido.)
O ponto essencial a ter presente é o seguinte: o resultado da acção de um bandido perfeito representa pura e simplesmente uma transferência de riqueza e/ou de bem-estar. Depois da acção de um bandido perfeito, este terá um "mais" na sua conta, "mais" este que equivalerá exactamente ao "menos" que ele causou a uma outra pessoa. Para a sociedade, no seu conjunto, a situação não melhorou nem piorou. Se todos os membros de uma sociedade fossem bandidos perfeitos, a sociedade estagnaria, mas não haveria grandes desastres. Tudo se limitaria a maciças transferências de riqueza e de bem-estar a favor dos que practicam a acção. Se todos os membros da sociedade tivessem que practicar a acção por turnos regulares, não só toda a sociedade, mas também cada indivíduo, encontrar-se-ia num estado de perfeita estabilidade.
Mas, quando os estúpidos metem mãos à obra, a música é outra. As pessoas estúpidas causam percas a outras pessoas sem obter vantagens para si mesmas. Apenas conseguem empobrecer toda a sociedade."
Bona est lex si quis ea legitime utatur
Re-tombola : acho o seu texto um excelente complemento do meu, não apenas pelo seu interesse, como por estar num registo diferente. Muito obrigada.
Há uma coisa todavia que não concordo. Você acaba dizendo que “a lei é boa, desde que dela se faça uso legítimo”.
O que eu acho em Portugal é que há um proliferação legislativa semi-redundante e semi-contraditória, elaborada ao sabor das circunstâncias e da incompetência do legislador e que uma das motivações dessa legislação parte do princípio que a administração pública é incapaz de cumprir a sua missão, donde se torna necessária transferir o ónus dessa incompetência para o cidadão, para ser ele a suprir essas deficiências através do excesso de papelada que tem que preencher. A outra das motivações baseia-se na ideia que o cidadão é um aldrabão e a legislação é armadilhada para o apanhar em falta. É claro que só apanha os ingénuos.
Portanto, não se pode fazer uso legítimo de uma lei que não é boa.
Vamos a uma coisa do quotidiano: porque é que todos os anos são mudadas as declarações do IRS? E do IRC? Porque é que há sempre “pequenas” alterações” aqui e ali?
A burocracia não reside apenas na baixa qualificação do funcionário. Parte significativa reside aí. Mas outra parte e porventura a mais relevante, porque incentiva a mentalidade burocrática do funcionário, baseia-se no amontoado legislativo, incoerente e contraditório.
Há meia dúzia de anos a BBC fez uma reportagem sobre o Algarve onde entrevistou vários ingleses que eram donos de pubs e outros estabelecimentos afins. E o principal interesse e gozo do jornalista era a caterva de licenças que um minúsculo estabelecimento necessitava. Eram mais de 40!
Caríssima Joana,
Vou pedir-lhe desculpa por começar a responder pelo fim, isto é, pela reportagem da BBC.
A BBC terá feito essa reportagem como demonstrativa das dificuldades dos súbditos britânicos e não como demonstrativa da burocracia portuguesa.
Tente a Joana abrir um pub na Grã-Bretanha e depois me dirá das licenças necessárias (isto, se alguma vez alguém se dignar aceitar que a Joana terá sequer o direito de abrir um pub na Grã-Bretanha :-) )
Acho que aqui, estaremos a partir do princípio errado de que em Portugal se dificulta o que, aparentemente, "lá fora" é fácil...
A compra de estabelecimentos comerciais e de propriedade imobiliária em Portugal (principalmente no Algarve) por cidadãos estrangeiros e a sua posterior exploração, sempre foi facilitada em Portugal (e "facilitada", aqui, tem a expressão de "fechar os olhos", "os tipos são uns gajos porreiros, para quê chateá-los?", etc)...
Leiam-se os artigos na imprensa britânica acerca da nova tributação sobre o imobiliário em Portugal (que eu acho justa e tardia) para se perceber do que falamos: chega-se à conclusão que o paraíso das isenções fiscais ( e a maior parte dele era inscrito em off-shores) que mais ninguém usa já teve o seu tempo em Portugal (é bom? é mau? Eu diria que é bom: o investimento de um país em isenções sem retorno é tonto!)
Mas, vamos lá ao que interessa: a legislação!
Também sou da opinião de que em Portugal se legisla demais.
Todavia, e aqui residirá a nossa aparente discordância, não é ao Estado que compete aplicar a lei ( oiço risos na plateia??)
Ao Estado, enquanto "pessoa de bem, competirá aceitar e CUMPRIR a lei.
Dir-me-á: mas aplicar a lei é exactamente uma das "funções do Estado".
Acredito, aliás subscrevo.
Mas... compete aplicar a lei como e onde?
Ora... através dos Tribunais e em sede própria: nos Tribunais. (que, como muito bem sabemos, são independentes eh eh eh! )
Aqui chegados (ou chegado eu), direi eu (!): nenhum Juíz se sente confundido (ou atónito) pela profusão de leis!
Ao Juíz compete a aplicação da(s) lei(s), como tal, poderemos dizer que lhe damos mais trabalho ao interpretá-las, mas nunca que ele deixa de saber aplicá-las porque "existem muitas".
Aos Juízes (e aos Tribunais), só condeno o seguinte: o não considerarem inconstitucionais (e, como consequência, pedirem ao TC a sua inconstitucionalidade) todas as normas das leis que atafulham os Tribunais e fazem o cidadão ter que repetir indefinidamente as diligências por elas exigidas.
Como vê, até as próprias leis prevêem que o excesso de legislação é anti...lei!
Daí o terminar, uma vez mais com o "Bona est lex si quis ea legitime utatur" e que a Joana, e muito bem, teve o cuidado de traduzir como "a lei é boa, desde que dela se faça uso legítimo".
ps: o uso legítimo de uma lei significa exactamente que ela seja usada para o que foi criada: para eliminar as interpretações não conformes.
pps: e esse , (a da eliminar interpretação não conforme) não parece ter sido o objectido do Estado (logo ---> lixo no TC).
pps: desculpe estas minhas prosas infindas, mas parece-me que este é um tema fulcral na (da) nosssa sociedade.
Joana,
Ainda uma adenda há já muita longa prosa que debitei...
(...)"uma das motivações dessa legislação parte do princípio que a administração pública é incapaz de cumprir a sua missão, donde se torna necessária transferir o ónus dessa incompetência para o cidadão, (...)"
Não creio que a legislação parta desse "princípio", mas, sim, que "se habituou" ao princípio de que o cidadão se cala e assusta.
É sempre mais barato "atirar para cima" do cidadão o onús da prova (seja ela qual for).
[tal como é "mais barato" nivelar por baixo os "actos médicos" (e "prescrever para o geral" )que, de outra forma, onerariam o erário público comparticipativo, etc - mas isso já eram outras longas prosas ;.) ] .
O "problema" é que o cidadão começa a acordar e a sentir que existe: é esse o problema do Estado, e não o de se dizer que se "legisla mal".
" há já muita longa prosa " ?????????????????
Uops! Sorry!
" à já muita e longa prosa"
:-)
Afixado por: re-tombola em fevereiro 3, 2004 01:55 AMNa tropa, com um papel na mão pode passear-se a tarde inteira na parada... com um papel na mão há muita gente que finge que trabalha...
É assim...
Um abraço,
Francisco Nunes
Em:
www.reformaigual.net
está a decorrer uma petição para que os políticos acedam à reforma/aposentação nas mesmas condições da população em geral.
Em 5 dias vai em 22600 assnaturas e sobe continuamente.
Relativamente à história dos pubs, e dado que não faço ideia como se abre um pub, quer em Albufeira, quer no Soho, acredito em si. Apenas tomei nota na altura do gozo do comentarista britânico sobre a matéria. Aliás, aquela reportagem sobre o Algarve não era nada depreciativa e mesmo a questão das licenças, etc., era levada em tom de brincadeira.
Quando eu referi o problema do amontoado confuso e contradotório de leis, portarias, posturas, etc., não estava a pensar nos juízes que, para além desse amontoado legal, conhecem a jurisprudência, isto é, têm baias que os guiam na interpretação da lei. Pensava no cidadão comum que tem perante o Estado direitos e deveres cuja interpretação e rigor no cumprimento dos deveres e exigência na satisfação dos direitos ficam muito diminuídos por essa confusão legiferante, ou legiferoz.
Concordo, como diz, que a a legislação "se habituou" ao princípio de que o cidadão se cala e assusta. Mas insisto que no relacionamento da administração com o cidadão foram transferidas para este certas obrigações (certidões, documentos diversos, papeladas supervenientes, etc.) porque a administração partiu do princípio que ela não as conseguiria cumprir.
Assim, ela nunca estaria em falta. Quem o está é o cidadão.
Um outro exemplo, completamente diferente. A legislação sobre empreitadas de obras públicas já foi alterada, julgo que 3 vezes, nesta última década.
E cada vez que é alterada, ela é mais favorável aos empreiteiros. E porquê? Porque estabelece obrigações para o Dono da Obra, nomeadamente no que respeita ao cumprimento de diversos prazos.
Qual o efeito? Cada vez há mais deslizamento de custos.
Porquê? Porque enquanto os empreiteiros põem tudo por escrito e estão atentos aos prazos, o Dono da Obra (Institutos, Autarquias, Administração Central, etc.) não responde nos prazos legais, deixa uma série de assuntos à deriva e, quando se chega a “vias de facto”, o empreiteiro tem, do ponto de vista legal, quase sempre razão, mesmo que moralmente não a tenha.
Há uma década, e antes concerteza, os empreiteiros estavam nas mãos do Dono da Obra, que se atrasava a fornecer esclarecimentos e a responder às dúvidas sobre o projecto. Frequentemente os empreiteiros ficavam com a obra parada à espera das decisões, arcando eles como os custos de imobilização do estaleiro.
Hoje é diferente pois quem paga as indecisões e atrasos do Dono da Obra é o próprio Dono da Obra, e a administração pública ainda não encontrou maneira de gerir esta situação.
re-tombola: os 2 anteriores comentários são para si.
Desculpe-me, mas com a pressa não referi o "endereço"!
Os meus melhores cumprimentos
Afixado por: Joana em fevereiro 3, 2004 07:47 PMFrancisco Nunes:
Não é só na tropa. Isso até acontece em empresas privadas. O que sucede é que nas empresas privadas, mesmo nas mal geridas, há mecanismos de controlo que dificultam esse “fenómeno”
(...)
O que sucede é que nas empresas privadas, mesmo nas mal geridas, há mecanismos de controlo que dificultam esse fenómeno
(...)
:-)))))))))))))))))))))
Si non é vero...
ps: não acredito que tenha dito (escrito) isto eh eh eh
manias minhas....
Afixado por: re-tombola em fevereiro 3, 2004 11:25 PMVamos a coisas concretas.
O exemplo mais recente da infernal burocracia imposta ao comum dos cidadãos, relaciona-se com o IMI.
Sabem do que se trata? Pois bem, trata-se do Imposto Municipal sobre Imóveis, que um iluminado do Ministério das Finanças teve a brilhante ideia de criar um impresso, o modelo 1,
que eleva a burocracia a um ponto nunca antes atingido.
Agora, quando comprar uma casa, é melhor asseguar no início da transacção que alguém lhe trate da papelada porque, caso contrário, a papelada vai dar cabo de si.
Para saber mais sobre o IMI vá ao sitio do Ministério das Finanças e imprima o famigerado modelo 1. Vai ver que se não arrepende...
Esse juiz devia ser proibido de exercer. Que idoneidade tem esse gajo para julgar com insenção?
Afixado por: Hector em fevereiro 9, 2004 01:34 AM