Ou de como Semiramis resolveu pedir, novamente, um parecer jurídico
Se o mediático processo Casa Pia já teve algum efeito positivo na relação dos cidadãos com o nosso sistema de justiça, esse efeito será, por certo, um maior conhecimento de alguns dos ‘meandros’ do processo penal português. A pressuposição deste maior esclarecimento poupa-me algum trabalho na exposição do meu raciocínio.
Na aplicação de uma medida de coacção, o julgador atravessa uma série de etapas lógicas, as quais não são mais do que os pressupostos ou fundamentos legais da decisão.
Assim, antes do mais, o juiz de instrução tem que julgar indiciariamente provados os factos que integram o crime - para algumas medidas de coacção, tem mesmo que julgar os factos “fortemente” indiciados.
Como a mediada de coacção não visa punir o arguido, mas sim acautelar um dos três afamados perigos - fuga, continuação da actividade criminosa ou perturbação do inquérito ou da tranquilidade pública -, o julgador tem que apurar se algum destes existe.
Constatada a existência de um perigo, o juiz deve procurar entre as medidas de coacção aquela que, evitando a concretização do perigo, se revelar como menos gravosa para o arguido.
Finalmente, deve o juiz verificar se a medida de coacção pode ser aplicada, atenta a natureza ou gravidade do caso concreto. Por exemplo, não se pode aplicar uma prisão preventiva a um crime punível com menos de 3 anos de prisão. Neste caso, mesmo que haja perigo de fuga, e mesmo que a prisão preventiva seja a única medida adequada a evitar tal fuga, não é admissível prender o arguido. Se, neste caso, de facto, a prisão preventiva for a única medida adequada a evitar a fuga, nenhuma medida, para além do termo de identidade e residência, será aplicada.
Consideremos, agora, um caso concreto.
Temos alguém fortemente indiciado da prática de um crime.
Este crime, atenta a sua moldura penal, admite a medida de coacção de prisão preventiva.
Existe o perigo desta pessoa perturbar o decurso do inquérito, pressionando testemunhas e, sobretudo, ocultando provas. Existe, ainda, o perigo de esta pessoa praticar ilegalidades idênticas àqueles relativamente às quais existem fortes indícios de ser sua autora.
O juiz vê duas medidas de coacção adequadas a evitar este crime. Tem que decretar uma das duas.
Uma delas é a medida mais gravosa - a prisão preventiva. Esta medida afastará a pessoa dos locais e das pessoas que lhe permitiriam concretizar os referidos perigos.
A outra medida tem este mesmo efeito prático, mas permite que o arguido permaneça em liberdade.
O juiz aplica a medida menos grave, permitindo que o perigo seja debelado e que o arguido permaneça em liberdade.
O Tribunal Constitucional entende que todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas que ao arguido dos autos não pode ser aplicada a medida escolhida pelo juiz.
A medida do Tribunal Constitucional não viola o princípio constitucional da igualdade por privilegiar injustamente este arguido, mas sim por lhe retirar o ‘direito’ a ser-lhe aplicada uma medida menos gravosa do que as medidas alternativas.
Em cumprimento da decisão do Tribunal Constitucional, o juiz retira a medida inicialmente escolhida do elenco daquelas que pode aplicar ao arguido em causa.
O elenco das medidas adequadas fica reduzido a uma: a prisão preventiva.
O juiz, em cumprimento do decidido pelo Tribunal Constitucional e por força da lei, aplica a prisão preventiva.
Por força da decisão do Tribunal Constitucional, um arguido que não ‘precisava’ de ser preventivamente preso terá que aguardar nesta situação os ulteriores termos do processo.
Autor: Pseudo Éter
Falamos também duma decisão desfavorável ao douto juíz, quando este, numa tremenda confusão mental, admitiu que o exercício do cargo duma presidência de câmara é efectuado por um funcionário público.
Afixado por: Luís Monteiro em janeiro 27, 2004 03:39 PMConfusões mentais.
Caro Luís Monteiro
Questionei-me se valeria a pena responder ao seu post, pois parece-me que já formou os seus prejuízos contra os tribunais e nada do que eu possa dizer que abale os mesmos será por si aceite.
De todo o modo, para não orientar eu as minhas intervenções por preconceitos, aqui fica um breve apontamento.
A lei não diz que a medida de coacção de suspensão de exercício de funções só pode ser aplicada a funcionários públicos. Pelo contrário, a lei diz que essa medida pode ser aplicada a quem exerça uma função pública.
Os juízes que aplicaram e confirmaram a medida em causa entenderam que um presidente da câmara exerce uma função pública. Admito que possa haver confusão mental, mas, convenhamos, não será tremenda...
Mas, mesmo que a lei dissesse que essa medida só pode ser aplicada a funcionários que exerçam uma função pública, seria assim tão absurdo incluir um presidente de uma câmara neste conceito?
O art. 386.º do Código Penal dá de funcionário a seguinte definição:
«1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2 - Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.
3 - São ainda equiparadas ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;
b) Os funcionários nacionais de outros Estados-Membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.»
Caro Luís Monteiro, talvez a confusão mental não esteja onde pensa.
Cumprimentos.
P.