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novembro 28, 2003

Fare il portoghese

Regressando à nossa arte do dever, a expressão que em italiano designa o entrar em algum local sem bilhete de ingresso, à borla, é:
Fare il portoghese“ – Fazer de português.

Muitos pensarão que aquela frase idiomática é a lídima expressão popular (italiana) da nossa reconhecida capacidade de “cravar” o próximo. Dirão: a nossa reputação já chegou a Itália e há longa data!

Desta vez, curiosamente, estariam enganados. Nas festividades decorrentes em Roma durante a embaixada que D. João V enviou ao papa Clemente XI, este, maravilhado com o fausto dessa embaixada, determinou que os cidadãos portugueses fossem dispensados de pagar os ingressos nos espectáculos realizados para festejar o evento.

Os súbditos dos Estados Papais, aqueles que no dizer de Stendhal, tinham um “soberano que fazia a felicidade deles no céu e a sua desgraça na terra”, como bons romanos, compareceram em massa aos espectáculos, tentando entrar à borla dizendo-se portugueses. A perseverança destes romanos a fingirem ser portugueses foi de tal monta que, a partir daí, em Roma e depois no resto da Itália, “fare il portoghese” passou a designar os borlistas.

Como o mundo é injusto! Eis como a principal “boutade” estrangeira aparentemente dirigida à nossa refinada arte de ficar a dever ao próximo, de sermos borlistas, radica-se afinal no comportamento dos compatriotas daqueles que cunharam e puseram a circular aquela expressão idiomática.

Publicado por Joana às 11:15 PM | Comentários (6) | TrackBack

O Saber Dever

As minhas crónicas anteriores sobre a desastrosa situação do país, o “país de cócoras” (!!), como disse, devem ter deixado os incautos que têm a paciência de lerem estes textos, de ânimo dilacerado, acabrunhados, lamentando-se terem nascido, crescido e labutado neste jardim idílico à beira-mar pasmado.

Reli os meus textos e faço mea culpa! É verdade, eu, conhecida na net como a virtualidade mais teimosa e egocêntrica que paira no ciber-espaço, venho redimir-me, recolocar o nosso querido país no lugar que lhe cabe, por direito próprio, no concerto das nações.

Em primeiro lugar haverá algum desdouro em Portugal estar financeira e economicamente de “cócoras”? Obviamente não. Uma França, nostálgica de Luís XIV, Napoleão ou mesmo De Gaulle, poderia sentir-se mal nessa posição. Portugal, com os músculos fortalecidos por quase um milénio desse exercício regular e porfiado, não tergiversa: nós por cá, bem obrigados! Firmes!

Nós estamos de “cócoras” com a mesma sabedoria, a mesma gravidade e profunda reflexão com que os Hindus desenvolveram o Yoga, exercitando aquela postura, que nos ajuda a desenvolver a atenção, energia, força, flexibilidade, concentração e equilíbrio, a nível físico, mental, emocional e espiritual.

Dívidas públicas e privadas excessivas? Colossais!? Qual o problema? Uma das nossas virtuosidades, que nos tem imposto à admiração do mundo, tem sido a forma como sabemos dever dinheiro. Melhor, como sabemos dever cada vez mais dinheiro. O dever é uma honra. Aprendemos isso com os nossos maiores.

Comecemos pelo Estado, a quem compete velar pela consciência cívica do cidadão e dar-lhe os exemplos das virtudes públicas. O Estado não paga aos fornecedores, ou paga tardiamente e sem mora. Os cidadãos não pagam ao Estado (uma tradição milenária a que se tem dado o nome de evasão fiscal). Os bancos afadigam-se, competindo uns com os outros, duramente, com campanhas maciças de publicidade, para emprestar dinheiro que depois passa a ser designado sob o pomposo termo técnico de “crédito malparado”.

Os estudantes universitários, que irão constituir a futura elite do País, já proclamaram: “Não pagamos”. E também não queremos essa modernice das “prescrições” que iriam impedir que muitos de nós andássemos anos a fio, pelos bancos das universidades, tendo como única actividade discente o praxar os caloiros, sustentados pelos contribuintes (os distraídos, menos apegados à cultura lusa) e pelo défice público.

Quando a França e a Alemanha anunciaram não irem cumprir os 3% e a UE não as sancionou, imediatamente se ergueram vozes indignadas reclamando que era tempo de acabar com o rigor do défice. Que se alarguem os cordões à bolsa dos dinheiros públicos! Queremos dever mais! Queremos acabar com este espartilho que menoscaba os valores da cultura lusíada.

Portanto, nós temos uma nobre filosofia de vida que nos tem dado muita felicidade interior, permitido mais de 9 séculos de história (se incluirmos o Conde Henrique e a Teresa) e na qual nos empenhámos (*) muito, muitíssimo, que desejaríamos imenso partilhar com outros, mas que é infelizmente impossível. Alguém tem que pagar! Debitor non est sine creditore!


(*)”empenhar” em todos os sentidos do termo

Publicado por Joana às 07:43 PM | Comentários (8) | TrackBack

novembro 27, 2003

America’s Cup 2007

Segundo li, “o Clube Náutico de Valência, entidade que realizará a prova, ofereceu à organização helvética 300 milhões de euros, o dobro do valor – 150 milhões de euros – apresentado pela candidatura de Lisboa.”

Eu, que andava pesarosa, com a auto-estima patriótica no fosso, como é normal acontecer a qualquer português que se preze face a um desaire internacional, senti um enorme alívio! Afinal há males que vêm por bem! 300 milhões de euros!?

Imaginemos que ganhávamos. Quem iria aturar os milhares de comentaristas aos gritos, injuriando os promotores do acontecimento que defraudavam o erário público em 60 milhões de contos (imaginando que cobríamos a oferta de Valência) para ricos se entreterem a velejarem no Tejo e imediações!

Os mesmos milhares de comentaristas que agora culpam o mau desempenho das nossas autoridades e promotores, incapazes de trazer a competição para Portugal, mas então em tom muito mais desabrido.

Estou a ver Carvalho da Silva (se ainda não fosse na altura o Secretário-Geral do PC) em vigílias nocturnas e diurnas, junto à praia dos pescadores, desfiando as mágoas da classe trabalhadora pela indignidade das velas enfunadas ao longe, barcos repletos de estrangeiros endinheirados, enquanto a classe trabalhadora, por detrás dele, em travellings longos e comovidos, captados pelo operadores das TV's, ia tasquinhando umas sardinhas assadas com brôa, amaciadas com um tinto da colheita da cintura industrial.

A AC Management e Michel Bonnefous devem ter querido poupar o nosso país às agruras do alvoroço social provocado pela realização de semelhante prova em Portugal, e logo em Cascais, e ainda por cima um desporto para ricos! E a pagar 60 milhões de contos!!!

Em vez dos “ricos que paguem a crise” seria “a crise que pague aos ricos”!

Prevaleceu o “bom senso” de Michel Bonnefous que, antes da escolha final, deve ter surfado na net portuguesa a estudar as sensibilidades dos “tugas”.

Michel Bonnefous, em nome dos portugueses, obrigada pela tua clarividência.

Publicado por Joana às 07:22 PM | Comentários (8) | TrackBack

novembro 26, 2003

Os Patriotaços

Os portugueses, como povo, caracterizam-se por uma notável incapacidade de planear as suas actividades, organizarem-se e pensarem com sensatez o seu futuro, delineando as medidas adequadas para melhorarem e construírem um país próspero. Individualmente, aqueles que não ficaram anquilosados pela vivência na função pública ou pelo trabalho por conta de outrem, frequentemente pouco estimulante e motivador, são normalmente desenrascados, capazes de brilhantes improvisos ou mesmo de realizarem actividades prósperas e sustentáveis ao longo de uma vida de trabalho, conseguindo, muitos de nós, ter percursos, profissionais ou artísticos, plenos de sucesso. Mas como povo, sublinho, somos tal como caracterizei inicialmente.

Mas, se temos incapacidade em nos desenvolver e construir um país próspero, quando nos acontece algo na arena internacional que julgamos que menoscabe a nossa dignidade nacional ou que nos confere um estatuto de menoridade no concerto das nações, então, enchemos o peito, retesamos os músculos e bradamos a nossa ira contra os bodes expiatórios que estejam mais à mão de semear. Nada escapa à nossa fúria patriótica.
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Quando os ingleses nos fizeram um ultimato para reivindicarem enormes extensões de terras no interior de África, sobre as quais teríamos alguns direitos de paternidade, devido à travessia de Capelo e Ivens, mas que manifestamente não tínhamos capacidade militar e financeira para proceder à sua ocupação, a alma nacional comoveu-se, compôs-se a “Portuguesa”, cobriram-se de panos pretos a estátua de Camões, quotizámo-nos para adquirirmos um cruzador em 2ª mão, caíram ministérios, insultaram-se políticos que venderam a alma e o país à pérfida Albion, e promoveram-se mais um conjunto de acções de grande exaltação patriótica, que comoveram as populações que a elas aderiram, mas que foram absolutamente estéreis do ponto de vista do nosso poderio como potência.

Agora, o perdão concedido à Alemanha e à França pelo incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento levou alguns comentaristas e muitos kamikazes da net a irromperem, de peito feito, cheios de exaltação patriótica, a verberarem tudo e todos, as potências europeias, que nos olham desdenhosas, a ministra “sem coerência nem dignidade” que aprovou a decisão de não aplicar sanções aos infractores, o governo lambe-botas, os políticos que se põem de cócoras perante os estrangeiros, etc., etc..

O grave da questão, é que nós, na realidade, estamos, económica e financeiramente, de cócoras. Estávamos quando entrámos na UE, continuámos a estar porque, para além dos fundos estruturais que aplicámos nas infra-estruturas viárias e ambientais, não soubemos desenvolver as nossas actividades produtivas (indústria, agricultura e pescas), malbaratámos os fundos para a formação, utilizando-o para manter o nível de emprego ou em acções sem qualquer eficácia e fomos permitindo que houvesse aumentos salariais na administração pública, e mesmo nas actividades privadas, por efeito de arrasto ou de contratação colectiva, muito superiores ao aumento das produtividades, que conduziu a uma situação grave de desequilíbrios financeiros que obrigaram a acções correctivas com efeitos negativos no rendimento disponível das famílias, numa conjuntura de recessão internacional, agravando os impactes dos efeitos negativos nas expectativas dos agentes económicos nacionais.

Nessa situação, o governo português não tinha alternativas. Ir votar a favor de sanções a países cujos contribuintes ajudam a pagar os fundos estruturais que Portugal recebe? A países em que parte do défice resulta justamente de serem contribuintes líquidos para a UE. E logo Portugal que, nos últimos anos se revelou um péssimo aluno, entrando em incumprimento em 2001, com um ministro das finanças que nunca chegou a saber, em tempo útil, ou mesmo inútil, a quanto montava o défice, Portugal que continua com o credo na boca sem saber se cumpre ou não a meta dos 3%?

Não é com exaltação patriótica, com patrioteirismos indignados, que ocorrem pontualmente, quando nos confrontamos com situações que nos ofendem como povo, que se resolvem estes problemas. Estas situações resolvem-se com o patriotismo quotidiano, com o trabalho que desenvolvemos, com as deliberações que tomamos para construirmos soluções que só a longo prazo produzem efeito, com determinação, com perseverança, aumentando a nossa produtividade, criando riqueza mas evitando distribuir aquilo que ainda não temos.

Em resumo, estas situações de menoscabo da nossa dignidade patriótica terão que ser sofridas no curto prazo mas devemos toma-las como exemplo para perseverarmos em construir um país mais próspero onde tal não volte a ser possível.

É esse o verdadeiro patriotismo, é essa a lição a tirar desta ocorrência e de outras, e será assim que poderemos sair da nossa situação de parente pobre da Europa. Injuriarmo-nos mutuamente e denegrir franceses e alemães não conduz a nada.

Publicado por Joana às 06:55 PM | Comentários (15) | TrackBack

novembro 25, 2003

O Pacto de Estabilidade e Crescimento

A França e a Alemanha já haviam anunciado que não iriam cumprir o Pacto de Estabilidade. Agora parece decidido que não irão sofrer sanções por causa dessa infracção. Os ministros das finanças dos 12 da zona do euro aprovaram hoje por sólida maioria uma resolução que permite uma nova “interpretação” dos défices públicos da Alemanha e da França e que na prática suspende a aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Apenas o Comissário Solbes se empenha em acções “punitivas”. Teria aliás que o fazer, senão cairia no ridículo depois das ameaças que fez a Portugal durante 2002.

O que há de caricato em tudo isto, foi ser a Alemanha a principal impulsionadora do Pacto de Estabilidade e Crescimento, com os severos 3% de limite de défice orçamental que impôs por desconfiar da indisciplina crónica dos europeus mediterrânicos, e ser agora a principal incumpridora e a causa das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento passarem a letra morta.

Era bom termos um Pacto de Estabilidade e Crescimento. A União Europeia ao ter uma moeda única precisa de uma regra de disciplina orçamental. Era mau termos um pacto “cego”, fixado num valor de partida, arbitrário, independente das variações das conjunturas económicas dos estados membros e da UE no seu todo.

A necessidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento é evidente: com a união monetária, os mecanismos económicos de controlo do endividamento para cada estado membro desaparecem e têm que ser substituídos por um instrumento legal.

Quando um país com moeda própria vive uma situação deficitária, quer orçamental, quer nas suas contas com o exterior, os mecanismos económicos actuam e levam aos reajustamentos das taxas de câmbio. Se Portugal não estivesse ligado ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, os governos de António Guterres poderiam ter continuado a sua política laxista, pois os mecanismos económicos agiriam na “sombra”, reajustando o valor da moeda, corroendo o poder de compra dos cidadãos e repondo a verdade económica à custa da carestia da vida, principalmente nos bens importados, mas mesmos nos bens de fabrico nacional que parcialmente incorporam importações (nem que fosse a energia).

Se o laxismo continuasse, Portugal poderia ter caído numa situação semelhante à que ocorreu na Argentina, onde as transacções se passaram a fazer preferencialmente em espécie, e que se transformou do país mais rico da América do Sul, num país a viver na maior das misérias.

Surgiriam então comentários indignados nos fóruns da net e em alguns artigos e notícias nos mídia, acusando tudo e todos da miséria da situação, nomeadamente os agentes económicos mais “imponentes” – Bancos, grandes empresas, etc. – mas com o resultado estéril a que as invectivas ignorantes conduzem.

É por isso que eu penso que este Pacto de Estabilidade e Crescimento é extremamente útil para nós e deve ser respeitado. Ele evita que os nossos governantes caiam no laxismo ou, quando caiem e não sabem como se livrar da situação, se demitam, como fez António Guterres.

O Pacto de Estabilidade e Crescimento obriga a que, apesar dos inúmeros cretinos que continuam a debitar disparates sobre a situação económica e social em Portugal, os nossos governantes ajam com responsabilidade, quer o governo actual, embora com incompetência e com uma Ministra das Finanças, excelente técnica ao nível da gestão de uma mercearia, mas discutível como gestora financeira do país, quer o governo de A. Guterres que, em vista da situação, se demitiu por incapacidade de a resolver, dados os compromissos e expectativas entretanto gerados.

Em qualquer dos casos, Portugal e os países cumpridores ficam agora numa situação óptima para pressionarem para que sejam flexibilizadas as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, não no sentido do disparo dos défices por excesso de consumo público corrente, mas para que possa haver uma política de investimento público que seja adequada à conjuntura económica de cada país. Os limiares devem distinguir entre despesas correntes e despesas de investimento, sendo restritivo para as primeiras e dando flexibilidade às segundas ,consoante a conjuntura económica de cada país.

E é preciso que o façam, pois é indispensável um Pacto de Estabilidade e Crescimento, mas um pacto assente em bases sólidas e que tenha em conta os sinais dos mercados e das conjunturas económicas. Senão arrisca-se a tornar-se letra morta, como este.

Publicado por Joana às 02:53 PM | Comentários (35) | TrackBack

novembro 24, 2003

Os Poluidores e os Ambientalistas ou o Visconde Cortado ao Meio

Italo Calvino, no “O Visconde Cortado ao Meio”, conta uma alegoria interessante:

Um visconde, ido combater numa guerra longínqua, foi cortado ao meio por uma bala de canhão. Uma das metades foi rapidamente cosida, tratada e regressou ao seu feudo. Esse semi-visconde era absolutamente mau. A sua maldade não conhecia limites. A população das aldeias sob o seu senhorio andava aterrorizada.

Meses depois regressou a outra metade. Tinha ficado abandonada no campo de batalha, mas lá conseguira recuperar com muito sofrimento. Ficara com a característica oposta: era de um infinita bondade. Era um semi-visconde absolutamente bom.

Inicialmente foi um bálsamo para os aldeões aterrorizados. Depois, com o andar das semanas, aquela bondade total, desprovida de sensatez, embora com a melhor ds intenções, passou a ser incómoda, perniciosa e, a certo passo, os aldeãos sentiam mais terror do semi-visconde absolutamente bom, que do semi-visconde absolutamente mau.

O mesmo se passa com uma série inumerável de binómios da nossa sociedade, de dipolos cujo baricentro seria o desejável, mas inexistente ou, pelo menos, sem visibilidade pública. Apenas se vislumbram os extremos.

Os poluidores e os ambientalistas ( ver os meus textos de outubro 31, 2003) são dipolos óbvios. Aqueles que brutalizam os animais e os defensores dos direitos dos animais são igualmente perniciosos. E haverá muitos mais.

Deixo a quem tiver a paciência de ler isto tentar uma enumeração mais alargada.

No caso de concordarem com esta tese, obviamente.

Publicado por Joana às 12:38 PM | Comentários (14) | TrackBack

A Fragilidade dos Políticos

José António Saraiva, numa entrevista à SIC Notícias disse, há dias, algo que eu já referi por diversas vezes mas que, vindo dele, tem um duplo peso: ele é o Director do Expresso e, ao produzir aquelas afirmações, fê-lo como juiz em causa própria e pleiteando contra si. Opinou o José António Saraiva que os políticos não deviam mostrar tanta fragilidade perante os mídia, calendarizando a sua actuação de acordo com os timings mediáticos e capitulando sem condições perante afirmações ou acusações dos mídia.

De há muito que tenho essa opinião, mas vendo-a de uma forma algo diferente. Os políticos (e os jornalistas) estão convencidos de que as opiniões emitidas nos mídia têm um poder muito superior ao que realmente possuem. Estão enganados. Basta observar que Paulo Portas nunca desceu das sondagens, apesar da campanha movida contra ele e da sua prestação política ter sido apenas mediana.

Todavia o que o José António Saraiva disse é um facto. A classe política é de uma grande fragilidade perante a comunicação social. Deve isso à sua pouca competência. Mas é uma incompetência que se acentua. A política está, pouco a pouco, a ser uma actividade exercida por quem não tem outras capacidades ou não consegue encontrar alternativa mais atractiva. Cada vez menos, gente com capacidade está interessada em trocar a sua profissão por uma vida política, sujeita à permanente devassa, às mais sórdidas suposições e sem uma remuneração adequada. Cada vez mais a classe política se recruta nos aparelhos partidários, na administração pública, nas universidades. Cada vez menos as actividades que geram a riqueza nacional, que induzem e alimentam o funcionamento das restantes actividades, se encontram representadas na classe política. Cada vez menos a classe política conhece, por dentro, o funcionamento, os problemas e as necessidades do tecido produtivo do país.

Cada vez mais a política está distanciada do país, formula sentenças abstractas e tenta ajustar os factos às suas abstracções.

Publicado por Joana às 12:35 PM | Comentários (13) | TrackBack

novembro 22, 2003

As Vacas Sagradas

A nossa agricultura está estagnada. A nossa pecuária vai sobrevivendo precariamente. Mas há uma espécie que tem proliferado de forma inusitada no nosso país: a espécie das Vacas Sagradas.

Contrariamente ao humilde e dessacralizado gado bovino, que rumina pelos campos, as Vacas Sagradas são uma espécie urbana cuja manjedoura é a comunicação social que a alimenta a opíparas rações de artigos de opinião, entrevistas, declarações, proclamações, elegias, ditirambos, odes, soluços, etc., etc..

Enquanto que nas outras espécies, o Criador providenciou que o acto de geração fosse acompanhado de um intenso prazer, para incentivar a procriação, as Vacas Sagradas geram-se num acto de desprazer. Uma crítica, uma insistência na necessidade de melhoria do desempenho, em suma, qualquer pretensão de melhorar, mudar qualquer coisa, expressa publicamente, que cause desprazer num dado segmento social, torna-o uma Vaca Sagrada.

Se um ministro refere que os bombeiros não têm formação adequada para combater os incêndios florestais, os bombeiros tornam-se, por geração imediata num acto de desprazer, Vacas Sagradas, mesmo que estudos de consultores estrangeiros venham confirmar as palavras do ministro. As Vacas Sagradas geram-se apenas com sémen nacional.

O ICN, que alberga as mais sábias incompetências em matéria de conservação da natureza, sábias porque leram os livros e revistas de outras sábias incompetências, incompetentes, porque só conhecem a natureza que vem naqueles livros, tornou-se uma Vaca Sagrada logo que se falou na possibilidade das suas (in)competências transitarem para outro ministério.

Cada vez que se fala em reformar a administração pública, em estabelecer procedimentos para melhorar o seu desempenho, a administração pública como um todo, ou o segmento em causa, torna-se imediatamente uma Vaca Sagrada.

Às vezes ocorrem conflitos entre Vacas Sagradas. A justiça e a magistratura constituíam Vacas Sagradas. Mas também as virtudes de Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso eram Vacas Sagradas para os próprios e para os seus apoiantes mais dilectos. O processo da Casa Pia tem feito com que estas Vacas Sagradas se tentem dessacralizar mutuamente. É uma refrega de resultados ainda imprevisíveis.

O que surpreende mais na procriação desta espécie é que, historicamente, décadas sucessivas, era a esquerda que fazia o papel de iconoclasta e a direita que gerava e apascentava as Vacas Sagradas. Porém, na actualidade, nas últimas décadas, a principal e única geradora de Vacas Sagradas é a esquerda, a esquerda alegadamente “radical”. A esquerda passou da iconoclasia à iconolatria. A esquerda iconólatra apenas se mantém esquerda no sentido geométrico do termo. Politicamente tornou-se conservadora. Como reconhecia, há dias, o Barnabé, “a esquerda nem sempre consegue … abandonar a sua arqueologia”. Portanto, a própria esquerda, a esquerda que existe presentemente, reconhece que está em risco de se tornar numa peça do museu das ideologias.

Actualmente a Vaca Sagrada de tetas mais úberes que retouça pelos prados da comunicação social, é o inefável Boaventura Sousa Santos, cujas regurgitações fazem as delícias dos adoradores desta espécie.

Sob o ruminar desta ubérrima Vaca Sagrada têm proliferado vacas menos evidentes mas que se sacralizam imediatamente na primeira oportunidade. São as milhares de organizações constituídas por “democratas participativos”, que se afadigam e desdobram (eles são em menor número que as suas organizações) na manutenção e visibilidade pública dessas inúmeras organizações.

A sacralização destas vacas tem um ritual próprio. Por postulado que teorizaram, elas protagonizam a participação dos cidadãos na vida pública. São elas próprias que postularam para si a representação dos 99,99% da população que as desconhecem mas que, pelos postulados dessa teoria revelada, não podem ser representados por aqueles em quem votaram, pois enganam-se sempre ao votarem. Os únicos que estão certos são, por definição, os “democratas participativos”.

Também nestes casos, qualquer dúvida que se emita sobre a representatividade destas organizações, sobre a consistência das afirmações que produzem, sobre o porquê da perenidade das suas chefias, sobre a inexistência de democracia interna, produz um acto de desprazer tão intensamente repulsivo, que torna essas organizações, imediatamente, em Vacas Sagradas.

Na Índia, as vacas sagradas quando se deitam nas rodovias ou nas ferrovias, impedem o tráfego. As Vacas Sagradas portuguesas impedem o progresso. Não têm a visibilidade ridícula de uma vaca indiana espojada nos carris ferroviários, mas têm o insustentável peso da “arqueologia” ideológica.

Publicado por Joana às 09:00 PM | Comentários (25) | TrackBack

novembro 20, 2003

A Ministra Controleira

O objectivo da contenção da despesa pública portuguesa é uma política absolutamente necessária. Os dados do relatório Banco de Portugal não nos podem levar a concluir que ela está errada. O que levam a concluir é que ela está a ser mal executada.

O governo actual não herdou apenas o défice orçamental. Herdou igualmente uma administração pública com excesso de pessoal e com salários muito acima dos salários a que corresponde uma igual produtividade no sector privado. É verdade que este é um problema que não é possível resolver em poucos meses, nem mesmo em poucos anos. Mas tem que ser resolvido.

Portanto a primeira prioridade do governo, juntamente com o congelamento parcial dos vencimentos da função pública, seria desencadear uma reforma profunda. Tem que haver procedimentos de qualidade, aferição de desempenho, reafectação e optimização de recursos e, em acréscimo e como corolário, flexibilização laboral e emagrecimento da função pública. Ora esta reforma deveria ter sido logo encetada. Ainda não se fez nada.

É certo que qualquer tentativa de reforma, por mais ligeira e inconsequente que seja, sofre a contestação generalizada de quem se sente inseguro. Empola-se tudo o que é controverso e ignora-se tudo o que é benéfico. Actualmente, governar o país é muito mais difícil do que há 7 anos. O governo guerrista facilitou, ou incentivou mesmo, a formação de grupos de interesses corporativos avessos a qualquer mudança. Qualquer pedra em que se mexa surgem clamores indignados de todos os pequenos interesses instalados.

Cortou-se à toa na despesa pública. Ora numa época em que a economia mundial está em recessão, a despesa pública no que respeita ao investimento em obras públicas poderia concorrer para travar os efeitos da recessão. Um dos investimentos prioritários seria justamente os comparticipados pelos fundos estruturais, pagos em cerca de 50% pela UE. Ora a execução orçamental relativamente aos fundos disponíveis andará pelos 30%, o que diz da inépcia das autoridades nesta matéria. Como escrevi em 30-10-03, “Neste entendimento, a actual situação no Ministério do Ambiente é um caos, onde as candidaturas andam entre Cila e Caribdes e não são despachadas.” Não sei se será do ministro actual, pessoalmente muito simpático, mas que não aparenta ter nem dinamismo, nem capacidade de liderança, ou se de instruções emanadas do Ministério das Finanças.

O corte da despesa pública teve todavia um efeito benéfico. Houve uma forte quebra da procura interna, que foi parcialmente compensada pelo aumento das exportações (procura externa), esta conjugação de factores levou a um maior equilíbrio da Balança de Pagamentos (que passou de cerca de –9% do PIB em 2001 para uma estimativa de –2,5% em 2003) e, portanto, a uma situação mais saudável da economia portuguesa. O facto de, com a crise internacional, as nossas exportações terem um aumento significativo, é um bom sinal.

Mas esse desiderato teria sido conseguido mesmo sem o corte injustificado em certos investimentos públicos, visto esses investimentos irem gerar receitas fiscais (principalmente IVA., mas também IRS, IRC e outros) e serem pagos em cerca de metade pela UE. Provavelmente teria concorrido para melhorar as contas públicas, pois ainda haveria a acrescentar as externalidades geradas por aqueles projectos e os efeitos induzidos no restante tecido económico.

Os cortes à toa na despesa pública conduziram a uma diminuição acentuada das receitas do erário público e à manutenção de um défice orçamental excessivo. A Ministra é uma boa controladora, mas uma péssima gestora, absolutamente destituída de qualquer imaginação e pensamento estratégico.

O que tem faltado, e era imperativo que houvesse, é uma política dinâmica incentivadora do nosso aparelho produtivo, com relevância nos sectores exportadores, nomeadamente aqueles mais capazes de competirem internacionalmente, visto alguns dos nossos sectores exportadores tradicionais serem de baixo valor acrescentado e só se manterem à custa de baixos salários. Mas para tal era preciso uma política ágil baseada numa administração pública eficiente e desburocratizada, que é justamente o que não existe e que deveria ser o sector prioritário nas reformas que o governo deveria fazer.

Como escrevi anteriormente, o governo assemelha-se ao gestor de uma empresa em dificuldades de tesouraria que decide cortar draconianamente os custos: controla o relatório do relógio de ponto, as imputações de horas aos trabalhos, as requisições para fornecimentos, a facturação, as cobranças e trabalha 24 horas por dia a esquadrinhar os papéis todos. É um trabalho de grande utilidade. Apenas falta a estratégia da organização e dinamização do aparelho produtivo da empresa e a estratégia de marketing para a necessária adequação às realidades do mercado. E essas falhas podem ser mortíferas, por muita contenção de despesa que haja. Falta ao governo capacidade estratégica para um desenvolvimento sustentado da economia portuguesa. Não falta apenas ao governo. Falta ainda mais à oposição e falta, infelizmente, o que é muito preocupante, ao tecido empresarial português, embora haja alguns exemplos, já numerosos, que esta situação se pode inverter. Mas para tal acontecer é vital a desburocratização do Estado e acabar com a ineficiência da administração pública.

Publicado por Joana às 10:12 PM | Comentários (12) | TrackBack

novembro 19, 2003

O Euro, o Dólar e a economia americana

A taxa cambial enter o euro e o dólar continua instável. Hoje atingiu um novo máximo histórico, de 1,1978 dólares, após o departamento norte-americano do Tesouro ter divulgado que os investidores estrangeiros aplicaram 4,19 mil milhões de dólares em acções norte-americanas, o que contrasta com os 49,9 mil milhões de dólares registados em Agosto. Este valor representa nível mais baixo desde Setembro de 1998, mês em que o valor do investimento líquido estrangeiro em acções norte-americanas atingiu os 1,17 mil milhões de dólares.

Ora os EUA precisam de um fluxo permanente de capitais para financiarem o défice da sua conta corrente, que atingiu um valor recorde de 138,7 mil milhões de dólares no segundo trimestre deste ano.

A variação, desde 2000, do défice americano com o exterior comparado com os dois países da UE que apresentam maior desequilíbrio das contas externas, é o seguinte:

..................2000........2001.........2002........2003
Portugal...-10,4%.....-9,6%.......-7,3%.......-4,9%
Grécia........-6,8%......-6,2%....... -6,1%....... -6,6%
EUA............-4,2%......-3,9%.......-4,6%.......-5,1%

As contas externas americanas atingiram em 2003 um desequilíbrio superior ao português, mercê, por um lado, dos gastos americanos no conflito iraquiano e, por outro lado, na política de contenção da despesa em Portugal, que se saldou numa diminuição da procura interna e portanto das importações que, com uma reorientação da nossa indústria para a procura externa promoveu o aumento das exportações e uma nítida melhoria das nossas contas com o exterior.

Este aumento da cotação do euro face ao dólar fez cair ligeiramente as bolsas europeias (excepto a de Lisboa que funcionou em contra-ciclo). A Europa continua com problemas económicos e uma perda de competitividade externa provocada pela queda do dólar poderia ter efeitos negativos nos resultados das empresas europeias, o que criou algum pessimismo nos investidores.

Entretanto, horas depois, chegou a notícia que as estatísticas de construção americanas indicavam que a construção para habitação tinha atingido em Outubro o desempenho mensal o mais forte desde janeiro 1986, em 17 anos, um sinal claro que o mercado de habitação está saudável e pode ajudar à recuperação de economia americana.

Pelo menos foi assim que foi interpretado, invertendo-se a tendência de subida do euro face ao dólar, que se situava, no fim da tarde de hoje, em 1,192 dólares.

A cotação do dólar em dois anos passou de 1€ = US$0,865 para 1€ = US$1,192, uma queda de cerca de 38%. Por isso, e apesar da UE não ter tido uma taxa de aumento do PIB, em termos reais, superior à dos EUA, o PIB total da UE é agora apenas inferior em 5% ao dos americanos.

O quadro seguinte mostra a evolução do PIB, em dólares e a preços correntes, nos últimos 3 anos (os números para 2003 são uma estimativa):

____________________2001____________2002_____________2003
Estados Unidos______10.082,150_______10.446,250________10.875,348
U.Europeia (15)______ 7.936,858 ________8.652,545________10.375,018

A questão desta subida acentuada do euro está a preocupar os agentes económicos europeus pois pode vir a causar problemas de competitividade à economia europeia e à portuguesa em particular, economias que continuam estagnadas em termos de crescimento real. Aliás essa preocupação reflecte-se no comportamento do mercado bolsista europeu.

É certo que o gigantesco défice externo americano torna a economia dos EUA muito vulnerável às flutuações dos fluxos financeiros. Todavia, os EUA dominam a maioria dos nós das fileiras de produção onde a inovação e o efeito motor sobre o restante tecido económico maior importância têm: Informática, electrónica, comunicações, etc.

Muitos têm vaticinado a ultrapassagem da economia americana pela japonesa, alemã, etc. Todavia a indústria destes países não domina os nós vitais do tecido industrial. Por exemplo, a electrónica japonesa é uma electrónica de consumo e a metalomecânica pesada alemã, embora de grande valor acrescentado, não é um elemento de tecnologia de ponta.

É por isso que, contrariamente a alguns vaticínios precipitados, a economia americana tem ultrapassado as crises com grande vitalidade, gerando emprego com grande rapidez e versatilidade, ao contrário da europeia, pesada e lenta a modificar-se. É claro que isto também terá a ver com a regulamentação do mercado de trabalho, mas não só.

Os fluxos financeiros que, vindos do exterior, são investidos na economia americana, tentam aproveitar os bons resultados de empresas dinâmicas e de alta tecnologia, sem grandes competidores no mercado internacional, ou um mercado financeiro e bolsista que tem sido bastante atraente, embora o seja cada vez menos. Não parece, todavia, que esta situação – os fluxos financeiros positivos servirem para compensar o gigantesco défice externo – seja sustentável indefinidamente. Mais tarde ou mais cedo terão que haver medidas de saneamento da economia americana pois se os investidores internacionais começarem a encarar a economia americana com pessimismo, tal poderá originar uma reacção em cadeia de efeitos imprevisíveis.

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novembro 18, 2003

Nicolau Santos, Missed in Action

É incontestável que a administração Bush avaliou mal as consequências da estratégia que decidiu seguir relativamente a Saddam Hussein. Não me refiro à condução da guerra em si, que avaliou correctamente, mas sim à gestão do Iraque após o conflito, acerca da qual fez uma avaliação desastrada. Simplesmente não era possível separar uma coisa da outra: a guerra e a gestão após a guerra.

A posição de alguns países importantes da UE, o chamado Grupo dos 4, também foi desastrada. Em vez de uma política de apoio condicional a Washington, a única política sensata face à determinação americana e aos meios à disposição da Europa, o eixo franco-alemão, com o apoio da Rússia, adoptou uma política intransigente face às posições americanas que tiveram as seguintes consequências:

- Saddam e a clique militar e política iraquianas optaram por resistir até ao limite, sempre convencidos que vetos salvadores da França ou da Rússia entravariam a acção americana. Toda a política francesa de então poderia levar a concluir isso. Todavia, eu própria na altura escrevi que tal era uma hipótese a descartar, pois a Rússia vender-se-ia por um prato de lentilhas e a França não tinha força para protagonizar o nostálgico papel de grande potência, como se viu depois. Aliás teve que contratar o Woody Allen e outros para melhorarem a sua imagem nos States, o que diz do ridículo da posição francesa.

- A administração Bush passou a considerar aqueles países como “países inamistosos”, com os quais nem valeria a pena dialogar. Blair ficou assim isolado, sem capacidade de influenciar a administração Bush numa estratégia mais flexível.

Em política nunca se sabe se as alternativas conduziriam a melhores resultados. Não se sabe se Saddam abandonaria voluntariamente o poder, nem se sabe se, na sua “entourage” não poderia aparecer um núcleo de personalidades que, ajudadas pelo exterior, pudessem obrigar a uma solução negociada.

Em qualquer dos casos, todas estas hipóteses foram eliminadas pela forma desastrada como a administração Bush e o eixo franco-alemão se comportaram nos preliminares à eclosão do conflito.

Um parênteses aqui para uma referência àqueles que falam da “sabedoria” europeia perante estes conflitos. A Europa, na última década, assistiu inerme ao genocídio perpetrado pelos sérvios, primeiro nas zonas das minorias sérvias da Croácia, depois na Bósnia e finalmente no Kossovo. Quando os sérvios bombardeavam diariamente Dubrovnik, património mundial, um ministro francês propôs realizar um espectáculo cultural em Dubrovnik de solidariedade com os martirizados croatas. Estes recusaram indignados. Celebrações dessas fazem-se em face de calamidades naturais. Às bombas responde-se com bombas. A Europa foi então de uma absoluta hipocrisia e, em todos aqueles conflitos, tiveram que ser os americanos a resolver aquilo que a “sabedoria” europeia não era capaz resolver.

Os que referem actualmente a “sensatez” e a “sabedoria” da tibieza da Europa face à actual situação do Médio Oriente ou são desmemoriados, ou trouxas, ou ambas as coisas. Isto na melhor das hipóteses. Provavelmente serão hipócritas. Isto não significa que o cabedal de experiência que a Europa adquiriu, ao longo de séculos de vivência diplomática, não seja utilizado. O que não se deve é confundir experiência diplomática com tibieza e cobardia e justificar estas com aquela.

Regressando ao Iraque, chegámos à situação actual, em que as forças anglo-americanas, e as que se lhe uniram, enfrentam quer a resistência de elementos pró-Saddam, quer terroristas kamikazes iraquianos ou vindos doutros países árabes, quer bandoleiros que em face do vazio da autoridade resultante do fim do regime Baas e dos erros dos americanos, que não souberam trazer para o seu lado uma parte significativa dos aderentes do partido Baas que o eram apenas por obrigação, aterrorizam a população e jornalistas incautos e inexperientes.

Esta situação era previsível. Em Portugal, a seguir às guerras liberais, e durante mais de 2 décadas, agiram, praticamente às claras, inúmeros bandos de salteadores, tendo alguns até entrado na história, e só pouco a pouco, com a consolidação do regime e da autoridade do Estado, foram sendo eliminados. Eram apenas bandoleiros, embora muitos deles usassem referências políticas como alibi, mas absolutamente destituídas de significado.

Nesta situação, o dever da Europa, não por subserviência com os EUA, mas por necessidade de sobrevivência própria, é o de apoiar “condicionalmente” os EUA, ajudando a encontrarem uma saída para esta questão com o melhor rácio benefício-custo. Definir um faseamento racional da implementação das novas instituições iraquianas e da retirada progressiva e o mais rápida possível dos efectivos militares estrangeiros, de forma a dar força, credibilidade interna e confiança aos elementos democráticos da sociedade iraquiana. Por enquanto, a acreditar na sondagem Gallup, a maioria da população iraquiana deseja a continuidade da presença da coligação militar internacional até à estabilização, não por “amar” os americanos, mas porque sabe que sem eles, agora, seria o caos social.

Portanto, quaisquer que sejam as considerações que façamos sobre as razões ou as não razões que até aqui assistiram aos diversos protagonistas deste conflito, a situação actual diz respeito a todos nós, europeus e americanos e deve ser analisada em conjunto com sensatez e ponderação.

É à luz deste intróito que deve ser examinado o texto publicado ontem, 17-11-03, no Expresso online, da autoria de Nicolau Santos.

É um texto catastrofista, insensato, apelando à emoção irracional e terceiro-mundista, cujo estilo está muito mais próximo do estro de um radical de esquerda adolescente, escrevinhador nos fóruns da net, que de um jornalista de um semanário considerado de referência.

A frase “o que se estão agora a preparar para fazer é tão rasteiro, tão baixo, com tanta falta de dignidade que só pode conduzir a que aumente o ódio e a falta de respeito pela administração americana em todo o mundo” é paradigmática do que escrevi acima. Não é possível a substituição dos soldados dos EUA pelos capacetes azuis, como NS escreve, ao imaginar Bush de joelhos, de olhos orvalhados pela emoção, a implorar capacetes azuis à ONU. Os capacetes azuis não têm qualquer capacidade operacional. Poderão ajudar as forças americanas e britânicas. Nunca substituí-las. Quem faz afirmações destas não deve estar na completa posse das suas faculdades cognitivas.

O Iraque não é o Vietname do Sul. Não tem os santuários, nem um Vietname do Norte na retaguarda a dar-lhe apoio logístico em meios humanos e materiais, nem o chamado “mundo socialista” igualmente a fornecer apoio logístico.

Por outro lado uma capitulação do mundo ocidental no Iraque teria efeitos absolutamente diversos do que sucedeu no Vietname. No Vietname havia gente com convicções, que lutava com determinação e sacrifícios inexcedíveis pela independência e reunificação do seu país, mas que apenas desejava isso. Poderiam ter convicções políticas diferentes de muitos de nós … mas eram da nossa civilização, pelo menos em muitos dos seus valores mais fundamentais. Era gente previsível.

No Médio Oriente, a luta é contra concepções que já no fim da Idade Média tinham sido abolidas da Europa. É uma luta da sociedade laica contra sociedades teocráticas; é uma luta de uma sociedade que respeita direitos, liberdades e garantias, contra sociedades que desconhecem esses conceitos na sua vivência mais comezinha; é a luta da tolerância contra a intolerância e, o que é mais grave, contra uma intolerância que se afirma como valor universal e que pretende impor os seus valores ao resto do mundo.

Isto não quer dizer que a nossa sociedade não cometa erros, não seja, às vezes intolerante, não atente, às vezes, contra a liberdade dos outros. Mas, e isso é o fundamental, a nossa sociedade, pelo seu processo de funcionamento, é capaz de se aperceber desses erros e corrigi-los rapidamente. É uma sociedade que tem em si a capacidade do seu próprio aperfeiçoamento. É uma sociedade que é capaz de se regular a si própria no caminho do progresso e da prosperidade, mesmo que nem sempre o faça de forma linear.

O último helicóptero, Nicolau Santos, não sairá de Bagdad. Se acontecesse a sua visão calamitosa o último helicóptero sairia de uma das últimas capitais europeias na direcção de alguma ilha perdida no Pacífico.

Mas você, Nicolau, ficaria aqui, de turbante e albornoz puídos a substituírem o decadente lacinho, resquício desnecessário de uma civilização moribunda, integrando uma cáfila de camelos remoendo cardos, de beiços pendentes e bamboleando as corcovas ao ritmo da melopeia do Balsemão, que entoaria versículos corânicos enquanto você, com o seu laptop em 6ª mão, comprado a um mercador arménio no Kasbah lisboeta, tentava acertar nas teclas, mas inutilmente, pois já não teria clientela para os seus escritos, dado os kamikazes do fórum do Expresso, os sobreviventes, terem sido todos conduzidos ao deserto do Hedjaz para serem reciclados e reeducados segundo os ensinamentos do profeta.

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novembro 16, 2003

Gomes Freire de Andrade

O período que mediou entre as invasões francesas, a fuga da Casa Real e o estabelecimento da sede da monarquia no Brasil e a Revolução de 1820 tem sido bastante controverso do ponto de vista da análise histórica e das explicações para os acontecimentos.

Oliveira Martins, por exemplo, escreve que Portugal se tinha tornado numa colónia do Brasil. A historiografia francesa, por sua vez, acentua a dependência de Portugal face à Inglaterra. Esta tese tem motivações simples. Após a rendição de Junot, Portugal era o único país da Europa continental fora do controlo francês. Parte da Europa continental estava sob o império de Napoleão e outra parte era aliada à força. Os franceses foram sistematicamente batidos pelas tropas anglo-lusas e atribuir uma derrota a um país pequeno é humilhante. Assim, o papel dos portugueses no exército de Welligton foi sempre desvalorizado pelos historiadores franceses, embora os protagonistas dos acontecimentos, como Marbot e Foy, dêem nas respectivas memórias bastante importância à acção dos portugueses.

Em Portugal, a apreciação do papel dos ingleses no nosso país, naquele período, também tem variado, nomeadamente durante a primeira metade do século XX, ao sabor da luta entre germanófilos e anglófilos, em suporte das suas teses durante os conflitos mundiais.

Um dos casos mais controversos é o do julgamento e execução de Gomes Freire de Andrade e dos restantes “Mártires da Pátria” e do papel dos ingleses nesse caso. É essa questão que abordarei em seguida.

A política tem coisas estranhas. Foram partidários do liberalismo que promoveram a iniciação maçónica da viscondessa de Juromenha, iniciada na Maçonaria, loja Virtude, em 1814. O marido era secretário militar do Comandante em Chefe do exército português, o Marechal Beresford, Marquês de Campo Maior. Ela era amante de Beresford com a complacência do marido (a exemplo do que já sucedera com Junot e a Condessa de Ega, 7 anos antes). Era um ménage à trois que a todos aproveitava, nomeadamente ao marido, agraciado com o título de visconde e mais tarde promovido a general. O casal e a prole vivia, convenientemente, no Palácio Junqueira, residência de Beresford, onde anteriormente residira Junot. Interessantes, estes acontecimentos que se repetem na história…

Com a iniciação da viscondessa, pretendiam os liberais averiguar os sentimentos de Beresford face à Regência, a Junta dos Governadores que governava o país em nome de D. João VI, e as possibilidades de o trazerem para o campo liberal.

Por sua vez, Gomes Freire de Andrade havia feito um percurso sinuoso. Quando Junot tomou Lisboa e se tornou “rei” de Portugal, obteve o concurso de Gomes Freire de Andrade que, integrado na Legião Portuguesa, comandada pelo Marquês da Alorna, partiu ao serviço de Napoleão e da França.

Um dos problemas que há com os heróis … é que ninguém é perfeito. Gomes Freire de Andrade serviu entre 1807 e 1814 o país que tinha ocupado o seu, que o invadira e invadiria por 3 vezes, que o saqueava e que lhe movia uma guerra de grande crueldade que se saldou por um terrível sacrifício e enorme mortandade da população portuguesa.

Com a primeira abdicação de Napoleão, Gomes Freire de Andrade pediu autorização para regressar ao seu país. A autorização demorou e valeu-lhe então o seu primo direito, D. Miguel Forjaz, um dos secretários da Junta, que pelo seu talento era talvez o elemento mais poderoso da Junta. Sujeitou-se então a um processo de reabilitação que o declarou “livre de toda e qualquer mácula”.

Aquele dificuldade era normal: objectivamente, Gomes Freire de Andrade podia ser considerado traidor à pátria, visto ter servido o país com que Portugal estivera em guerra, e durante o período em que essa guerra durou. Regressou em meados de 1815.

Em Portugal levedava a revolta. Os liberais contra os absolutistas; Beresford contra a Regência; a oficialidade portuguesa contra a chefia de um inglês; a Casa de Cadaval contra a Casa de Bragança, acusada de deixar o país pelo Brasil.

Um conjunto de oficiais movidos por diversos desígnios, desde o sentimento liberal, os atrasos de pagamentos do pré, atrasos de pagamentos de reformas, descontentamento pela ausência do Rei e o ódio ao comando inglês, integraram um movimento, para o qual conseguiram o patrocínio de Gomes Freire de Andrade, e que denominaram “Supremo Conselho Regenerador de Portugal, Brasil e Algarves”.

Gomes Freire de Andrade tinha todas as características que concorrem para obter carisma popular: Impetuoso, de grande coragem, arrebatado, impulsivo, de grande frontalidade e franqueza, indisciplinado por vezes, mas justo. Má cabeça e bom coração, como alguns diziam.

Gomes Freire de Andrade manteve-se como figura de referência dos conjurados, embora a sua participação, para além da eventual colaboração na redacção das proclamações, fosse pouco activa. Os conjurados pretendiam o seu nome de oficial distinto como figura de proa, para fortalecer o seu movimento.

As proclamações daquele Conselho, divulgadas clandestinamente, parecem-nos hoje de uma retórica algo vazia. A leitura da “proclamação-manifesto” mostra que o principal acusado é o Rei, por nos “ter vendido aos nossos inimigos naturais, ao Rey de Hespanha”, nos pretender sujeitar “à tirania dos Hespanhois como dote da filha ou presente de escravatura”, “o Déspota que … nos chama ao açougue do precário Império” referindo-se ao recrutamento de tropas para os combates que se travavam, no sul do Brasil, pela posse de Montevideu e para combater a insurreição republicana no Pernambuco (*). A referência a Beresford é chamar-lhe o “ridículo aventureiro que em desabono nosso é Commandante em Cheffe do Exercito”.

Esta proclamação enumerava uma série de motivos de agravo, disparava em todas as direcções: Rei, Regência, Beresford, Espanha, mas não propunha nada em concreto senão “vencer ou morrer pele plena satisfação da fé jurada”. Um movimento que pretende triunfar tem que escolher os alvos principais e poupar os secundários, ou mesmo estabelecer alianças com estes, senão tem todos contra ele (**). O teor desta proclamação mostrava a fragilidade e a falta de maturidade política do movimento.

A viscondessa de Juromenha, ao contrário do que os liberais tinham pretendido, tornou-se a principal figura na liquidação da conspiração. Estava exacerbada pela raiva contra os pasquins que a insultavam. Quando o marido foi promovido a general, vieram a lume papéis que rezavam:

De um corno fazer um tinteiro
Isso faz qualquer estrangeiro
Mas de um corno fazer general
Isso só o Senhor Marechal

O reduzido número dos conjurados, a ligeireza com que muitos se conduziram, a sua pouca implantação fora do exército e a incontinência de alguns deles, fizeram com que rapidamente se soubesse da trama. Na sua tentativa de aliciarem gente, os conjurados empolavam em muito a força do seu movimento. Haveria gente ligada à conjura por motivos diversos da causa liberal. Aliás, alguns dos conjurados eram agentes provocadores que mantinham informada D. Maria da Luz, a viscondessa de Juromenha e, por via desta, o Marechal Beresford, ou mesmo directamente este.

O Marechal Beresford estava de partida para o Rio de Janeiro (D.João VI tinha acabado de ser aclamado rei) onde ia tentar conseguir apoio do rei na sua luta contra a Regência. Mas não queria partir deixando a conspiração a desenvolver-se na sua ausência. Os agentes provocadores foram incumbidos de agirem rapidamente e de fazerem uma lista exaustiva dos conjurados, graus e tipo de adesão e das suas intenções e desígnios.

Beresford convocou algumas personalidades da sua confiança, entre elas o Visconde de Santarém, a quem foram apresentados os documentos que tinham sido coligidos relativos à conspiração. Esses documentos mostravam que estava em marcha um movimento, ainda incipiente, cuja primeira fase seria a criação de núcleos por todo o país. A decisão foi a de apresentar a documentação à Regência, o que ocorreu em 23 de Maio de 1817. A Regência imediatamente se assegurou da posição do exército e do apoio do General Paula Leite, encarregado do governo das Armas da Corte e província da Estremadura, elemento fundamental para a segurança da região de Lisboa, e emitiu ordens de prisão contra Gomes Freire e diversos oficiais e civis.

A falta de coordenação entre os conjurados era tal que Gomes Freire de Andrade, ao notar a movimentação de tropas, o ruído das armas e das patas dos cavalos, pensou tratar-se da revolução em marcha, fardou-se, esmaltou o peito das condecorações e esperou. Esperou até que a sua porta foi arrombada, a casa invadida pela tropa e lhe foi dada ordem de prisão.

A devassa que se seguiu foi típica de um processo num regime absoluto. Os agentes provocadores fizeram as suas deposições em segredo, alguns dos conjurados passaram a delatores e como o maior alvo era Gomes Freire de Andrade, os testemunhos foram orientados para avolumar a importância da conspiração e para o tornar o principal culpado. Aliás, nunca se soube qual foi o real envolvimento de Gomes Freire na conjura, como também não se conhecem exactamente os objectivos dos conspiradores, se é que havia um objectivo comum, ou se parte dos conjurados não teria sido manipulada para objectivos que desconheciam.

A rapidez de actuação da Regência e a forma como o processo se desenrolou causou surpresa a Beresford e reforçou a ideia que este teria, de que havia gente ligada à regência metida na conspiração. Uma teoria refere que havia a tentativa de depor D, João VI, substituindo a Casa de Bragança pela Casa do Cadaval (aliás, um dos denunciados era o Duque do Cadaval). Uma outra teoria falava de que havia na regência traidor ou traidores favoráveis à anexação de Portugal pela Espanha, na sequência do conflito que então se travava no Uruguay e que haveria uma tentativa de encobrir esse facto. Essa teoria baseava-se na visita, 2 meses antes, do general Cabanes, enviado de Fernando VII, a Portugal por razões que nunca foram claras. Segundo esta teoria Gomes Freire, que privou com Cabanes durante a estada deste em Lisboa, e outros estariam a ser manipulados para um processo que lhes escaparia das mãos e cuja primeira fase seria a desorganização do exército português e a quebra da sua cadeia hierárquica, para deixar o país inerme face à Espanha.

Gomes Freire foi condenado à morte “com baraço e pregão” e executado em S. Julião da Barra. Os restantes 11 sentenciados foram executados no então Campo Santana, hoje Campo dos Mártires da Pátria, a 18 de Outubro de 1817. A lentidão do suplício, e o ter-se prolongado pela noite, deu origem à frase macabra “felizmente há luar” de Miguel Pereira Forjaz. Este tinha mostrado, durante todo o processo e na execução, um surpreendente afã em se ver livre do incómodo primo direito.

Espanta a severidade das sentenças, quando comparadas com as sentenças dos insurrectos de Pernambuco, o que reforça a ideia de que a regência se queria ver livre de forma definitiva dos conjurados. E surpreende igualmente que personalidades da nobreza denunciadas como fazendo parte da conjura, como o Duque do Cadaval, o Marquês de Ponte de Lima e outros, não tenham sido incomodados.

Um dos conjurados, o Barão de Eben, prussiano e amigo pessoal do Duque de Sussex (de que também Gomes Freire era conhecido), irmão do Rei da Inglaterra, foi expulso do país. O facto do Barão de Eben aparecer ligado a esta conspiração como um dos principais conjurados foi extremamente embaraçoso para a família real inglesa.

O papel da maçonaria não foi claro. Gomes Freire era Grão-Mestre da Loja Militar dos Cavaleiros da Cruz da Legião Portuguesa. Alguns membros desta loja foram denunciados, como o Marquês de Ponte de Lima, mas nenhum condenado. Mas havia mais lojas e não se conhece que alguma estivesse envolvida. A própria viscondessa de Juromenha era da maçonaria e um dos principais delatores era da mesma loja, a Virtude. Muitos oficiais ingleses estavam ligados a lojas maçónicas. Haveria maçons ligados à conjura e outros indiferentes, ou que se lhe opunham.

Esta conspiração e o seu desfecho trágico é um dos episódios sangrentos da luta entre liberais e absolutistas. Para aliciarem o exército os liberais utilizaram, como uma das armas, a humilhação que consistia no Comandante em Chefe ser inglês e de continuarem a haver oficiais ingleses em situações consideradas imerecidas na hierarquia militar. É falso dizer que Portugal estava então ocupado pelos ingleses, embora fosse verdade que a política portuguesa estava bastante influenciada pela política inglesa. Mas continuaria a estar quer houvesse ou não Beresford, como se verificou posteriormente. Beresford não representava a Inglaterra, mas sim a ele próprio. Aliás, a proclamação do “Supremo Conselho Regenerador” refere-o como um “ridículo aventureiro que em desabono nosso é Commandante em Cheffe do Exercito” e não como o procônsul britânico em Portugal, como bastante mais tarde alguns o designaram.

Beresford agiu sempre por conta própria e chegou a pensar-se, no tempo da regência de D. Isabel Maria, na sua reintegração no cargo de Comandante em Chefe do exército português, que não foi avante por motivos óbvios: apesar de militar capaz e disciplinador, o facto de ser estrangeiro iria torná-lo um alvo desnecessário e enfraquecer politicamente a posição da regente, em vez de a reforçar.

A fragilidade desta conspiração, e a confusão que paira sobre os seus reais objectivos e o grau de envolvimento dos conjurados, mostrou que o exército ainda não estava maduro para a insurreição. Mas a execução de um oficial cheio de prestígio, e a forma bárbara como foram supliciados os conjurados ajudaram ao levedar da insurreição que iria eclodir menos de 3 anos depois.

No início do ano seguinte, 3 meses após as execuções, instalava-se no Porto o denominado Synhedrio (Sinédrio), por iniciativa de Manuel Fernandes Thomaz e Ferreira Borges. O movimento liberal adquiriu maior consistência e coerência. Em face da degradação da situação, Beresford foi ao Rio de Janeiro reclamar maior latitude de poderes. D. João VI concedeu-lhos por Carta Patente de 29 de Julho de 1820, quase em simultâneo com o ofício que a regência (Junta dos Governadores) enviava ao rei, deplorando o estado das finanças públicas e as exorbitantes despesas militares e a ”considerável soma a que montam o soldo, gratificações a ajuda de custo, que recebe o Marechal-General, Marquês de Campo Maior (Beresford)”. Regressou a Portugal, mas já não pôde desembarcar. Tinha havido o pronunciamento de 24 de Agosto de 1820 e a Junta Provisional de Lisboa, que entretanto substituíra a Junta dos Governadores, não lhe permitiu que desembarcasse. Regressou em 1826, com as tropas do General Clinton, a pedido da Regente D. Isabel Maria, para proteger o cambaleante regime liberal, mas o seu protagonismo na política portuguesa acabara.

O facto do exército ser chefiado por um estrangeiro, que teve, perante a opinião pública, um papel importante na liquidação na alegada conjura de Gomes Freire de Andrade, foi um elemento decisivo de fermentação da revolta. Foi por isso que o papel dos ingleses quer no exército português, quer na política portuguesa da época foi bastante empolado. Esse empolamento servia então os interesses do partido liberal no sentido de ampliar a sua base de apoio dentro do exército e na burguesia urbana. Foi também um elemento que uniu, inicialmente, os vintistas aos conservadores. Gomes Freire tornou-se um herói nacional porque "queria correr com os ingleses", tornou-se um "Mártir da Pátria".

Todavia, após a revolução de 1820, a Inglaterra teve uma influência muito positiva, contrariando as intenções da Santa Aliança e de Metternich de intervirem em Portugal para derrubar o regime liberal. E com a contra-revolução e a subida ao poder de D. Miguel, foi em Inglaterra que os liberais encontraram abrigo e se reorganizaram. É bom que não se esqueça isso.


(*) Aliás, Beresford estava igualmente contra a partida de tropas para a guerra no Uruguay, por questões de perda de poder pessoal, pois diminuiriam as forças sob o seu comando, mas também em virtude do reforço dos efectivos espanhóis junto às fronteiras portuguesas, e pretendia o regresso do Rei, porque estava em permanente conflito com a Regência e sabia que tinha a confiança de D. João VI.

A ameaça espanhola não era despicienda. Havia um conflito entre os dois países por causa da colónia do Sacramento (actual Uruguay) e se não fosse a existência então de um exército disciplinado e eficiente, adestrado nas campanhas contra os franceses, e considerado de valor militar incomparavelmente superior às forças espanholas, era natural que as forças espanholas, muito mais numerosas, tentassem uma invasão. Nesse entendimento, qualquer acção espanhola teria que ser precedida da desorganização e enfraquecimento do exército português

De notar que a Espanha se estribou então no conflito do Uruguay para não cumprir a decisão do Congresso de Viena da devolução de Olivença.


(**) As proclamações de 24 de Agosto de 1820, que apelavam à criação de um governo provisório e à eleição das Côrtes, como o órgão da nação que preparasse uma constituição que assegurasse os direitos dos portugueses, continham um rasgado panegírico a D. João VI: “O nosso rei, o senhor D. João VI, como bom, como benigno e como amante de um povo que o idolatra, ha de abençoar nossas fadigas. Viva o nosso bom rei!”. Este “nosso bom rei” era o mesmo que tinha acabado de decretar o aumento de poderes de Beresford, justamente para combater o movimento liberal. Manter a religião, o trono e salvar a pátria e a independência nacional eram as aspirações que a Junta Provisional apresentava como suas, o que mostrava que esta soubera distinguir o alvo principal dos alvos secundários.


Nota: Usei indiferentemente regência ou Junta dos Governadores, visto a Junta estar encarregada da regência na ausência de D. João VI. Era então presidida pelo Marquês de Borba. Miguel Pereira Forjaz estava encarregado da secretaria da guerra. Era hostil à presença de ingleses à frente do exército e o principal adversário de Beresford na junta.

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novembro 14, 2003

Jornalistas que não lêem o que escrevem

Os meios de comunicação têm alertado para os riscos que os efectivos da GNR correm ao irem para o Iraque.

Todo o país tem sido advertido para esses riscos. O sul do Iraque seguro? Nada está seguro! Nem os americanos, nem os britânicos têm o controlo da situação. O Iraque está num caos! Olhem o que aconteceu aos carabinieri italianos! Os GNR estão sob um risco tremendo! Que Deus se amerceie deles, empurrados para aquele inferno por uma política errónea!

E os jornalistas, temerosos pela sorte dos GNR, ávidos de mostrarem ao público português a situação logística dos GNR, os perigos que aqueles infelizes correm, lá foram rápidos e determinados, pelo deserto dentro, sem escolta militar, armados de cameras de filmar, máquinas digitais, telefones via satélite, microfones, toda a parafernália comunicacional.

Esqueceram-se apenas de uma coisa: lerem as reportagens que tinham enviado ou ouvirem os relatos que tinham transmitido, e pelos quais se poderiam ter elucidado que o Iraque está num caos e que é perigoso transitar mesmo com escolta militar … quanto mais sem escolta!

Publicado por Joana às 08:08 PM | Comentários (7) | TrackBack

O Mercado e o Arrendamento Urbano

Numa economia de mercado, os valores dos arrendamentos urbanos deveriam ser estabelecidos pelo equilíbrio da oferta e da procura no mercado imobiliário. Pelo encontro entre o valor que o proprietário acha justo pelo espaço que disponibiliza e o valor que a entidade arrendatária ou o mercado em geral estão dispostos a pagar pela sua utilização.

Isto é válido para um arrendamento habitacional ou comercial.

No nosso país, durante o Estado Novo, regulamentou-se o congelamento de rendas em Lisboa e Porto. Como durante o regime salazarista a inflação foi praticamente inexistente, essa regulamentação, feita com o intuito de obviar a especulação imobiliária perante uma oferta reduzida, não conduziu inicialmente a grandes distorções do mercado. Contudo, com o aumento da inflação, iniciado no período marcelista e tornado galopante após o 25 de Abril, e com a extensão desse congelamento de rendas ao resto do país as rendas tornaram-se irrisórias, mesmo depois de ser permitida uma tímida actualização anual, a partir de meados da década de 80.

Todo este processo, feito com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação, teve um efeito absolutamente perverso: a degradação do parque habitacional, a ruína dos centros históricos de Lisboa e Porto e, em menor grau, das restantes cidades do país, a inexistência de um mercado de arrendamento eficiente, a opção pela aquisição de casa própria e o endividamento exponencial das famílias para o conseguirem.

O próprio Estado, o arquitecto da lei e responsável pela sua manutenção, ficou na impossibilidade prática de uma reforma fiscal adequada do património. Senhorios dos prédios antigos, recebendo rendas de miséria, descapitalizados, nunca poderão pagar impostos patrimoniais baseados num critério geral para todo o país. A perversão do mercado do arrendamento conduziu a miríades de situações, quer dos senhorios, quer dos inquilinos, todas diferentes, relativamente às quais não é possível estabelecer leis genéricas sob risco da ruína de dezenas de milhares de pessoas, senhorios, ou inquilinos, ou ambos.

E o mais perverso é que não foram só as rendas habitacionais que escaparam às regras do mercado. As rendas comerciais foram tratadas da mesma forma. Ora se face à habitação se pode falar de uma necessidade básica, de uma acção de filantropia social que, não tendo o Estado meios para a fazer, encarregava os senhorios, contra vontade destes, de a fazerem, no caso das rendas comerciais, estas são um factor de produção. Não há qualquer filantropia. O seu congelamento equivaleu a um subsídio que os senhorios portugueses, ao longo de décadas, deram, contrariados, à actividade comercial: lojas, escritórios, etc.. Ora uma política cega de subsídios retira incentivos à modernização. O comércio dos centros históricos foi perdendo qualidade relativa, cristalizou, e tem perdido mercado face ao comércio menos central e com maior mobilidade e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.

Ora aqui está como a regulamentação do mercado, estabelecendo preços que não correspondem aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à impossibilidade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à absoluta injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios e à mercê de qualquer intempérie que lhes pode causar prejuízos que eles não têm capacidade de suportar, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores e com uma punção fiscal proporcionalmente mais benévola.

Adam Smith (sempre ele!) escreveu há quase dois séculos e meio que os agentes económicos, funcionando em mercado livre, “ao tentarem satisfazer o seu próprio interesse promovem, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretendem fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público”. Esta frase é lapidar: aqueles que tentaram, julgando servir o bem público, constranger ou impedir, o livre funcionamento do mercado, criaram situações de muito maior injustiça social e muito mais ineficientes e dispendiosas para o bem público e para toda a comunidade em geral, do que não o tivessem feito.

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O Mercado e o Trabalho

Numa economia de mercado, os salários deveriam ser estabelecidos pelo equilíbrio da oferta e da procura no mercado de trabalho. Pelo encontro entre o valor que o trabalhador acha justo pelo seu trabalho e o valor que a entidade empregadora ou o mercado em geral estão dispostos a pagar pela sua utilização.

Isto é válido para um engenheiro, uma economista, um médico, um romancista, um actor, etc..

Como a economia de mercado, sem regulamentação, poderia deixar que alguém passasse fome, ou incapacidade de prover às suas necessidades básicas, por insuficiência de “mérito” ou por situações estruturais do mercado que o afastassem do modelo de concorrência perfeita (caso da falta de transparência, cartelização do lado da oferta, por ex.), foram estabelecidas derrogações ao modelo concorrencial, quer por pressão, quer por consenso sociais, para acautelar situações de miséria ou exclusão social: o salário mínimo, o subsídio de desemprego, o rendimento de inserção social, etc.

A nível fiscal, para contrabalançar as diferenças salariais decorrentes do funcionamento do mercado, foram introduzidos os impostos progressivos e as transferências sociais.

Inicialmente, qualquer forma de coligação era proibida, pois criava imperfeições no regime de concorrência. A Revolução Francesa (Lei Le Chapelier) proibia expressamente todas as formas de associações sindicais, profissionais, empresariais, etc.. Todavia, por se verificar que os empresários tinham maior força negocial que os trabalhadores isolados, os Governos, pressionados pela opinião pública, permitiram o estabelecimento dos Sindicatos, que, em si, também é uma derrogação ao modelo da concorrência

Mas a avaliação económica do comportamento das sociedades tem mostrado que a política de redistribuição de rendimentos terá que ser concebida de forma a não menoscabar a eficiência do tecido produtivo pois se este perder a eficiência haverá cada vez menos rendimento para redistribuir.

Por outro lado, as derrogações à liberdade contratual e à mobilidade do mercado de trabalho criam situações de imperfeição no modelo concorrencial que começam por afectar a eficiência económica da sociedade como um todo e atingem em seguida aqueles que julgavam que essas derrogações os punham a salvo das “injustiças” do modelo concorrencial.

Pensemos no caso português. Na sequência do 25 de Abril, com o nobre intuito de proteger os trabalhadores, legislou-se no sentido de impedir qualquer despedimento ou flexibilização da relação laboral. Pensava-se que, com esses institutos legais, os trabalhadores ficariam eternamente protegidos contra a exploração capitalista.

Rapidamente o poder político se apercebeu que aquela legislação tinha um efeito perverso na evolução económica, desincentivando os empresários em aumentar o emprego, mesmo em períodos de expansão económica, e colocando o país em risco de cair no marasmo económico e, eventualmente, de levar empresas à falência e conduzir à diminuição daquilo que se queria conservar: os efectivos da população activa.

Mas os portugueses são hábeis em contornar obstáculos. Aconteceram então duas coisas. A primeira foi a proliferação do sistema de prestação de serviços contra recibos verdes, em completo arrepio ao espírito daquele sistema, inventado para as profissões liberais. Depois, veio a lei dos contratos a prazo, para introduzir alguma flexibilidade num mercado de trabalho rígido e à beira do estrangulamento.

Estes dois novos tipos de relações de trabalho tiveram um notável efeito estimulante na nossa economia e no nível de emprego. Portugal passou a ser, na União Europeia, o país em que o índice de desemprego era menor. Mesmo em períodos de grande crise, como no início da década de 80 ou no início da década de 90, enquanto o desemprego na Europa assumia níveis assustadores, em Portugal mantinha-se quase o pleno emprego.

Os empresários, em face de expectativas, mesmo medianamente favoráveis, admitiam pessoal com bastante facilidade, pois sabiam que podiam demitir esse pessoal, total ou parcialmente, quer se as expectativas se gorassem, quer se o pessoal não satisfizesse profissionalmente.

Todavia tal traduziu-se igualmente numa clivagem do tecido laboral no nosso país: o trabalhadores que nunca podiam ser despedidos e os trabalhadores sobre os quais pendia permanentemente a espada de Damocles da rescisão da relação laboral a prazo curto ou mesmo imediata. As novas gerações que acederam ao mercado de trabalho ficaram neste segundo grupo. O meu primeiro contrato de trabalho na vida privada, foi a prazo.

É claro que, na generalidade dos casos, esse pessoal, que nunca seria admitido se não houvesse aquelas facilidades, acabou por ir ficando e, no termo do contrato, passar a efectivo na empresa. Portanto, a mobilidade, mesmo parcial, do factor trabalho, permitiu aos empresários escolhas mais racionais, aumentarem o volume da sua actividade e possibilitar o seu crescimento e o aumento do nível de emprego. E aos trabalhadores terem acesso a postos de trabalho que o não teriam sem aquelas oportunidades.

Durante o governo socialista houve algumas tentativas para diminuir a amplitude daquele fenómeno. Foram tentativas frouxas, limando apenas algumas arestas, pois havia a consciência que retirar mobilidade ao mercado de trabalho teria efeitos nocivos sobre a economia e sobre o volume de emprego.

O governo actual tenta aumentar a mobilidade do trabalho na globalidade, tentando em contrapartida aumentar as garantias dos trabalhadores nos regimes de trabalho precário. Seria óptimo, mas duvido que o consiga. É fácil conceder regalias e benesses. Retirá-las é quase impossível. Não é inconstitucional aumentar as regalias concedidas ao factor trabalho. Todavia verifica-se que retirá-las é, quase sempre, inconstitucional. Mesmo se o resultado continuar a ser a manutenção da injustiça social entre as gerações dos trabalhadores.

No decurso da sua evolução, quando uma sociedade verifica que as regulamentações e derrogações à concorrência, entretanto criadas, retiram competitividade ao seu tecido económico, degradam a sua riqueza e se viram contra os próprios objectivos que estiveram subjacentes à sua criação, ela deveria eliminar ou mitigar algumas dessas regulamentações. Não o conseguir fazer pode ser mortífero para a evolução posterior dessa sociedade e para a sua prosperidade.

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novembro 13, 2003

O tratador tratado … perdão … tragado

Há profissões azaradas.

O José António Lima, do Expresso, esteve dois anos a alimentar e a multiplicar as piranhas, a nacos de Portas, no tanque do Expresso online.

Agora, uma pirueta inesperada, um passo em falso (*) e ei-lo que escorrega e se precipita no tanque.

Os redemoinhos, o borbotão superficial das águas tumultuosas e o agitar das caudas e mandíbulas vorazes das piranhas são prenúncio fatal da tragédia que ocorre sob esse cachão sinistro que se desfralda em ondas alucinadas, concêntricas, rojando-se raivosas nas beiras do tanque do online.

Quando chegarmos à dentada 500 (perdão, comentário 500) esperemos que se consigam recuperar os óculos.

Pois é, José António Lima ... na próxima encarnação, dedica-te à criação de animais mais aptos na hierarquia racional. Pelo menos, capazes de distinguir o tratador ...


(*) O artigo de hoje, 2003-11-13, “Iraque e profetas da desgraça” no Expresso online

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novembro 12, 2003

Os noventa anos de Cunhal e o PCP

Os adeptos do marxismo soviético, tal como ele foi vivido desde a implantação do regime soviético até hoje, e os incondicionais do PCP em particular, patenteiam a psicologia típica do portador de mitos: a sensação de segurança e de superioridade que lhes advêm da convicção de que têm no bolso a chave de todos os eventos do mundo, a resposta para todas as perguntas; a sensação exaltante de estarem ligados a um processo absoluto; a sensação inebriante de se contarem entre os eleitos; a agressividade natural contra quem pensa de outra maneira, quem não está de posse da verdade revelada e portanto, no fundo, só pode pensar de forma absurda ou pretender fazer propaganda hostil. Até à queda do muro, em qualquer discussão com um “marxista sovieticus”, qualquer pessoa se aperceberia rapidamente que ele considerava que quem pensava de maneira diferente não só estaria enganado, como seria um facínora e um celerado a soldo da conspiração imperialista e capitalista contra o paraíso dos trabalhadores.

Mas quando um tal partido político resolve considerar que é o único capaz de identificar os interesses gerais e essenciais dos trabalhadores, bem como as necessidades de transformação da sociedade, e que por conseguinte tem o direito de transformar revolucionariamente a sociedade de acordo com a sua teoria, nessa altura tal pretensão não só entra em contradição com as reais necessidades do desenvolvimento social como implica mesmo a negação das próprias justificações filosóficas de semelhante teoria da sociedade. O facto de apresentar os seus próprios conhecimentos como «objectivamente verdadeiros» e considerar todos os outros errados e resultantes de interesses partidários hostis dá aos membros do partido o direito moral de fazerem todas as interferências no desenvolvimento social de acordo com a teoria própria do partido, sem serem obrigados a respeitar outras opiniões ou outras teorias. Está totalmente posta de parte a possibilidade de eles cometerem erros teóricos ou mesmo tirar deles conclusões falsas e prematuras.

Hoje em dia qualquer cientista sabe que há conclusões que surgem como objectivamente correctas numa primeira etapa do processo de investigação, mas podem ser completamente rejeitadas por dados totalmente novos a que inicialmente não se prestara atenção ou que estavam ainda embrionários. Mas para o Leninismo, e para o seu discípulo Cunhal, todos os processos do desenvolvimento capitalista do início do séc XX eram de tal modo evidentes e de tal modo pareciam confirmar a teoria marxista que todas as objecções teóricas e todas as dúvidas tinham forçosamente de ser a expressão de intenções políticas hostis à classe operária, embusteiras e reaccionárias. Ora acontece que algumas décadas mais tarde veio a verificar-se que a pauperização do proletariado não é o resultado das relações de produção capitalistas ultrapassadas, mas antes de um insuficiente desenvolvimento do capitalismo; que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram; que as crises económicas do capitalismo nem se agravam nem se aprofundam à medida que o capitalismo se desenvolve, reduzindo-se a perturbações macroeconómicas geridas pelo próprio sistema; que finalmente a concentração do capital não eliminou a atomização do capital e não implicou a simplificação da estrutura social, nem a hegemonia absoluta dos proletários na sociedade visto que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram . Portanto, verifica-se que as relações de produção capitalistas não se tornaram obstáculos ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas e que justificar a transformação do sistema social terá que ser encarada sob outro prisma.

Embora tais argumentos não neguem o carácter, em princípio progressista, e o significado positivo do socialismo para a humanidade, continua a ser necessário, face a toda a experiência passada, modificar o próprio conteúdo desta noção. Nem a ditadura do proletariado, nem a nacionalização dos meios de produção, nem a liquidação das funções essenciais do mercado, etc., se podem considerar elementos constitutivos da essência do socialismo. À luz desta conclusão e desta experiência, o critério fundamental que justifica o direito da representação única dos interesses dos trabalhadores revela-se desde o início totalmente errado. A teoria marxista era necessariamente limitada no que toca a conhecimentos; continha mesmo afirmações e conclusões completamente falsas. Face à sua própria teoria do conhecimento ou eventualmente às experiências históricas, ela nunca devia ter surgido, em sistemas ideológicos totalitários, como intérprete exclusiva das necessidades do desenvolvimento social.

Mas o facto de os fundadores do partido e es seus membros a si próprios se apresentarem como os únicos representantes dos interesses dos trabalhadores não permite que, em condições democráticas, consideremos isso uma usurpação objectiva, mas apenas uma pretensão a tal. Será o ponto de partida, falso e sem fundamento teórico, de um processo ainda mais perigoso: a ideologia constituída irá transformar os partidos comunistas em instituições de intolerância e de autoridade que aspiram sem escrúpulos a uma sociedade em que a única expressão política seja a sua. Tal ausência de escrúpulos explica-se sobretudo pelo facto de se interpretarem de maneira primária os interesses da humanidade, os meios de conhecê-los e a importância das condições democráticas indispensáveis à vida e aos diversos interesses. O facto de os fundadores e ulteriores dirigentes dos partidos se terem convencido (mesmo que o tenham feito de forma subjectivamente honesta) de que podiam conhecer e conheciam mesmo os interesses de todos os trabalhadores e as condições da sua realização, conduz logicamente quanto mais se acentua a luta política e se reforça o processo à ideia de que qualquer outro partido político é não só supérfluo mas também impede que se realize o «bem-estar» concebido pelo partido.

Por isso é que em Álvaro Cunhal, subjectivamente convencido da actualidade objectiva da revolução socialista, se nota uma intolerância em relação àqueles que ideologicamente se afastam da sua teoria, intolerância essa característica de todos os dirigentes comunistas desde Lenine, mas também uma luta impiedosa pela liquidação de toda a oposição, mesmo próxima, principalmente a mais próxima, a que pode corromper a pureza ideológica. O partido único do sistema socialista (“sistema” hoje reduzido a algumas relíquias que se arrastam penosamente), enquanto representante dos «interesses reconhecidos» dos trabalhadores, é o resultado lógico de tal processo.

Elogiar a coerência de Cunhal, é elogiar o imobilismo, a repetição de conceitos invalidados pela prática e a ideia que a realidade e a vida são coisas imutáveis. É a recusa em analisar a realidade de uma forma dialéctica e extrair as conclusões adequadas. É inclusivamente a recusa da postura do jovem Marx, do Marx filósofo. E isto é o que o pensamento de Cunhal tem de mais perverso.

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novembro 11, 2003

Escolhas…

Os portugueses, a classe política, os meios de comunicação, entidades públicas e privadas, têm que escolher: queremos um país moderno, civicamente evoluído, ou um enxerto terceiro-mundista numa Europa desenvolvida?

Pois foi dada agora à classe política a oportunidade de explicar ao país o que pretende, de fazer uma escolha. Os dados estão lançados e o cenário montado. O presidente do F.C.Porto definiu as regras do jogo: só vão à inauguração do meu estádio aqueles políticos que mostrarem total subserviência perante mim.

É evidente que Pinto da Costa não enunciou aquela condição linearmente, de uma forma clara e inequívoca. Enunciou-a de uma forma oblíqua: quem não foi subserviente, não é convidado et pour cause.

Esse circunlóquio dá alguma margem de manobra a políticos subservientes que não o queiram mostrar de forma demasiado evidente. Podem fingir que não percebem o que está em jogo. Afinal trata-se apenas da inauguração de um estádio de futebol … não tem nada a ver com políticas. Como? … Pinto da Costa insultou a AR pela forma como tratou o seu presidente? Claro! Inadmissível! Também discordo ... mas ir à inauguração é apenas uma coisa de futebóis ... algo de tão enraizado na alma lusa! É o estádio dele, que diacho! Pode convidar quem quiser! E eu fui convidado(a)!

O estádio foi pago, parcialmente com dinheiros públicos? Do orçamento que nós aprovámos? Ora ... minudências ... não levemos o assunto tão a peito ... o Estado gasta tanto dinheiro mal gasto ... mesmo daquele que nós aprovamos anualmente, no OGE! E nós só lá vamos porque gostamos de futebol. A minha política é o futebol!

Mas esta escolha tem uma virtude: ficaremos a saber quais são os deputados subservientes. Não todos. Ir à inauguração do estádio do Pinto da Costa é condição suficiente para se ser subserviente, mas não necessária. Haverá subservientes que não irão por outras razões. Mas alguns ficarão identificados indelevelmente: os que forem.

Os que forem estarão irrecusavelmente, inevitavelmente, por opção própria, no lado do país bacoco, subserviente, medieval, terceiro-mundista. Do país que não quer sair do atoleiro onde o meteram.

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novembro 10, 2003

Louçã, o Arqui-secretário-geral do PS

A deriva esquerdista do PS, cujo percurso historiei e descrevi nos textos “O PS refém da Casa Pia” (insertos aqui em 21-10-03), mais especificamente no “Acto 4”, foi confirmada em absoluto pela entrevista de Francisco Louçã publicada hoje no Pùblico.

Francisco Louçã fez um longo percurso em pouco tempo. Já não fala como um líder de um pequeno partido da esquerda radical. Louçã fala como o Arqui-secretário-geral do PS, função que objectivamente ocupa, hoje em dia.

E como líder de um grande partido da área do poder, já não alinha no enxovalho dos políticos a pretexto de questões judiciais. De forma alguma! Louçã é de uma enorme discrição no que se refere à justiça, e se críticas faz, são críticas veladas à justiça: “entendemos que há gente de mais a comentar, juízes a comentarem decisões de outros juízes” quando a pergunta se referia a “erros de Ferro Rodrigues na gestão deste processo da Casa Pia”, pois que quanto ao PS, Louçã compreende bem a “emotividade” do Ferro amigo…

Quanto a Paulo Pedroso ter voltado ao Parlamento, … “ele tinha esse direito, tendo esse direito, exercia-o ou não em função da sua escolha política”. É óbvio que não estamos a escutar um líder da esquerda radical, mas sim o Arqui-secretário-geral do PS, um partido da área do poder!

E como Arqui-secretário-geral do PS, a sua política é clara: “a esquerda tem sido muitas vezes portadora de uma herança difícil no PS que é a herança guterrista. Dessa herança, temos que nos ver livres radicalmente”. E para se ver livre do guterrismo, para obter esse desiderato, para o BE e para o Arqui-secretário-geral do PS Louçã, “Ferro Rodrigues … será o líder ideal do PS”.

Se Louçã ainda fosse apenas líder do BE acharia bem, e provavelmente insuficientes, quaisquer inquéritos às gestões de ministros e de ex-ministros. Mas Ferro? Nunca! Ferro tem que ser poupado! É pela delegação de Ferro, que Louçã gere o PS. Ferro é o elo fundamental da função de Arqui-secretário-geral do PS. Logo os inquéritos são apenas a “mão do ministro Bagão Félix” a perseguir o Ferro.

A deriva esquerdista do PS e as fragilidades políticas dos protagonistas dessa deriva, nomeadamente Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso, tornaram o PS refém do BE. Já não bastavam os erros políticos da direcção do PS na gestão do processo da Casa Pia. Estes erros tornaram o PS refém do processo da Casa Pia. A deriva esquerdista, causa ideológica do emaranhamento do PS no processo da Casa Pia, como referi nos meus textos citados acima, sobrepõe-se ao efeito que produziu e torna, por acréscimo, o PS refém do BE.

Presentemente, o PS não existe como oposição e, como partido político, perdeu a autonomia. O enfraquecimento do PS a que estamos actualmente a assistir é a situação mais dramática do actual quadro político português. Se o PS não recuperar rapidamente, e não reocupar o lugar que lhe cabe no espectro político, é a estabilidade social e política e o funcionamento da democracia portuguesa que poderão estar em causa num futuro próximo.

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TGV Porto-Lisboa-Madrid e a ligação Sines-Europa

As decisões da cimeira luso-espanhola no que respeita às ligações ferroviárias foram uma boa notícia para os agentes económicos nacionais.

Reportando-me ao que foi dito e escrito, haverá um TGV Lisboa-Badajoz, com ligação a Madrid em 2010, e o Porto-Lisboa em 2013.

Como complemento serão executados TGV de menos performance a nível de velocidade média entre Porto-Vigo, a terminar em 2009 e Évora-Faro-Huelva em 2018, bem como uma nova linha convencional de Sines e Setúbal para Évora e Badajoz.

Adicionalmente haverá uma linha TGV Aveiro-Salamanca que permitirá ligar Porto-Salamanca-Madrid em 2015.

Na minha opinião as duas obras fundamentais, com o máximo impacte na economia do país, serão o eixo Porto-Lisboa-Madrid em TGV e a linha Sines-Évora-Elvas-Badajoz com vocação para mercadorias, mas apta também ao transporte de passageiros.

Todas as análises feitas quer por consultores nacionais, quer por consultores internacionai, das envolventes interna e externa que terão condicionado o desenvolvimento, num passado recente, da Zona Industrial de Sines, e das principais razões de insucesso na captação de investimento empresarial para a ZIS referem a descentralização geográfica de Sines face aos principais mercados nacionais e internacionais em contradição com a grande especialização do Porto de Sines para movimentação de graneis líquidos e sólidos específicos.

Isto é, a vocação de Sines como pólo de desenvolvimento para uma perspectiva fundamentalmente "atlântica", estava barrada pela má qualidade das ligações ferroviárias internas e inexistência de ligações ferroviárias externas.

Neste entendimento, uma ligação ferroviária Sines-Espanha-Europa Central terá um efeito muito positivo na economia portuguesa e no desenvolvimento alentejano, principalmente se se tiver em conta que Évora passará a ser um importante entroncamento ferroviário

A ligação Lisboa-Porto só peca por tardia. Ela deveria ser iniciada em simultâneo com a linha Lisboa-Madrid. Compreende-se todavia que o projecto desta linha será mais complicado: o estabelecimento de corredores adequados, as dúvidas sobre a eventual utilização parcial dos corredores da actual Linha do Norte, a complexidade das expropriações, o relevo, etc.. O actual serviço Alfa é péssimo em face das expectativas criadas e do custo da obra. Aliás, os terríveis erros cometidos no projecto da modernização da Linha do Norte, e a incúria e incompetência demonstradas na sua gestão pelas administrações da CP e pelos seus técnicos e no seu acompanhamento pelos ministros da tutela, desde Ferreira do Amaral a João Cravinho, terão que ser avaliados para que não se caia noutra situação idêntica.

Quanto à linha Aveiro-Salamanca, que será certamente uma linha muito dispendiosa, dada a geografia física da zona onde será implantada, julgo que a data de 2015 será meramente indicativa. Tudo dependerá dos resultados e de como funcionarem as linhas que a antecederão.

Neste quadro, penso que o Aeroporto da Ota ficará para as calendas gregas. Na verdade, trata-se de uma obra não prioritária no quadro actual do transporte aéreo. Adicionalmente, o TGV irá diminuir a procura pelos voos Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid. Se adicionarmos ao tempo de voo, o tempo necessário para os check-in e os riscos de atrasos nas partidas, a viagem em TGV será preferível, em tempo e em comodidade, à viagem aérea.

Publicado por Joana às 11:38 AM | Comentários (13) | TrackBack

novembro 09, 2003

Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 6º Acto

A democracia e a sua fragilidade

Vale a pena aqui voltar ao discurso de Péricles sobre a Democracia. No citado elogio ao soldado caído nas guerras contra Esparta, Péricles diz que os heróis se sacrificaram não meramente pela sua cidade, mas pelo que ela significava, uma democracia singular e que era o modelo e a escola da Grécia. E descreve as suas características. Nela não havia censura nem intromissão na vida privada do indivíduo. O cidadão era livre para exprimir a sua opinião, enquanto nas restantes cidades, por exemplo Esparta, o caso mais extremo de totalitarismo, o cidadão vivia em função exclusiva da colectividade e nenhuma opinião contrária aos regimes estabelecidos lhe era permitida. Atenas tinha as suas portas abertas. Qualquer estrangeiro poderia visitá-la. As suas praças e ágoras estavam em permanentemente efervescência com debates e discussões em que todos podiam participar e intervir. Era o teatro, a música e os desportos, e não as paradas militares, que empolgavam aquela sociedade. Mas nem por isso os seus soldados se mostravam inferiores no campo de batalha, quando chegava a hora de combater.

Porém, esta indelével figura de Atenas como cidade aberta, tão brilhantemente exposta por Péricles, não se manteve. Atenas perdeu a guerra. Terminou sua idade de ouro e caiu sob domínio de Esparta. Foi um domínio de curta duração, mas nunca mais se reergueu. Mas Esparta teve pior sorte. A sua derrocada, anos depois, levou-a a desaparecer da história, definitivamente. A Grécia entrou na decadência e acabou na dependência da Macedónia e depois de Roma.

O nosso mundo, no início do século XXI, é uma estranha amálgama de continuidade e de mudança. Alguns aspectos da política internacional não se alteraram desde Tucídides. Existe uma determinada lógica de hostilidade, um dilema de segurança/insegurança que acompanha a política entre Estados. Alianças, equilíbrios de poder e escolhas de políticas entre a guerra e o compromisso, permaneceram semelhantes ao longo dos milénios.

Uma ilação a tirar, paradoxalmente contrária à que foi tirada noutros textos aqui apresentados, é a de que a democracia é frágil perante estados totalitários, baseados na opressão interna, no cerceamento da liberdade de expressão, na desconfiança sobre o comportamento dos seus cidadãos e na repressão de quaisquer veleidades de oposição. Os sistemas fechados gozam da vantagem de não admitirem opositores internamente e de exercerem controlo sobre a informação. Por isso apresentam uma imagem de uma maior coesão, eventuais dificuldades e desaires não chegam à opinião pública, ou chegam com uma imagem distorcida e mesmo contrária à realidade. Foi essa a vantagem de Esparta sobre Atenas, foi essa a vantagem da Alemanha nazi e do Japão imperial sobre as potências aliadas no início da guerra de 1939/45.

No dealbar do século XXI, após o esmagamento do totalitarismo de direita em 1945 e o desmoronamento do mundo soviético há pouco mais de uma década, já não há uma grande potência totalitária, como Esparta, para se opor à grande potência democrática, Atenas.

Assim, na nossa época, a liberdade, a tolerância e o exercício da democracia e da participação cívica, na sua acção concertada, criaram sociedades de grande prosperidade que se impõem economicamente, mas também militarmente. Mas essa combinação de poder económico e militar está circunscrita aos EUA. O poder económico da Europa não tem suficiente contrapartida no poder militar. A Europa terá poder militar para se defender de uma agressão externa no interior das suas fronteiras, mas não o tem para defender os seus interesses fora dessas fronteiras.

Portanto, no que respeita à Europa, a lição de Tucídides de que a democracia é frágil perante estados totalitários, que controlam a informação e podem desviar verbas importantes para planos bélicos de armamento de destruição maciça sem que alguém, internamente, os impeça, é algo de fundamental a reter.

É algo que a Europa deverá pensar maduramente nesta fase de construção da sua identidade.

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Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 5º Acto

A hipocrisia de democratas e tiranos

Tucídides observava que cada Cidade-Estado expunha as suas razões para justificar seu envolvimento no conflito. Mas o perspicaz historiador não se contentava com os discursos oficiais e procurava identificar as razões verdadeiras por detrás dessas posições e desses argumentos.

Em Tucídides transparece, ao longo da sua obra, que as alianças atenienses eram sempre estabelecidas de tal modo que apenas beneficiavam a si própria, mesmo quando o pretexto para essas alianças tinha fins eticamente inatacáveis, como o de derrubar oligarquias e regimes tirânicos. Neste entendimento, haveria uma curiosa semelhança entre o comportamento imperial de Atenas e a imagem que muitos actualmente têm do comportamento dos EUA em matéria de política internacional.

Tucídides mostrou-nos igualmente que, em todos os casos, os tiranos, os oligarcas e as oligarquias estavam sempre propensos a apoiarem outros oligarcas ou oligarquias. Mesmo se esses tiranos, oligarcas, ou aspirantes a tal, fossem cidadãos de uma democracia.

Veja-se o caso do ateniense Alcibíades, general ateniense, sobrinho de Péricles, dotado de brilhantes qualidades, grande orador, mas sem escrúpulos, rompeu a trégua existente (Paz de Nícias) e, chefe do Partido Democrático, mas aspirando à tirania, levou Atenas a uma aventureira expedição à Sicília, que foi um desastre completo. Processado e condenado pelos atenienses, refugiou-se entre os espartanos, os protectores dos tiranos, das oligarquias e dos regimes aristocráticos. A eles confiou segredos que havia obtido enquanto comandante ateniense, deixando a própria pátria em apuros. A sua pátria era afinal o vil metal e o poder pessoal.

Todavia, e apesar da hipocrisia de muitos dos dirigentes políticos de então, em todas as circunstâncias, os chefes dos partidos populares apelavam à ajuda e intervenção de Atenas, enquanto que os aristocratas apelavam à ajuda e intervenção de Esparta.

Quando, em 411, após 20 anos de guerra, o regime democrático ateniense é derrubado pelo partido oligárquico, este imediatamente faz a paz com Esparta. Aquela guerra não era apenas uma guerra hegemónica, por redistribuição de territórios e apropriação de riquezas, era acima de tudo um conflito ideológico, entre a democracia e a tirania (ou aristocracia), semelhante aos conflitos que sacudiram o nosso mundo no último século.

Portanto, Tucídides acaba por ser um observador impiedoso da generosidade da democracia, mas também da hipocrisia do comportamento de alguns dos seus dirigentes, assim como um observador impiedoso da tirania dos oligarcas e da sua ânsia pelo poder pessoal, pelo dinheiro e o seu desprezo pela cidadania e liberdade.

Mas a principal conclusão a reter, e o rescaldo daquela guerra não deixa quaisquer dúvidas, é que com ou sem hipocrisia, com ou sem “projecto imperial”, as democracias estão, têm que estar, do mesmo lado e em oposição à tirania e aos regimes totalitários. E o seu melhor contributo para um mundo melhor não será ficarem como espectadoras a observar os conflitos, mas envolverem-se neles lutando para que não haja hipocrisias e para que a democracia não sirva de alibi a quaisquer projectos imperiais.

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Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 4º Acto

O Elogio da democracia e o projecto imperial

Tucídides (II, 37) põe na boca de Péricles um dos mais notáveis elogios que alguma vez foi feito ao sistema democrático A nossa Constituição ... chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos – mas nesse elogio, Péricles (ou Tucídides ao citá-lo), embora sem ter provavelmente consciência do passo que estava a dar, enuncia um novo tipo de "patriotismo" ao serviço de um projecto imperial.

As palavras de Péricles, no elogio fúnebre a um soldado caído na guerra, dirigem-se tanto a atenienses como a estrangeiros, apresentando a democracia de Atenas como «um padrão de referência», como um modelo a imitar por todas as cidades gregas: porque «há igualdade perante a lei»; porque «dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho das honras»; porque «mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos, e dá a todos espectáculos e festas que são educação da alma»; e, ao concluir, «Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiam morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem esta pátria; eis ainda porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrer por Atenas e a consagrarem-se-lhe.»

No elogio de Péricles, a pátria deixara de merecer ser amada apenas por ela ser o lar dos seus maiores, pela sua religião e pelos seus deuses. A pátria merecia ser também amada pelas suas leis, pelas suas instituições e pelos seus direitos. O cidadão tinha deveres e devia-se sacrificar pela sua cidade, mas porque nela usufruía de instituições que lhe davam vantagens.

Seguem-se os excertos mais importantes desta notável arenga política:

O regime político que nós seguimos não inveja as leis dos nossos vizinhos, pois temos mais de paradigmas para os outros do que de seus imitadores. O seu nome é democracia, pelo facto de a direcção do Estado não se limitar a poucos, mas se estender à maioria; em relação às questões particulares, há igualdade perante a lei; quanto à consideração social, à medida em que cada um é conceituado, não se lhe dá preferência nas honras públicas pela sua classe, mas pelo seu mérito; tão pouco o afastam pela sua pobreza, devido à obscuridade da sua categoria, se for capaz de fazer algum bem à cidade.
.......
Distinguimo-nos dos nossos adversários, no que respeita a assuntos bélicos, no seguinte: franqueamos a todos a nossa cidade, e não há ocasião alguma em que, numa proscrição de estrangeiros, cerceemos seja a quem for qualquer oportunidade de aprender ou de ver um espectáculo, cuja observação pudesse ser útil a algum inimigo, se não lho ocultássemos. Não confiamos mais nos preparativos e nas ciladas do que na coragem que brota de nós mesmos para a acção.
......................
Se, pois, com mais desprendimento do que esforço, e com uma energia mais derivada dos nossos hábitos do que prescrita pelas leis, quisermos expor-nos ao perigo, sucede-nos que não padecemos antecipadamente as dores que estão para vir, e, quando chega a ocasião, não nos mostramos menos corajosos do que os que vivem em contínuo estado de esforço. Por isto é a cidade digna de admiração, e por outras razões ainda.
.........................
Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de ousar o máximo, mas reflectir profundamente sobre a empresa a que nos votamos. Enquanto que aos outros a ignorância traz a coragem, e o cálculo acarreta a hesitação. Com razão se podem julgar mais corajosos os que conhecem com toda a clareza os riscos e prazeres e, por causa deles, não se alheiam do perigo. Também na generosidade de conduta somos o oposto da maioria. Não é por recebermos benefícios dos amigos, mas por lhes fazermos bem, que os conservamos.
................
Em resumo, direi que esta cidade, no seu conjunto, é a escola da Grécia, e cada um de nós em particular, ao que me parece, se mostra mais apto, para as mais variadas formas de actividade e para, com a maior agilidade, unida à graça, dar provas da sua perfeita capacidade física. É a própria força da cidade que, em virtude destas qualidades, que possuímos, bem demonstra como o que acabo de dizer não é um discurso forjado para estas circunstâncias, mas a verdade dos factos. Sozinha dentre as que existem, é posta à prova e mostra-se superior à fama que possui, é a única que, quando invadida, não causa irritação ao inimigo pelo carácter dos que o derrotam, nem censura aos que ficam submetidos, por serem governados por homens indignos.
Foi por uma cidade assim que pereceram nobremente em combate os que julgaram não dever consentir que os privassem dela. E os que ficaram é natural que queiram também sofrer por uma causa.
Eis a razão por que me alonguei ao falar da nossa cidade, explicando que o nosso combate não é por motivos iguais para nós e para aqueles que não possuem idênticos privilégios, e fazendo publicamente, com provas, o elogio daqueles em cuja honra falo agora.
...........................
Nenhum destes se deixou amolecer pela riqueza, preferindo continuar a gozá-la, nem recuou ante o perigo, na esperança de evitar a pobreza, se lhe escapasse, e de poder enriquecer ainda. Consideravam que a vingança sobre os seus adversários era mais desejável do que a opulência, e entenderam que isso se sobrepunha ao risco. Por isso deliberaram castigar assim os inimigos, e abandonar tudo o mais, confiando à esperança a incerteza da vitória, mas, na acção, perante a realidade já iminente, seguros de si mesmos. E, no próprio combate, entenderam que era mais belo lutar e sofrer do que salvarem-se, entregando-se. Assim evitaram a vergonha da fama que lhes adviria, aguentaram o seu posto com os seus corpos, e partiram desta vida no breve instante do transe decisivo, na culminância da expectativa, mais da glória do que do temor.

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Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 3º Acto

A Lei do mais forte

A actualidade de Tucídides na época que atravessamos vê-se, por exemplo e a dada trecho, quando põe na boca de um ateniense que fazia um ultimato a um estado minúsculo, que estava recalcitrante em o aceitar, por pensar que tinha o Direito das Gentes pelo seu lado, o seguinte conceito:

Sabeis tão bem quanto nós que o direito, em todo o mundo, só existe entre iguais em poder, ao passo que os fortes fazem o que querem e os fracos o sofrem

Eis o relato de Tucídides:

No décimo-sexto ano da guerra do Peloponeso, Atenas, a cidade que sob o governo de Péricles, entretanto falecido durante a peste que assolara Atenas, se tornara a 'escola viva da Grécia', tomou as armas contra uma colónia espartana, a minúscula ilha de Melos, até então neutra na guerra, que se recusava a submeter a seu domínio. Antes de a atacar, os Atenienses enviaram uma embaixada para entabular negociações. Os embaixadores atenienses disseram o seguinte:
"Estamos agora aqui e vô-lo demonstraremos, a fim de consolidar o nosso império e apresentaremos propostas capazes de salvar a vossa cidade, pois não queremos estender o nosso domínio sobre vós sem correr riscos e, ao mesmo tempo, salvar-vos da ruína, para o bem de ambas as partes".
Os representantes de Melos responderam: "E como poderemos ter o mesmo interesse, nós tornando-nos escravos e vós, sendo patrões?"
Atenienses: "Enquanto vós tereis interesse em submeter-vos antes de sofrer os mais graves males e nós teremos o nosso ganho não vos destruindo completamente".
Melienses: "De modo que não aceitareis que nós fôssemos, em boa paz, amigos em vez de inimigos, conservando intacta a nossa neutralidade?"
Atenienses: Não, porque nos prejudica mais a vossa amizade do que a hostilidade aberta: de facto, aquela, aos olhos de nossos súditos, seria prova manifesta de fraqueza, enquanto o vosso ódio seria testemunho da nossa potência, e não se poderá dizer que vós, ilhéus e menos poderosos do que outros, resististes vitoriosamente aos senhores do mar".
Melienses: Também nós (e podeis acreditá-lo) consideramos muito difícil apoiar-nos em vossa potência e contra a sorte, se não for igualmente favorável para ambos. Contudo, temos firme confiança em que, no que respeita a fortuna que provém dos deuses, não devemos levar a pior, pois, fiéis à lei divina, insurgimos em armas contra a injusta opressão".
Atenienses: "Se for pela benevolência dos deuses, nem sequer nós temos medo de ser por eles abandonados. Os deuses, de facto, segundo o conceito que deles temos, e os homens, como se vê claramente, tendem sempre, por necessidade de natureza, a dominar onde quer que se prevaleça pela força. Esta lei não fomos nós que a instituímos e nem fomos os primeiros a aplicá-la; assim, da forma como a recebemos e da forma como a transmitiremos ao futuro e para sempre, nós nos servimos dela, convencidos que também vós, como os outros, se tivésseis a nossa potência, o faríeis
".

Em face deste diálogo de surdos, a delegação ateniense regressou às suas bases, os estrategas organizaram o dispositivo de cerco e de ataque e após meses de uma resistência desesperada, mas inútil, os melienses renderam-se sem condições: os adultos foram passados pelas armas e as mulheres e as crianças vendidas como escravas.

Ler este texto faz-nos vir à memória muitos comportamentos de dirigentes políticos mundiais no último século e, com maior actualidade, nos últimos anos.

A ideia expressa por Hitler que aos vitoriosos ninguém pede explicações acerca das mentiras sobre as quais se basearam para desencadear o conflito, é uma transposição de descrições de Tucídides levadas à perversidade extrema. Estaline e outros líderes totalitários foram também discípulos dedicados daqueles conceitos.

A administração Bush, na forma como dirimiu a questão do Iraque, seguiu o exemplo dos atenienses em Melos. Saddam, por sua vez, havia praticado aquela máxima com todos os que eram mais fracos que ele.

Pode achar-se estranho que Tucídides, ateniense de gema, escrevesse com aquela crueza. Todavia fê-lo, quer por ele ser escravo da verdade, quer porque, para além de estar ressentido pelo exílio a que fora votado, era então favorável ao Partido Aristocrático (contrário à guerra), enquanto que em Atenas e nos seus aliados, a política era dominada pelos democráticos. Ou fê-lo por achar que o Direito das Gentes era aquilo mesmo e não havia nada de imoral naquela postura.

É difícil descortinar as razões íntimas de Tucídides, nem isso parece relevante para o efeito. O que é importante é o que ele escreveu e a descrição que fez.

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novembro 08, 2003

Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 2º Acto

A importância da História da Guerra do Peloponeso

Falando de Tucídides, verifica-se ser verdade aquele aforismo que diz que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”, neste caso “escreve”.

O nosso amigo Tucídides, despedido, por incompetência, de estratego das forças atenienses, foi a banhos para a Trácia (bem longe do epicentro do conflito, dadas as más comunicações da época) e aproveitou esse repouso forçado para escrever sobre a guerra. Já que o julgavam incapaz de a conduzir, ele iria mostrar que a sabia interpretar. E mostrou!

Tucídides escreveu a sua História da Guerra do Peloponeso com grande rigor técnico. Isso transparece em cada página da sua História. Ao invés de seus predecessores, e de muitos que posteriormente se dedicaram à mesma profissão, ele não se preocupou apenas em descrever uma sucessão de factos curiosos ou dramáticos. Os acontecimentos que descreve são apresentados de forma concisa e desapaixonada, em ordem rigorosamente cronológica, com grande sobriedade, sem retóricas desnecessárias. O enquadramento em que eles ocorreram é delineado sempre de forma crítica e procura determinar as causas mais profundas dessas ocorrências e o porquê dos seus resultados. Em Tucídides não era o destino, não eram os deuses, não era algo exterior aos homens que fazia mover a história, mas apenas as paixões e os interesses humanos.

No preâmbulo, Tucídides põe em causa a inexactidão com que os seus contemporâneos tratavam os relatos históricos ou coevos: “Vê-se com que negligência a maioria das gentes procura a verdade e como elas acolhem como verídicas as primeiras informações que lhes chegam” (I-XX). Se Tucídides lesse os nossos meios de comunicação ou pesquisasse os nossos fóruns e blogues da net, ficaria desiludido pelo facto da humanidade pouco ter avançado nos últimos 25 séculos.

O conflito em causa, que embora designado pelo nome de Guerra do Peloponeso alastrou a todo o mundo grego, incluindo a Sicília, foi descrito de uma forma muito meticulosa por Tucídides, quer as operações militares, quer as negociações políticas, acordos e alianças e todos os factores que, directa ou indirectamente, influenciaram os acontecimentos. A sua história é um modelo de clareza e concisão e é certamente o pai da historiografia baseada em factos, que não tem nada a ver com a historiografia baseada no Milagre de Ourique da Monarchia Lusitana de Fr. Bernardo de Brito e dos monges de Alcobaça, escrita 20 séculos depois, e isto sem menoscabo para a intenção patriótica dos monges de Alcobaça, em pleno domínio castelhano, de exaltarem a pátria oprimida.

O que impressiona é a lucidez com que Tucídides prevê os acontecimentos subsequentes. Profundamente céptico, afasta quaisquer explicações moralistas, superficiais e a noção metafísica do destino. Escreve Tucídides:

A minha investigação foi penosa porque aqueles que assistiram aos acontecimentos não os contavam de igual modo, falando deles segundo os interesses do seu partido ou segundo a volubilidade das suas lembranças” (I-XXII).

Uma das coisas importantes para nós, na História de Tucídides, é que, na actual conjuntura onde se debatem os limites da defesa ou da imposição dos valores democráticos no mundo; se debate a justeza e a viabilidade da tentativa americana de imposição desses valores a todo o planeta; se debatem as raízes do unilateralismo americano, isto é, se ele resulta de uma incapacidade própria de ver o mundo sem ser a preto e branco, ou se resulta da tibieza da Europa em acompanhar as pretensões americanas, influenciando-as como aliada; e se debate se os regimes ditatoriais e castradores dos direitos, liberdades e garantias não deverão ser abolidos quer com o recurso a pressões económicas ou políticas, quer recorrendo à força, etc..

Ora estes foram temas que, directa ou indirectamente, a obra de Tucídides abordou, e o que ainda é mais interessante, é que a sua história nos permite várias leituras e extrair diversas conclusões, algumas aparentemente contraditórias entre si.

Publicado por Joana às 09:53 PM | Comentários (5) | TrackBack

Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 1º Acto

Os pseudo-Tucídides da net

Os acontecimentos internacionais, desde a intervenção americana no Afeganistão até ao conflito iraquiano e as suas actuais sequelas têm dado aso a diversos comentaristas explanarem, freneticamente, as concepções geo-estratégicas mais arrojadas (e absurdas, na maioria).

Os mais diversos comentaristas, nos mídia e nos fóruns da net, escreveram e reescreveram a História para sustentarem as suas concepções estratégicas com uma ousadia e uma fantasia que faria inveja aos enciclopedistas soviéticos que andaram 70 anos a reescrever a História, até lhes tirarem os lápis e o papel.

E não há indícios que a imaginação desses comentaristas se esteja a esvair. Mesmo que aquilo que escreveram com uma convicção inabalável na semana n fosse completamente invalidado pelo ocorrido na semana n+1, e que o que foi afirmado como uma certeza inexorável na semana n+2, tenha ficado absolutamente infirmado na semana n+3 e …e que a previsão irredutível da semana n+m (com m a tender para infinito) tenha desabado com fragor na semana n+m+1, …etc., etc., etc., os prolixos comentaristas da net (fóruns, blogues, etc.) continuam indiferentes e desmemoriados.

Se Darwin analisasse esta espécie nova, que erra sistematicamente e não tem qualquer função de aprendizagem que lhe permita alterar o rumo do seu percurso, deduzi-la-ia como valência ontológica do Pithecantropus em S (Variante degenerativa do Pithecantropus erectus), um ramo colateral da linha que chegou ao Homo Sapiens Sapiens, mas que falhou algures, devido à exposição prolongada ao teclado e ao monitor, conduzindo a um impasse evolutivo.

Sendo assim, e dada a impossibilidade de competir com a imaginação delirante desses comentadores desdenhosos do empecilho incómodo dos factos, vou aproveitar este fim de tarde outonal para reflectir sobre um comentador que, por ter falecido há milénios, poderei falar sobre ele à vontade, sem receio que me venha a desmentir ou contrariar.

Falemos então de Tucídides.

Publicado por Joana às 09:30 PM | Comentários (4) | TrackBack

novembro 05, 2003

Rotweilers de Wilson e Órfãos de Lenine

Actualmente, com o pano de fundo do conflito iraquiano, deixou de haver qualquer espaço de manobra entre os rotweilers de Wilson e os órfãos de Lenine. As posições extremaram-se de tal forma que quem não está com uns, estará necessariamente com os outros.

Os seguidores musculados de Wilson querem impor regimes democráticos socorrendo-se da força. É uma tarefa difícil. Foi possível na Alemanha e no Japão no pós-guerra, mas eram regimes completamente desacreditados que não tinham qualquer apoio em mais nenhum país e que, no interior das potências aliadas, não havia vozes discordantes, ou melhor, vozes discordantes que houvesse estavam prudentemente caladas.

A situação actual é diferente. Os regimes em causam estavam (alguns ainda estão) completamente desacreditados face aos valores da nossa sociedade democrática e tolerante. Têm todavia muitos países a defendê-los, quer abertamente por questões de identidade religiosa, quer, na totalidade dos casos, de forma aberta ou encapotada, porque são igualmente regimes não democráticos, que atentam contra os mais elementares direitos, liberdades e garantias. A quase totalidade dos países do terceiro mundo tem regimes não democráticos ou mesmo totalitários. Defender, aberta ou envergonhadamente, Saddam e outros, é defenderem-se a si próprios.

Por acréscimo, dentro da nossa sociedade democrática e tolerante pululam os órfãos de Lenine, espécie que durante décadas acreditou no paraíso do regime comunista, nos amanhãs que cantam. O “incompreensível” desabar desse mundo deixou-lhes traumas profundos para cuja terapia precisam destas sessões de choque: corpos de marines exangues, helicópteros Chinook a arder no solo, tanques calcinados com corpos americanos mutilados no interior, etc.. Rejubilam com estas sessões de terapia e voltam acreditar que talvez tudo venha a ser novamente possível. É uma espécie de vingança póstuma.

Os órfãos de Lenine não se circunscrevem aos apoiantes do regime soviético. Abarcam igualmente aqueles que navegam nas mesmas águas ideológicas, com uma diferença: como nunca foram capazes de construir qualquer sociedade em que vingassem as suas teorias, por muito perversa que essa sociedade fosse, debitam ideias com a irresponsabilidade de quem sabe que, no fundo, elas nunca terão qualquer validação prática. Estão para a política, como as crianças para os humanos, mas sem a desculpa de terem, por imposição biológica, uma idade mental inferior.

As crianças, na sua ingenuidade, descobrem, às vezes, que o “Rei vai nu”. A esquerda radical tem como axioma que o “Rei vai nu”. O problema é que, de tanto o repetirem, quando ele vai mesmo nu … só eles próprios acreditam.

Publicado por Joana às 12:42 PM | Comentários (9) | TrackBack

novembro 04, 2003

Derrube de um helicóptero ou dos EUA?

O derrube de um helicóptero de transporte norte-americano e a morte de 16 soldados tem feito as delícias dos órfãos de Lenine dos fóruns da net.

Desde os brados de regozijo pelas baixas americanas, às loas aos regimes ditatoriais e sanguinolentos que foram derrubados, à explanação dos conceitos “civilizacionais” que justificam o terrorismo, ao apoio explícito ou envergonhado a esse mesmo terrorismo e à celebração de regimes onde certamente os celebrantes seriam executados se lá vivessem e se comportassem da forma como se portam na tolerante civilização ocidental que “desdenham”, tudo é arremessado numa orgia pletórica potenciada pelo ódio recalcado pela lamentável ocorrência do devir social ter feito desabar o mundo que as suas convicções tinham postulado ser o melhor dos mundos.

Escrevi em Março, dias antes do início das hostilidades, que:
A administração Bush foi incapaz de analisar, com objectividade, o sentimento da comunidade internacional, agastada com a sua sobranceria e sem compreender a sua política errática e sem coerência. Vítima do seu unilateralismo, a administração Bush avançou para uma guerra sem se aperceber que teria muita dificuldade em promover uma coligação alargada, nas condições em que actuou.
A partir de uma certa altura, Bush, na via por onde tinha enveredado, já não tinha alternativa para a guerra, a menos que retirasse e deixasse Saddam a vangloriar-se que havia derrotado o Grande Satã e numa posição política muito mais forte que anteriormente.
… e, mais adiante, que:
Quando digo que as consequências são imprevisíveis não me refiro ao resultado militar imediato … … Refiro-me à “gestão” do Iraque no após-guerra com o vazio de poder e 3 grandes grupos étnicos a digladiarem-se entre si, com a Turquia à espreita, no que toca ao Curdistão, e o Irão à espreita, no que toca aos shiitas.”
… e em Abril, quando a guerra estava quase no fim:
Todavia, se a coligação, depois de ter vencido a guerra, não souber vencer a paz, é bem provável que comecem a aparecer focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas.

A questão, que actualmente se coloca, é que houve a guerra e o derrube de Saddam e que hoje estamos perante novos dados. Não temos uma máquina do tempo para regressarmos à época que precedeu a fixação de Bush em Saddam e o envio da parafernália militar americana para o Golfo Pérsico. Estamos agora, em Novembro de 2003, um ano depois. O nosso objectivo é tentar encontrar uma solução que tenha o apoio da comunidade internacional e convencer a Administração Bush que essa solução terá que ser encontrada fora do quadro do unilateralismo americano vigente, mas que tal solução não será nem anti-americana, nem uma solução pantanosa, sem operacionalidade.

As sondagens mostram que os iraquianos estão maioritariamente interessados numa democracia representativa respeitadora dos diferentes credos e etnias. Mas terão que ter garantias claras que a sua soberania não vai ser posta em causa, que haverá um calendário para o faseamento da implementação das estruturas políticas, sociais e económicas do novo Iraque e que a recuperação da sua soberania não será postergada para as calendas gregas. Senão serão progressivamente arrastados para acções de resistência ao “ocupante”.

Bill Clinton declarou em Madrid, no domingo passado, que “Seja qual for a nossa posição, todos nós jogamos alguma coisa no Iraque é preciso não desistir de um maior envolvimento da ONU, é preciso que os EUA e a Europa voltem a estar do mesmo lado, é preciso que os americanos não se retirem depressa de mais do Iraque”.

A retirada americana agora seria o caos. Sondagens Gallup mostram que os iraquianos não estão interessados numa retirada imediata americana. Não será certamente por gostarem de estar sobre a administração americana, mas por saberem que qualquer outra alternativa, agora, seria o caos, poderia constituir uma catástrofe de contornos imprevisíveis.

A Europa deverá desempenhar, nesta questão, um papel chave. Mas resta saber se estará à altura desse papel. Nos meses que precederam a guerra não o soube desempenhar. Também não o soube desempenhar durante a guerra e no imediato pós-guerra. Neste último caso, não ajudou nada a posição de sobranceria da América vitoriosa e do seu sentimento de vingança face a uma parte da Europa que teve, antes do conflito, posições decididamente contra a política iraquiana da Administração Bush e que deram a Saddam a esperança que poderia ainda cantar vitória, convencido que o exercício do direito de veto inviabilizaria o desencadear do conflito.

A relação actual, desde a última guerra, da Europa com os USA lembra, mutatis mutandis, a relação dos gregos (os gregos da época da decadência) com o Império Romano. Arrogavam-se da sua história anterior e de uma cultura superior, troçavam do utilitarismo e de uma certa puerilidade dos romanos, mas viviam, embora desdenhosamente, sob a sua protecção.

A Europa não pode continuar com tal política. A Europa terá que construir umas forças armadas próprias e operacionais e ter uma política estrangeira comum e coerente. Mas isso não será fácil. A nostalgia de grande potência da França, a satelitização do Reino Unido pelos EUA, as derivas incoerentes e erráticas da Alemanha e da Itália, quer queiramos, quer não, as principais potências europeias e que serão a base de qualquer construção futura, não permitem pensar que aqueles desideratos estarão próximos de serem alcançados.

Mas quer depois de serem alcançados, quer na actualidade, a Europa não pode esquecer que está ligada indissoluvelmente aos EUA. Os valores básicos que defendemos e que moldaram a nossa cultura são os mesmos. Temos que fazer uma caminhada comum.

Quanto maior forem o poder, a prosperidade e a capacidade de ter uma política externa comum e coerente da Europa, maior será a capacidade da Europa influenciar as decisões americanas. É preciso um Europa forte para melhorar os EUA, não para servir de contrapoder aos EUA.

Publicado por Joana às 08:19 PM | Comentários (51) | TrackBack

A produtividade do Sr. Silva e a produtividade de Herr Schulz

O Sr. Silva e Herr Schulz são ambos motoristas de camião, um em Portugal e outro na Alemanha. Ambos são profissionais responsáveis, hábeis, trabalhadores, competentes. Não bebem, excepto em casa, às refeições, e só se a seguir não vão trabalhar (Mesmo neste caso o Sr. Silva fica-se por um copo de vinho tinto e Herr Schulz por uma lata de cerveja).

Ambos começam a trabalhar às 08:00. Mas o sr. Silva tem de se levantar uma hora mais cedo do que Herr Schulz, porque, com o estado caótico da cidade onde vive e com o facto de as suas condições financeiras não lhe permitirem melhor local de habitação do que um subúrbio remoto, demora muito mais tempo na deslocação.

Apesar disto, apresentam-se os dois no emprego com igual pontualidade. Hoje os camiões estão vazios, e é preciso levá-los até ao lugar onde se fará a carga. O Sr Silva fá-lo através de um emaranhado de vias, atravessando zonas que não se sabe bem se são industriais, residenciais, agrícolas ou outra coisa qualquer. Logo neste primeiro percurso Herr Schulz ganha-lhe quinze minutos; às 08:15 o camião de Herr Schulz está a ser carregado. O armazém está impecavelmente organizado, computadorizado, para cada função há a máquina adequada, e com a papelada não há problemas de última hora. Quando Herr Schulz parte para o seu destino, ainda o Sr. Silva anda à procura do funcionário que tem as guias de marcha, e a carga ainda nem começou.

Depois de muitas voltas pelo meio da povoação - o armazém onde o Sr. Silva carregou está mal localizado, mas nenhuma autoridade se atreve a tirá-lo dali com medo da reacção dos "populares" - o Sr. Silva lá chega finalmente, já cansado e nervoso, à estrada. Por esta altura já Herr Schulz percorreu 100 km e está a pensar em parar para tomar um café.

A certa altura do percurso, o Sr. Silva tem de enfrentar uma longa subida. O camião leva carga a mais - num esforço desesperado da empresa para rentabilizar o que não é rentabilizável - e tem potência a menos, porque um veículo com a potência adequada ao serviço teria ficado muito mais caro.

Lá vai o Sr. Silva a 30 km/h, perdendo tempo e fazendo perder tempo a mais noventa condutores que vão na fila atrás dele. Entretanto Herr Schulz lá vai a 100, mesmo nas subidas, com a sua carga legal e o seu potente motor.

Herr Schulz chega ao seu destino. Tudo está a postos para o receber. A descarga faz-se com rapidez e eficiência. Herr Schulz ainda tem tempo para se dirigir a outro lugar de carga de modo a não regressar com o camião vazio.

O Sr. Silva, entretanto, perdeu-se. Por qualquer razão misteriosa, a lei portuguesa não permite que a localização das empresas seja assinalada nas estradas e auto-estradas. Tem de continuar até à saída seguinte, dar mais uma volta por estradinhas, regressar à auto-estrada, e então, sim, dá com o caminho.

Quando chega ao lugar de descarga já lá estão vários colegas seus. Vai ter de esperar horas. Entretanto faz-se noite, o armazém onde pensava fazer outra carga já fechou, e o Sr. Silva vai regressar, tarde e a más horas, com o camião vazio.

Às 17:00, Herr Schulz, entregue o camião na empresa, dirige-se a casa, onde chega passado pouco tempo. A mulher chega uns minutos depois, porque entretanto foi buscar os miúdos à escola. Herr Schulz brinca com os filhos, ajuda-os a fazer os trabalhos de casa, janta, dedica-se um pouco à sua colecção de selos e vai para a cama, cedo.

O Sr. Silva chega a casa às 23:00, estafado. Os filhos já estão na cama, a mulher está cansada e nervosa, o jantar está frio. Come pouco e à pressa, vê uma porcaria qualquer na televisão e vai-se deitar.

As horas que o Sr. Silva trabalhou hoje a mais nunca lhe vão ser pagas. Nem o Sr. Silva as vai exigir: é um homem razoável, sabe as dificuldades com que se debate o patrão, e entende muito bem que as coisas são assim mesmo.

Passados uns anos, Herr Schulz despede-se e, aproveitando as suas poupanças, uma pequena herança que recebeu e um crédito bancário que obteve, forma a sua própria empresa. Leva consigo alguns dos seus colegas, entre eles um português, primo do Sr. Silva.

Este, farto de não sair da cepa torta, aceita a sugestão do primo e emigra para a Alemanha, onde vai trabalhar para Herr Schulz.

O patrão português do Sr. Silva fica triste de o ver partir, mas também ele é um homem razoável e compreende a situação. Despede-se dele cordialmente, diz-lhe "se precisares de qualquer coisa, pá..."

Nesta história, como em todas, houve quem ficasse a ganhar e quem ficasse a perder. A ganhar ficou o Sr. Silva, que passa a trabalhar menos e melhor por mais dinheiro; fica Herr Schulz, que na sua nova condição de empresário pode contar com mais um trabalhador competente; e fica a Alemanha, que fica com duas empresas produtivas onde antes só tinha uma.

A perder fica o antigo patrão do Sr. Silva, porque empregados como ele não aparecem todos os dias; ficam os antigos colegas do Sr. Silva, que passam a ter de fazer o trabalho dele para além do que já faziam, e que já era demais; e fica Portugal, que, onde já tinha uma empresa pouco produtiva, fica com uma que o é ainda menos.

As culpas? Ah, as culpas! Do Sr. Silva não são, com certeza. Do antigo patrão do Sr. Silva, algumas, mas não todas. As restantes temos que as distribuír pelo Estado que não ordena o território, pelas outras empresas envolvidas no processo e que tratam com igual desdém e pendor predatório os seus empregados, os seus clientes e os seus fornecedores... Mas nas culpas pensem vocês, os que me lerem, porque eu acho que já disse o que tinha a dizer.

Autor: Zé Luiz 12:58 6 Novembro 2003

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novembro 03, 2003

Intolerâncias

Era uma vez um rapaz, filho de um pedreiro, que foi para a ex-URSS fazer um curso de engenharia, ao abrigo de algum protocolo da Associação de Amizade Portugal-URSS.

Fez o curso em Kiev. Acabou o curso, julgo que um ou dois anos antes da implosão da URSS. Durante a sua permanência na Universidade de Kiev conheceu uma moça síria, do mesmo curso que ele. Casou com ela e vieram para Portugal, onde ambos arranjaram emprego com alguma facilidade.

Tiveram uma filha. Entretanto a moça resolveu ir visitar a família à terra dela. Não voltou, nem escreveu mais.

Inquieto com a situação fez várias diligências para saber da moça. Descobriu que era a família que não a deixava regressar.

Muniu-se de uma cópia da certidão do casamento, traduzida em árabe e autenticada e de toda a papelada que o advogado dele considerou pertinente para o efeito e demandou as terras da Síria.

A família da moça morava em Dair-as-Zor, uma cidade do interior, nas margens do Eufrates, a cerca de 100 kms da fronteira iraquiana.

Ele foi a Dair-as-Zor escoltado por um polícia sírio. Dormiu na esquadra da polícia enquanto lá esteve. Nunca conseguiu chegar à fala com a moça, nem vê-la. A família, nomeadamente os irmãos (ela tinha 6 irmãos) não deixou vê-la. A polícia aconselhou-o a regressar. As autoridades sírias não fizeram o mínimo esforço para repor a legalidade da situação.

Ele regressou a Portugal. Viu-o tempos depois com a filha. Era uma miúda loirinha, amorosa. Ela deve ter agora 12 ou 13 anos. Segundo me informaram, há tempos, ele refez a sua vida afectiva, na medida do possível (julgo que terá dificuldade em divorciar-se e nem sei se quererá). Encontrou uma companheira.

Quanto à moça síria, ninguém sabe o que foi feito dela. Estará ainda viva? Continuará encarcerada na casa familiar, segregada do resto do mundo?

Não era uma camponesa, não era uma analfabeta. É uma moça que tem um curso de engenharia, que afinal não lhe serviu para nada, e que se apaixonou por um rapaz português, um doce afecto que a conduziu à amargura de se ver enclausurada e segregada do mundo. Nunca a conheci pessoalmente, mas sempre que este assunto vem à baila, é sempre nela que penso em primeiro lugar, com muita tristeza, muita amargura e muita ... muita revolta.

Durante o domínio árabe, o Ribatejo era designado por Balatha (provavelmente daí o toponímio Valada, omnipresente naquelas terras). Era uma das regiões mais florescentes do Califado Omíada de Córdova. Aquela moça havia afinal regressado a uma terra que os seus correligionários tinham deixado há quase um milénio. Mas a intolerância religiosa e a cegueira da tradição não permitiu que esse regresso se concretizasse.

Publicado por Joana às 08:59 PM | Comentários (11) | TrackBack

Hábitos enraizados

Portugal é, na verdade, um país eterno, uma singularidade no espaço e no tempo, como diria o nosso filósofo das luzes, um “Reino velho sem emenda”.

Relativamente a este tema, e para verem como há coisas que estão enraizadas nos nossos hábitos, que fazem parte dos nossos genes, cito excertos do artigo “Le Portugal au dix-neuvième siècle” da Revue des Deux Mondes, de Julho 1837, pags 79-112. Esta revista foi porventura a mais importante publicada em França no século XIX (chegou ao século XX, mas já em decadência):

“------------------------------------
Em vão revoluções se sucederam. Em vão cada constituição destronou a anterior. O país olha e deixa fazer, opondo a sua força de inércia às inovações sem que, por isso, preste qualquer apoio aos retrógrados (*).

Era mais fácil promulgar essas belas legislações do que pô-las em execução …

Se não houve, como em Espanha, sublevações populares, foi porque a população portuguesa raramente age com paixão. Mas tem uma força de inércia muito mais difícil de vencer que uma resistência à mão armada. Como obter de um povo uma cooperação à qual ele se recusa? … Que fazer de um país onde os costumes resistem tão vivamente às leis?
-------------------------------------“


Vocês não acham que estas observações sobre a forma como a opinião pública (não a opinião que aparece nos meios de comunicação) portuguesa se comporta perante a política e as instituições em geral, se mantém com uma certa actualidade, quase 170 anos depois e com diversas revoluções de permeio (Maria da Fonte, Regeneração, República, Estado Novo, 25 de Abril, sem falar das revoluções menores)?


(*) O autor (o sr. Louis de Carné) refere-se aos adeptos do absolutismo, à reacção clerical, etc..

Publicado por Joana às 12:18 AM | Comentários (11) | TrackBack

A Civilização Ocidental

O mundo ocidental, para mim, e julgo não estar sozinha nessa concepção, é o mundo que partindo dos agrimensores egípcios e dos astrónomos caldeus, interiorizou a filosofia grega clássica, o direito e a jurisprudência romanos, a autodeterminação das comunas medievais, o espírito da Reforma, o Aufklärung, a Revolução Americana, a Declaração dos Direitos do Homem de 26 de Agosto de 89, o 10 de Agosto de 92 mas também o 8 e 9 Thermidor de 94, as barricadas de 1848 mas também Guizot, o movimento operário da 2ª metade do século XIX mas também Thiers, a filosofia alemã (de Kant a Marx) e a pintura francesa, a sociedade laica, o “affaire Dreyfus”, as sufragistas e a emancipação feminina, os fugazes, mas fecundos, interlúdios culturais dos primórdios do poder bolchevique e da República de Weimar, antes dos totalitarismos os liquidarem, a resistência ao nazismo e a libertação, a luta contra o totalitarismo soviético e a queda do Muro de Berlim. E tantas outras coisas…

E a maravilhosa herança musical, desde Monteverdi (ou talvez desde Josquin des Pres) até à data.

É a essa civilização, de que todos nós somos depositários, embora alguns se tentem esquecer disso, que me orgulho de pertencer e que lutarei para que seja preservada e possa continuar a prosperar e progredir pela via que tem singrado.

Em todas as grandes construções do espírito ocidental, houve sempre uma componente totalitária que se tentou apoderar do processo a pretexto de o levar às últimas consequências. Em todas essas alturas apareceram Robespierres, que acabaram sempre vencidos, mais tarde ou mais cedo, que ficaram cobertos de horror e opróbrio pelos seus crimes, mas que permaneceram sempre latentes, para emergirem na crise revolucionária seguinte como detentores da missão histórica e necessária de destruir a civilização existente.

E o que a nossa sociedade tem de fecundo e maravilhoso é que, através das suas afirmações e das suas negações, tem emergido desses conflitos sempre mais tolerante, mais próspera, mais poderosa culturalmente.

Nada contudo é seguro. A luta pelo aperfeiçoamento da nossa sociedade não se vence por um qualquer determinismo histórico, mas pela nossa acção diária, por encontrar sempre as respostas mais adequadas, por saber distinguir entre os que a querem aperfeiçoar e os que a querem destruir.

Publicado por Joana às 12:04 AM | Comentários (28) | TrackBack