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novembro 14, 2003

O Mercado e o Trabalho

Numa economia de mercado, os salários deveriam ser estabelecidos pelo equilíbrio da oferta e da procura no mercado de trabalho. Pelo encontro entre o valor que o trabalhador acha justo pelo seu trabalho e o valor que a entidade empregadora ou o mercado em geral estão dispostos a pagar pela sua utilização.

Isto é válido para um engenheiro, uma economista, um médico, um romancista, um actor, etc..

Como a economia de mercado, sem regulamentação, poderia deixar que alguém passasse fome, ou incapacidade de prover às suas necessidades básicas, por insuficiência de “mérito” ou por situações estruturais do mercado que o afastassem do modelo de concorrência perfeita (caso da falta de transparência, cartelização do lado da oferta, por ex.), foram estabelecidas derrogações ao modelo concorrencial, quer por pressão, quer por consenso sociais, para acautelar situações de miséria ou exclusão social: o salário mínimo, o subsídio de desemprego, o rendimento de inserção social, etc.

A nível fiscal, para contrabalançar as diferenças salariais decorrentes do funcionamento do mercado, foram introduzidos os impostos progressivos e as transferências sociais.

Inicialmente, qualquer forma de coligação era proibida, pois criava imperfeições no regime de concorrência. A Revolução Francesa (Lei Le Chapelier) proibia expressamente todas as formas de associações sindicais, profissionais, empresariais, etc.. Todavia, por se verificar que os empresários tinham maior força negocial que os trabalhadores isolados, os Governos, pressionados pela opinião pública, permitiram o estabelecimento dos Sindicatos, que, em si, também é uma derrogação ao modelo da concorrência

Mas a avaliação económica do comportamento das sociedades tem mostrado que a política de redistribuição de rendimentos terá que ser concebida de forma a não menoscabar a eficiência do tecido produtivo pois se este perder a eficiência haverá cada vez menos rendimento para redistribuir.

Por outro lado, as derrogações à liberdade contratual e à mobilidade do mercado de trabalho criam situações de imperfeição no modelo concorrencial que começam por afectar a eficiência económica da sociedade como um todo e atingem em seguida aqueles que julgavam que essas derrogações os punham a salvo das “injustiças” do modelo concorrencial.

Pensemos no caso português. Na sequência do 25 de Abril, com o nobre intuito de proteger os trabalhadores, legislou-se no sentido de impedir qualquer despedimento ou flexibilização da relação laboral. Pensava-se que, com esses institutos legais, os trabalhadores ficariam eternamente protegidos contra a exploração capitalista.

Rapidamente o poder político se apercebeu que aquela legislação tinha um efeito perverso na evolução económica, desincentivando os empresários em aumentar o emprego, mesmo em períodos de expansão económica, e colocando o país em risco de cair no marasmo económico e, eventualmente, de levar empresas à falência e conduzir à diminuição daquilo que se queria conservar: os efectivos da população activa.

Mas os portugueses são hábeis em contornar obstáculos. Aconteceram então duas coisas. A primeira foi a proliferação do sistema de prestação de serviços contra recibos verdes, em completo arrepio ao espírito daquele sistema, inventado para as profissões liberais. Depois, veio a lei dos contratos a prazo, para introduzir alguma flexibilidade num mercado de trabalho rígido e à beira do estrangulamento.

Estes dois novos tipos de relações de trabalho tiveram um notável efeito estimulante na nossa economia e no nível de emprego. Portugal passou a ser, na União Europeia, o país em que o índice de desemprego era menor. Mesmo em períodos de grande crise, como no início da década de 80 ou no início da década de 90, enquanto o desemprego na Europa assumia níveis assustadores, em Portugal mantinha-se quase o pleno emprego.

Os empresários, em face de expectativas, mesmo medianamente favoráveis, admitiam pessoal com bastante facilidade, pois sabiam que podiam demitir esse pessoal, total ou parcialmente, quer se as expectativas se gorassem, quer se o pessoal não satisfizesse profissionalmente.

Todavia tal traduziu-se igualmente numa clivagem do tecido laboral no nosso país: o trabalhadores que nunca podiam ser despedidos e os trabalhadores sobre os quais pendia permanentemente a espada de Damocles da rescisão da relação laboral a prazo curto ou mesmo imediata. As novas gerações que acederam ao mercado de trabalho ficaram neste segundo grupo. O meu primeiro contrato de trabalho na vida privada, foi a prazo.

É claro que, na generalidade dos casos, esse pessoal, que nunca seria admitido se não houvesse aquelas facilidades, acabou por ir ficando e, no termo do contrato, passar a efectivo na empresa. Portanto, a mobilidade, mesmo parcial, do factor trabalho, permitiu aos empresários escolhas mais racionais, aumentarem o volume da sua actividade e possibilitar o seu crescimento e o aumento do nível de emprego. E aos trabalhadores terem acesso a postos de trabalho que o não teriam sem aquelas oportunidades.

Durante o governo socialista houve algumas tentativas para diminuir a amplitude daquele fenómeno. Foram tentativas frouxas, limando apenas algumas arestas, pois havia a consciência que retirar mobilidade ao mercado de trabalho teria efeitos nocivos sobre a economia e sobre o volume de emprego.

O governo actual tenta aumentar a mobilidade do trabalho na globalidade, tentando em contrapartida aumentar as garantias dos trabalhadores nos regimes de trabalho precário. Seria óptimo, mas duvido que o consiga. É fácil conceder regalias e benesses. Retirá-las é quase impossível. Não é inconstitucional aumentar as regalias concedidas ao factor trabalho. Todavia verifica-se que retirá-las é, quase sempre, inconstitucional. Mesmo se o resultado continuar a ser a manutenção da injustiça social entre as gerações dos trabalhadores.

No decurso da sua evolução, quando uma sociedade verifica que as regulamentações e derrogações à concorrência, entretanto criadas, retiram competitividade ao seu tecido económico, degradam a sua riqueza e se viram contra os próprios objectivos que estiveram subjacentes à sua criação, ela deveria eliminar ou mitigar algumas dessas regulamentações. Não o conseguir fazer pode ser mortífero para a evolução posterior dessa sociedade e para a sua prosperidade.

Publicado por Joana às novembro 14, 2003 08:00 PM

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Comentários

Inteiramente apoiado. Nos bons velhos tempos da idade média era assim que se fazia. Os camponeses pensavam que valiam 100, mas nós, os donos da terra, só lhes dávamos dez, porque eles são uns calões.
A culpa disto tudo é dos sindicatos, já se sabe.

Publicado por: Duque de Ouros às novembro 17, 2003 08:42 AM

Que eu saiba, na Idade Média não havia mercado livre de trabalho, nem liberdade contratual.
Isso foi uma das conquistas das revoluções que destruiram os regimes feudais.
Os camponeses tinham, a troco da posse da terra, um conjunto de obrigações, corveias, pagamentos dos foros em espécie, etc. a que não se podiam eximir, e que não tinha nada a ver com a liberdade contratual do mercado, instaurada com as revoluções holandesa, inglesa, americana, francesa, etc..

Publicado por: Joana às novembro 17, 2003 05:57 PM

Retrato de um neo-liberal


Convido agora a minha cara Joana a assestar o microscópios sobre um espécime, de seu nick
«ares», que afixou no Expresso online o seguinte post:

«O José António Lima já devia saber que só existem no mundo dois tipos de pessoas: as que sabem ganhar dinheiro (gerindo os seus negócios e os dos outros com mestria, com profissionalismo) e os que não sabem (não sabem gerir os seus negócios e os dos outros com mestria, com profissionalismo); estes têm de aprender a poupar e serem inferiores aos outros.»

Há, é claro, outras linhas de demarcação entre as pessoas: há os altruístas e os egoístas, os bonitos e os feios, os virtuosos e os viciosos, os inteligentes e os estúpidos, os benévolos e os malévolos, os génios e os normais, os criativos e os destituídos, os que cuidam da família e os que batem na mulher...

Se interrogado sobre isto, o nosso «ares» admitiria, provavelmente, todas estas diferenças. Mas considerá-las-ia irrelevantes, já que a diferença que conta, a que determina quem é superior e quem é inferior, é a capacidade de gestão.

O que significa que a um Sócrates, a um Aristóteles, a um Buda, a um Jesus Cristo, a um Cervantes, a um Camões, a um Newton, a um Van Gogh - só restaria, no cotejo com um sr. «ares», aprenderem a poupar e a serem inferiores.

Repugnante, dirão alguns. Absurdo, dirão outros. Repugnante é: mas quanto à absurdez, essa depende da lógica utilizada.

A lógica aqui utilizada é a lógica neo-liberal. Resumindo, consiste mais ou menos nisto (aqui peço-lhe que me corrija se estiver errado):

As desigualdades de estatuto social são desejáveis porque reflectem o mérito. O único mérito que se pode medir é a criação de riqueza: logo, quem cria mais riqueza tem mais mérito e deve ser socialmente superior.

E o que é "criar riqueza"? A resposta a esta pergunta também já foi dada no Expresso online por um comentador de cujo nick não me recordo: é produzir e vender bens ou serviços transaccionáveis.

Ou seja: um barão da droga, que produz e coloca no mercado um bem transaccionável por excelência como a cocaína, tem naturalmente mais mérito do que um varredor da Câmara. Merece bem o seu jacto particular, o seu exército privado, o seu latifúndio com aeródromo, os seus biliões nos off-shores, as suas linhas telefónicas directas para os gabinetes dos políticos.

É um empreendedor, enquanto o varredor da Câmara é um mísero funcionário público, destituído de eficiência e de brio profissional, merecedor apenas de ser ainda mais pobre do que já é.

Só lhe resta deitar-se nalguma valeta da História, abraçado porventura a algum poeta de génio para não morrer de frio - enquanto o sr. ares, milhares de metros acima dele, porventura no jacto privado do nosso traficante, voa à velocidade do som para os amanhãs que cantam do ultra-capitalismo.

Publicado por: Zé Luiz às novembro 21, 2003 11:46 AM

Zé Luiz
1 – Julgo que esse «ares» se estaria a referir ao universo dos empresários e gestores, enquanto tais. Senão seria uma “sentença” completamente cretina.

2 – Caro Zé Luiz, a cocaína não é um bem transaccionável. Como sabe há leis que impedem isso. É um bem que se “transacciona”, da mesma forma que os assaltos (“transaccionar” bens a troco da vida), dos receptadores, dos arrumadores de automóveis (“transaccionam” 1€ a troco de não riscarem os carros), etc.. Mas nenhuma destas “transacções” ou “prestações de serviço” são reconhecidas como tais, nem são contabilizadas nas estatísticas, etc.

Meu caro Zé Luiz, um escritor que não consegue vender um livro tem mérito? Vamos admitir que, como se diz em Economia, o “mercado” é transparente, i.e., há um conhecimento geral e perfeito sobre a sua obra. Você pode alegar, neste caso, que a medida do mérito não é o volume de vendas. Pode acontecer, numa óptica de curto prazo. A longo prazo a medida do mérito é sempre o volume de vendas.

Para não falar de Balzac, que é um caso intermédio, comparemos Stendhal e Eugène Sue, mais ou menos contemporâneos. Este último foi o escritor mais lido da sua geração, enquanto Stendhal era bastante menos lido e conhecido. Todavia, a longo prazo o mérito de Stendhal ficou provado, também pelo volume de vendas. Actualmente ninguém lê Eugène Sue, enquanto Stendhal continua a ser lido e apreciado

Por isso não tenha dúvida que, mesmo na esfera intelectual, "criar riqueza" é produzir e vender bens ou serviços transaccionáveis. Agora esta frase tem que ser interpretada com discernimento, como qualquer frase, aliás!

Publicado por: Joana às novembro 21, 2003 03:17 PM

Zé Luiz, gosto muito de o "ver" por aqui.

Eu tenho aparecido menos no online pelas seguintes razões:
1 – Tenho uma vida bastante ocupada, embora isso já fosse um constante
2 – Quando escrevo, tenho-me dedicado, de preferência, a escrever sobre algo que me desperta a atenção e não ficar limitada àqueles textos, na maioria sem nível, dos articulistas do Expresso.
3 – A média geral dos comentadores do Expresso desceu assustadoramente de nível. Ainda agora, na hora do almoço, estive a passar os olhos por uma crítica de um troglodita à minha apreciação sobre o desempenho da ministra. Não é possível responder àquilo. Para quê perder tempo? Aquilo é um misto de ignorância, erros de leitura sobre o que escrevi, farronquices e pequenos insultos.

Só por masoquismo me ia meter em diálogo com alguém que deve ser do pior, do mais baixo, que frequenta o online.

Este blog, e haverá outros idênticos, só lhe falta o nível dos comentadores que "estacionam no online". Porque, no resto, têm mais nível que o online.

Publicado por: Joana às novembro 21, 2003 03:22 PM

Joana, tem razão quando diz que alguns blogs têm mais nível que o online.

O formato do online presta-se mais ao diálogo entre os comentaristas.
Repare que 80% dos comentários, ou mais, são discussões entre comentaristas que não têm nada a ver com os textos.

Publicado por: Viegas às dezembro 3, 2003 12:08 AM

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