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novembro 12, 2003

Os noventa anos de Cunhal e o PCP

Os adeptos do marxismo soviético, tal como ele foi vivido desde a implantação do regime soviético até hoje, e os incondicionais do PCP em particular, patenteiam a psicologia típica do portador de mitos: a sensação de segurança e de superioridade que lhes advêm da convicção de que têm no bolso a chave de todos os eventos do mundo, a resposta para todas as perguntas; a sensação exaltante de estarem ligados a um processo absoluto; a sensação inebriante de se contarem entre os eleitos; a agressividade natural contra quem pensa de outra maneira, quem não está de posse da verdade revelada e portanto, no fundo, só pode pensar de forma absurda ou pretender fazer propaganda hostil. Até à queda do muro, em qualquer discussão com um “marxista sovieticus”, qualquer pessoa se aperceberia rapidamente que ele considerava que quem pensava de maneira diferente não só estaria enganado, como seria um facínora e um celerado a soldo da conspiração imperialista e capitalista contra o paraíso dos trabalhadores.

Mas quando um tal partido político resolve considerar que é o único capaz de identificar os interesses gerais e essenciais dos trabalhadores, bem como as necessidades de transformação da sociedade, e que por conseguinte tem o direito de transformar revolucionariamente a sociedade de acordo com a sua teoria, nessa altura tal pretensão não só entra em contradição com as reais necessidades do desenvolvimento social como implica mesmo a negação das próprias justificações filosóficas de semelhante teoria da sociedade. O facto de apresentar os seus próprios conhecimentos como «objectivamente verdadeiros» e considerar todos os outros errados e resultantes de interesses partidários hostis dá aos membros do partido o direito moral de fazerem todas as interferências no desenvolvimento social de acordo com a teoria própria do partido, sem serem obrigados a respeitar outras opiniões ou outras teorias. Está totalmente posta de parte a possibilidade de eles cometerem erros teóricos ou mesmo tirar deles conclusões falsas e prematuras.

Hoje em dia qualquer cientista sabe que há conclusões que surgem como objectivamente correctas numa primeira etapa do processo de investigação, mas podem ser completamente rejeitadas por dados totalmente novos a que inicialmente não se prestara atenção ou que estavam ainda embrionários. Mas para o Leninismo, e para o seu discípulo Cunhal, todos os processos do desenvolvimento capitalista do início do séc XX eram de tal modo evidentes e de tal modo pareciam confirmar a teoria marxista que todas as objecções teóricas e todas as dúvidas tinham forçosamente de ser a expressão de intenções políticas hostis à classe operária, embusteiras e reaccionárias. Ora acontece que algumas décadas mais tarde veio a verificar-se que a pauperização do proletariado não é o resultado das relações de produção capitalistas ultrapassadas, mas antes de um insuficiente desenvolvimento do capitalismo; que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram; que as crises económicas do capitalismo nem se agravam nem se aprofundam à medida que o capitalismo se desenvolve, reduzindo-se a perturbações macroeconómicas geridas pelo próprio sistema; que finalmente a concentração do capital não eliminou a atomização do capital e não implicou a simplificação da estrutura social, nem a hegemonia absoluta dos proletários na sociedade visto que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram . Portanto, verifica-se que as relações de produção capitalistas não se tornaram obstáculos ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas e que justificar a transformação do sistema social terá que ser encarada sob outro prisma.

Embora tais argumentos não neguem o carácter, em princípio progressista, e o significado positivo do socialismo para a humanidade, continua a ser necessário, face a toda a experiência passada, modificar o próprio conteúdo desta noção. Nem a ditadura do proletariado, nem a nacionalização dos meios de produção, nem a liquidação das funções essenciais do mercado, etc., se podem considerar elementos constitutivos da essência do socialismo. À luz desta conclusão e desta experiência, o critério fundamental que justifica o direito da representação única dos interesses dos trabalhadores revela-se desde o início totalmente errado. A teoria marxista era necessariamente limitada no que toca a conhecimentos; continha mesmo afirmações e conclusões completamente falsas. Face à sua própria teoria do conhecimento ou eventualmente às experiências históricas, ela nunca devia ter surgido, em sistemas ideológicos totalitários, como intérprete exclusiva das necessidades do desenvolvimento social.

Mas o facto de os fundadores do partido e es seus membros a si próprios se apresentarem como os únicos representantes dos interesses dos trabalhadores não permite que, em condições democráticas, consideremos isso uma usurpação objectiva, mas apenas uma pretensão a tal. Será o ponto de partida, falso e sem fundamento teórico, de um processo ainda mais perigoso: a ideologia constituída irá transformar os partidos comunistas em instituições de intolerância e de autoridade que aspiram sem escrúpulos a uma sociedade em que a única expressão política seja a sua. Tal ausência de escrúpulos explica-se sobretudo pelo facto de se interpretarem de maneira primária os interesses da humanidade, os meios de conhecê-los e a importância das condições democráticas indispensáveis à vida e aos diversos interesses. O facto de os fundadores e ulteriores dirigentes dos partidos se terem convencido (mesmo que o tenham feito de forma subjectivamente honesta) de que podiam conhecer e conheciam mesmo os interesses de todos os trabalhadores e as condições da sua realização, conduz logicamente quanto mais se acentua a luta política e se reforça o processo à ideia de que qualquer outro partido político é não só supérfluo mas também impede que se realize o «bem-estar» concebido pelo partido.

Por isso é que em Álvaro Cunhal, subjectivamente convencido da actualidade objectiva da revolução socialista, se nota uma intolerância em relação àqueles que ideologicamente se afastam da sua teoria, intolerância essa característica de todos os dirigentes comunistas desde Lenine, mas também uma luta impiedosa pela liquidação de toda a oposição, mesmo próxima, principalmente a mais próxima, a que pode corromper a pureza ideológica. O partido único do sistema socialista (“sistema” hoje reduzido a algumas relíquias que se arrastam penosamente), enquanto representante dos «interesses reconhecidos» dos trabalhadores, é o resultado lógico de tal processo.

Elogiar a coerência de Cunhal, é elogiar o imobilismo, a repetição de conceitos invalidados pela prática e a ideia que a realidade e a vida são coisas imutáveis. É a recusa em analisar a realidade de uma forma dialéctica e extrair as conclusões adequadas. É inclusivamente a recusa da postura do jovem Marx, do Marx filósofo. E isto é o que o pensamento de Cunhal tem de mais perverso.

Publicado por Joana às novembro 12, 2003 12:50 PM

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Comentários

Um site com o meu nome??? heheh Engraçado isso!
Pq vc escolheu esse nome?!

Publicado por: Semíramis às novembro 12, 2003 05:45 PM

Semiramis é uma figura lendária da Bíblia e da tradição das civilizações semitas. Na Bíblia está ligada ao ramo genealógico que descendendo de Noé, conduziu à apostasia, à rebeldia contra Deus, sendo, segundo a Bíblia, a causa dos homens se terem afastado de Deus.

Como rainha da Assíria, é atribuída a construção dos célebres jardins suspensos de Babilónia.

Como mulher, foi-lhe atribuído tudo o que os homens desejam fazer, eles próprios, mas consideram pecaminoso nas mulheres. Camões, nos Lusíadas, no episódio da chegada ao palácio do Samorim, escreve dela:

Mui grande multidão da assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
Duma tão bela como incontinente;

A lenda pinta-a como uma mulher determinada, enérgica, independente, liberta das convenções, adorada pelos povos da Mesopotâmia como Deusa. A moral cristã descreve-a como uma mulher devassa. Voltaire escreveu uma peça sobre ela que serviu de tema à ópera Semiramide, de Rossini. Marcos Portugal também escreveu uma ópera Semiramis.

Foi por ser uma das primeiras figuras femininas da história, tão controversa, adorada e odiada, que escolhi o seu nome para este blogue

Publicado por: Joana às novembro 12, 2003 09:23 PM

Ela tem razão, elogiar a coerência de Cunhal é elogiar o imobilismo do Cunhal, e os jornalistas ainda não perceberam isto

Publicado por: Vitapis às novembro 12, 2003 11:31 PM

uma "boa" critica ...descaída pela direita !

Publicado por: zippiz às novembro 13, 2003 01:11 AM

Como pode um criminoso ser saudado num país democrático? Cunhal devia ter sido há muito eliminado? Quantos milhões roubou? Quantos milhares mandou matar? Cunhal praticou crimes hediondos contra a humanidade. Destrui milhares de lares, e como a esquerdalhada comuna, certamente deverá ser pedófilo. Tem aspecto disso.

A Cunhal só se poderá desejar a morte. Seria uma alegria para o Mundo.

Publicado por: Portugal Puro às novembro 13, 2003 10:08 AM


Cara Joana,

Sobre Cunhal e a coerência, escrevi em Outubro de 2002 (numa intervenção no Expresso on-line) o seguinte:

"Quando Cunhal morrer, muitas aves de arribação virão dizer que não concordavam com ele mas que merece admiração pela sua coerência. Será triste verificar que é exactamente a coerência que faz dos homens pobres diabos: o agarrar-se estupidamente a algo e não ter a coragem de ver o que está errado e mudar. Cunhal, se merecer ficar na memória, não será pela coerência mas sim pela parte menos conhecida: a de pensador, escritor e esteta. Talvez que possa vir a ser referenciado em livros de História, mas não passará de um rodapé.

Não é pela coerência que se julgam os homens. É pela sua obra total, independentemente da estupidez que tiveram em teimar em serem coerentes."

Um ano depois, vejo-me coerente na análise que continuo a fazer. Será casao para me assustar? :-)

Publicado por: re-tombola às novembro 13, 2003 12:14 PM

A sua análise estava então correcta, continua correcta e continuará a manter-se como tal.

Falar da coerência de uma figura cristalizada no tempo é um lugar-comum muito utilizado pelos jornalistas e por aqueles a quem escasseia a imaginação para fazer qualquer elogio a Cunhal e se quedam pela ... coerência, sem se dar conta da sua própria incoerência...

Publicado por: Joana às novembro 13, 2003 12:21 PM

E, a talhe de foice, vou transcrever a seguir um texto do Abrupto do Pacheco Pereira, que me parece bastante lúcido sobre esta matéria, quer se esteja ou não totalmente de acordo sobre ele

Publicado por: Joana às novembro 13, 2003 12:23 PM


Mas que exibição de hipocrisia a pretexto das palavras de Cunhal!

O que é que Cunhal diz que não se encontre, na sua substância (a forma é outra coisa), um pouco por todo o lado na esquerda radical? Digam lá, caso a caso, do que é que discordam?

Cunhal : “Na evolução da sociedade, a revolução russa de 1917, sob a direcção de Lénine e do partido dos bolcheviques, fica marcada, em milénios de história, como a primeira e única a estabelecer o poder político das classes anteriormente exploradas e a empreender com êxito a gigantesca tarefa de construir uma sociedade sem exploradores nem explorados.
Com o seu poderio, alcançado pela construção do socialismo, a União Soviética alterou a correlação das forças mundiais, manteve em respeito durante décadas o imperialismo, tornando a competição entre os dois sistemas um elemento dominante na situação mundial.”

Na linguagem marxista deslavada da actualidade, não seria difícil reescrever a mesma frase, com exactamente o mesmo conteúdo, mas tornando-a muito mais aceitável. Em que é que esta análise é diferente da que fazem os trotsquistas do PSR ou os pós-maoístas da UDP? Em que é que é diferente do que escreve o tão saudado Hobsbawm? Retiradas as modernices verbais, o que é que está escrito no Império de Negri senão isto mesmo? Os lamentos com o mundo “unipolar”, que papel póstumo dão à URSS, senão esse de ter “mantido em respeito” o “imperialismo”? Que sentido tem a dualidade “globalização capitalista” versus “globalização popular”, senão manter a competição “entre os dois sistemas” ?

Cunhal: “À acção terrorista de 11 de Setembro, os Estados Unidos responderam fomentando organizações e acções terroristas, desencadeando agressões e guerras que vitimam igualmente milhares de civis. Proclamando serem os campeões da luta contra o terrorismo, os Estados Unidos tornaram-se a principal força do terrorismo mundial.”

Esta então digam lá de que discordam? Tanto quanto eu saiba, manifestações da esquerda em Portugal nunca houve contra Kadafi (pelo contrário, houve quem recebesse dinheiro dele), contra a dinastia norte-coreana, contra Cuba, contra o Hamas, contra Saddam. Só me recorda haver contra os EUA e com cartazes a dizer “Bush assasino e terrorista”. O que é que Cunhal diz que os escandaliza tanto?

Publicado por: A HIPOCRISIA FACE A CUNHAL - 1 às novembro 13, 2003 12:25 PM

Cunhal: “Os trabalhadores, os povos e as nações não podem aceitar que tal ofensiva global seja irreversível. E, se assim é, importa considerar se há e, havendo, quais são as forças capazes de impedir que o imperialismo alcance o seu supremo objectivo.

A nosso ver, são fundamentalmente:

Primeiro: Os países nos quais os comunistas no poder (China, Cuba, Vietname, Laos, Coreia do Norte) insistem em que o seu objectivo é a construção de uma sociedade socialista. Apesar de ser por caminhos diferenciados, complexos e sujeitos a extremas dificuldades, é essencial para a humanidade que alcancem com êxito tal objectivo."

Aqui está a principal diferença face a Cunhal: já ninguém acredita que haja um “campo socialista”, e muito menos com estes parceiros. Mas já quanto a Cuba …

Cunhal: “Segundo: os movimentos e organizações sindicais de classe, lutando corajosamente em defesa dos interesses e direitos dos trabalhadores.

Terceiro: partidos comunistas e outros partidos revolucionários, firmes, corajosos e confiantes.

Quarto: movimentos patrióticos, com as mais variadas composições políticas, actuando em defesa dos interesses nacionais e da independência nacional.

Quinto: movimentos pacifistas, ecologistas e outros movimentos progressistas de massas.

É no conjunto destas forças que pode residir e que reside a esperança de impedir a vitória final da ofensiva do capitalismo visando impor em todo o mundo o seu domínio universal e final. "

Nestes últimos casos, qual é também o escândalo? Nas manifestações contra a globalização não está de braço dado toda a parafernália de movimentos que Cunhal enuncia?

Cunhal incomoda-os porque a forma, a linguagem e o estilo, fazem parte de um passado de que ninguém quer ser herdeiro. Cunhal lembra o movimento comunista internacional. Lembram-se? Existiu, não existiu? Mas tudo o resto, o conteúdo, a substância, lê-se todos os dias um pouco por todo o lado.

Publicado por: A HIPOCRISIA FACE A CUNHAL - 2 às novembro 13, 2003 12:27 PM

Está excelente. Uma visão equilibrada, sem ser de "direita" como alguém escreveu, sobre o marxismo e o Cunhal

Publicado por: GPinto às novembro 13, 2003 09:44 PM

Sem ser de direita??!!! Esta tem muita graça.

Publicado por: Não me façam rir às novembro 17, 2003 08:50 AM

Epitáfio para Álvaro Cunhal:

Aqui jaz um homem
que nasceu no Século XX,
morreu no Século XXI
e viveu no Século XIX.
________________________________________

A última parte do epitáfio também pode ser:
...
mas só entendeu o Século XIX.

:-*)

Publicado por: Paulo Pedroso às novembro 19, 2003 11:08 AM

"morreu no Século XXI"?

Não se deve tomar nada como certo, Paulo Pedroso!

Publicado por: Joana às novembro 23, 2003 03:07 PM

Posso chamar incoerente a quem tem uma ideia agora, muda de ideia daqui a bocado por conveniencia , volta a ter a ideia anterior por interesse , tem outra amanha por conveniencia ou por nao ter convicções.
Não chamo de incoerente a quem muda de ideias porque anda em frente percorrendo o mundo das ideias, porque esta vivo.
Chamar coerencia a quem nao muda de ideias para nao ser incoerente isso é que é uma verdadeira incoerencia de quem não quer aceitar a verdade e diz que quer a Verdade. Porque a Verdade essa não existe escondida em nenhum pote. É apenas um caminho a percorrer.
Por mim apenas sou coerente com a descoberta da Verdade que é não de ficar parado, pensando que se encontrou a Verdade.Porque pensar que se tem a Verdade isso é que é uma redunda mentira.Ninguém tem a Verdade nem ninguém a terá.Só os ditadores esses é que têm a sua que querem custe o que custar impor ao mundo.

Publicado por: jorge m às novembro 26, 2003 12:02 PM

Cunhal é uma múmia que já só fala por interposta pessoa

Publicado por: Rave às dezembro 6, 2003 11:25 PM

tanto ódio a um estalinista destilado por gente tão odiosa como ele

Publicado por: archinov às abril 20, 2004 10:42 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:31 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:31 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:31 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:31 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:31 PM

O Cunhal sabe mais a dormir que tu acordada

Publicado por: z às junho 17, 2004 03:32 PM

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