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novembro 09, 2003
Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 3º Acto
A Lei do mais forte
A actualidade de Tucídides na época que atravessamos vê-se, por exemplo e a dada trecho, quando põe na boca de um ateniense que fazia um ultimato a um estado minúsculo, que estava recalcitrante em o aceitar, por pensar que tinha o Direito das Gentes pelo seu lado, o seguinte conceito:
“Sabeis tão bem quanto nós que o direito, em todo o mundo, só existe entre iguais em poder, ao passo que os fortes fazem o que querem e os fracos o sofrem”
Eis o relato de Tucídides:
No décimo-sexto ano da guerra do Peloponeso, Atenas, a cidade que sob o governo de Péricles, entretanto falecido durante a peste que assolara Atenas, se tornara a 'escola viva da Grécia', tomou as armas contra uma colónia espartana, a minúscula ilha de Melos, até então neutra na guerra, que se recusava a submeter a seu domínio. Antes de a atacar, os Atenienses enviaram uma embaixada para entabular negociações. Os embaixadores atenienses disseram o seguinte:
"Estamos agora aqui e vô-lo demonstraremos, a fim de consolidar o nosso império e apresentaremos propostas capazes de salvar a vossa cidade, pois não queremos estender o nosso domínio sobre vós sem correr riscos e, ao mesmo tempo, salvar-vos da ruína, para o bem de ambas as partes".
Os representantes de Melos responderam: "E como poderemos ter o mesmo interesse, nós tornando-nos escravos e vós, sendo patrões?"
Atenienses: "Enquanto vós tereis interesse em submeter-vos antes de sofrer os mais graves males e nós teremos o nosso ganho não vos destruindo completamente".
Melienses: "De modo que não aceitareis que nós fôssemos, em boa paz, amigos em vez de inimigos, conservando intacta a nossa neutralidade?"
Atenienses: Não, porque nos prejudica mais a vossa amizade do que a hostilidade aberta: de facto, aquela, aos olhos de nossos súditos, seria prova manifesta de fraqueza, enquanto o vosso ódio seria testemunho da nossa potência, e não se poderá dizer que vós, ilhéus e menos poderosos do que outros, resististes vitoriosamente aos senhores do mar".
Melienses: Também nós (e podeis acreditá-lo) consideramos muito difícil apoiar-nos em vossa potência e contra a sorte, se não for igualmente favorável para ambos. Contudo, temos firme confiança em que, no que respeita a fortuna que provém dos deuses, não devemos levar a pior, pois, fiéis à lei divina, insurgimos em armas contra a injusta opressão".
Atenienses: "Se for pela benevolência dos deuses, nem sequer nós temos medo de ser por eles abandonados. Os deuses, de facto, segundo o conceito que deles temos, e os homens, como se vê claramente, tendem sempre, por necessidade de natureza, a dominar onde quer que se prevaleça pela força. Esta lei não fomos nós que a instituímos e nem fomos os primeiros a aplicá-la; assim, da forma como a recebemos e da forma como a transmitiremos ao futuro e para sempre, nós nos servimos dela, convencidos que também vós, como os outros, se tivésseis a nossa potência, o faríeis".
Em face deste diálogo de surdos, a delegação ateniense regressou às suas bases, os estrategas organizaram o dispositivo de cerco e de ataque e após meses de uma resistência desesperada, mas inútil, os melienses renderam-se sem condições: os adultos foram passados pelas armas e as mulheres e as crianças vendidas como escravas.
Ler este texto faz-nos vir à memória muitos comportamentos de dirigentes políticos mundiais no último século e, com maior actualidade, nos últimos anos.
A ideia expressa por Hitler que aos vitoriosos ninguém pede explicações acerca das mentiras sobre as quais se basearam para desencadear o conflito, é uma transposição de descrições de Tucídides levadas à perversidade extrema. Estaline e outros líderes totalitários foram também discípulos dedicados daqueles conceitos.
A administração Bush, na forma como dirimiu a questão do Iraque, seguiu o exemplo dos atenienses em Melos. Saddam, por sua vez, havia praticado aquela máxima com todos os que eram mais fracos que ele.
Pode achar-se estranho que Tucídides, ateniense de gema, escrevesse com aquela crueza. Todavia fê-lo, quer por ele ser escravo da verdade, quer porque, para além de estar ressentido pelo exílio a que fora votado, era então favorável ao Partido Aristocrático (contrário à guerra), enquanto que em Atenas e nos seus aliados, a política era dominada pelos democráticos. Ou fê-lo por achar que o Direito das Gentes era aquilo mesmo e não havia nada de imoral naquela postura.
É difícil descortinar as razões íntimas de Tucídides, nem isso parece relevante para o efeito. O que é importante é o que ele escreveu e a descrição que fez.
Publicado por Joana às novembro 9, 2003 09:59 PM
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Comentários
"A ideia expressa por Hitler que aos vitoriosos ninguém pede explicações acerca das mentiras sobre as quais se basearam para desencadear o conflito, é uma transposição de descrições de Tucídides levadas à perversidade extrema. Estaline e outros líderes totalitários foram também discípulos dedicados daqueles conceitos."
Parece-me que essa ideia é praticada muito mais generalizadamente. Os vitoriosos da guerra em que Hitler caiu, instituiram a culpabilidade dos vencidos, e pediram-lhes explicações; mas a eles vitoriosos ninguém lhes pediu explicações ...
A vitória tudo santifica, dizia o grande Frederico; aquilo que nos vencidos é crime de guerra nos vencedores é acto de heroísmo ...
Digo eu, não sei; mas aqui o Manuel Azinhal é provinciano e de poucas letras, deve estar a ver mal a coisa.
Publicado por: manuelazinhal às novembro 7, 2003 10:17 PM
Como exclamou Brenus, lançando a sua espada para a balança onde se pesava o tributo que os invasores gauleses impuseram a Roma:
Vae Victis!
Publicado por: Joana às novembro 7, 2003 10:30 PM
Demasiado intelectual. Para mim e para o Bush
Publicado por: anonimo às novembro 18, 2003 10:50 PM
Demasiado intelectual. Para mim e para o Bush
Publicado por: anonimo às novembro 18, 2003 10:50 PM
Estes textos do Tucidides foram para mim uma revelação. Não apenas porque era pouco conhecido, mas porque apresenta muito actualidade. Ou então é a Joana que o actualizou!
Publicado por: Bsotto às dezembro 9, 2003 12:20 AM
Estes textos do Tucidides foram para mim uma revelação. Não apenas porque era pouco conhecido, mas porque apresenta muito actualidade. Ou então é a Joana que o actualizou!
Publicado por: Bsotto às dezembro 9, 2003 12:20 AM
Existem pessoas extremamente capazes... E você é uma dessas pessoas, eu, por outro lado, entro na definição das apenas capazes assim como a massa das pessoas.
Só me resta viver com a esperança de que você possui uma idade muito avançada...
De onde vem tanto conhecimento?! - Como eu, que passei minha vida querendo ser extremamente capaz, não consigo escrever textos assim?!
- Você é incrivel, minha cara Joana, até posso escrever textos memoráveis... Mas você! você escreve uma gama de textos em curto espaço de tempo! Incrível...
Ah! sim... Encontrei seu weblogger ao fazer uma busca por: Hitler e Peloponeso.
Meu professor estava falando sobre Hitler, e do nada lembrei de peloponeso... fiquei com isso na cabeça e ao buscar... encontrei seu Incrível baú de idéias com esta gama de textos.
Espero um dia ser extremamente capaz...
Publicado por: Matheus Pasin às setembro 5, 2004 11:24 PM
Mas você escreve muitissimo bem...
E obrigada pelas palavras
Publicado por: Joana às setembro 6, 2004 08:26 AM
Prezada Joana,
Parabéns pelos textos e relações. A essência da interpretação é isso, criar relações entre idéias. Sou do Brasil (vc é de Portugal?), estou terminando meu curso de Direito. Pesquiso direitos da comunicação e ciência política. Estou montando um artigo sobre a cobretura do 11 de setembro pela CNN e a Folha de São Paulo, o jornal mais lido do Brasil. É um alerta para a imprecisão e os perigos das coberturas "em tempo real" do jornalismo. Buscava Tucídides, para reafirmar a frase "História é documento" e encontrei vc. Será que eu poderia usar aquela citação sobre a aceitação das primeiras informações como verdade? É perfeita. De que livro a tirou? Em troca lhe ofereço uma citação de Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, em seu conto "O Espelho", do livro "Pequenas Histórias". Fitando por horas um espelho, em um experimento, "Soube-o: os olhos da gente não têm fim (...) O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me esculpe; mas o senhor me compreende". Em suma, por que o que vemos temos como verdade? Nossa visão não vê o Mundo como ele é...
Obrigado!
Publicado por: Vitor às maio 17, 2005 03:13 AM
Vítor: Claro que pode usar o que entender. E acertou, sou de Portugal.
Obrigada igualmente pelo interesse que demonstrou.
Publicado por: Joana às maio 17, 2005 09:32 AM