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novembro 22, 2003

As Vacas Sagradas

A nossa agricultura está estagnada. A nossa pecuária vai sobrevivendo precariamente. Mas há uma espécie que tem proliferado de forma inusitada no nosso país: a espécie das Vacas Sagradas.

Contrariamente ao humilde e dessacralizado gado bovino, que rumina pelos campos, as Vacas Sagradas são uma espécie urbana cuja manjedoura é a comunicação social que a alimenta a opíparas rações de artigos de opinião, entrevistas, declarações, proclamações, elegias, ditirambos, odes, soluços, etc., etc..

Enquanto que nas outras espécies, o Criador providenciou que o acto de geração fosse acompanhado de um intenso prazer, para incentivar a procriação, as Vacas Sagradas geram-se num acto de desprazer. Uma crítica, uma insistência na necessidade de melhoria do desempenho, em suma, qualquer pretensão de melhorar, mudar qualquer coisa, expressa publicamente, que cause desprazer num dado segmento social, torna-o uma Vaca Sagrada.

Se um ministro refere que os bombeiros não têm formação adequada para combater os incêndios florestais, os bombeiros tornam-se, por geração imediata num acto de desprazer, Vacas Sagradas, mesmo que estudos de consultores estrangeiros venham confirmar as palavras do ministro. As Vacas Sagradas geram-se apenas com sémen nacional.

O ICN, que alberga as mais sábias incompetências em matéria de conservação da natureza, sábias porque leram os livros e revistas de outras sábias incompetências, incompetentes, porque só conhecem a natureza que vem naqueles livros, tornou-se uma Vaca Sagrada logo que se falou na possibilidade das suas (in)competências transitarem para outro ministério.

Cada vez que se fala em reformar a administração pública, em estabelecer procedimentos para melhorar o seu desempenho, a administração pública como um todo, ou o segmento em causa, torna-se imediatamente uma Vaca Sagrada.

Às vezes ocorrem conflitos entre Vacas Sagradas. A justiça e a magistratura constituíam Vacas Sagradas. Mas também as virtudes de Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso eram Vacas Sagradas para os próprios e para os seus apoiantes mais dilectos. O processo da Casa Pia tem feito com que estas Vacas Sagradas se tentem dessacralizar mutuamente. É uma refrega de resultados ainda imprevisíveis.

O que surpreende mais na procriação desta espécie é que, historicamente, décadas sucessivas, era a esquerda que fazia o papel de iconoclasta e a direita que gerava e apascentava as Vacas Sagradas. Porém, na actualidade, nas últimas décadas, a principal e única geradora de Vacas Sagradas é a esquerda, a esquerda alegadamente “radical”. A esquerda passou da iconoclasia à iconolatria. A esquerda iconólatra apenas se mantém esquerda no sentido geométrico do termo. Politicamente tornou-se conservadora. Como reconhecia, há dias, o Barnabé, “a esquerda nem sempre consegue … abandonar a sua arqueologia”. Portanto, a própria esquerda, a esquerda que existe presentemente, reconhece que está em risco de se tornar numa peça do museu das ideologias.

Actualmente a Vaca Sagrada de tetas mais úberes que retouça pelos prados da comunicação social, é o inefável Boaventura Sousa Santos, cujas regurgitações fazem as delícias dos adoradores desta espécie.

Sob o ruminar desta ubérrima Vaca Sagrada têm proliferado vacas menos evidentes mas que se sacralizam imediatamente na primeira oportunidade. São as milhares de organizações constituídas por “democratas participativos”, que se afadigam e desdobram (eles são em menor número que as suas organizações) na manutenção e visibilidade pública dessas inúmeras organizações.

A sacralização destas vacas tem um ritual próprio. Por postulado que teorizaram, elas protagonizam a participação dos cidadãos na vida pública. São elas próprias que postularam para si a representação dos 99,99% da população que as desconhecem mas que, pelos postulados dessa teoria revelada, não podem ser representados por aqueles em quem votaram, pois enganam-se sempre ao votarem. Os únicos que estão certos são, por definição, os “democratas participativos”.

Também nestes casos, qualquer dúvida que se emita sobre a representatividade destas organizações, sobre a consistência das afirmações que produzem, sobre o porquê da perenidade das suas chefias, sobre a inexistência de democracia interna, produz um acto de desprazer tão intensamente repulsivo, que torna essas organizações, imediatamente, em Vacas Sagradas.

Na Índia, as vacas sagradas quando se deitam nas rodovias ou nas ferrovias, impedem o tráfego. As Vacas Sagradas portuguesas impedem o progresso. Não têm a visibilidade ridícula de uma vaca indiana espojada nos carris ferroviários, mas têm o insustentável peso da “arqueologia” ideológica.

Publicado por Joana às novembro 22, 2003 09:00 PM

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Comentários


Dum tacet insipiens, sapiens tantisper hebetur

Publicado por: re-tombola às novembro 23, 2003 02:31 AM

JOANA II OU JOÃO II (tanto faz!)

Não me tinha apercebido que aqui na nossa santa terrinha havia tanta "Vaquinha" dessa espécie.

Pensava que era lá na terra do Pandita que nos surripiou Goa,Damão e Diu.

Nesse caso,corre-se o risco de toda a espécie feminina, que debita opiniões na comunicação social, ser apelidada de "Vaquinha" nada "Sagrada".

E como há "tugas" que gostam do vernáculo,logo surgirão com a designação de "Vacalhona Pérfida" e outros "elogios".

E os masculinos,que nome lhes dá?

BOIS ou TOUROS?

Publicado por: ZEUS8441 às novembro 23, 2003 10:40 AM


Dum tacent, clamant

aut

Tacere oportet, aut silentio potiora loqui

Publicado por: Joana às novembro 23, 2003 10:48 AM

De facto Portugal deve ser um dos maiores criadores de vacas sagradas.

Publicado por: Humberto às novembro 23, 2003 04:32 PM

Sempre em forma, Joana!

Publicado por: Viegas às novembro 23, 2003 09:46 PM

Argúcia. Imagens estimulantes e muita irreverência.
O costume. Está óptimo

Publicado por: L M às novembro 23, 2003 11:31 PM

Pairava a grande dúvida sobre o que é a Esquerda nos dias que correm. Debates sobre debates não chegaram a nenhuma conclusão. Milhares de artigos e ensaios perderam-se em hipóteses sem nexo. Mas graças a Deus que existe a Joana para nos iluminar e dizer o que é a Esquerda. A Esquerda é o Barnabé!
Obrigado ó excelsa pensadora.

Publicado por: Agradecido às novembro 24, 2003 08:27 AM

Eu não pretendi, obviamente, escrever que o Barnabé era "a" esquerda, mas sim de esquerda.

Haverá muita outra esquerda que não terá aquelas dúvidas. Que continua a ter respostas para tudo, sempre as mesmas e sempre as adequadas.

Publicado por: Joana às novembro 24, 2003 09:14 AM

Donde se conclui que a Joana só conhece duas esquerdas: o Barnabé e a outra.
A chatice é que esta coisa da esquerda não é assim tão linear.

Publicado por: Agradecido às novembro 24, 2003 01:04 PM

Isto de mexer com vacas sagradas tem os seus quês. É uma blasfémia.

Publicado por: Viegas às novembro 24, 2003 04:13 PM

Agradecido:
Você continua com uma leitura demasiado apressada. Eu escrevi:
"Haverá muita outra esquerda" ... além do Barnabé. Portanto não eram apenas 2, nem 3, nem ...etc., esquerdas. Eram ... muitas!

Publicado por: Joana às novembro 24, 2003 10:19 PM

Eu bem tinha avisado que falar de vacas sagradas traz mau olhado

Publicado por: Viegas às novembro 24, 2003 10:39 PM

e que seria da direita se não houvesse vaca sagradas à esquerda?

e o que faria as delicias da esquerda se não existissem vacas sagradas como o professor doutor mestre marcelo rebelo sousa e intelectuais como pacheco pereira que já foram sagrados à esquerda ?

Publicado por: zippiz às novembro 25, 2003 12:05 AM

Até que enfim que se abandonaram as filosofias e se passou às vacas!

Publicado por: anonimo às novembro 25, 2003 08:51 AM

Até que enfim que se abandonaram as filosofias e se passou às vacas!

Publicado por: anonimo às novembro 25, 2003 08:52 AM

Até que enfim que se abandonaram as filosofias e se passou às vacas!

Publicado por: anonimo às novembro 25, 2003 08:52 AM

JOANA II OU PRINCIPE PERFEITO

Achou que fui longe demais contra o energúmeno que a(o) tem insultado?

Limpou o meu comentário!!!!

Na próxima vez serei mais discreto na "virulência" .

Publicado por: ZEUS8441 às novembro 27, 2003 01:06 PM

O mais engraçado é que quando a direita (e a esquerda também) falam em "crise de valores", estão a manifestar a sua profunda saudade pelas vacas sagradas da direita.

Publicado por: Zé Luiz às novembro 28, 2003 09:58 AM

Zeus:
Eu não limpei comentário nenhum.
O que fiz, relativamente ao meu "energúmeno" foi apagar 99% das obscenidades em cada comentário e deixar 1% ( o resto era repetição).
O webmaster da Weblog é que, numa noite de insonia, resolveu apagar tudo. Provavelmente também apagou o seu.
Depois enviou-me um mail, todo prazenteiro, a dizer-me que tinha apagado alguns comentários obscenos. Provavelmente o seu foi na "enxurrada"!

Garanto-lhe que não tive nada a ver com isso!

Publicado por: Joana às novembro 28, 2003 02:05 PM

Zé Luiz:
Você é capaz de estar cheio de razão!

Publicado por: Joana às novembro 28, 2003 02:06 PM

As sílabas OM ou AUM, simbolizam a essência suprema, a fonte, o Ser crer em Brâmane, uma religião politeísta com base no monoteísmo, assim poderíamos considerar o Budismo. Também que ensina a tolerância e incentiva a bondade para com os animais.

Joana, tenha dó das vacas que preambulam pelo país. Lembre-se que se uma vaca entrasse no quintal dum hindu ele teria uma dificuldade terrível em a expulsar. Não só pelo seu tamanho descomunal mas também porque as vacas são sagradas, até têm almas. Almas que partiram !

Há outras vacas sagradas que esgotam os recursos humanos, a essência suprema da livre vontade, a delas. Mas a Joana não se está a referir a elas ? Pois não ?
Deixe-as vaguear pelo país até vir a mulher da fava rica. E no ínterim aprimore as suas crenças religiosas. Sugiro-lhe que comece por Belém...

Publicado por: Pedro Penedo às novembro 28, 2003 02:13 PM

Belém? Refere-se à Pitonisa de Belém? É o meu enlevo!

Publicado por: Joana às novembro 28, 2003 08:09 PM

A Pitonisa de Belém uma vaca? Sagrada?

Publicado por: GPinto às novembro 29, 2003 11:25 AM

Por esta definição o Sampaio também é uma vaca sagrada. Ele diz sim, estão todos de acordo. Diz não a mesma coisa.

Publicado por: Humberto às dezembro 5, 2003 01:01 AM

Publicado por: Tratamiento de agua às novembro 28, 2004 08:57 PM

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