janeiro 17, 2006

Mudança de Testemunho

No próximo domingo será eleito um novo presidente, a crer em todas as sondagens feitas até à data. Mas se não for eleito à primeira volta, alguém há-de ser eleito à segunda. Em qualquer dos casos, nas próximas semanas teremos um novo presidente.
A década de Sampaio foi o pior período da história democrática portuguesa, desde a Regeneração, se exceptuarmos o período esquizofrénico da 1ª República. Assistiu impávido à malbaratação dos dinheiros públicos durante o consulado de Guterres, que aproveitou o desafogo pontual fruto da adesão ao euro para criar artificialmente emprego, empolando os efectivos do funcionalismo público em 20%, e aumentando os vencimentos do sector público muito acima da produtividade; assistiu impávido à construção das SCUT’s que só começariam a ser pagas pelo erário público muitos anos depois e durante décadas; assistiu impávido às guerrilhas dos boys guterristas; assistiu impávido à ruína das contas públicas portuguesas. Durante o tempo do pior governo português, desde os tempos da Rainha D. Maria, limitou-se a proferir banalidades ou frases ambíguas, mais próprias da Pitonisa de Delfos que de um PR.

Sampaio assistiu impávido à ruína do país, ruína evidente pelas contas de então, mas mais evidente pelos compromissos assumidos a serem pagos pelas gerações seguintes. E Sampaio tem mais de duzentos assessores, muitos deles economistas. Só começou a importar-se com a Economia quando, com o governo de Durão Barroso, em vez de apoiar as tentativas de redução do défice, lançou o slogan de que «Há vida para além do défice» apoiando objectivamente os interesses corporativos que se encarniçavam contra as medidas de contenção. Só no tempo de Sócrates compreendeu que a vida que havia para além do défice era a vida da miséria e da ruína. Não se percebe como “eminentes” economistas, Teodora Cardoso e outros, lhe apadrinharam as banalidades e as imprudências que debitou sobre a economia portuguesa. Ou percebe-se, se atentarmos que há vida, e boa, para além da ética profissional.

A cena do governo de Santana Lopes é digna de uma república das bananas. Se Sampaio duvidava da capacidade de Santana Lopes, não o deveria ter indigitado, e se a coligação existente não encontrasse alternativa, dissolver então a AR. Em vez disso arrastou a indigitação, sujeitando-a a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política.

Ou seja, Sampaio criou um clima de instabilidade política permanente que culminou na sua decisão de dissolução de um parlamento com uma maioria que apoiava o governo em exercício, abrindo um perigoso precedente que pouco ou nada contribui para a estabilidade política do país. E foi uma total insensatez ter constrangido um governo demissionário, que não tinha quaisquer hipóteses de ganhar as eleições, a fazer o OE 2005 que nunca poderia ser mais que um documento para iludir o país na expectativa, defraudada, de dividendos eleitorais.

Sampaio deixa o cargo com o país desmobilizado e desorientado face a uma crise generalizada cuja solução não consegue descortinar. Sampaio foi um presidente fraco, sem prestígio, sem autoridade, banal. Como qualquer político que não tenha responsabilidades governativas e diga banalidades, teve sempre elevados índices de popularidades. Sampaio não deixa saudades, mas os portugueses tiveram o PR que mereceram.

E a saga continua. Os portugueses esperam um D. Sebastião que os tire do atoleiro sem que tal cause transtorno aos seus interesses ilusórios. Os portugueses não pretendem fazer nada nem pelo país, nem por eles próprios. Pretendem a redenção por um milagre. Outros pretendem um PR que diga banalidades, simpático, mas sem ideias, tirando algumas velharias tiradas do baú do politicamente correcto. Por isso Cavaco e Alegre vão à frente nas sondagens. Os candidatos que representam partidos estão na cauda. Um país descrente da política, desmotivado pela coisa pública, foge dos partidos a sete pés.

Talvez Cavaco tenha ideias sobre o que há a fazer. Simplesmente não cai na esparrela de as dizer, porque o eleitorado gosta de ser embalado com ilusões. Tem a experiência recente de Sócrates que foi eleito, mentindo descaradamente, e continua a mentir sempre que julga necessário.

Não se sabe se Alegre tem ideias, aliás não se lhe conhece qualquer ideia para o futuro do país. Em Setembro de 2004 era o líder da ala esquerdista do PS. Agora aposta na simpatia, na poesia e nas banalidades políticas e patrióticas. Um percurso demasiado largo para se lhe reconhecer qualquer consistência.

Sampaio foi o símbolo de uma década de declínio nacional. Mas os portugueses não aprenderam a lição. Quem aprendeu a lição foram os candidatos que tentam servir ao eleitorado aquilo que ele mais aprecia: ilusões … o milagre das rosas … a salvação do país numa manhã de nevoeiro.

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novembro 05, 2005

Turismo homeless

Ou turismo para sem abrigo endinheirados

“Jorge Sampaio aconselhou hoje os autarcas a preocuparem-se mais com as receitas geradas nos municípios valorizando o turismo em vez da especulação imobiliária
Portanto, os autarcas devem incentivar a vinda de turistas, mas repudiar a “especulação imobiliária” ou seja, a construção de imóveis. Os turistas terão assim a oportunidade única de apreciar as paisagens rurais e urbanas em permanência, dia e noite. Usufruirão as calmas noites lusitanas nos bancos dos jardins, amodorrados pelo murmúrio da folhagem, debaixo das pontes, embalados pelo sussurrar chilreante das águas, ou nas areias da praia, corpos percorridos pela aragem cálida e orgástica da maresia, enquanto mais distante, o marulhar acariciador das ondas se desvanece lentamente. Uma delícia.

Publicado por Joana às 10:16 PM | Comentários (88) | TrackBack

outubro 20, 2005

Banalidade e Destempero

Ou de Salamanca a Bruxelas passando pelo nosso sítio

O actual PR vai deixar uma herança trágica ao país. A sua década presidencial é o período do afundamento do país e do regime. E a sua marca é a banalização do discurso, a inconsequência das acções e o pesado impacto das omissões. Provavelmente satisfazia-o as sondagens que lhe davam sempre mais popularidade que a outros políticos. Foi um erro: os portugueses premeiam quem diz coisas de que gostam, mas que não tem qualquer responsabilidade de as pôr em prática, nem tem que tomar decisões. A pusilanimidade e a não-decisão são premiadas no nosso país: quer entre os políticos, quer entre os gestores públicos. São aqueles que não podem eximir-se a tomar decisões que são escrutinados pela comunicação e pela opinião pública.

Constitui um caso evidente de desconcerto e falta de percepção do que se passa na própria casa, dar azo a que Chavez (cujo regime dificilmente se pode vangloriar de ser um exemplo de Estado de direito) desse lições a Portugal sobre o que é um Estado de direito e deixasse subentendido que, em matéria de morosidade e eficiência, a justiça portuguesa tem muito que melhorar até se igualar à do 3º Mundo.

Ontem, em Bruxelas, acusou as instituições da UE de não serem capazes de ultrapassarem a “actual crise de confiança grave e insidiosa” que se instalou na Europa. O Presidente da República Portuguesa preside ao país onde a “actual crise de confiança grave e insidiosa” é seguramente a mais dramática. Durante a sua década, a justiça portuguesa afundou-se na ineficiência e perdeu completamente o respeito da sociedade; durante a sua década o ensino, que já não estava bem, afundou-se no desleixo, no laxismo e na má qualidade; durante a sua década o SNS continuou a perder qualidade e afundou-se num consumismo que o tornou um sorvedouro de recursos nacionais sem qualquer contrapartida. Durante a sua década o país ficou num terrível impasse financeiro e económico, de que levará muitos anos a sair, e isto se houver vontade colectiva para nos vermos livres de todo o lastro de irresponsabilidade, laxismo, privilégios “adquiridos” e disparates de todos os géneros decididos e conseguidos durante a última década.

Como é que o Presidente de uma república, no estado em que a nossa está, tem o desplante de produzir as declarações ontem proferidas em Bruxelas?

Simples. Basta atentar no facto de que durante 6 anos o PR assistiu impávido ao esbanjar da nossa riqueza e ao acumular de uma herança pesadamente negativa que teria que ser paga pelas gerações seguintes. É certo que a população vivia eufórica, com a queda abissal das taxas de juro e com as oportunidades imensas de consumo sustentadas por um endividamento acelerado. É certo que as SCUT’s eram um êxito – traziam receitas enormes para o erário público (IVA, IRC e IRS adicionais durante a construção) e não custavam nada a ninguém. O país realizou a Expo’98 e preparou-se para o Euro 2004. Só o céu era o limite. E no centro deste espectáculo, as arengas anestesiantes de Guterres.

A generalidade da população não tinha dados para se aperceber do abismo para onde Portugal deslizava, mas o PR tinha economistas a assessorá-lo, sabia-se o valor do défice ajustado pelo ciclo económico, e sabia-se que Portugal estava gastar demais e a acumular demasiadas responsabilidades financeiras para as gerações vindouras. E perante este caminhar para o abismo, nem uma palavra, nem um chamamento de atenção … nada … apenas banalidades.

Com o governo que se seguiu à demissão de Guterres, o PR resolveu ter um papel pontualmente interventor, no meio das banalidades usuais – produziu o estribilho «há vida para além do défice». Foi um mote para ser glosado por todos aqueles que queriam continuar a gastar à tripa forra, e um indicador incontornável que o PR (e provavelmente os seus assessores) não sabia, não queria saber, ou fingia que não sabia, o que se passava no país e o estado em que ele estava. Pedia investimento na educação, quando se sabia que Portugal tinha um dos mais caros sistemas de ensino da Europa e seguramente o pior. Procurava popularidade junto das corporações dos interesses instalados, em vez de zelar pelo bem do país.

A questão do Governo de Santana Lopes foi um episódio lamentável. Demorou tempo demais a decidir, criou todas as condições para a instabilidade governativa e levou-o à demissão sob pretextos grotescos: 1) “a composição do parlamento já não corresponde à vontade do eleitorado” (razão que levaria à dissolução de todos os governos europeus após as eleições europeias) e 2) «uma sucessão de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo e capacidade de enfrentar a crise que o país vive», uma afirmação paradoxal para um PR que tutelou os episódios ridículos em que o governo de Guterres esteve envolvido, com ministros a saírem e a fazerem declarações insultuosas, convocando mesmo conferências de imprensa para o efeito. A sorte do PR foi o PSL ter revelado uma reduzida estatura política e ter-se deixado enlear ingenuamente naquela óbvia armadilha política.

Durante este governo o PR tem assistido impávido à continuação do afundamento da moralidade política, com a apropriação irrestrita do aparelho de Estado pelo PS e pelos amigos de Sócrates. E o que era branco passou a ser preto. Afinal já «não há vida para além do défice». O que antes eram direitos adquiridos, agora são privilégios corporativos. O que antes eram trapalhadas, agora é … o silêncio. O PR mostrou, para além das banalidades do seu discurso, que não é um presidente de todos os portugueses, apenas um presidente dos interesses do PS. Serviu fielmente Guterres, enquanto este afundava o país, e serve agora Sócrates na tarefa de tentar (esperemos …) apanhar os cacos a que ficou reduzido o país.

E é este Presidente que clama em Bruxelas contra o «crescimento insuficiente da zona euro» e contra o «nível intolerável do desemprego». Será que o PR julga que em Bruxelas se desconhece o que se passou e passa em Portugal? Ou pior, será que o PR desconhece o que se passou aqui, nesta década em que ele foi Presidente? Será que quando diz estas coisas não sente qualquer peso na consciência, nem se insinuam dúvidas no seu cérebro?

Publicado por Joana às 07:55 PM | Comentários (121) | TrackBack

abril 25, 2005

Américo Sampaio

Neste dia triste para os saudosistas do antigo regime, há, desde alguns anos para cá, algumas compensações, algumas identidades que se perpetuam. E a mais nostálgica é, seguramente, o extenso vazio discursivo do actual PR, no estilo que tanto notabilizou o último PR da II República. A referência à «A avó de 95 anos que vestiu o seu melhor vestido para ir votar pela primeira vez na sua vida» é uma das mais comoventes figuras retóricas daquele estilo que alguns recordam saudosos.

Mas todo o seu discurso foi uma peça retórica que relegou La Palisse para um truísta de segundo plano. Constituiu uma completa surpresa saber-se que «há momentos de consenso e dissenso, e que esses momentos são parte da vida política». Até hoje o país estava convencido que quando votava, apenas escolhia entre os logótipos esteticamente mais apelativos. O resto era completamente consensual.

Todavia não constituiu uma novidade exaltante saber-se que «há muito a fazer no Governo e na oposição, nas estruturas do Estado e na economia». Os portugueses já andavam desconfiados disso. Suspeitas pairavam no ar de que porventura houvesse algo a fazer naquelas áreas. O que continuam sem saber é o que é que falta fazer. Falta fazer muito ... mas o quê?

Na área da droga, Sampaio foi decisivo: «o combate exige uma resposta coerente». Está resolvido! Há décadas que a maioria dos governos mundiais tentava encontrar soluções para combater esse flagelo. Afinal é simples e linear: basta «uma resposta coerente».

Sampaio avisou igualmente que é urgente «aprofundar um investimento sério na educação e na ciência». Julgo que o país terá que se regozijar por este pensamento inovador de tratar «a educação e a ciência» como assunto «sério». Muitos de nós estávamos convencidos que «a educação e a ciência» não passavam de uma experimentação lúdica em que os brinquedos eram as nossas crianças e adolescentes.

Mas o PR não fez apenas concorrência a La Palisse e ao seu longínquo antecessor na presidência. Fê-la igualmente ao rifoneiro popular: «não podemos deixar de fazer hoje o que já devia ter sido feito ontem». Esta nova versão de um aforismo multi-secular pecou apenas pelo dia em que foi proferida e que pode causar uma interpretação duvidosa. Os portugueses, quase sem excepção, fizeram hoje, feriado, o que deviam ter feito (e provavelmente fizeram) ontem, domingo, isto é, descansaram. Ou seja, cumpriram os desejos do PR no preciso momento em que ele os formulava. É isto que define um líder político – estar em sintonia com as massas!

E rematou com uma gloriosa tirada, que faria roer de inveja a Pitonisa de Delfos: «não podemos comprometer o futuro, desperdiçando as oportunidades ou não cumprindo as responsabilidades do presente». Oportunidades e responsabilidades são palavras fortes e decisivas. A gramática assegura mesmo que são substantivos, ou seja, têm substância. Comprometer, desperdiçar e cumprir são verbos de reconhecido valimento gramatical. O conjunto sintáctico é que não tem qualquer sentido concretizador.

Em Outubro de 2003, escrevi aqui que «Nos tempos heróicos, a Pitonisa de Delfos, posta em transe pelos vapores telúricos, talvez com a mesma essência básica do suave aroma acanelado dos pastéis de Belém, debitava frases que serviam de referência a políticos, generais, mercadores de azeite, pastores e até a atletas que demandavam os Jogos Olímpicos, psicologicamente carenciados. A sua reputação era célebre. Os meios de comunicação da época asseguram que salvou a Grécia quando, instada por um Temístocles temeroso perante a inumerável hoste persa, o avisou para confiar nas suas muralhas de madeira.

Em Belém também se instalou uma pitonisa que, sobre os grandes (e pequenos) temas da política nacional, emite proposições que nunca são decifráveis em menos de 50 ou 100 interpretações diferentes e contraditórias. É uma pitonisa filosoficamente mais avançada, pois contém em si todos os momentos da dialéctica hegeliana (teses, antíteses, a afirmação e a sua negação) excepto as sínteses.

Felizmente para Temístocles, as difíceis comunicações da época impediram-no de demandar Belém, senão nunca teria havido Salamina e a história teria sido dramaticamente diferente. A trirreme de Temístocles estaria algures no Mediterrâneo, navegando em círculos, com os soldados no convés gritando teorias todas diferentes e contraditórias sobre a rota a traçar e, na coberta, a chusma de remadores, num alarido infernal, agitando perigosamente os remos e discutindo com o homem do tambor sobre o ritmo e direcção das remadas.

No seu último discurso do 25 de Abril, como PR, Sampaio não desmereceu esta gloriosa herança clássica. Muitos têm tentado imitar Aristóteles, Platão, Homero, Heródoto, Tucídides, mas sem o conseguirem. Sampaio foi mais feliz com a Pitonisa.

Sobre este tema ler ainda:
O Manto Habitual da Hipocrisia
Belém pariu um rato
Um de nós mentes ...
e os links indicados neste último post

Publicado por Joana às 11:05 PM | Comentários (28) | TrackBack

janeiro 03, 2005

Haverá vida para além do Pacto?

No editorial de hoje do DN critica-se, embora com a forma velada adequada à deferência devida às vacas sagradas, a sugestão feita pelo PR, ainda que com sua a proverbial ambiguidade, na mensagem de Ano Novo. Outros matutinos discorrem sobre o mesmo alvitre.

O editorialista afirma que há vida para além do pacto. A minha resposta é não. E não de forma liminar. Com o actual espectro político, não há vida para além do pacto. A questão que se coloca é se há condições para esse pacto se concretizar. A questão que se coloca é saber até quando Portugal sobreviverá sem uma revolução completa do seu actual modelo económico e financeiro. A questão que se coloca é saber o que sucederá primeiro: se um pacto de regime, ou se a convulsão e a destruição do actual espectro político.

Na actual conjuntura como é possível haver um pacto de regime quando o PS não reconhece os erros financeiros que cometeu durante o governo de Guterres? Se nem sequer reconhece que as SCUTs foram um erro e, pior que não reconhecer, pretende persistir nesse erro?

Como é possível pactos de regime entre partidos que continuam a utilizar os Resíduos Industriais Perigosos, uma questão puramente técnica, como arma de arremesso político, inviabilizando em cada legislatura o que estava praticamente implementado na legislatura anterior?

Como é possível pactos de regime entre partidos que têm opiniões tão opostas sobre, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde? Embora haja, dentro do PS, opiniões muito minoritárias favoráveis à reforma que estava a ser implementada, porém contestando-a por preferirem boys diferentes (cf. Correia de Campos).

Como é possível estabelecer um pacto de regime sob os auspícios de um PR que viciou as regras do jogo, dissolveu uma AR com uma maioria estável e comportou-se como alguém que estava a fazer um favor partidário?

Como é possível que após dois anos e meio de crispação política, primeiro com o terrorismo parlamentar do PS, no período da sua deriva esquerdista, e depois com a crispação provocada pelas manobras do PR já aqui descritas noutros locais, com as feridas e traumas que tal terá deixado, estabelecer um pacto de regime?

Qualquer tentativa actual de promover um pacto de regime seria olhada com suspeição. Todas as suspeitas são possíveis: Será que o PR tem receio que o PS não consiga uma maioria absoluta e ele seja acusado de desestabilizar o país? Será que querem que o “meu partido” se alie ao “outro partido” para ser responsabilizado pela impopularidade da política do “outro partido”? Será que querem que o “meu partido” se alie ao “outro partido” para este ficar com os louros finais de uma política que ele havia impedido que “meu partido” fizesse enquanto governo?

Para haver um pacto de regime teria que haver uma pacificação na esfera política. Essa pacificação é possível? O PS não tem condições internas para um pacto de regime. O espectro político dentro do PS é demasiado amplo para permitir tal. Sócrates poderia subscrever muitas das reformas que a república necessita. Todavia Sócrates está à direita do espectro político do PS e só foi eleito por ele ser o portador da miragem do aparelho socialista em regressar às sinecuras do poder.

Sócrates não conseguiria resistir, internamente, a uma política reformista. Só conseguiria fazê-lo se comprasse o aparelho com prebendas públicas, como o que Guterres andou a fazer. Mas ao fazê-lo, compraria essas adesões com o empolamento da despesa pública. Seria uma contradição: Sócrates fazer reformas para diminuir a despesa pública e pagar essas reformas com o aumento da despesa pública necessário para subornar a sua clientela partidária. E como reagiria o “outro partido” do pacto?

Portanto, no futuro próximo as pontes estão cortadas entre os dois maiores partidos. Todavia, de uma forma ou de outra, a constituição terá que ser revista de modo a adequá-la ao funcionamento eficiente de uma economia de mercado; o sector público terá que ser emagrecido substancialmente; a justiça e o funcionamento da administração pública profundamente desburocratizados; a cidadania ser entendida como um contrato entre o cidadão e o Estado que o representa e assegura as condições para o exercício eficiente da sua actividade, e não uma relação entre um Estado omnipresente, tutelar, gastador, um Moloch devorador, e um cidadão indefeso e que só sobrevive capazmente enganando esse mesmo Estado.

Assim sendo, fatalmente acabará por haver em Portugal uma maioria suficientemente lata para que tal suceda. Só assim se ultrapassarão os actuais impasses. Como tal poderá vir a suceder é uma previsão que não ouso fazer. Só prevejo que não será num futuro próximo. Nas actuais circunstâncias não existem condições políticas para isso.

Publicado por Joana às 09:56 PM | Comentários (30) | TrackBack

janeiro 02, 2005

O Manto Habitual da Hipocrisia

Sampaio foi sempre, desde os tempos de Presidente da CML, um irresoluto, acoitando essa faceta, que é, em Portugal, virtude promocional entre gestores públicos e muitos líderes políticos, atrás do biombo da ambiguidade e das frases pítias. Por isso mesmo, diversas vezes o cognominei aqui de Pitonisa de Belém, exactamente por sempre pautar as suas afirmações por um estilo redondo, dúbio, susceptível de ser interpretado das mais variadas e contraditórias maneiras, e cada maneira certificada pelos seus exegetas com fundamentação sólida e consistente.

Sampaio transporta em si, em permanência, dois dos três momentos do percurso da Razão de Hegel: a afirmação e a sua negação. Só não consegue nunca a sua conciliação e superação numa síntese. Por isso Sampaio não caminha para a Ideia Absoluta, antes vagueia, errático, sem ideias, nem Razão. Nele não há a "astúcia da Razão". Há a astúcia santimonial.

Durante um lustro, Sampaio assistiu imperturbável à delapidação dos dinheiros públicos, ao acumular de erros económicos e financeiros e, pior que erros, a acções objectivas de transferência de compromissos assumidos, de custos reais, para décadas futuras, malbaratando as “vacas gordas” do ciclo alto com medidas de despesa pró-cíclicas e comprometendo o ciclo baixo que viria depois com a herança acrescida de ter de solver os custos ocorridos, mas não pagos, no ciclo alto.

Sampaio foi cúmplice desta política criminosa de delapidação e penhora do erário público para satisfazer ambições eleitoralistas. Durante essa época promulgou imperturbavelmente todas as medidas que Guterres lhe apresentou e nunca se lhe ouviu nada mais, para além das suas banalidades costumeiras. Mesmo quando Guterres se apercebeu, talvez apenas parcialmente, do impasse em que se encontrava, quando se apercebeu que tinha exaurido o erário público e penhorado o futuro e que, mesmo assim, estava esgotado eleitoralmente, Sampaio, mesmo nessa situação extrema em que Guterres se resolveu demitir, ainda tentou a continuidade de um governo PS. A continuidade do governo daqueles que tinham conduzido Portugal ao abismo.

Por isso quando afirmou que "Para que possa haver mais e melhor crescimento económico não podemos continuar a viver com os défices e a dívida pública que acumulámos nos últimos anos. Infelizmente, o ano de 2004 também ficou aquém do que se esperava", Sampaio ocultou sob o manto habitual da ambiguidade, a nudez crua e forte que os «os défices e a dívida pública que acumulámos nos últimos anos» foram justamente nos anos em que ele promulgou as medidas de Guterres que conduziram a tal.

Sampaio afirmou na sua mensagem de Ano Novo que "A dificuldade da consolidação orçamental não pode justificar que se vão adiando as verdadeiras soluções, recorrendo-se a mecanismos contabilísticos, que podem servir para atenuar momentaneamente a situação mas não resolvem o problema de fundo". Esqueceu-se todavia de acrescentar que ele foi o principal empecilho a essas soluções, quer pelo seu veto, quer pela ameaça latente do veto. Mas não estava só. Tinha a suportá-lo uma Constituição completamente desadequada ao funcionamento de uma economia de mercado.

Ora a experiência mundial mostra que apenas nos países onde a economia de mercado funciona bem, há prosperidade e desenvolvimento. Onde a economia de mercado não funciona adequadamente, por dificuldades institucionais, há a crise, a miséria e o subdesenvolvimento. Onde a economia de mercado não funciona por haver uma economia estatizada, o desenvolvimento que se consegue pelo sacrifício das gerações mobilizadas para essa tarefa, acaba por se revelar ilusório, não sustentável, e resvalar para a estagnação e miséria.

Quando Sampaio declarou que "Tive de enfrentar uma sucessão imprevista de crises governamentais e assegurar, por todos os meios constitucionais, o máximo de estabilidade política e institucional. Fi-lo, tendo em conta o interesse nacional, em nome da necessidade de responder à preocupante situação económica e orçamental, que é estrutural e ameaça condicionar duradouramente o nosso desenvolvimento", referia-se obviamente às crises que ele próprio engendrou e propagou. Foi ele que, depois de apoiar Durão Barroso na candidatura a Presidente da Comissão Europeia, manteve o país suspenso durante várias semanas, para tomar uma medida que é a normal em qualquer país civilizado e com uma democracia estável. Foi ele que esteve quatro meses a meter paus na roda à actuação do governo, empolando ou incentivando, directa ou indirectamente, todas as acções (ou omissões) do governo que pudessem servir de alimento à mesquinhez e à propensão para o boato e mexeriquice nacionais.

Foi ele que, finalmente, tomou a acção inovadora de dissolver a Assembleia da República por, ao que parece, discordar do governo, em vez de demitir este. E escrevi «ao que parece», porque Sampaio também inovou ao dissolver a AR sem explicar o porquê, remetendo para «razões conhecidas por todos».

Sampaio falou em "melhorar regras e metodologias de gestão orçamental, despolitizar questões estritamente técnicas”. Mas quem politizou essas questões “estritamente técnicas”? Foi o partido ao qual Sampaio pretende dar de mão beijada o poder; foi o partido responsável pelo desconchavo das “regras e metodologias de gestão orçamental“ durante os anos de 1995-2002, caucionado por Sampaio.

Sampaio reconheceu a dificuldade de “fazer a consolidação orçamental num contexto de fraco crescimento económico e de rigidez da despesa pública", mas alertou, no entanto, que o uso de mecanismos contabilísticos não resolve o problema de fundo. Mas o que restava aos governos de Durão Barroso e Santana Lopes além dos mecanismos contabilísticos? Pois se as medidas estruturais foram e seriam sistematicamente vetadas? Então o PR algema o governo e depois acusa-o de falta de habilidade manual?

Também não é para ser levada a sério a afirmação de Sampaio do seu apego pela estabilidade e que as próximas eleições reforçarão a legitimidade governativa. O seu alegado apego à estabilidade ficou provado pelo seu comportamento desde que se colocou a hipótese de Durão Barroso ir para Bruxelas. E se os próximos presidentes da república imitarem Sampaio, nunca mais haverá legitimidade, legislaturas completas, estabilidade, ficando as futuras Assembleias da República à mercê de sondagens ou dos humores presidenciais.

Critiquei aqui, por diversas vezes, a inabilidade do governo de Durão Barroso. Apesar dos obstáculos dos vetos presidenciais e de uma Constituição protectora dos interesses corporativos e contrária aos interesses nacionais, Durão Barroso poderia ter feito mais e melhor. Já o mesmo não direi de Santana Lopes. Este não teve quaisquer condições de governação e serviu apenas para preencher o interregno da liderança do PS. Logo que este acabou, o PR tirou o tapete debaixo dos pés de Santana. Com isto não pretendo afirmar que Santana Lopes seria um bom 1º Ministro. Quero apenas escrever que não lhe deram possibilidade de o provar – isso, ou o oposto.

A quase totalidade dos princípios que Sampaio enunciou como boa política, também os tenho defendido aqui. Mas eu tenho-os defendido porque acredito neles e quero vê-los concretizados. Sampaio defende-os, tendo antes torpedeado a sua concretização. É a diferença entre defender algo em que se acredita, ou apregoar frases que despidas de conteúdo real, soam a hipocrisia.

Finalmente Sampaio parece defender um pacto de regime para "os dois grandes objectivos" a atingir: saúde das finanças públicas e a competitividade da economia. Se eu não conhecesse Sampaio, acharia paradoxal ele defender um pacto de regime agora e não o ter feito antes, tendo em vez disso colaborado com o PS na obstrução às medidas estruturais que, bem ou mal alinhavadas, a coligação tentou implementar. Então declarava emocionado que “havia vida para além do orçamento”.

Mas não é paradoxal. Sampaio pretende que, após o eventual triunfo do PS nas eleições de Fevereiro, o PSD seja atrelado ao carro do vencedor para avalizar medidas insuficientes baseadas na retórica e não em acções adequadas e realistas.

Frases como "ultrapassar velhos reflexos que tendem a subordinar o funcionamento do sistema de protecção social a interesses corporativos ou a soluções desactualizadas e sem futuro" ou "É preciso construir um novo contrato social" pois "as mudanças indispensáveis à recuperação da competitividade e da produtividade, essenciais para o crescimento económico, exigem uma forte contratualização política e social", podem ser entusiasticamente ditas por milhares de políticos em centenas de locais diferentes. São suficientemente ambíguas para permitirem depois as leituras mais contraditórias. Servem para tudo.

Sampaio não pretende o pacto de regime para resolver os problemas do país. Aliás, ele está equivocado sobre os problemas do país, pois se não o estivesse teria demitido Guterres ainda durante a 1ª legislatura. Sampaio apenas pretende utilizar a actual fragilidade do PSD, e as dissenções internas deste partido, para o amarrar a medidas insuficientes e inadequadas. Assim, a credibilidade de um eventual próximo governo PS seria preservada por um PSD a servir de permanente bode expiatório.

Ler ainda:
Haverá vida para além do Pacto?

Publicado por Joana às 09:59 PM | Comentários (43) | TrackBack

outubro 07, 2004

Sampaio regressou ao país

O Presidente Sampaio produziu, aproveitando as comemorações da implantação do regime político que lhe permitiu ter o seu actual emprego, afirmações com as quais estou de acordo. Verifico aliás, com bastante surpresa, que nos últimos meses tenho concordado com quase tudo o que o PR diz. Algo se está a passar ...

Há uma coisa que certamente se está a passar. O PR pediu o fim de medidas avulsas e exigiu um projecto claro e consistente para o país. Plenamente de acordo. Mas o PR está há 8 anos investido daquela suprema magistratura. O país conheceu entretanto três Governos. Por lá passaram Guterres e também Barroso ... e agora Santana. Deu posse a muitas dezenas de ministros e outras dezenas foram demitidos. Centenas de leis foram produzidas. E o que diz Sampaio ao actual primeiro-ministro? Que é preciso fazer as reformas estruturais. Por onde terá andado o PR estes 8 anos para apenas agora, irromper pelo proscénio, erguer a fronte, esticar o dedo, elevar a voz e declamar: quero reformas estruturais e nem mais uma medida avulsa! Pois se o PR tem passado estes oito anos a promulgar medidas avulsas. Onde é que tem havido reformas estruturais?

E o que é paradoxal naquele discurso, aqui e agora, é que justamente, aqui e agora, se estão a começar a esboçar reformas estruturais. Não é verdade que tem havido um combate mais efectivo à evasão fiscal? É ... mas o mais paradoxal é que aqueles que durante anos não fizeram nada para combater a evasão fiscal são os que mais elevam a voz agora, exigindo um combate mais efectivo a essa evasão. Há mercados que se liberalizam com fortes custos políticos e sociais (mercado do arrendamento) ou empresariais (mercado da energia). Anuncia-se um corte drástico nos benefícios fiscais. O incremento dos regimes privados de reforma significa um corte da relação exclusiva entre o Estado e a Segurança Social. Há reformas que se estão a implementar no domínio da saúde visando tornar esses serviços mais eficientes e menos perdulários. Etc., etc..

Há muita coisa a acontecer. A catadupa de medidas é tanta que o próprio Santana se baralha e um dia afirma uma coisa e dias depois o seu contrário. A velocidade que se está a imprimir à coisa pública é tal que um dia decide-se executar uma medida e uma semana depois decide-se estudá-la.

A vertigem da coisa feita conduziu ao paradigma que servirá de adágio(*) a este governo: «decidir com fé, realizar com dúvida»

Por exemplo, o fim das SCUT é uma medida de grande impacte orçamental. A rubrica SCUT e as respectivas dotações irão desaparecer dos próximos orçamentos. Não é um alívio? Só falta saber em que rubrica orçamental se irão inscrever as verbas destinadas aos concessionários pelas indemnizações devidas pelas alterações unilaterais dos contratos, principalmente se se tiver em conta a ribaldaria que foram as adjudicações das primeiras SCUT. A menos que seja o próprio Estado a cobrar, através de portagens electrónicas, aos utentes dessas vias. Nessa circunstância apenas terá que pagar a diferença entre essas portagens, que ele irá cobrar com um tráfego muito mais reduzido, e as dotações anuais previstas nos contratos. Uma coisa é segura: mesmo que tenha que despender 80 a 90% dos valores actualmente previstos, esses montantes nunca ficarão inscritos nessa malfadada rubrica SCUT.

Por onde terá andado o nosso presidente?

(*) Honni soit qui mal y pense. Não tem nada, mas mesmo nada, a ver com a cultura musical de qualquer dos citados

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maio 04, 2004

Da Banalidade Banal à Perversa

O Presidente da República encetou a segunda semana da educação do seu mandato proferindo as banalidades a que já nos habituou.

Há banalidades que são inconsequentes porque embora sejam afirmações correctas, como são proferidas em excesso e sem conteúdo operacional, não servem rigorosamente para nada. São inócuas.

Inscreve-se neste conceito de banalidade banal a declaração do PR de que «rejeitava a tentação de um permanente experimentalismo, pautado pelo ritmo de reformas legislativas que se contradizem ou se anulam umas às outras» e a afirmação de que «Não podemos estar sempre a recomeçar. Devemos sim, realizar um esforço diário de inovação, de procura de melhores condições para a formação das nossas crianças»

Todos concordam, actualmente, com esta afirmação. Há mais de 30 anos que gerações sucessivas de jovens têm sido utilizadas como cobaias pelos investigadores do Ministério da Educação e Direcções Regionais. Todos têm colaborado com afinco nessa investigação exaltante: milhares de investigadores e milhões de cobaias. É seguramente a maior investigação laboratorial jamais conduzida em todo o mundo. Nem o Dr. Mengele teve tanto material e um prazo tão dilatado à disposição. Os que investigam profundamente numa legislatura, na seguinte afirmam que os jovens não devem ser tratados como cobaias, e vice-versa. Cada facção política parece querer estas preciosas cobaias apenas para si, para os seus investigadores, repudiando a experimentação quando não é ela a conduzi-la.

Onde estava Sampaio nos outros excitantes momentos desta monumental investigação? Quando, por exemplo, se liquidou o ensino profissional em nome da luta contra o elitismo, esquecendo justamente que o elitismo era pensar que o único ensino «digno» era o clássico. O elitismo destruiu o ensino profissional baseado no conceito perverso que estava a travar uma luta contra o elitismo.

E as sucessivas «reformas» quer curriculares, quer nas avaliações? E a reforma (!?) actual que permanece ainda um mistério, o que faz com que os adolescentes que estão no 9º ano ainda não saibam, neste altura do ano lectivo, que opção tomar?

Há um segundo tipo de banalidades, que o são apenas por serem proferidas em excesso e continuadamente, afirmações erróneas que se tornaram chavões e que, por via disso, não são inconsequentes, mas sim perversas.

Inscreve-se neste âmbito de banalidade perversa a estafada afirmação, proferida hoje por Sampaio, de pedir mais investimento na área da Educação: «qualquer desinvestimento do Estado na área do ensino será um erro. ... Portugal não investe demais na educação. . Bem pelo contrário, necessita de investir nesta área, e muito, não apenas durante um, dois ou três anos, mas de forma continuada e persistente».

Ora Portugal é, depois da Finlândia, o país da UE que investe mais na educação em termos do PIB. E é o país da UE que, de longe, piores resultados tem. Assim, se o PR fizesse alguma ideia do que anda a dizer, pediria a todos os agentes da educação, e ao Ministro à cabeça, que investissem melhor o dinheiro que o Estado saca aos contribuintes; exigiria a todos os agentes da educação, com o Ministro, os Secretários de Estado e o pessoal do Ministério e das Direcções Regionais à cabeça, que melhorassem o seu desempenho e que estabelecessem procedimentos para optimizar a aplicação dos dinheiros públicos, minimizar as ineficiências e melhorar a qualidade do ensino.

Quando profissionais de um dado sector público são confrontados com o facto do seu sector funcionar mal, não cumprir as suas responsabilidades, custar caro, desperdiçar recursos, não satisfazer a sociedade e os cidadãos, têm duas respostas que se complementam: a primeira é que a culpa da crise do sistema não tem nada a ver com eles, apesar de serem eles que o põem a funcionar e lhe dão existência e identidade, mas sim que a culpa é dos governos, dos ministros e dos políticos em geral; a segunda é a de que os recursos financeiros são insuficientes e que se for aplicado mais dinheiro a solução está ali, no horizonte próximo. É apenas uma questão de mais dinheiro.

É claro que se forem aplicados mais recursos financeiros, verificar-se-á, tempos volvidos, que tudo continua na mesma insuportável mediocridade. Voltam as interrogações e voltam aquelas duas respostas liminares e irrefutáveis.

Pelos vistos, o PR também interiorizou aquela ladainha.

Publicado por Joana às 07:51 PM | Comentários (10) | TrackBack

janeiro 19, 2004

Dissenso consensual

Este fim de semana Durão Barroso e Marques Mendes fizeram um repto ao PS para um consenso nacional sobre a questão das finanças públicas, correspondendo ao apelo constante na mensagem que Jorge Sampaio enviou à Assembleia da República, na passada semana.

Este fim de semana o secretário-geral socialista, Ferro Rodrigues, reafirmou que o Governo não pode contar com o PS para o apoiar nas políticas financeiras, económicas e sociais em nome de "uma unidade nacional" porque tais políticas são erradas, sublinhando que o Governo não tinha entendido a mensagem de Jorge Sampaio.

Finalmente, o Governo e a oposição estão de acordo: cada um entendeu perfeitamente a mensagem do PR e cada um tem a firme e definitiva convicção que o outro não entendeu o pungente apelo do PR.

Aliás, no que se refere a mensagens e discursos do PR toda a classe política está absolutamente de acordo: cada político entende perfeitamente o que o PR diz ou escreve, regozija-se pelo apoio iniludível que a mensagem ou discurso constitui para as suas convicções políticas e felicita o PR pela importância dessas palavras para a continuidade da política em que está empenhado. E isto acontece, quaisquer que sejam as suas convicções políticas e quaisquer que sejam as políticas em que está empenhado.

Todo este dissenso consensual ocorre apenas na classe política. Na sociedade não política, nos restantes 99,99% dos portugueses, ninguém percebe nada do que o PR diz, não entende aonde ele quer chegar e olha-o como um bibelô sem utilidade prática, mas também sem nenhuma perigosidade, que pode estar à mão de uma qualquer inocente e indefesa criança, sem que daí lhe possa advir dano algum.

É o pressentir que o que o PR diz é insosso, incolor, inodoro e inócuo que o tem catapultado para níveis elevados nas sondagens. Desconfiados como são os portugueses, no que tange à classe política, a existência de algo inócuo é um bálsamo que tempera as preocupações da população sobre o que é que os políticos andarão a tramar.

Publicado por Joana às 07:32 PM | Comentários (22) | TrackBack

janeiro 15, 2004

Mensagem do PR – da banalidade ao paralogismo

Ou de como a Pitonisa quis fazer de Temístocles e se afundou em Salamina

O PR enviou ontem uma mensagem ao Parlamento. Normalmente seria um acontecimento pacífico: depois do desfiar de um rosário de banalidades, os ouvintes aplaudiriam em uníssono, cada um extraindo as conclusões que provariam, sem margem para dúvidas, que aquela mensagem vinha no sentido das suas orientações e pretensões políticas. A habitual profecia de Pitonisa, com direito a centenas de leituras contraditórias.

Todavia, nesta mensagem, o PR foi mais directo:

Por um lado, o PR elogiou o actual governo pelas políticas de contenção orçamental que devem ser prosseguidas com todo o rigor, quando se sabe pelas estatísticas, que o governo não está a conseguir conter a despesa pública, seja por incompetência própria, seja por falta de mecanismos de intervenção no funcionamento da Administração Pública (que em último caso serão, ou incompetência governamental, que não reforma a Administração Pública, ou incompetência e/ou hipocrisia presidencial que mantém a espada de Damocles do veto, sobre legislação relativa àquela matéria).

Por outro lado, elogiou a política de “coesão social” do governo anterior que, como se viu, resultou em dissenso social pela crise financeira que provocou, ao distribuir o que não tinha, quer à “pobreza extrema” que precisava e era justo ( mas distribuído sem o rigor e a fiscalização necessários), quer em empregos no funcionalismo público, que nem precisava, nem era justo. Pior, ao elogiar o anterior governo pela sua política de descontrolo orçamental, deixa-se de perceber como se pode elogiar o actual governo pela política de contenção orçamental. É o paralogismo que filosoficamente se designa por contradição nos termos.

Mantendo o seu protagonismo grego da época clássica, o PR sugeriu a quadratura do círculo: reduzir o défice e aumentar a despesa.

E ilustrou esse intento com as banalidades usuais, incontestáveis em matéria de princípios, mas inexequíveis na prática por ausência de mecanismos para as realizar.

Uma delas é o estafado tema da evasão fiscal. É fácil agitar a bandeira do combate à evasão fiscal. O difícil é travá-lo com êxito. E isto porque esse combate, para ter êxito, tem que ser travado em várias frentes:

1 – A reforma da Administração Pública e a melhoria da sua eficiência e desempenho. Ora tem-se verificado que qualquer legislação que se faça nesse sentido é um atentado contra os direitos dos trabalhadores e sofre a contestação da oposição em peso e a má vontade do PR. Não é com o aumento da despesa que se melhora a Administração Pública – isto está demonstrado pela política seguida nas últimas décadas – mas sim com a introdução de mecanismos e procedimentos que permitam que a sua gestão se faça de forma eficiente;

2 – O Estado tem que se tornar uma pessoa de bem na sua relação com o cidadão. Há um ditado que diz que «Ladrão que rouba a ladrão tem 100 anos de perdão». A relação da administração fiscal, e dos serviços público pagos com os nossos impostos, com o cidadão é tal que só por receio de punição o cidadão cumpre as sua obrigações fiscais. Mudar a mentalidade do contribuinte, passa por mudar a postura do Estado face aos cidadãos em geral;

3 – O Estado tem que terminar com a voracidade que tem pelo dinheiro dos cidadãos. Na sua voracidade, o Estado tenta ganhar em todos os tabuleiros. Ao fazê-lo, faz com que a sociedade civil tenha vantagem em conluiar-se contra ele: o empregador e o empregado, o comprador e o vendedor, etc.. Quando, em qualquer transação, é vantajoso para ambos os contraentes enganarem o Estado eles fá-lo-ão. Se o empregado não vir vantagem em que a sua remuneração seja documentada, aceitará essa situação; se o comprador e o vendedor não tiverem vantagem em documentarem a sua transação não o farão; se tiverem que a titular por necessidade (transação de imóveis), mas se não tiverem vantagem em o fazer pelo valor real, declararão um valor muito inferior; etc.; etc.; a política fiscal tem que ser inteligente e não estupidamente voraz;

4 – O aumento excessivo de impostos, para além de injusto, tem como resultado o incremento da economia paralela. Quanto maior for o nível de impostos, mais compensadora é a evasão fiscal, calculada em termos de esperança matemática do rácio benefício-custo dessa evasão e mais gente será tentada a “evadir-se”;

Adicionalmente, e isto é o que há de mais perverso na mensagem do PR, o combate à evasão fiscal deveria servir para aliviar os cidadãos que têm uma carga fiscal excessiva e não para continuar a alimentar o sorvedouro inexaurível da despesa pública, como o PR deu a entender. Dizer que o combate à evasão fiscal serve para pagar a ineficiência da máquina do Estado é injusto para os contribuintes cumpridores, e é muito pouco motivador para os cidadãos em geral. Além do que a excessiva carga fiscal diminui a competitividade das empresas, a riqueza do país e mata a galinha dos ovos de ouro que sustenta a Administração Pública.

Quanto à elaboração do Orçamento do Estado numa base plurianual e a sua discussão e aprovação "em duas fases", é uma questão pacífica num país em que houvesse políticos com sentido de Estado. Aliás, é uma questão consensual há vários anos, só que nunca posta em prática.

E porquê? Porque o Estado português tem o hábito inveterado de fazer agora, para desfazer amanhã; de mudar drasticamente as regras do jogo, a meio do campeonato; de fazer que o que é uma verdade incontestável agora, é uma rematada mentira amanhã; etc.. Tecnicamente é possível elaborar um Orçamento do Estado numa base plurianual, só que, com estes hábitos perniciosos, no ano seguinte deixarão cair tudo e recomeçar-se-á de novo.

No Público, JMF considerou que o conteúdo da mensagem do PR «resultou redondo e inconclusivo». Concordo que foi redondo, porque «não tinha ponta por onde se pegasse». Todavia só foi inconclusivo porque todos, quaisquer que fossem as suas orientações políticas, o aplaudiram e porque, apesar do apelo do PR a um consenso das principais forças políticas sobre a gestão orçamental, assim que a voz da sua mensagem se calou, choveram as "recriminações recíprocas" e as "picardias inúteis".

A mensagem, no que não foi inconclusiva, foi perversa. E foi-o, não apenas pelas suas contradições, mas porque veio do PR, que tem responsabilidades acrescidas naquilo que afirma perante a Nação.

Publicado por Joana às 09:38 PM | Comentários (7) | TrackBack

dezembro 30, 2003

O Indulto Presidencial

O PR tem toda a legitimidade para dar indultos nos termos em que o fez, sob proposta do Ministério da Justiça e depois de passar pela tramitação usual: pareceres do Tribunal de Execução de Penas, director do estabelecimento prisional, Instituto de Reinserção Social, etc..

Os indultos presidenciais são dados a quem está a cumprir penas por prática de um qualquer crime. Logo, um indulto presidencial não deveria ser considerado um “sinal” à sociedade e à classe política, porquanto se se fosse por essa interpretação, o PR estaria todos os anos a dar sinais pressionando a despenalização de homicídios, assaltos, latrocínios, fraudes, violações, etc., etc..

Portanto, o PR teve toda a legitimidade para conceder o indulto à enfermeira Maria do Céu e o país terá toda a legitimidade para concordar ou não com ele, mas apenas isso.

No caso em apreço, no julgamento do Tribunal da Maia sentaram-se no banco dos réus 17 mulheres, uma enfermeira e 25 alegados angariadores, todos respondendo pela prática de aborto.

Das 17 mulheres acusadas de terem praticado interrupção voluntária da gravidez, apenas uma foi condenada à pena simbólica de 120 dias de prisão remível por uma multa de 120 euros (um euro por cada dia). Todas as outras foram absolvidas. O próprio Ministério Público assumiu uma atitude deveras invulgar, pedindo, em simultâneo, a condenação e a absolvição das 17 mulheres. Ou seja, não insistiu no pedido de condenação, que pode ir até 3 anos.

A enfermeira Maria do Céu - que garantiu peremptoriamente, durante o julgamento, ser contra o aborto – foi condenada por tráfico de estupefacientes e falsificação de documentos, e por ter feito desde a década de oitenta mais de uma centena de abortos na "clínica" ilegal. Os magistrados classificaram como crime de tráfico de estupefacientes agravado o facto da enfermeira ter trazido do Hospital de S. João, onde trabalhava, centenas de ampolas de substâncias analgésicas para utilizar nas interrupções de gravidez.

Os réus, que faziam parte da rede de influências de Maria do Céu, e que lhe angariavam clientes - vários ajudantes de farmácia, enfermeiros, um médico, um assistente social e um taxista - foram condenados a penas que variaram entre três e cinco meses de prisão, remíveis em multas entre 448 e mil euros.

Dizer, como Miguel Portas, do BE, e Honório Novo, deputado do PCP, que se deve interpretar o indulto de Sampaio como um "significado político evidente", um sinal que o PR enviou ao país, é um desconchavo completo. Quem foi indultada não foi uma mulher que praticou a interrupção voluntária da gravidez, foi uma enfermeira, que se diz contra o aborto, mas que montou um negócio próspero de prática de aborto, socorrendo-se de angariadores em posições estratégicas e utilizando o dinheiro dos contribuintes: roubando produtos farmacêuticos de um hospital público e falsificando documentos. Tornar o indulto desta mulher um “sinal” para a sociedade é a mais completa perversão.

Ou seja, discutir a penalização ou a despenalização do aborto agitando como símbolo a enfermeira Maria do Céu é profundamente errado e está-se a dar ao país um sinal muito negativo. E muito mais negativo seria se o PR com o indulto quisesse dar esse “sinal”. Recuso-me a acreditar em tamanha insensatez por parte do PR.

Outro tema agitado pelo BE, PCP e alguns sectores do PS é a de que a maioria de direita é a responsável pela manutenção do actual quadro legal.

Quando foi referendada a questão da interrupção voluntária da gravidez, em 1998, a lei que se propunha referendar já tinha obtido a maioria de votos na generalidade na Assembleia da República. Foi o PS que, em face de internamente a questão não ser pacífica (como o continua a não ser, haja em vista o comunicado de hoje dos jovens socialistas católicos), levou a assunto a referendo.

Pode colocar-se a questão do porquê da realização de um referendo naquela altura, em que havia, na AR, uma ampla maioria para aprovar a lei. Pode acusar-se o PS de cobardia por não ter legislado, apoiado nessa maioria. Mas, depois de se ter realizado o referendo, já não havia condições políticas para a aprovar na AR, embora o referendo não fosse vinculativo, dado o elevado número de abstenções. A própria JS na altura o reconheceu e retirou a proposta de lei, contra a vontade do PC e BE que exigiam que essa lei fosse aprovada na AR, apesar dos resultados do referendo.

Portanto, a questão da interrupção voluntária da gravidez, se exceptuarmos a extrema esquerda e a extrema direita, onde é uma bandeira política, é uma questão do foro pessoal, sobre a qual há posições divergentes que atravessam transversalmente os partidos. Fazer disto uma questão política, uma luta esquerda-direita é falso e politicamente errado. A esquerda que bate esta tecla “perdeu” o referendo justamente por não ter sabido interpretar correctamente o que estava em jogo.

As declarações que tenho lido e ouvido, de políticos e de “representantes na net” dessa esquerda, nomeadamente no que toca ao caso deste indulto, mostram que afinal não aprenderam rigorosamente nada com a campanha e resultados do referendo.

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dezembro 04, 2003

A Pitonisa de Belém em Argel

Segundo os meios de comunicação, Sampaio verberou em Argel o «domínio estrangeiro» no Iraque e declarou que vê com maus olhos a presença estrangeira no solo iraquiano considerando que "nenhum país tolera hoje viver sob ocupação estrangeira, (...) muito menos um Estado com os pergaminhos e a história do Iraque" e que estamos perante uma «opressão intolerável».

A Pitonisa de Belém, que funciona com os vapores telúricos que emanam do subsolo, providenciados por Apolo, esqueceu-se, talvez porque em Argel esses vapores têm outra composição química, que a GNR está no Iraque, que há uma resolução da ONU, a 1511, que a suporta, e que ele próprio se tinha referido a essa resolução como um alívio que permitiria a ida do contingente da GNR, com um mandato claro do ponto de vista do Direito Internacional.

Afinal os GNR’s, que diariamente são entrevistados pelos canais televisivos, que quotidianamente enviam mensagens às famílias, que à noite comovem milhares de corações portugueses mais sensíveis, que … etc., etc., não passam de uma «força opressora», que exercem uma «opressão intolerável», cúmplice do «domínio estrangeiro» no Iraque que tem todo o direito de não os «tolerar». Mas a GNR está no Iraque com o aval de Sampaio. Portanto, nas suas imprudentes declarações, Sampaio afirmou aos argelinos que ele está mancomunado com os opressores do povo iraquiano e que ele próprio é um opressor do Iraque.

Ora é reconhecido pelo Direito das Gentes, o direito da resistência à opressão. Resta pois saber o que dirá Sampaio quando os iraquianos começarem a atirar a matar, a fazerem atentados suicidas, etc., sobre as forças «intoleravelmente opressoras» da GNR.

Se estiver sob a influência das emanações dos vapores telúricos de Argel, pela lógica das suas declarações argelinas, terá que aplaudir a heróica luta do povo iraquiano contra o intolerável opressor, isto é, contra a GNR que está no Iraque com o seu aval. Ou seja, contra si próprio, que a ajudou à sua tarefa de opressora do povo iraquiano.

Em Belém, se porventura as emanações tiverem uma composição química diversa, dirá uma daquelas sentenças que poderão ter 400 interpretações diversas e contraditórias e que o têm celebrizado pela criatividade verbal.

Todavia, quer em Belém, quer em Argel, há uma coisa certa. Aquelas declarações são impróprias de um Presidente da República. Sampaio tem toda a legitimidade de ter as suas opiniões sobre a questão iraquiana. Como PR tem que ter uma opinião que reflicta a posição do Estado português, nomeadamente depois de ele próprio a ter caucionado.

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outubro 23, 2003

O Oráculo de Belém

Nos tempos heróicos, a Pitonisa de Delfos, posta em transe pelos vapores telúricos, talvez com a mesma essência básica do suave aroma acanelado dos pastéis de Belém, debitava frases que serviam de referência a políticos, generais, mercadores de azeite, pastores e até a atletas que demandavam os Jogos Olímpicos, psicologicamente carenciados. A sua reputação era célebre. Os meios de comunicação da época asseguram que salvou a Grécia quando, instada por um Temístocles temeroso perante a inumerável hoste persa, o avisou para confiar nas suas muralhas de madeira.

Nem todos reverenciavam esta figura pública. O arconte de uma ilha perdida nos confins do Egeu apelidava aquelas alocuções de … banalidades. Mas tratava-se de um bárbaro ignaro, que vivia a expensas do tesouro da anfictionia e cuja proximidade da Ásia lhe dava mais a aparência de um sátrapa do que a de um dirigente de uma pólis.

Em Belém também se instalou uma pitonisa que, sobre os grandes (e pequenos) temas da política nacional, emite proposições que nunca são decifráveis em menos de 50 ou 100 interpretações diferentes e contraditórias. É uma pitonisa filosoficamente mais avançada, pois contém em si todos os momentos da dialéctica hegeliana (teses, antíteses, a afirmação e a sua negação) excepto as sínteses.

Felizmente para Temístocles, as difíceis comunicações da época impediram-no de demandar Belém, senão nunca teria havido Salamina e a história teria sido dramaticamente diferente. A trirreme de Temístocles estaria algures no Mediterrâneo, navegando em círculos, com os soldados no convés gritando teorias todas diferentes e contraditórias sobre a rota a traçar e, na coberta, a chusma de remadores, num alarido infernal, agitando perigosamente os remos e discutindo com o homem do tambor sobre o ritmo e direcção das remadas.

Sucede que surgem de repente, inopinadamente, frases com significado. Sampaio sentencia que houve uma “criminosa e despudorada violação do segredo de Justiça”. A frase em si continua banal. Há muitos meses que há criminosas e despudoradas violações do segredo de Justiça. A frase é banal, porque se refere a um assunto que a falta de ética de uma sociedade banalizou.

O que não é banal na frase é o PR a lançar apenas agora. Então o PR não tem convivido com violações do segredo de justiça nestes últimos meses? Então o PR, nos dias que antecederam a detenção de Paulo Pedroso, não soube de factos que eram, em si mesmo, uma violação do segredo de justiça? Foi apenas agora, que o seu nome aparece, embora indirectamente, envolvido, e a pressão sobre os seus amigos políticos se acentua dramaticamente, que o PR profere aquela frase?

No exercício das suas funções, o Presidente da República está, como referiu, “na posição singular de ter direito a toda a informação necessária e legítima e de, nessa posição, se relacionar com todos os órgãos do Estado e seus titulares”. Mas será legítimo receber informação que está sob segredo de justiça? E tê-la-á recebido?

O PR não esclareceu estas questões, nem o seu papel de oráculo da Grécia Clássica nos levaria a supor que ele o faria, mas carreou munições para a abertura da caça ao PGR.

O primeiro caçador que se lançou em campo foi o Bastonário da Ordem dos Advogados. O primeiro tiro foi … no pé. Infelicidades do dia da abertura da caça, ainda sem se ter traquejo nem treino. Aparecer agora a vituperar as escutas quando elas o indiciam como tendo "omitido" a sua alegada conversa com António Costa é de uma grande hipocrisia e de uma enorme fragilidade argumentativa, que mesmo a sua posição de bastonário não terá peso suficiente para resistir à contradita se a comunicação social quiser pegar no assunto.

E sabe-se como a comunicação social gosta de cozinhar em fogo lento aqueles que lhe caiem sob a alçada.

Publicado por Joana às 10:00 AM | Comentários (92) | TrackBack