setembro 16, 2005

Alocação de Recursos

Pela Mão Visível

As coisas no Restaurante Pobieda, em Leninegrado (hoje, de novo, Sampetersburgo), não iam nada bem. Não que os salários não fossem integralmente pagos pelo Estado benfazejo. O problema era a desolação das mesas e escaparates vazios e a ausência inexplicável de clientes. A batalha da produção estava em risco. No quadro preto onde eram registados os êxitos do socialismo vitorioso, nem a inscrição das doses servidas aos empregados, e às suas numerosas famílias, como refeições servidas aos relutantes clientes conseguia disfarçar a situação.

O colectivo do restaurante reuniu-se para examinar a situação calamitosa e decidiu, por unanimidade e aclamação, enviar o camarada Serguei ao Ocidente para recolher ideias que revitalizassem o Pobieda.

Após uma digressão que se prolongou, inexplicavelmente, por muitos meses, Serguei regressou cheio de ideias: «A questão não é a qualidade da comida nem a lentidão do serviço. Há restaurantes no Ocidente que têm, quanto a estes aspectos, o mesmo padrão que o nosso, mas têm uma oferta suplementar: luzes feéricas na fachada, decoração deslumbrante, em tons de vermelho quente, música frenética e dançarinas cuja exuberância entusiasma os clientes. Estão cheios!». O colectivo, entusiasmado, aprovou a ideia por unanimidade e aclamação. As camaradas Elena e Irina foram nomeadas dançarinas e procedeu-se à remodelação.

A primeira semana foi sensacional. Todas as expectativas foram excedidas. Mas a partir daí a clientela começou progressivamente a desertar e, dois meses depois, o sapateado das camaradas Elena e Irina ecoava numa sala consternadamente vazia.

O colectivo reuniu-se de emergência e decidiu, por unanimidade e aclamação, enviar desta vez o camarada Alexei em inspecção por terras do Ocidente em busca de novas ideias.

Quando Alexei regressou estava eufórico. Trazia a solução. As camaradas Elena e Irina apareceriam vestidas apenas com curtos negligés e calçadas com sapatos de saltos vertiginosamente altos, e fariam strip-tease enquanto dançassem, as luzes seriam mais íntimas e sensuais, varrendo os corpos das camaradas com uma lentidão estudada, para levar ao paroxismo a libido dos clientes. O projecto era aliciante e o colectivo, arrebatado, aprovou a ideia por unanimidade e aclamação. Como o presidente (e principalmente a sua esposa) era amigo íntimo do camarada Vice-ministro da Cultura, não foi difícil obter, com rapidez, as 12.327 autorizações necessárias.

Os primeiros dias foram de enchentes. Havia filas à porta. Gerou-se espontaneamente um mercado negro para venda de lugares, na fila de acesso, mais próximos da porta. Foi sol de pouca dura. Um mês depois, tinham acabado as filas de espera, os clientes tinham desaparecido e o mercado de senhas de acesso tinha entrado em colapso.

O colectivo estava desolado e convocou uma reunião urgente. Todos se entreolharam cabisbaixos. Grigori, o mais novo e inexperiente, balbuciou:

- Vocês acham que as camaradas Elena e Irina ... ?

Um frémito de indignação percorreu o colectivo. O decano dos presentes, homem sábio e avisado, fez-se eco do pensamento do colectivo:

- Pois quê? Duas camaradas com 40 anos de Partido?


Foi assim decidido, por unanimidade e aclamação, pôr mais dois varões na placa giratória do palco, porque as camaradas Elena e Irina ostentavam na pele dezenas de hematomas provocados pelos tropeções e quedas constantes.

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junho 15, 2005

A Perversão da Iconolatria

A classe política, a comunicação social, os meios intelectuais e mesmo a M M Guedes acotovelaram-se numa comovida homenagem pela morte do político cuja faceta de «obreiro do triunfo da liberdade sobre a ditadura», conforme sentida evocação de Sampaio, o levara a declarar, numa entrevista a uma jornalista italiana, em pleno PREC, que “jamais haveria uma democracia parlamentar em Portugal”, e cuja acutilante capacidade de previsão política ficara consubstanciada na frase: “é preciso viver muito pouco para não assistir à instauração do socialismo em Portugal”, pronunciada então durante as exéquias de um camarada de partido.

Aqui e ali, muitos adiantam alegações para encontrar explicação para a situação bizarra da democracia portuguesa decretar luto nacional por alguém que tentara, por todos os meios que teve, que ela não visse a luz do dia. É simples – os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais) sempre tiveram um fascínio intenso pelo totalitarismo ideológico, principalmente o de esquerda. Os intelectuais desconfiam da «ordem espontânea» dos regimes liberais e compreendem melhor uma ordem «construída». Uma teoria social tipo “chave na mão” fundamentada num corpo “sólido” e atractivo de doutrina sobre a necessidade e o determinismo históricos. Tudo muito bem explicado, com as peças bem encaixadas umas nas outras, e que sirva de modelo explicativo que nos tranquilize sobre o passado e nos arrebate sobre o futuro.

Os intelectuais menosprezam a «ordem espontânea» do mercado, porque esta oferece ao público o que este deseja, enquanto que eles pregam ao público o que ele deve e não deve desejar. O mercado opera dentro de um sistema de preferências e de juízos de valor desinteressante para o intelectual. Por isso, não custa muito compreender que muitos intelectuais confiem mais no Estado do que no mercado. O Estado não funciona por uma «ordem espontânea», mas primordialmente sob a influência de lobbies políticos e sociais, e aqui, os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais), e mesmo a MM Guedes, movimentam-se bem e têm uma enorme capacidade de angariar subsídios e favores.

Tudo isto concorreu para que, a partir da primeira década do século XX, os intelectuais se colocassem ao serviço do reverenciamento dos regimes estatizantes e totalitários, das paixões políticas, e se tornassem intelectuais de convicção. O século XX foi o século da organização intelectual dos ódios políticos, porque o totalitarismo ideológico subsiste pelo ódio aos que não partilham das suas convicções. Principalmente na esquerda (ler, por exemplo, as barbaridades que intelectuais com a estatura de Aragon e de Sartre escreveram, e o fascínio que o comunismo causou em gente como Martin du Gard, Gide, Malraux e outros), mas também na direita (por exemplo, Heidegger, Leni Riefenstahl e, entre nós, António Ferro).

O fascínio permaneceu e mesmo que os factos mostrassem, à evidência, os erros e os massacres cometidos por esses regimes estatizantes e totalitários e a perversão a que as respectivas doutrinas conduziram, essa estiva pútrida não foi erradicada do subconsciente colectivo e emerge, sempre que tem oportunidade, sob as mais variadas formas. E tem moldado o pensamento politicamente correcto que tem contagiado toda a nossa comunicação, social ou privada.

Foi essa subserviência perante o fascínio do totalitarismo de esquerda e o pensamento politicamente correcto que levou Sampaio a dizer barbaridades, tais como, «É um grande comandante(!!) que desaparece», «uma grande figura do século XX português», etc.

E são os mesmos que ficam preocupados quando alguns dirigentes russos elogiam Estaline ou alguns portugueses elogiam Salazar. Esquecem-se que não pode haver dois pesos e duas medidas.

Como escrevi há tempos, «a religião é o ópio do povo e a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais».

Ler ainda sobre este tema:
O Traspasse de um Mito

Publicado por Joana às 02:21 PM | Comentários (136) | TrackBack

junho 14, 2005

O Traspasse de um Mito

Considerar a coerência como uma virtude, independentemente do âmbito em que essa coerência se exerce, é uma perversão só justificável pela hipocrisia dos políticos. A coerência na intolerância, a coerência no totalitarismo político e ideológico, a coerência do relativismo moral, a coerência no assassinato do carácter dos opositores não podem ser virtudes, a menos que se tenha perdido o sentido dos valores morais. Elogiar Álvaro Cunhal, gabando-lhe a coerência, só por hipocrisia se pode tomar como elogio.

Tive a possibilidade de assistir à desagregação do PCP numa posição privilegiada, mantendo relações de amizade com um leque muito variado dos protagonistas desse drama. E como eram relações de amizade, despidas de qualquer adesão política, testemunhei, directa, ou indirectamente por via familiar, a forma como as relações entre esses protagonistas evoluíram durante esse período, o que foram dizendo uns dos outros à medida que as posições mútuas iam variando, os processos de intenção que foram movidos e o funcionamento da maledicência tornada em arma política.

Os ódios mais irracionais são os que se geram entre gente da mesma facção política, mas onde as vicissitudes políticas introduziram diferenças de opinião. Álvaro Cunhal criou um partido estilo pós-leninista, ou seja um partido onde o centralismo democrático conduziria fatalmente ao fim do direito de tendência, do direito à opinião diferenciada, do direito a pensar pela própria cabeça e ao dever de ser apenas um eco dos pontos políticos vindos “de cima”. Lenine não viveu tempo suficiente para assistir à perversão total a que o modelo que havia idealizado conduziu, mas tem a responsabilidade histórica de haver criado esse monstro.

Todavia quer em Lenine, quer mesmo em Marx, já havia o gérmen de tudo o que aconteceu depois. O historicismo marxista, ao ter relativizado os princípios e valores morais referindo-os a cada contexto histórico, esvaziou a moral de qualquer conteúdo autónomo, subordinando-a aos interesses da classe que tinha por missão histórica conquistar o poder. Libertado de todo o escrúpulo moral absoluto e intemporal, o marxismo de Marx e Engels deu origem ao leninismo e ao “Socialismo real” de Estaline, Mao, Pol Pot, Kim Il Sung, etc., às ditaduras sangrentas que massacraram dezenas de milhões de seres humanos, com o desiderato de construir o “homem novo”. Um humanismo perverso posto ao serviço da liquidação em massa.

Se Lenine tem a desculpa de não haver assistido ao eclodir do monstro que havia gerado, Cunhal não tem qualquer desculpa. Muitos atribuíram a disciplina espartana e o fechamento ideológico do PCP durante o Salazarismo às necessidades impostas pela clandestinidade. Foi um equívoco, pois o PCP permaneceu igual ao modelo que Álvaro Cunhal tinha instituído, apesar de se ter estabelecido entretanto um regime democrático, da progressiva decadência e posterior implosão dos regimes do Leste, e do contínuo esvaziamento político e eleitoral do PCP.

As armas para manter a ortodoxia de um partido politica e bacteriologicamente puro foram sempre as mesmas: processos de intenção e maledicência. Nada que tivesse conteúdo político ou ideológico, porque o PCP não tem qualquer suporte teórico: Marx é apenas um velhinho de barbas brancas que lhe serve de ícone, diferente do Pai Natal apenas porque não traz brinquedos e nem na quadra do Natal exerce qualquer influência. As influências de Marx são longínquas, indirectas e resultam da regurgitação soviética do marxismo.

Se a eliminação física estava fora do alcance, restava o assassinato do carácter através da maledicência: deixar cair frases sugerindo que o “camarada” X não cumpria as suas tarefas e não tinha qualquer valimento político, aliás nunca tinha tido, visto serem outros camaradas que afinal lhe tinham feito o trabalho até então; que estava a tomar atitudes anti-partido e a ligar-se com gente que pretendia o enfraquecimento e a liquidação do partido; dar a entender que haveria faltas graves no trabalho político do “camarada” X; também surtia efeito, enquanto tal ainda fez sentido, dar a entender que o “camarada” X falara na PIDE. Sempre acusações nebulosas, cheias de subentendidos, mas vazias de factos concretos. O visado só começava a sentir os efeitos quando notava que os “camaradas” se afastavam dele como da peste.

É a táctica do salame – o partido corta fatia a fatia e, em cada corte, todo o restante salame está aliado contra a fatia que sai; a fatia seguinte sofre um tratamento idêntico àquele com que tinha colaborado quando ainda fazia parte do salame, e assim sucessivamente. A mesma táctica que foi utilizada por Estaline para se ver livre de todos os que lhe faziam sombra. No fim, quase toda a velha guarda bolchevique havia sido eliminada.

O mesmo sucedeu com o PCP. Tudo o que se assemelhasse a espírito crítico, a criatividade, a capacidade de ter ideias próprias, foi eliminado num processo que vem desde a década de 40, que tinha estabilizado após Cunhal se tornar líder incontestado do PCP, mas que teve uma última fase após o advento de Gorbatchev e a convicção que internamente começou a ganhar corpo de que o partido estava num impasse político. Os que ousaram contestar a ortodoxia foram sendo eliminados: Zita, o grupo dos 6, José Magalhães e o seu grupo, etc., etc., Carlos Brito (inicialmente apenas marginalizado) e, dois ou três anos depois, João Amaral e os chamados renovadores. Com a progressiva depuração dos protagonistas principais da corrente heterodoxa, foram abandonando o PCP muitos milhares de militantes anónimos que se reconheciam cada vez menos na liderança dos incondicionais. Sobejou uma massa informe, cinzenta, que agora ficou órfã do seu guia político e espiritual.

Aquelas personalidades tiveram sorte, pois o PCP não estava no poder. Não foram exterminadas fisicamente e o assassinato de carácter apenas teve efeitos internos. E as zangas entre cada “fatia” dos depurados (afinal as “fatias” posteriores haviam antes colaborado, por acção ou omissão, na maledicência) foram sendo sucessivamente sanadas.

Ter assistido a esse processo marcou, de algum modo, a minha entrada na idade adulta e a minha mundividência social e política. Vi, embora em miniatura incruenta, a verdadeira face do “Socialismo Real”. A verdade está na realidade dos factos e não na teoria das utopias, e ter convivido com essa realidade foi um poderoso factor de orientação e uma fonte de inspiração no emaranhado das teorias políticas, sociais e económicas.

No fundo todos devemos algo a Álvaro Cunhal – eu, por ter verificado ser imprescindível cotejar e a aferir as teorias políticas e económicas pelas suas consequências práticas; Portugal, porque o centralismo cunhalista transformou um partido incipiente num grande partido de massas e vice-versa; os restantes partidos políticos, porque se deixaram de preocupar com o PCP; etc.. Em contrapartida ele ficou-nos a dever muito, pois ainda pesa sobre nós a herança política, social e económica do PREC – um capitalismo nacional fragilizado; uma Constituição blindada e castradora; o reverenciamento do papel do Estado; uma sociedade onde só reivindicamos os nos inalienáveis direitos, esquecendo que também temos deveres.

E neste balanço, o legado de Álvaro Cunhal é manifestamente negativo.

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abril 13, 2005

Adam Smith e Marx

Adam Smith e Marx influenciaram de uma forma decisiva o pensamento político, económico e social dos últimos dois séculos. Há um século de diferença entre ambos. Curiosamente o mesmo período que medeia entre Marx e a vivência do poder soviético. Igualmente é curioso verificar que, dessas três “vidas”, o pensamento que se mantém mais actual e vivaz é o da primeira. Todavia há uma estranha complementaridade entre Adam Smith e Marx. Adam Smith preocupou-se com o funcionamento económico da sociedade em que vivia. E extraiu dessa observação conceitos, ainda em vigor, que se revelaram extraordinariamente operacionais. Marx preocupou-se com as causas do devir social e histórico e estabeleceu uma teoria explicativa desse devir que continua a manter algum poder explicativo, embora a sua aplicação mecânica e absoluta se tenha revelado insuficiente e errónea. No seu sóbrio e prático raciocínio de um burguês britânico, Adam Smith ficou em muitos aspectos mais actual que Marx, o típico filósofo alemão que aspirava ao absoluto da totalidade explicativa.

A Riqueza das Nações é um manifesto de combate contra as coacções extra-económicas então existentes (obrigações feudais, corporações, regulamentos diversos) mas também contra o mercantilismo e a fisiocracia, então em voga. Curiosamente o mercantilismo assentava em três noções que continuam a inquinar a nossa sociedade: o Estado como principal agente económico, o progresso baseado na injecção de dinheiro na economia e o superavit da balança de transacções com o exterior. Nos nossos dias tal corresponde ao mito estatizante, ao despesismo dos dinheiros públicos e à desvalorização cambial para incentivar as exportações. Para Adam Smith é o indivíduo, e não o Estado, o principal actor económico; a riqueza é a produção efectiva em bens e serviços e não a criada artificialmente pela injecção de dinheiro na economia; o comércio internacional é apenas um comércio como outro qualquer.

Para Adam Smith a prosperidade nasce da divisão do trabalho. A divisão do trabalho é a condição sine qua non do crescimento. Mas qual é o seu fundamento? A racionalidade dos indivíduos? O fruto de uma vontade colectiva? Não, resume-se simplesmente ao gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro. Os sapatos que calçamos não os devemos ao sentido altruísta do fabricante de calçado, mas à satisfação do seu interesse egoísta em obter um lucro. E a melhoria das condições de produção na sua fábrica não se deve a um sentido altruísta, a um ideal estético ou a uma virtude política: é unicamente fruto do seu interesse pessoal em melhorar a competitividade da sua exploração para maximizar o seu ganho. Escreveu Adam Smith Na realidade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que ponto o está a fazer …. só está a pensar na sua própria segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público.

Não nos dirigimos ao humanismo do industrial, mas ao seu egoísmo; não o convencemos das nossas necessidades, mas das suas vantagens. São os planos e projectos daqueles que empregam o capital que regulam e dirigem todas as tarefas mais importantes do trabalho, e o lucro é o fim que buscam todos esses planos e projectos. E o que é mais surpreendente é que esta transacção de egoísmos e de utilidades, o mercado, corresponde, igualmente, a um óptimo colectivo. É um óptimo por defeito, porque nenhum outro funciona. Em vez da providência divina do pensamento escolástico, é a mão invisível que provê ao nosso bem estar

Há um ponto em que tem que haver intervenção do Estado. Na defesa e segurança pública. A sociedade tem necessidade de ser protegida e de ser liberta dos entraves que possam prejudicar o seu progresso: suprimir as barreiras que limitam a liberdade económica (regulamentos e corporações no plano interno e restrições às importações e travões ao comércio livre no plano externo), porque a liberdade do funcionamento da economia e do comércio tende a maximizar o rendimento anual da sociedade.

E isto porque Adam Smith vê a liberdade do mercado do ponto de vista do conjunto da sociedade e do bem público. Não a vê do ponto de vista dos “interesses” dos produtores em termos de criarem regulamentos ou situações que pervertam a liberdade de mercado, para daí extraírem lucros adicionais: O interesse dos comerciantes, em qualquer ramo de actividade, é, todavia, sob muitos aspectos, sempre diferente e mesmo oposto, ao do público. O interesse dos comerciantes está sempre em alargar o mercado e estreitar a concorrência. O alargamento do mercado é, muitas vezes, suficientemente vantajoso para o público, mas a redução da concorrência é sempre contra ele e só pode servir para permitir aos comerciantes fazerem incidir, para seu próprio beneficio, através da elevação dos lucros para além ao seu nível natural, um imposto absurdo sobre os seus concidadãos. Qualquer proposta para uma nova lei ou regulamento do comércio proveniente desta classe deveria ser sempre escutada com as maiores precauções, e nunca deveria ser adoptada sem ter sido antes longa e cuidadosamente analisada, não só com a mais escrupulosa atenção, mas também com a máxima desconfiança. Ela provém de uma classe de indivíduos cujos interesses nunca coincidem exactamente com os do público, que têm geralmente como objectivo defraudá-lo e mesmo oprimi-lo, e que o têm efectivamente, em muitas ocasiões, defraudado e oprimido.

Adam Smith vê a liberdade do mercado como base do bem estar social e recusa qualquer derrogação a essa liberdade, quer por regulamentos e leis, quer por conluios ou práticas anti-concorrenciais dos agentes económicos. Por esse motivo recusa igualmente qualquer despesa pública em favor dos pobres quer por considerar que se favorece uma classe de cidadãos face a outra, quer por entender que tal cria obstáculos à mobilidade dos trabalhadores. Ora esta última razão continua a ser defendida hoje em dia: uma das razões pelas quais a economia americana atinge mais facilmente o pleno emprego é a menor subsidiarização do desemprego, e essa situação, para além de diminuir o desemprego, aumenta a riqueza pública.

Esta formulação de Adam Smith foi a base da Economia Positiva e da teoria microeconómica ainda em vigor.

Marx pôs a tónica no devir social e na forma como o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção cria clivagens sociais, comportamentos diferenciados entre os grupos sociais que detêm essa propriedade e os grupos sociais não possidentes, clivagem essa que origina uma luta de classes que se torna o motor da sociedade e a leva, mais tarde ou mais cedo, a ser substituída por outra sociedade em que o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção seja diverso do da anterior.

Marx escrevia A Economia Política parte da existência da propriedade privada; não a explica. E tem razão nesse ponto. Mas tal constituirá uma razão de superioridade do pensamento económico de Marx sobre Adam Smith?

Marx escreve nos Manuscritos: A alienação do trabalhador no objecto do seu trabalho, é expressa da seguinte maneira nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu trabalho, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho tanto mais frágil o trabalhador; quanto maior a inteligência revela o trabalho tanto menos inteligente e mais escravo da natureza se torna o trabalhador.

Esta texto poderá fazer as delícias de alguns mitómanos da esquerda radical. Mas terá sido confirmado pela história económica? O trabalhador tornou-se mais bárbaro e grosseiro à medida que o produto do seu trabalho se tornou mais aperfeiçoado e civilizado? É óbvio que não. Marx ficou preso, na sua análise, ao tempo e ao espaço das manufacturas de meados do século XIX.

Na verdade, do ponto de vista da Teoria Económica, O Capital apenas tem valor arqueológico. A Teoria da Reprodução Simples e a Teoria da Reprodução Ampliada têm, descontando obviamente o século de diferença, uma importância inferior ao Tableau Économique de Quesnay. Quem, no pleno uso das faculdades mentais, acredita actualmente na Lei da tendência decrescente da Taxa de Lucro? ou na Lei da pauperização crescente do proletariado? Quem pode acreditar que a classe operária constitui a maioria, está pauperizada e é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social? Ora era nestes axiomas que se exprimia o carácter contraditório do capitalismo: o crescimento dos meios de produção, em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos operários, traduzir-se num duplo processo de proletarização e de pauperização.

Igualmente, a concepção marxista do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou e, ao invés, ocorreu e continua a ocorrer o seu enfraquecimento relativo.

Mesmo que se objecte que o conceito de proletariado será diferente, hoje em dia, e inclua os trabalhadores intelectuais e a intelligentsia, eu oporia que, de acordo com Marx, sendo a consciência social determinada pelo ser social, então este proletariado não teria nada (ou muito pouco) a ver com o proletariado de Marx.

Ora aquela formulação era um axioma basilar do pensamento de Marx. Marx não nega que entre os capitalistas e os proletários existam múltiplos grupos intermédios, artesãos, pequeno-burgueses, comerciantes, camponeses proprietários. Mas afirma duas proposições. Por um lado, à medida que o regime capitalista evoluir, tenderá para uma cristalização das relações sociais em apenas grupos: os capitalistas e os proletários. As classes intermédias não têm nem iniciativa nem dinamismo histórico. Há apenas duas classes capazes de imprimirem a sua marca à sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos e cada um serão obrigados a juntar-se ou aos capitalistas ou aos proletários.

A história traiu Marx e os seus epígonos. E mesmo depois de se verificar, na prática, que aqueles axiomas não eram verdadeiros, eles continuaram a ser repetidos à exaustão pelos intelectuais “ditos” marxistas.

Não será mais actual a afirmação de Adam Smith que A real e eficaz disciplina exercida sobre o trabalhador não é a da sua corporação [Adam Smith referia-se às corporações feudais, muito fechadas e regulamentadas], mas a dos seus clientes. É o medo de perder o emprego que o refreia na prática de fraudes e lhe corrige a negligência. Uma corporação exclusivista necessariamente retira força a este tipo de disciplina. Há, nessas circunstâncias, um determinado grupo de trabalhadores que de certeza obterá emprego, seja qual for o seu comportamento. Não foi a inexistência deste efeito de mercado que provocou a ineficiência económica do regime soviético? Que tornou, nesse regime, o produto do trabalhador menos aperfeiçoado e civilizado?

Quanto à contribuição de Marx para a explicação do devir histórico, ela é importante. Mas, embora haja um fio condutor permanente no pensamento de Marx sobre as causas desse devir, a sua formulação mais concreta é a que citei em “Marx (in)actual” e em algumas passagens do Manifesto. E esses conceitos avançados por Marx têm um óbvio interesse explicativo. Todavia a ânsia de tornar “científico” o “materialismo histórico” levou posteriormente à estilização da caracterização das sociedades. A história foi arrumada em comunismo primitivo, esclavagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo (e, num futuro radioso, o comunismo).

Isto equivaleu a deitar a História no leito de Procusta do “marxismo mecanicista”. Ora a escravatura no Império Romano nunca atingiu, relativamente à população total, a percentagem da existente na Confederação Americana, em meados do século XIX. Fenómenos típicos da economia capitalista que ocorreram na antiguidade – inflação, crises financeiras, etc. – não podiam ser explicados. Diversas formas de sociedade escapavam àquela arrumação. A teoria do modo de produção esclavagista só conseguia explicar Atenas e, parcialmente, a Roma Cidade-Estado. A teoria do modo de produção feudal só conseguia explicar cabalmente os modelos francês e alemão e, em menor grau, os da restante Europa Ocidental. Falhava clamorosamente em Bizâncio e no mundo islâmico. E que dizer das sociedades indianas e chinesas? Em face dessa falência, os teóricos soviéticos e os seus “compagnons de route” inventaram o “Modo de Produção Asiático” para encaixarem desajeitadamente todas as peças do puzzle que falhavam.

Também aqui o pragmatismo de Adam Smith revelou-se mais fecundo. Longe de pretender qualquer explicação absoluta, Adam Smith interessou-se pela importância da “Divisão do Trabalho”, da criação de excedentes por uma dada comunidade ou grupo social e da sua troca por bens que eram necessários a essa mesma comunidade. Sendo assim, o Homem, tal como existe actualmente, resulta de um processo histórico em que o primeiro passo fundamental foi o da “Divisão do Trabalho”, ou seja da progressiva especialização de tarefas. A “Divisão do Trabalho” permitia uma maior produtividade, mas só funcionaria se se desenvolvessem as trocas comerciais. E foi essa espiral produção-consumo que permitiu, com avanços e recuos, o aumento da prosperidade da humanidade.

E veja-se que, ao longo da história, os povos que tinham vantagens comparativas ao nível do comércio – portos marítimos ou fluviais abrigados, encruzilhadas facilitadas pela geografia física, etc., foram os que mais prosperaram e induziram o desenvolvimento dos restantes. O Egipto e a Mesopotâmia desenvolveram-se porque os seus rios facilitavam as trocas (para além da riqueza agrícola que, todavia, não seria tão explorada se não fosse possível trocar os excedentes). A Fenícia, Creta, as cidades gregas, Cartago, Roma, Constantinopla, as repúblicas italianas (Veneza, Génova, etc.), as cidades flamengas, Lisboa, as Províncias Unidas, a Inglaterra, etc. são exemplos da importância do comércio e da “troca” na prosperidade dos povos.

Marx falhou estrondosamente na Economia, porque teve uma abordagem totalmente enviesada: a sua intenção era unicamente explicar os fundamentos da exploração capitalista e da extracção da mais-valia. Não é possível estudar e aprofundar qualquer ciência apenas com um determinado intuito. A abordagem científica deve ser despida de preconceitos. Deve procurar as explicações e não partir destas para construir uma ciência.

Marx, e principalmente os seus epígonos, falhou (falharam) na História e na sua explicação porque perseguiu uma explicação absoluta e total. Era o filósofo alemão, o discípulo, embora recalcitrante, de Hegel, na perseguição da verdade absoluta. Mas descontando essa pretensão, quando Marx abordou acontecimentos políticos da época, produziu trabalhos de elevado interesse científico, no campo da Teoria da História – As Lutas de Classes em França 1848-1850 e o 18 de Brumário de Luis Napoleão, por exemplo.

Faltava a sobriedade e o pragmatismo de um burguês britânico que analisa a realidade e o seu devir de uma forma límpida e fecunda, sem pretensões a explicações absolutas.


Nota - ler igualmente, na "pré-história" do blogue:
Adam Smith e Marx
Hegel e Marx

Ler ainda, mais recentes e sobre Marx:
Marx (in)actual
Marx Neoliberal-Educação Gratuita?
Marx Neoliberal

Publicado por Joana às 11:36 PM | Comentários (79) | TrackBack

abril 12, 2005

A Internacional vítima de takeover Neoliberal

Parafraseando a cassete de Carvalho da Silva, a ofensiva neoliberal arremete selvaticamente em todas as frentes. Soube-se recentemente que a Internacional estava privatizada e que mesmo assobiá-la, inocentemente, em público, obrigava ao pagamento de direitos de autor. A cidadela mais emblemática do socialismo de Estado havia caído nas mãos da iniciativa privada. Havia passado a Internacional SA.

A notícia caiu como um raio. Em Portugal, como é evidente, apenas a Blogosfera (primeiro a Grande Loja e depois o Blasfémias, que eu saiba) deu notícia. Este infeliz evento era demasiado doloroso para os “politicamente correcto” da nossa Comunicação Social o partilharem com o seu público. Mas lá fora, ele foi glosado pelo El Mundo e pelo Monde. Este último conta a “descoberta” da privatização da Internacional em pormenor:

No filme Insurrection résurrection, um actor assobia durante 7 segundos a Internacional. O produtor do filme recebeu uma carta da entidade que zela pela propriedade privada dos direitos de autor em França (SDRM), avisando-o que, no decurso de uma fiscalização, havia sido detectada aquela apropriação indevida de um bem pertencente à Le Chant du monde. O custo de utilização daquele bem foi fixado em 1.000€ pela SDRM.

E o que é mais mortífero para a visão do Estado Social de que a Internacional tem sido um dos suportes sonoros mais comoventes e exaltantes, é que o filme em causa apenas teve 203 espectadores no total, isto é, 202 mais o vigilante da SDRM. Poucos mais que os filme portugueses que vivem às nossas expensas. A expensas do nosso Estado Social!

Louve-se todavia a prudência do cineasta. O actor apenas assobiou durante 7 segundos. Se ele, levado por um inebriante ímpeto revolucionário (ou insurreccional), tivesse assobiado durante 3 minutos, o produtor teria que pagar 25.714€! E imagine-se que em vez de um único personagem, fosse toda a assistência de um comício a entoar a Internacional num imponente concerto de assobios? Eram milhões de euros que estariam em jogo!

A esta hora, se leram o Monde, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã devem estar de calculadoras em punho a fazer contas: Portanto x comícios com uma média de y participantes, entoando durante cerca de 3 minutos ... dá ... diacho! A quanto monta o financiamento da campanha? Bem ... temos que rever as contas ... há muitos camaradas mudos e outros só abrem a boca para a gente julgar que estão a participar. Temos que fazer um inventário rigoroso e falar com o nosso departamento jurídico. Para a próxima vamos treinar o pessoal a cantar a Maria da Fonte que, segundo parece, ainda não foi privatizada.

Publicado por Joana às 07:48 PM | Comentários (53) | TrackBack

fevereiro 03, 2005

Marx (in)actual

Os dois textos que afixei neste blogue, Marx Neoliberal e Marx Neoliberal-Educação Gratuita?, tiveram, obviamente, um intuito provocatório, mas não só. Pretendiam mostrar igualmente como a relação da esquerda com o Estado, não apenas da esquerda em geral, mas também da esquerda que se reclama de Marx, está nos antípodas do pensamento marxista original. A diferença mais substantiva reside no facto de que para Marx e para a esquerda marxista ou radical da época, o Estado era o inimigo que deveria ser destruído para, sobre os seus destroços, construir um mundo novo e mais perfeito, enquanto que, para a esquerda actual, keynesiana ou marxista, o Estado é o motor da economia e o distribuidor de empregos e de benesses. A esquerda de Marx era uma esquerda de combate por um mundo melhor. A esquerda de hoje, é uma esquerda de asilados, subsídio-dependentes, cujo mundo melhor se consubstancia no aumento das dádivas do Estado.

A esquerda que actualmente se reclama de marxista tem uma característica original: desconhece a obra de Marx. Frequentemente já nem sequer conhece os chavões marxistas que tão glosados foram décadas a fio. A esquerda está desideologizada. A esquerda vive no mito do Estado social e distributivo. A esquerda tornou-se uma adoradora do Moloch, ao qual sacrifica a riqueza que todos nós produzimos, o bem estar social, o nosso bem estar futuro e o bem estar das gerações vindouras. Tudo é sacrificado a esse novo ídolo da esquerda.

Este processo foi lento. O conceito da evolução social em Marx pode ser resumido nas célebres e lapidares frases do Prefácio à Zur Kritik der Politischen Ökonomie:
“Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se alicerça uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social.” (1)

.... e, parágrafos adiante, um conceito fundamental e sempre esquecido:

“Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais elevadas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade apenas coloca a si própria as tarefas que pode resolver, pois, observando mais de perto, vê-se sempre que essas tarefas só se colocam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a sua resolução.”(2)

Este enunciado marxista do devir histórico foi completamente postergado com a tomada do poder pelos bolcheviques pela força e a construção de uma formação social saída directamente de uma Ideia e não resultante de uma evolução histórica (social, económica e tecnológica). A experiência histórica posterior mostrou que a formação social onde o capitalismo era o modo de produção dominante ainda não tinha desenvolvido todas as suas forças produtivas, isto é, não se tinha esgotado, como o tem provado neste último século, pela forma como se desenvolveu e ultrapassou as suas sucessivas crises, criando sociedades cuja prosperidade seria inimaginável nos tempos de Marx.

Em contrapartida, o modelo socialista baseado numa Ideia, e imposto a destempo e pela força, revelou-se frágil, inadequado e implodiu por não ser capaz de acompanhar o desenvolvimento de um modo de produção que ele postulava como obsoleto face a si próprio. O modelo soviético, o albanês e todos os modelos apregoados pela esquerda, nomeadamente pela esquerda radical, não se baseiam no materialismo histórico marxista, mas num idealismo histórico mecanicista, pois nem sequer é dialéctico, porquanto lhe falta a “astúcia da razão” de Hegel, a Razão que dirige a História e que utiliza os homens para através dos objectivos “egoístas” trazerem para a humanidade uma liberdade maior, um estado superior de civilização.

Foi o escolasticismo axiomático que tem trazido a esquerda ao esvaziamento de ideias e à sua actual incapacidade de compreender a realidade social e económica em que vivemos. É por isso que a esquerda não tem qualquer solução viável para os problemas com que nos confrontamos actualmente. Está presa dos seus mitos e dos seus preconceitos. Está presa da sua actual postura de adoradora do Moloch estatal, o que é uma absoluta contradição com os seus fundamentos ideológicos.


(1)In der gesellschaftlichen Produktion ihres Lebens gehen die Menschen bestimmte, notwendige, von ihrem Willen unabhängige Verhältnisse ein, Produktionsverhältnisse, die einer bestimmten Entwicklungsstufe ihrer materiellen Produktivkräfte entsprechen. Die Gesamtheit dieser Produktionsverhältnisse bildet die ökonomische Struktur der Gesellschaft, die reale Basis, worauf sich ein juristischer und politischer Überbau erhebt und welcher bestimmte gesellschaftliche Bewußtseinsformen entsprechen. Die Produktionsweise des materiellen Lebens bedingt den sozialen, politischen und geistigen Lebensprozeß überhaupt. Es ist nicht das Bewußtsein der Menschen, das ihr Sein, sondern umgekehrt ihr gesellschaftliches Sein, das ihr Bewußtsein bestimmt. Auf einer gewissen Stufe ihrer Entwicklung geraten die materiellen Produktivkräfte der Gesellschaft in Widerspruch mit den vorhandenen Produktionsverhältnissen oder, was nur ein juristischer Ausdruck dafür ist, mit den Eigentumsverhältnissen, innerhalb deren sie sich bisher bewegt hatten. Aus Entwicklungsformen der Produktivkräfte schlagen diese Verhältnisse in Fesseln derselben um. Es tritt dann eine Epoche sozialer Revolution ein. Marx Engels Werke Band 13, pg 8-9 Dietz Verlag, Berlim

(2) Eine Gesellschaftsformation geht nie unter, bevor alle Produktivkräfte entwickelt sind, für die sie weit genug ist, und neue höhere Produktionsverhältnisse treten nie an die Stelle, bevor die materiellen Existenzbedingungen derselben im Schoß der alten Gesellschaft selbst ausgebrütet worden sind. Daher stellt sich die Menschheit immer nur Aufgaben, die sie lösen kann, denn genauer betrachtet wird sich stets finden, daß die Aufgabe selbst nur entspringt, wo die materiellen Bedingungen ihrer Lösung schon vorhanden oder wenigstens im Prozeß ihres Werdens begriffen sind. Idem, pg 9

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janeiro 30, 2005

Marx Neoliberal-Educação Gratuita?

O que Marx pensava sobre a questão da “Educação Gratuita”, deixaria certamente toda a esquerda e mesmo parte da direita, exceptuando Hayek, e poucos mais, em completo desespero e desvario. E o que transcrevo a seguir, foi escrito e endereçado ao congresso de unificação dos dois partidos operários alemães, realizado em Gotha, que daria origem ao Partido Social-Democrata Alemão (equivalente ao actual Partido Comunista). É portanto um ponto doutrinal importante e considerado, por alguns epígonos de Marx, como tendo uma importância comparável ao Manifesto.

Este texto foi escrito em Maio de 1875, 27 anos após o Manifesto e o “célebre” corte epistemológico que Althusser inventou para explicar as diferenças entre os escritos de Marx filósofo (até ao início da década de 50) e do Marx militante sindicalista.

Na minha opinião, Marx apenas passou do intelectual de Julien Benda, o «campeão do eterno e da verdade universal ... de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas», ao intelectual dominado pelas paixões políticas e cujo julgamento é condicionado por estas. Chamar a isto corte epistemológico é tentar encontrar uma não-explicação explicativa.

Passemos ao texto:
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Igual educação para todo o povo? O que é que se quer dizer com estas palavras? Acreditam que na sociedade actual (e apenas dela nos podemos ocupar) a educação possa ser igual para todas as classes? Ou querem reduzir pela força as classes superiores a receber o ensino restritivo da escola primária, a única compatível com a situação económica quer dos operários asssalariados, quer dos camponeses?..

«Obrigatoriedade escolar para todos. Instrução gratuita». A primeira existe mesmo na Alemanha, a segunda na Suiça e nos Estados Unidos para as escolas primárias. Se, em certos Estados deste último país, os estabelecimentos de ensino superior são igualmente « gratuitos», isto significa somente que, por esse facto, esses Estados imputam às rubricas do orçamento geral as despesas escolares das classes superiores. E o mesmo se verifica com a alegada «administração gratuita da justiça », reclamada no A.5. A justiça criminal é gratuita em todo o lado; a justiça civil funciona quase unicamente nos litígios sobre a propriedade e respeitam portanto, quase unicamente, as classes proprietárias. Irão elas fazer pagar os seus processos através do erário público?..
....
«Uma «educação do povo pelo Estado» é uma coisa absolutamente condenável. Determinar por uma lei geral os recursos das escolas primárias, as aptidões exigidas ao pessoal docente, as disciplinas ensinadas, etc., e, como o que se passa nos Estados Unidos, vigiar, através de inspectores estatais, a execução dessas prescrições legais, não é mais que fazer, absolutamente, o Estado o educador do povo! Mais que isso, é preciso excluir qualquer influência, na escola, do Governo ou da Igreja..
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(Nota - A.5 era um ponto do programa em debate)

Aqui segue o texto original, para quem quiser verificar se a tradução, aqui e ali um pouco livre, está conforme:
Sem_MarxGotha.jpg

Karl Marx - Kritik des Gothaer Programms, In Marx-Engels Werke Vol 19, pág 30 - Dietz Verlag Berlim.

Muitos dos argumentos de quem hoje contesta a luta de alguns sectores estudantis contra as propinas são semelhantes a estes.

Felizmente que, na época, ainda não havia qualquer tentativa de implementar um Serviço Nacional de Saúde ... era só a educação e a justiça ...

Publicado por Joana às 10:19 PM | Comentários (56) | TrackBack

janeiro 28, 2005

Marx Neoliberal

Para aqueles que me acusam de renegar Marx e o trocar pelo pensamento económico neo-liberal, aqui vai um pensamento de Marx: A Comuna [de Paris] fez da palavra de ordem de todas as revoluções burguesas, governo barato, uma verdade, ao suprimir as duas maiores fontes de despesas, o exército e o funcionalismo.

E eu, que apenas pretendia um emagrecimento da ordem dos 25% ou 30%, sou aqui vilipendiada diariamente, que farão com Marx, que embandeira em arco com o despedimento colectivo, absoluto e total, do funcionalismo público!

E ele não disse isto num café chalaceando com uns amigos. Foi numa Directiva ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (Adresse des Generalrats der Internationalen Arbeiterassoziation):
Sem_Marx_Comuna.jpg
Sublinhei a vermelho aquela frase mortífera!
In Marx-Engels Werke Vol 17, pág 341 Dietz Verlag Berlim


Nota: Ler sobre este tema, e como continuação:
Marx Neoliberal-Educação Gratuita?
Marx (in)actual

Publicado por Joana às 09:56 PM | Comentários (117) | TrackBack

abril 21, 2004

Esquerda, herdeira da Direita

A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Quando me refiro quer à esquerda quer à direita, não faço a injustiça de me referir a «toda» a esquerda nem a «toda» a direita. Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias e no acinte e desdém que mostram (ou mostraram) pelas ideias dos outros.

Esta similitude, eventualmente incompreensível, pela aparente distância ideológica entre aqueles campos, tem todavia explicações simples.

Quer a «actual» esquerda, quer a «antiga» direita, são (ou eram) conservadoras e reaccionárias face a um mundo em mutação de que elas não eram agentes da mudança. A direita «antiga» lutava para manter (ou restaurar) um mundo cujo sentido das transformações abominava, cujos mecanismos de mudança lhe eram incompreensíveis e que lhe prefiguravam um novo mundo cuja dominação considerava monstruosa. Foram os anti-dreyfusards, foi a Action Française, foram os Camelots du Roi, foram os diversos partidos de direita alemães que emergiram da primeira guerra mundial e da liquidação da revolução espartaquista, foram os nazis com as suas SA e, posteriormente, com as SS, foram os «fasci di combattimenti» e os «Camise Nere» de Mussolini, e isto só para falar das principais nações ocidentais.

A esquerda «actual» herdou tudo isso. Também ela está órfã de conceitos que ruíram; também ela se agarra desesperadamente a um statu quo obsoleto; também ela luta para manter um mundo cujo sentido das transformações abomina e cujos mecanismos de mudança lhe são totalmente inexplicáveis e também ela se insurge contra a perspectiva de um novo mundo que prefigura como monstruoso.

É esse horror perante uma mudança que diaboliza, que torna a esquerda «actual» profundamente reaccionária, intolerante, argumentando de forma trauliteira, agarrando-se, no seu naufrágio, a todos os despojos que lhe sugiram a possibilidade de reversão, de barreira à mudança, pactuando com formas medievas, violentas e bárbaras de contestação à nossa sociedade e, sempre que a ocasião surge, actuando com toda a violência, vandalizando cidades inteiras em nome da «luta contra a globalização» ou por um «mundo alternativo». E, tal como a direita de há 80 anos, com a benevolência dos meios de comunicação que conseguem entrever alguns «argumentos» naquela violência bárbara e gratuita.

Mas o que há de mais perverso na esquerda «actual» é que ela continua a reclamar-se de Marx. Ora o fundamento do pensamento marxista era a análise dialéctica das condições sociais, da base material da sociedade, das relações de produção emergentes dessa base material e da forma como essa base material influencia a superestrutura. É da essência do marxismo o não ficar asilado no statu quo, o encontrar explicações adequadas para as mudanças e o devir social, ou seja, ser capaz de interpretar o mundo na sua mudança e nunca ficar atemorizado perante essa mudança, rejeitando-a liminarmente.

A esquerda «actual», todavia, na sequência da interpretação soviética do marxismo, reduziu este a chavões e depois a um mero tropo patrocinador que, prudentemente, já não é matéria para nenhum debate, não vá o diabo tecê-las.

Os filósofos (?!) soviéticos deitaram Marx no «leito de Procusta» das exigências político-ideológicas estalinistas e foi esse «Marx» desfigurado e deformado que a esquerda «actual» usa como travesti ideológico.

Neste entendimento, a esquerda «actual» é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda «actual» não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.

Usa os argumentos mais soezes e acusa, paradoxalmente, a direita de trauliteira, quando foi ela que herdou essa postura argumentativa. A esquerda «actual» adoptou, por convenção, por postulado (que só essa esquerda reconhece) que a direita, quando riposta é, por definição, trauliteira, enquanto ela, a esquerda «actual», pode debitar as maiores insolências, ser da máxima truculência, do maior vazio argumentativo, que está permanentemente desculpada: a esquerda «actual» é a detentora da verdade e tudo o que a contraria é trauliteiro.

E o que é paradoxal nesta convicção da esquerda em deter a verdade absoluta é que os seus ícones e os seus mitos foram todos derrubados. Nada escapou à inclemência, à razia do devir histórico. Parafraseando Marx, tudo o que era sólido, se dissolveu no ar.

A História é feita de fluxos e refluxos. A esquerda «actual» espanta-se e impreca o «neo-liberalismo», mas este é a resposta para os indispensáveis reajustamentos estruturais necessários para equilibrar e sanear as economias e as sociedades ocidentais, para alavancar progressos na prosperidade e na riqueza dessas sociedades, que estavam a estagnar. O «neo-liberalismo» não veio para ficar. Nada na História vem para ficar. Tudo é feito de mudança. O «neo-liberalismo» veio como refluxo para inverter correntes que, sem essa inversão, teriam conduzido o mundo ocidental à ruína económica e social.

Mas o «neo-liberalismo», tendo embora os seus méritos na situação actual, quando acabar de desempenhar o seu papel histórico, a sua missão, terá esgotado o seu modelo. E sobre os seus restos erguer-se-á um modelo novo, mais aperfeiçoado, mais adequado á nova realidade. E assim sucessivamente.

Mas tudo isto, para quem cristalizou no marxismo ortorrômbico, é muito difícil de entender.

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dezembro 23, 2003

Álvaro Cunhal no Inverno de 1939-40

Anteontem escrevi um texto sobre a expulsão da URSS da SDN e a política soviética nesses anos de 1939 e 1940 (15-12-1939: a URSS é expulsa da SDN).

Hoje vou dedicar-me a analisar o comportamento do PCP e principalmente do seu líder, Álvaro Cunhal sobre aquela política, durante essa época.

Antes do pacto germano-soviético, as posições do PCP, na imprensa clandestina e na imprensa legal (O Diabo), eram favoráveis a um pacto anglo-russo, como factor estabilizador e anti-fascista. Estavam em uníssono com a política de Litvinov. Todavia, o PCP não se apercebeu, antes da assinatura do pacto germano-soviético e do eclodir da guerra, que a nova política da URSS, após a substituição de Litvinov por Molotov, oscilava entre a frente anti-fascista e um acordo com a Alemanha, dependendo das respectivas “compensações”.

Como a assinatura do Pacto precedeu de pouco mais de uma semana o desencadear da guerra e apenas 2 semanas após esse início, a URSS invadia igualmente a Polónia, o PCP não conseguiu digerir rapidamente todo esse “cataclismo” político.

No “Informe sobre a Situação Internacional”, redigido provavelmente na 2ª quinzena de Outubro de 1939, o PCP (Cunhal, entenda-se) afirma, referindo-se ao Pacto, que “Nem por isso a URSS desistiu de lutar contra o bloco fascista. A URSS não quis limitar-se a ficar de fora da guerra imperialista. Prosseguindo na sua luta contra o fascismo e o imperialismo desmascarou o carácter da guerra e desmembrou o bloco fascista, por meio do pacto germano-soviético, que imediatamente fez desligar o Japão do bloco, considerado inabalável, das potências fascistas”, o que é uma visão absolutamente delirante dos efeitos do pacto, como se viu pelo decurso posterior dos acontecimentos, e acrescenta, mais adiante “Nomeadamente a atitude dos países bálticos (a de serem obrigados a cederem à chantagem soviética) e da Turquia cria uma situação extremamente grave para o capitalismo internacional”.

Mas onde a nova posição do PCP, de equidistância entre a Alemanha nazi e as potências democráticas, se revela mais clara é quando escreve que “Terminadas as operações militares na Polónia e destruída a mistificação da guerra ideológica, as propostas da paz de Hitler criaram a Chamberlain e Daladier uma situação difícil. São efectivamente vagas as propostas de Hitler, mas a argumentação que as acompanha e alguns dos seus princípios gerais não podem ser facilmente contrabatidos pelos representantes do imperialismo franco-britânico? Como podem eles justificar a continuação da guerra ofensiva contra a Alemanha? Pela reconstituição da Polónia? Mas o Estado polaco revelou-se um aglomerado inconsistente”.

Portanto, a luta contra o Eixo fascista era “a mistificação da guerra ideológica”. Enuncia, além disso, a tese dos Estados inconsistentes saídos do Tratado de Versalhes, que era uma dos refrãos preferidos dos dirigentes nazis e que a nova política soviética estava igualmente a utilizá-los, como escrevi no meu artigo anterior. O PCP revelava-se um aluno fiel da nova política soviética.

Mais adiante, no mesmo informe, Cunhal assinala que “a paz criaria dificuldades económicas insuperáveis para os governos capitalistas. Tornar-se-ia necessário canalizar para a produção útil todas as actividades de guerra; superprodução e desemprego voltariam, enormemente agravados. Cada um dos governos capitalistas da Europa sabe o que isto significa para o capitalismo. Por isso todos fogem da paz, mesmo quando são obrigados a propô-la. Por isso os trabalhadores devem lutar obstinadamente pela paz”. Portanto, as potências democráticas eram igualmente responsáveis pela guerra. Já não havia diferença entre democracia e fascismo.

Essa indiferenciação era visível num artigo sobre uma mensagem de Jules Romains: "Diz Jules Romains que a guerra foi provocada pelos países totalitários. Mas não sei por que razão, refere-se sempre e unicamente à Alemanha. Não existirão para Jules Romains outros países totalitários?" (O Diabo, 16/12/1939). Os beligerantes são iguais, ambos têm «telhados de vidro»(O Diabo, 23/12/1939).

Quando foi desencadeada a agressão à Finlândia uma nota de O Diabo sugere que «não seria por acaso que os ingleses e americanos protestam contra a invasão da Finlândia em auxílio ao governo popular de Otto Kuusinen».(O Diabo, 23/12/1939) Motivo? “Interesses imperialistas nos jazigos de níquel de Petsamo”. Este texto é paradigmático da propaganda comunista. O “governo popular de Otto Kuusinen” era um governo fantoche cujas circunstâncias da sua criação descrevi no meu artigo anterior. Portanto a URSS invadiu a Finlândia em auxílio de um “governo” fantoche cuja “existência” só veio a público depois do início da invasão. O governo virtual de Kuusinen foi criado para orquestrar a agressão e desvaneceu-se, sem deixar vestígios, logo que foi assinado o tratado de paz em 12-3-1940.

Nas vésperas da agressão alemã à Dinamarca e Noruega (iniciada em 9-4-39) e posterior ataque à Holanda e Bélgica, PCP publica esta brilhante e consistente previsão política :«Não há pois perigo da Alemanha atacar os neutros. Seria estender a frente e reduzir as suas possibilidades de resistência numa frente reduzida. Podemos concluir portanto que a violação dos neutros, vizinhos da Alemanha, convém mais aos aliados Ocidentais que à própria Alemanha? De certo que convém [...]. Outro factor é o constante apelo feito aos neutros para que entrem na guerra contra a Alemanha [...]. À Grã-Bretanha convinha-lhe a extensão da frente de batalha. Por isso se explica o convite feito aos neutros para estarem a seu lado.»(O Diabo, 10/2/1940).

Isto é, 2 meses antes da Alemanha iniciar a agressão aos países neutros , o PCP escrevia que o perigo para esses países vinha essencialmente da França e da Grã-Bretanha, os principais fautores da guerra. Deveria igualmente dizer que esse perigo vinha da URSS, que à data mantinha uma guerra de agressão contra a Finlândia, tentando à custa de pesadas baixas perfurar a Linha Mannerheim, o que só viria a conseguir em fins daquele mês.

Mas a agressão àqueles países não alterou as posições do PCP. Se um mês antes colocava a interrogação: «Mas haverá na verdade alguma diferença entre a Alemanha do sr. Hitler e a França do sr. Daladier ou mesmo a Inglaterra do sr. Chamberlain?Nem Maginot, nem Siegfried», O Diabo, 9/3/1940), dias depois da capitulação da Dinamarca, quando a batalha da Noruega se desenrolava, Cunhal escrevia, falando na primeira pessoa, e com um cinismo brutal: «Eu muito francamente declaro que, hoje em dia, o sr. Chamberlain me merece tanta simpatia como o sr. Hitler ou o sr. Daladier (a ordem dos nomes é arbitrária)».(Álvaro Cunha!, «Ricochete - 2 », O Diabo, 290, 13/4/1940).

Se Chamberlain era conservador, Daladier era radical-socialista e havia sido, com Leon Blum e outros, um dos obreiros do Front Populaire, onde os comunistas franceses entravam. A Alemanha tinha acabado de ocupar a Dinamarca, que capitulara, e estava em vias de ocupar totalmente a Noruega. O que estava na base da argumentação de Cunhal naqueles artigos não era nenhuma razão ideológica, nem a “emancipação da classe trabalhadora” mas apenas a justificação cínica, e contrária aos mais elementares princípios da ética que defendia, da política externa da URSS.

Ao longo do Inverno de 1939/40, Cunhal foi passando, lentamente, da equidistância entre as potências democráticas e a Alemanha Nazi, para posições claramente germanófilas, na mesma linha das posições seguidas pela liderança soviética, de que Cunhal foi sempre um fiel discípulo.

Cunhal é preso a 30-5-1940, quando as Panzerdivisionen apoiadas pelos Stukas atingiam o mar, cortando a retirada dos exércitos franco-britânicos que combatiam na Bélgica. O reembarque de Dunkerke começava e os alemães estavam a horas de lançar a demolidora ofensiva na frente do Somme que lhes abriria o caminho de Paris.

Quer o afastamento de Cunhal da vida política activa, quer a queda de Paris, refrearam a germanofilia de O Diabo, mas o que foi escrito durante o Inverno de 1939/40 é o paradigma da perversão política mais despudorada, a desvergonha mais absoluta de um homem que exaltava e exalta a “superioridade moral dos comunistas” e, obviamente, a dele próprio, e a prova de que a única coerência que Cunhal tinha era a relativa ao domínio do mundo pelo modelo soviético do comunismo, quaisquer que fossem os meios utilizados para tal.


Notas:

1 - As notas de O Diabo foram retiradas da biografia de Álvaro Cunhal, vol 1 de J Pacheco Pereira.
2 – Este artigo deve ser lido em conjunto com o publicado neste blog em 21 de Dezembro de 2003: “15-12-1939: a URSS é expulsa da SDN”, se se quiser integrá-lo nos acontecimentos que decorriam no palco de guerra europeu.

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dezembro 21, 2003

1939: a URSS é expulsa da SDN

Em 15 de Dezembro de 1939, quando a URSS se engalanava para as comemorações, a 19-12, dos 60 anos de Estaline, o “Pai dos Povos”, o Estado Soviético era expulso da Sociedade das Nações.

A história mundial entre 1939 e 1941 teve diversas leituras referindo-se aos mesmos factos. As potências democráticas, a Alemanha nazi e a URSS fizeram deles leituras diferentes, consoante os seus pontos de vista. Mas o mais paradigmático foi as potências democráticas alteraram a sua leitura à medida da evolução da história. As verdades em 1939/40 foram complacentemente ignoradas quando a relpolitik impôs as suas exigências. Quando a realpolitik já não necessitava dessa ignorância, o “politicamente correcto” dos intelectuais bem-pensantes transformou aquelas verdades em mentiras. Mentiras cujo simples enunciado era indício seguro de um anti-sovietismo primário.

Foi preciso os próprios reconhecerem que as verdades em 1939/40 eram mesmo verdades, para estas adquirirem o estatuto de verdades.

O ucasse de 4 de Maio de 1939 nomeava Molotov Comissário do Povo para os Assuntos Estrangeiros da URSS, dando notícia da exoneração, no dia anterior, de Litvinov. Litvinov era o homem que defendia a política da segurança colectiva e do prestígio da Sociedade das Nações a que a URSS aderira em 1934. Era o homem que defendia as alianças com as potências ocidentais face ao avanço do nazismo e dos regimes totalitários na Europa de Leste.

A política de apaziguamento franco-britânica nos anos que precederam a guerra não facilitou a vida de Litvinov, face às pretensões do seu patrão. A Europa ocidental vivia um intenso clima de pacifismo e Estaline resolveu apostar na carta alemã, de forma ficar com as mãos livres nas suas ambições de restaurar as fronteiras do antigo império dos czares, onde tinham estado incluídos os estados bálticos, a Polónia oriental, a Bessarábia e a Finlândia.

Litvinov não era a pessoa indicada para essa política e foi exonerado “a seu pedido” e substituído por Molotov. Esta mudança foi igualmente um sinal importante para Hitler e von Ribbentrop. A URSS do Alexandre Nevsky (1938) de Eisenstein, mostrando a derrota dos cavaleiros teutónicos contra a Santa Rússia, iria dar lugar, anos mais tarde, ao Ivan o Terrível (1943 e 1946), também de Eisenstein, mas glorificando a tirania, o poder pessoal e a expansão face ao exterior.

Todavia, os líderes políticos da Europa Ocidental, em face da rotura dos acordos de Munique, da anexação da Boémia e Morávia e da transformação da Eslováquia em satélite, tinham estabelecido, apesar do seu pacifismo, acordos com garantias de assistência bilateral com a Polónia e a Roménia. Se é certo que as reticências polacas dificultavam um acordo de segurança mais consistente, a manutenção de Litvinov levaria provavelmente a um acordo colectivo satisfatório. Foi sintomática a sua exoneração quando os acordos de assistência bilateral franco-britânicos com a Polónia e a Roménia impediam, na prática, a agressão alemã à URSS, pois os alemães teriam que atravessar um destes países para invadir a URSS.

O que se passou na esfera diplomática entre o ucasse de 4 de Maio e a assinatura do Pacto de não-agressão Germano-Soviético em 23 de Agosto, com o protocolo secreto que deixava os os estados bálticos, a Polónia oriental e a Bessarábia na “esfera de influência” soviética, foi uma comédia de enganos, com a URSS a negociar com os 2 blocos, as potências democráticas mostrando uma grande fragilidade negocial e os nazis a licitarem com uma proposta “irrecusável”. Irrecusável para quem aceita traficar a independência dos outros povos. Os termos do acordo colocavam a URSS no mesmo plano que a barbárie nazi.

Em França, o PCF aprovou o Pacto Germano-Soviético, o que provocou a reprovação de todos os restantes partidos, nomeadamente as formações de esquerda, aliás dominantes na Câmara (Daladier, o 1º Ministro, era radical-socialista). Um decreto de 25 de Agosto suspendia o Humanité e os outros periódicos comunistas. Após a entrada das tropas soviéticas na Polónia e face á manutenção das posições do PCF, o Partido Comunista é dissolvido em 26 de Setembro. O grupo dos deputados comunistas na Câmara dos Deputados passou a designar-se por “Grupo Operário e Camponês”.

Em 1 de Setembro a Alemanha invadia a Polónia e, após a rotura das defesas polacas pelos alemães, em 17 de Setembro, Molotov fazia uma comunicação radiofónica declarando que em vista da incapacidade interna do Estado Polaco, a URSS decidira avocar a si a protecção das “populações da Bielorússia e da Ucrânia ocidental”, ou seja, mais de metade da Polónia de então. Em 19 de Setembro um comunicado conjunto germano-soviético dava conta que a tarefa das tropas alemãs e soviéticas era “restaurar a paz e a ordem perturbadas pela desintegração do Estado Polaco e auxiliar a população a reorganizar as condições para a sua existência política”. Maior cinismo era impossível.

A entrada das tropas soviéticas, na retaguarda das tropas polacas, comprometeu definitivamente a resistência polaca, já à beira da rotura. Em 29 de Setembro Varsóvia capitulava finalmente e era ocupada pela Wehrmacht.

A fase seguinte foi o estabelecimento “forçado” de bases militares nos estados bálticos através da imposição de pactos de assistência mútua (Estónia em 28 de Setembro, Letónia em 5 de Outubro e Lituânia em 10 de Outubro). Após a queda da França, e tirando partido da provável vitória da Alemanha na guerra que, tudo indicava, iria conduzir à liquidação do direito internacional e à entrega do mundo ao império do gangsterismo político, a URSS criou governos fantoches na Lituânia, Estónia e Letónia que estabeleceram repúblicas soviéticas naqueles estados. Entretanto, em 12 de Outubro o governo soviético, a seu pedido, iniciou negociações com a Finlândia. Todavia, e tentando prevenir uma situação idêntica à ocorrida com os estados bálticos, quer os restantes países escandinavos, quer os EUA enviaram mensagens aos dirigentes soviéticos mostrando a sua inquietação.

Em 31 de Outubro, Molotov voltou a falar perante o Soviete Supremo: “… Os senhores da Polónia costumavam vangloriar-se da estabilidade do seu país e do poderio do seu exército. Bastou um pequeno golpe do exército alemão, seguido de outro semelhante do exército vermelho para reduzir a nada esse mostrengo gerado pelo Tratado de Versalhes”, acrescentando que os agressores eram agora a França e a Inglaterra e não mais a Alemanha. Já nem sequer havia diferenças de terminologia linguística entre os líderes nazis e soviéticos.

Mas neste discurso, Molotov revelou ainda que tendo o governo finlandês recusado um pacto de assistência mútua, a URSS iria passar ao exame de “questões concretas”. E essas questões concretas seriam “ajustamentos” fronteiriços: anexação pela URSS da região de Vyborg e do sector norte do Lago Ládoga, entre outras coisas. E, mostrando o seu completo desprezo pelo direito internacional, exprimiu a sua surpresa pela mensagem de Roosevelt em favor da Finlândia, declarando-a contrária à neutralidade americana. Intervir em favor dos que estão na iminência de serem devorados viola a “neutralidade”.

As negociações com a Finlândia decorriam quando, em face das reticências desta em aceitar o diktat soviético, houve um alegado incidente fronteiriço que, segundo os soviéticos, consistiu num bombardeamento efectuado pelos finlandeses às guarnições fronteiriças soviéticas, causando a morte de diversos soldados. Um “incidente” semelhante aos encenados pelos nazis nas vésperas das suas agressões. Em 26 de Novembro Molotov entregava ao ministro da Finlândia em Moscovo uma nota de protesto sobre este imaginário incidente, exigindo a retirada das tropas finlandesas para além de 25 kms da fronteira. A 27, o governo finlandês consentia, sob reserva de reciprocidade. A 28 Molotov invocava novos incidentes e denunciava o pacto de não-agressão russo-finlandês. Em 30 de Novembro de 1939, a URSS (170 milhões de habitantes) atacava a Finlândia (3,65 milhões de habitantes), sem prévia declaração de guerra.

Foi imediatamente constituído um governo da República Democrática Finlandesa, presidido por Kuusinen (um membro do Komintern) e sediado numa cidade fronteiriça ocupada pelos soviéticos nas primeiras horas da guerra e assinado um Pacto de Amizade e Assistência Mútua com aquele governo fantoche. Os alemães ocupavam primeiro os países e criavam um governo fantoche depois. Aos soviéticos bastava qualquer posto fronteiriço, ou provavelmente nem isso.

Em face da agressão soviética, o governo finlandês pediu em 3 de Dezembro a convocação urgente do Conselho e da Assembleia da Sociedade das Nações. O Conselho reuniu a 9 e fixou a procedimento a seguir na Assembleia que reuniu a 11. A Sociedade das Nações dirigiu um ultimato à URSS, exigindo a cessação imediata das hostilidades, oferecendo a sua mediação e dando um prazo de 24 horas para resposta. Molotov, em nome do governo soviético, declinou o “amável convite da SDN”. Em 14 de Dezembro, a Assembleia considerava inválidas as justificações apresentadas pelo governo soviético, reconhece que a URSS se colocou fora do pacto da SDN pela sua agressão à Finlândia. A resolução da SDN apelava a cada membro que fornecesse a assistência material e humanitária à Finlândia que pudesse. Votaram a favor 31 países e houve 9 abstenções – os 3 estados escandinavos (demasiado expostos face à Alemanha e à URSS), os 3 estados bálticos (já ocupados militarmente pela URSS), a Bulgária, a China e Suiça (Alemanha, Itália e o Japão já tinham entretanto abandonado a SDN). No mesmo dia, e na sequência desta resolução, o Conselho da SDN associou-se à condenação da Assembleia e excluiu a URSS da SDN com base no articulado do pacto.

A ofensiva soviética foi contida na Linha Mannerheim em 12 de Dezembro e em 19 de Dezembro, quando foram comemorados os 60 anos de Estaline, o “Pai dos Povos”, as tropas soviéticas sofriam revezes sucessivos e perdas significativas em meios humanos e materiais. Só em fins de Fevereiro e após pesadas baixas é que os soviéticos conseguiram romper as defesas finlandesas.

O tratado de paz assinou-se em 12 de Março. A Finlândia, com uma população 50 vezes menor do que a URSS, já não podia resistir, e a URSS, que via o enorme ressentimento e indignação que aquela agressão injusta a um pequeno país havia causado no ocidente, e face às enormes baixas que havia sofrido, preferiu uma paz rápida para minimizar os prejuízos políticos da agressão. Nunca mais se ouviu falar do governo da República Democrática Finlandesa, presidido por Kuusinen.

Vyborg foi a única cidade finlandesa importante conquistada. Todos os seus habitantes fugiram. A Finlândia é hoje um país próspero, com cidades bem construídas e com um ambiente urbano extremamente agradável. Estive em Vyborg (Vipurii) há poucos meses. É uma cidade arruinada, onde a maioria dos edifícios e infra-estruturas está completamente degradada.

A política pró-nazi da liderança soviética continuou, todavia. A ocupação alemã da Dinamarca e da Noruega foi, a princípio, atribuída pela imprensa soviética às provocações franco-britânicas. Os comunistas franceses e a classe operária francesa eram instruídos na “verdade” que a guerra contra a Alemanha era “imperialista” e “injusta”.

Quando a Alemanha atacou a Holanda e a Bélgica a Pravda escreveu em editorial “…até agora o bloco franco-britânico pode vangloriar-se de um único sucesso: jogou mais dois países numa guerra imperialista; duas outras nações foram condenadas ao sofrimento e à fome”.

A blitzkrieg alemã em França e a esmagadora vitória de Hitler, deixou estupefacta a URSS. Esperava que os exércitos alemão e francês se exaurissem na frente ocidental. Afinal, as baixas alemãs na França, contra as tropas franco-britânicas, tinham sido inferiores às baixas soviéticas na Finlândia. A URSS ficava com uma longa fronteira comum com a Alemanha de Hitler, que entretanto controlava a maioria da Europa industrializada. Parecia que o crime não compensava.

Mas afinal compensou. A agressão nazi à URSS, a necessidade para a Inglaterra (então ainda sozinha), e depois para as potências ocidentais, de apoio no conflito com as potências do Eixo levou a um branqueamento da política da URSS: o pacto com Hitler, a partilha da Polónia, a agressão à Finlândia, as anexações dos estados bálticos, o massacre de Katyn (imputado durante décadas aos nazis), etc., etc., tudo foi “esquecido”. A URSS saiu da guerra imaculada. Os partidos comunistas da velha Europa, que tinham pactuado com Hitler, emergiram da guerra apenas como heróis da resistência e da liberdade. Tudo o resto foi esquecido, primeiro em nome da realpolitik e depois em nome do “politicamente correcto”.

Só após a implosão da URSS foi possível falar do protocolo secreto do Pacto Germano-Soviético, dos verdadeiros autores do massacre de Katyn e de tantas outras coisas, sem se ser imediatamente acusado de anti-comunismo primário pelos intelectuais bem-pensantes.

O mais importante dessa efeméride é exactamente isso: o “politicamente correcto” ter mantido, durante mais de meio século, todas estas mentiras como verdades intocáveis. E isso deve ser matéria de reflexão para todos nós.

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dezembro 07, 2003

Uma Homenagem

"O ser humano não é o homem bom de Rousseau, mas é um lutador permanente, capaz de construir valores e de dar o melhor de si por esses valores.

Luta pela liberdade e os direitos fundamentais, tão essenciais à sociedade como o ar que se respira. E luta pela igualdade, a mais actual das lutas por ser a que enfrenta os adversários mais poderosos e mais resistentes."

João Amaral - Colóquio da AML sobre Igualdade de Oportunidades (24-10-00)

João Amaral era um homem de convicções profundas. Tinha dedicado toda a sua vida ao Partido Comunista. Manteve-se fiel à ortodoxia quando apareceram as primeiras dissensões. Continuou com convicções fortes e sem dúvidas. Mas debatia as questões e aceitava a controvérsia. Era difícil contrariá-lo porque punha ao serviço das suas convicções uma poderosa capacidade e força argumentativa. Tinha todavia um charme muito dele que acabava por evitar que diferenças de opiniões criassem a cizânia.

Mesmo quando Carlos Brito, com quem mantinha uma relação de amizade muito para além das relações políticas, começou a ser marginalizado, pareceu que João Amaral continuava com as mesmas convicções fortes e sempre sem dúvidas. Pareceu inicialmente, mas não aconteceu assim. João Amaral encetou um percurso que pouco a pouco o levou a pôr em causa o funcionamento do partido, o centralismo democrático. Começou a aperceber-se de muitas das causas que tinham originado a implosão do mundo comunista na Europa de Leste. E a viagem à Coreia do Norte acabou por ser a sua Estrada de Damasco. Aquela caricatura sacralizada do marxismo, sociedade hierática, ritualizada, um universo orwelliano levado ao paroxismo, fez-lhe ver que teria que haver mudanças profundas no aparelho partidário para adequar o PC a uma sociedade democrática e tolerante.

E com o mesmo empenho que tinha votado ao serviço da ortodoxia do PC, lutou pela renovação do seu partido de sempre. E continuou a lutar com a mesma determinação mesmo depois de saber que o seu fim estava próximo.

Era, na minha opinião, uma luta inglória. A luta entre renovadores e a ala ortodoxa do PC não vai sair do impasse. Os conservadores estão prisioneiros da sua ortodoxia, dos chavões leninistas e da III Internacional e os renovadores, para além de pedirem um congresso e regras de democracia interna que permita que esse congresso reflicta a vontade dos militantes comunistas, não têm qualquer ideia visível sobre a política portuguesa.

Aliás, o problema da esquerda portuguesa, actualmente, é o de ser um deserto de ideias. E esse vazio de ideias abrange toda a esquerda e não apenas o PC. A esquerda rege-se por princípios, mas os princípios, se não forem permanentemente validados e reajustados face a uma realidade mutante, tornam-se chavões. E o que a esquerda tem hoje são chavões a que o tempo e a evolução da sociedade fez perder a substância.

A direita é mais pragmática e, numa época de crise, como a que atravessamos, consegue uma aderência maior à realidade. E sabe dar uma imagem de tolerância e de respeito pelos seus adversários políticos que falta a muitos sectores da esquerda.

Santana Lopes foi exemplar nessa imagem, na homenagem prestada hoje, 7 de Dezembro, dia em que o João Amaral faria 60 anos. Foi simples, dizendo o que era importante dizer, sem arroubos linguísticos, sem retóricas, apenas simplicidade e sensibilidade.

E, no seu estilo coloquial, nem faltaram deslizes deliciosos. A viúva do João Amaral nunca acrescentou o apelido do marido ao seu nome. Sempre que Santana Lopes se lhe dirigia, quer nos Paços do Concelho, na sessão de entrega da Medalha de Honra da cidade, quer no palanque instalado na rua que passou a designar-se por João Amaral, junto à placa toponímica que ia ser descerrada, dizia: "… Luisa … am ... ah ... gr ... Ferreira … hum ... hum … Amaral" – hesitante, e olhando para ela a ver se havia acertado. Ainda não está habituado à possibilidade das mulheres não usarem os apelidos dos maridos.

Parecia Mr. Bean a celebrar um dos casamentos nos “4 Casamentos e um Funeral” e a enganar-se no nome do noivo.

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novembro 12, 2003

Os noventa anos de Cunhal e o PCP

Os adeptos do marxismo soviético, tal como ele foi vivido desde a implantação do regime soviético até hoje, e os incondicionais do PCP em particular, patenteiam a psicologia típica do portador de mitos: a sensação de segurança e de superioridade que lhes advêm da convicção de que têm no bolso a chave de todos os eventos do mundo, a resposta para todas as perguntas; a sensação exaltante de estarem ligados a um processo absoluto; a sensação inebriante de se contarem entre os eleitos; a agressividade natural contra quem pensa de outra maneira, quem não está de posse da verdade revelada e portanto, no fundo, só pode pensar de forma absurda ou pretender fazer propaganda hostil. Até à queda do muro, em qualquer discussão com um “marxista sovieticus”, qualquer pessoa se aperceberia rapidamente que ele considerava que quem pensava de maneira diferente não só estaria enganado, como seria um facínora e um celerado a soldo da conspiração imperialista e capitalista contra o paraíso dos trabalhadores.

Mas quando um tal partido político resolve considerar que é o único capaz de identificar os interesses gerais e essenciais dos trabalhadores, bem como as necessidades de transformação da sociedade, e que por conseguinte tem o direito de transformar revolucionariamente a sociedade de acordo com a sua teoria, nessa altura tal pretensão não só entra em contradição com as reais necessidades do desenvolvimento social como implica mesmo a negação das próprias justificações filosóficas de semelhante teoria da sociedade. O facto de apresentar os seus próprios conhecimentos como «objectivamente verdadeiros» e considerar todos os outros errados e resultantes de interesses partidários hostis dá aos membros do partido o direito moral de fazerem todas as interferências no desenvolvimento social de acordo com a teoria própria do partido, sem serem obrigados a respeitar outras opiniões ou outras teorias. Está totalmente posta de parte a possibilidade de eles cometerem erros teóricos ou mesmo tirar deles conclusões falsas e prematuras.

Hoje em dia qualquer cientista sabe que há conclusões que surgem como objectivamente correctas numa primeira etapa do processo de investigação, mas podem ser completamente rejeitadas por dados totalmente novos a que inicialmente não se prestara atenção ou que estavam ainda embrionários. Mas para o Leninismo, e para o seu discípulo Cunhal, todos os processos do desenvolvimento capitalista do início do séc XX eram de tal modo evidentes e de tal modo pareciam confirmar a teoria marxista que todas as objecções teóricas e todas as dúvidas tinham forçosamente de ser a expressão de intenções políticas hostis à classe operária, embusteiras e reaccionárias. Ora acontece que algumas décadas mais tarde veio a verificar-se que a pauperização do proletariado não é o resultado das relações de produção capitalistas ultrapassadas, mas antes de um insuficiente desenvolvimento do capitalismo; que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram; que as crises económicas do capitalismo nem se agravam nem se aprofundam à medida que o capitalismo se desenvolve, reduzindo-se a perturbações macroeconómicas geridas pelo próprio sistema; que finalmente a concentração do capital não eliminou a atomização do capital e não implicou a simplificação da estrutura social, nem a hegemonia absoluta dos proletários na sociedade visto que o proletariado de Marx está em vias de extinção devido à forma como as forças produtivas evoluíram . Portanto, verifica-se que as relações de produção capitalistas não se tornaram obstáculos ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas e que justificar a transformação do sistema social terá que ser encarada sob outro prisma.

Embora tais argumentos não neguem o carácter, em princípio progressista, e o significado positivo do socialismo para a humanidade, continua a ser necessário, face a toda a experiência passada, modificar o próprio conteúdo desta noção. Nem a ditadura do proletariado, nem a nacionalização dos meios de produção, nem a liquidação das funções essenciais do mercado, etc., se podem considerar elementos constitutivos da essência do socialismo. À luz desta conclusão e desta experiência, o critério fundamental que justifica o direito da representação única dos interesses dos trabalhadores revela-se desde o início totalmente errado. A teoria marxista era necessariamente limitada no que toca a conhecimentos; continha mesmo afirmações e conclusões completamente falsas. Face à sua própria teoria do conhecimento ou eventualmente às experiências históricas, ela nunca devia ter surgido, em sistemas ideológicos totalitários, como intérprete exclusiva das necessidades do desenvolvimento social.

Mas o facto de os fundadores do partido e es seus membros a si próprios se apresentarem como os únicos representantes dos interesses dos trabalhadores não permite que, em condições democráticas, consideremos isso uma usurpação objectiva, mas apenas uma pretensão a tal. Será o ponto de partida, falso e sem fundamento teórico, de um processo ainda mais perigoso: a ideologia constituída irá transformar os partidos comunistas em instituições de intolerância e de autoridade que aspiram sem escrúpulos a uma sociedade em que a única expressão política seja a sua. Tal ausência de escrúpulos explica-se sobretudo pelo facto de se interpretarem de maneira primária os interesses da humanidade, os meios de conhecê-los e a importância das condições democráticas indispensáveis à vida e aos diversos interesses. O facto de os fundadores e ulteriores dirigentes dos partidos se terem convencido (mesmo que o tenham feito de forma subjectivamente honesta) de que podiam conhecer e conheciam mesmo os interesses de todos os trabalhadores e as condições da sua realização, conduz logicamente quanto mais se acentua a luta política e se reforça o processo à ideia de que qualquer outro partido político é não só supérfluo mas também impede que se realize o «bem-estar» concebido pelo partido.

Por isso é que em Álvaro Cunhal, subjectivamente convencido da actualidade objectiva da revolução socialista, se nota uma intolerância em relação àqueles que ideologicamente se afastam da sua teoria, intolerância essa característica de todos os dirigentes comunistas desde Lenine, mas também uma luta impiedosa pela liquidação de toda a oposição, mesmo próxima, principalmente a mais próxima, a que pode corromper a pureza ideológica. O partido único do sistema socialista (“sistema” hoje reduzido a algumas relíquias que se arrastam penosamente), enquanto representante dos «interesses reconhecidos» dos trabalhadores, é o resultado lógico de tal processo.

Elogiar a coerência de Cunhal, é elogiar o imobilismo, a repetição de conceitos invalidados pela prática e a ideia que a realidade e a vida são coisas imutáveis. É a recusa em analisar a realidade de uma forma dialéctica e extrair as conclusões adequadas. É inclusivamente a recusa da postura do jovem Marx, do Marx filósofo. E isto é o que o pensamento de Cunhal tem de mais perverso.

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outubro 27, 2003

Adam Smith e Marx

A pergunta é: pessoas que aparentam, ou julgam aparentar, ter um abismo político entre si, estarão, por esse motivo, nos antípodas uma do outra? Estarão certamente se interpretarem a adesão política como a adesão a um clube desportivo. Mas se essa adesão constituir apenas um epifenómeno e o que é estrutural é uma visão da sociedade baseada numa abordagem cultural e filosófica?

Comparemos Adam Smith e Marx. Há cerca de um século de distância entre um e outro, portanto qualquer comparação terá que ter em conta essa diferença temporal.

Ambos analisaram o comportamento da sociedade e dos seus agentes económicos do ponto de vista da produção e do consumo.

Adam Smith pôs a tónica no comportamento dos agentes económicos e na forma como esse comportamento, numa sociedade livre e sem coacções extra-económicas, consegue maximizar o bem estar social independentemente do facto dos agentes económicos apenas se interessarem pelo seu próprio ganho.

Escreveu Adam Smith “Na realidade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que ponto o está a fazer …. só está a pensar na sua própria segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público.”

Esta formulação de Adam Smith foi a base da Economia Positiva e da teoria microeconómica ainda em vigor.

Marx pôs a tónica no devir social e na forma como o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção cria clivagens sociais, comportamentos diferenciados entre os grupos sociais que detêm essa propriedade e os grupos sociais não possidentes, clivagem essa que origina uma luta de classes que se torna o motor da sociedade e a leva, mais tarde ou mais cedo, a ser substituída por outra sociedade em que o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção seja diverso do da anterior.

Marx escrevia “A Economia Política parte da existência da propriedade privada; não a explica”. E tem razão nesse ponto. Mas tal constituirá uma razão de superioridade do pensamento económico de Marx sobre Adam Smith?

Marx escreve nos Manuscritos: “A alienação do trabalhador no objecto do seu trabalho, é expressa da seguinte maneira nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu trabalho, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho tanto mais frágil o trabalhador; quanto maior a inteligência revela o trabalho tanto menos inteligente e mais escravo da natureza se torna o trabalhador”.

Esta texto poderá fazer as delícias de alguns mitómanos da esquerda radical. Mas terá sido confirmado pela história económica? O trabalhador tornou-se mais bárbaro e grosseiro à medida que o produto do seu trabalho se tornou mais aperfeiçoado e civilizado? É óbvio que não. Marx ficou preso, na sua análise, ao tempo e ao espaço das manufacturas de meados do século XIX.

Não será mais actual a afirmação de Adam Smith que “A real e eficaz disciplina exercida sobre o trabalhador não é a da sua corporação, mas a dos seus clientes. É o medo de perder o emprego que o refreia na prática de fraudes e lhe corrige a negligência. Uma corporação exclusivista necessariamente retira força a este tipo de disciplina. Há, nessas circunstâncias, um determinado grupo de trabalhadores que de certeza obterá emprego, seja qual for o seu comportamento”. Não foi a inexistência deste efeito de mercado que provocou a ineficiência económica do regime soviético? Que tornou, nesse regime, menos aperfeiçoado e civilizado o produto do trabalhador?

No seu sóbrio e prático raciocínio de um burguês britânico, Adam Smith ficou em muitos aspectos mais actual, ainda hoje, que Marx, embora a profundidade de análise deste sobre o devir histórico e social continue a ser uma peça imprescindível a quem queira estudar a história económica.

Estariam nos antípodas um do outro? Seria Marx de esquerda e Adam Smith de direita (no tempo de Adam Smith, esquerda e direita não tinham qualquer significado político) ?

Não, há uma estranha complementaridade entre ambos. Adam Smith preocupou-se com o funcionamento económico da sociedade em que vivia. E extraiu dessa observação conceitos extraordinariamente operacionais, ainda em vigor, embora relativizados pela necessidade da manutenção de um consenso social. Marx preocupou-se com as causas do devir social e histórico e estabeleceu uma teoria explicativa desse devir que continua a manter algum poder explicativo, embora a sua aplicação mecânica e absoluta se tenha revelado insuficiente e mesmo errónea.

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outubro 03, 2003

Hegel e Marx

Escreve-se frequentemente: “Hegel defendia a transformação apenas ao nível do Pensamento , enquanto Marx …” Isso não é rigoroso. A verdade é que, para Hegel, o motor da transformação é a Razão num processo dialéctico que caminha para a Ideia Absoluta, em que se realiza a plena identidade do sujeito com o objecto. Em vez de o sujeito ter o objecto como algo fora de si, exterior a si, alheio a si, agora, reconhece o objecto como idêntico consigo mesmo. A Ideia Absoluta é, pois, a verdade absoluta, e a necessidade de a atingir, o motor da história. Eu diria que a Ideia Absoluta é uma verdade absoluta que a história persegue sem nunca a atingir

Aliás, só se pode compreender a dialéctica hegeliana em ligação com a revolução e a destruição do mundo feudal, e isso não se passou no “Pensamento”. O seu papel foi traduzir filosoficamente o movimento revolucionário da época. Ela é revolucionária também quanto à forma:
a) Separação dos dados imediatos, ruptura radical com o que existe, novo começo.
b) Princípio da oposição e da negação.
c) Princípio da mudança e do desenvolvimento incessantes - o “salto qualitativo”.

Toda a ideia tem três momentos: primeiro apresenta-se (a tese); opõe-se a si mesma (a antítese); e, finalmente, regressa a si mesma conciliando tese e antítese (a síntese).

Portanto, em ambos, Hegel e Marx, a transformação ocorre na prática. A diferença é que motor dessa transformação é, em Hegel a Ideia, a Razão, e em Marx são as forças produtivas e as relações de produção, i.e., a forma como o Homem e as forças produtivas se relacionam entre si no processo produtivo.

Para Hegel, sendo a História um aperfeiçoamento do Espírito, é necessariamente um crescimento de liberdade. Os factos da História comprovam isto. Nas primeiras civilizações, apenas um era livre (o Faraó, por exemplo) e os demais, escravos. Depois, vieram civilizações como a grega, a romana, em que alguns eram livres (as oligarquias privilegiadas, as aristocracias) e os demais, escravos. Finalmente chegaremos a um estado na História em que ninguém será escravo e todo serão realmente livres.

Todavia para Hegel, ao contrário de Marx, é a Razão quem dirige a História. Existe uma "astúcia da Razão", que utiliza os homens da História universal, imbuídos que são, regra geral, da sede do poder, da glória, da ambição, para através destes objectivos “egoístas” trazerem para a humanidade uma liberdade maior, um estado superior de civilização.

Em Marx, e cito o prefácio à “Zur Kritik der Politischen Ökonomie”: “Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se alicerça uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência”.

Sobre o que se designou depois por Materialismo Histórico, Marx pouco mais adiantou. Todavia, entre os seus epígonos, os conceitos de «relações de produção» e de «forças produtivas» são, com muita frequência, utilizados sem que necessariamente se saiba aquilo de que se abstraiu na formação de tais conceitos. Quando os epígonos de Marx falam das relações recíprocas entre «relações de produção» e «forças produtivas», geralmente menosprezam o número infinito de fenómenos concretos, de homens, de coisas e de acções pelos quais essas relações, expressas de maneira abstracta, surgem concretamente na realidade.

Engels teria consciência disso, pois numa carta a Borgius, em 1894, frisou que, e eu cito isto frequentemente, por julgar que se trata de um passo importante de um dos fundadores do marxismo, “o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., assenta no desenvolvimento económico. Mas reagem todos, uns sobre os outros, e sobre a base económica. Mas isto não porque a situação económica seja a única causa activa, e tudo o resto não passe de acção passiva. Pelo contrário, há uma acção recíproca”.

Isto é, Marx, na sua luta contra o idealismo hegeliano, levou a que os seus epígonos transformassem a teoria numa simplificação mecânica e unilateral do desenvolvimento histórico na medida em que só destacam as grandes transformações qualitativas do sistema social mas não tem em devida conta os processos complexos e prolongados que as preparam, nomeadamente o desenvolvimento concreto dos interesses e da estrutura social, subestimando a liberdade da acção individual e ignorando as motivações da acção subjectiva.

Em Hegel havia idealismo, mas havia dialéctica; no Marxismo soviético o idealismo foi substituído pelo mecanicismo e a dialéctica por um escolasticismo axiomático.

É essa a razão de “os regime marxistas terem falhado miseravelmente” ... de Marx só tinham os chavões.

9-Julho-2003

Publicado por Joana às 09:48 AM | Comentários (5) | TrackBack

outubro 01, 2003

Uma nova esquerda?

Reflexões com a morte de João Amaral como pano de fundo
A luta entre renovadores e a ala ortodoxa do PC não vai sair do impasse. Os conservadores estão prisioneiros da sua ortodoxia e dos chavões leninistas e da III Internacional e os renovadores, para além de pedirem um congresso, não têm qualquer ideia visível sobre a política portuguesa.

Aliás, o problema da esquerda portuguesa, actualmente, é o de ser um deserto de ideias. A esquerda rege-se por princípios, mas os princípios, se não forem permanentemente validados e reajustados face a uma realidade mutante, tornam-se chavões. A direita é mais pragmática e, numa época de crise, como a que atravessamos, consegue uma aderência maior à realidade.

A esquerda precisa urgentemente de reavaliar a sua estratégia a curto e a longo prazo. A longo prazo, a esquerda que se reclama do marxismo devia reler Marx, principalmente a parte mais teórica (e menos datada) porque se tornou claro que a sociedade sem classes já não está ali ao virar da esquina

O marxismo e a história
Na minha opinião, a teoria marxista é um resumo simplificado e unilateral do desenvolvimento histórico na medida em que só destaca as grandes transformações qualitativas do sistema social mas não tem em devida conta os processos complexos e prolongados que as preparam, nomeadamente o desenvolvimento concreto dos interesses dos diferentes segmentos sociais e da estrutura social mais complexa do que a historiografia marxista tenta fazer crer

Tal representa uma subestimação do desenvolvimento progressivo, contínuo e a longo prazo, e ao mesmo tempo uma sobrevalorização do significado dos «avanços revolucionários» na história. Daí também que o papel histórico das classes e dos interesses que se opuseram ao sistema estabelecido e foram levados a combatê-lo tenha sido unilateralmente privilegiado, enquanto os interesses sociais favoráveis a um desenvolvimento da actividade humana, contínuo, progressivo, tanto económico como não económico, foram pura e simplesmente esquecidos, simplificados ou identificados com os interesses «revolucionários» (Notar, p.ex., a forma como o regime feudal se diferenciou durante a Alta Idade Média, a época do desenvolvimento dos concelhos, p. ex. em Portugal, a evolução da sociedade francesa entre a Fronda e a Revolução Francesa, etc.)

A concepção mecânica da necessidade histórica e a subestimação da liberdade de acção individual exprimem-se na ignorância das motivações da acção subjectiva. Deste ponto de vista são sobretudo as necessidades e os interesses dos homens que ficam fora do campo de reflexão dos «marxistas»; e mesmo a questão relativa ao papel dos interesses humanos na história e na economia, etc., é rechaçada como «psicologismo subjectivista»

A concepção marxista original do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou. A classe operária não constitui a maioria, não está pauperizada e já não é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social. A intelligentsia técnica e económica tornou-se a força motriz decisiva do desenvolvimento das forças produtivas sociais.

Um caso paradigmático foi a revolução bolchevique e a evolução do Estado Soviético. Foi a primeira vez que na história se edificou uma formação social, inclusive no seu sistema económico, de acordo com uma concepção teórica. A instauração do regime bolchevique correspondeu ao estabelecimento de modelos sociais e económicos pré-estabelecidos, pela força, sem quaisquer contemplações pela vontade das populações, como foi o caso da colectivização forçada.

Ora isto é a ideia como motor da história! O Estado Soviético não se baseava no marxismo, mas sim no hegelianismo! Foi Hegel, sem querer, o inspirador teórico daquele evento e do que se seguiu. Todo o movimento comunista, a partir da III internacional se baseia no hegelianismo-leninismo!

Mas em Hegel, a Ideia Absoluta era uma verdade absoluta que a história persegue sem nunca a atingir. Era o motor da história e do aperfeiçoamento humano. A ideia do “Estado Socialista” era um estereótipo escolástico, oposto à dialéctica hegeliana. Seria portanto um hegelianismo-leninismo amputado da dialéctica.

O materialismo histórico criou a ideia geral de que a força motriz do desenvolvimento da sociedade é sobretudo a produção, que se reflecte sempre na existência de camadas sociais distintas, de interesses sociais contraditórios e que conduz finalmente, por força da sua própria contradição interna, à transformação revolucionária de todo o sistema social. Porém, só as transformações das relações económicas que trouxeram consigo um desenvolvimento social superior, mais produtivo e eficaz economicamente, puderam impor-se e manter-se. Todas as tentativas revolucionárias, levadas por visões idealistas, que não corresponderam às necessidades económicas e não conseguiram gerar novos sistemas económicos viáveis, ruíram rapidamente como a revolta dos escravos de Spartacus, como o movimento dos Hussitas e diversos movimentos «milenários» e, mais lentamente e com maiores custos, como o Estado Soviético e as democracias populares da Europa de Leste.

Só uma análise científica concreta dos interesses sociais pode realmente descobrir-lhes o conteúdo e função na sociedade.
Teorias que num dado momento eram objectivamente verdadeiras e ao mesmo tempo serviam o interesse de um grupo social que lutava por transformações progressistas da sociedade podem, num estado de evolução posterior, imobilizar-se em teorias insuficientes, unilaterais ou mesmo falsas; da mesma maneira que um grupo social, outrora progressista, se pode tornar transmissor de interesses muito conservadores.
Os próprios conhecimentos produzidos por Karl Marx, por muito importantes que na sua época tenham sido, eram apenas os conhecimentos histórica e humanamente limitados de só indivíduo; por isso, qualquer tentativa de os apresentar como definitivos, encerrados e irrefutáveis, transforma-os em dogmas ideológicos que deixam de ter a ver o que quer que seja com a ciência

A esquerda agora
No que respeita ao curto prazo, há a necessidade de gerir uma sociedade baseada na apropriação privada dos meios de produção que, conforme pretendi demonstrar nos textos anteriores, não tem alternativa a curto e a médio prazo. Essa gestão terá que se basear na eficiência económica e no consenso social. Para haver consenso social é preciso distribuir riqueza. Mas distribuir riqueza, mantendo o sistema a funcionar com prosperidade e de uma forma sustentável. Distribuir o que não há é ilusório e conduz, mais tarde ou mais cedo, ao endividamento, à crise e ao atraso económico.
Quando A Guterres ganhou as eleições de 1995, tinha esta concepção, ou pelo menos eu julguei que ele a tinha e teve o meu apoio. Todavia foi incapaz de promover qualquer política coerente, viu-se arrastado pelos lobbies do aparelho PS, nomeadamente o do Grande Porto, promoveu, ele próprio, ou deixou que promovessem, a criação de mais lobbies e os sucessivos governos tiveram uma gestão cada vez mais laxista e ruinosa, até se chegar à demissão de Guterres.
Todavia, Guterres mostrou, na tomada de decisão de demitir-se, uma clarividência e consciência da situação em que o país estava e da impossibilidade de ele próprio rectificar a situação, que não era acompanhada pelos seus pares, nomeadamente (e citando apenas como exemplo) por G de Oliveira Martins que, apesar de excelente pessoa, nunca percebeu quanto era o deficit e fez uma triste figura ao longo dos últimos 4 meses do governo de Guterres.

Julgo, para terminar, que a esquerda deveria fazer uma profunda reflexão sobre a actual situação. António Barreto e outros têm vindo a terreiro com reflexões e ideias novas.

Todavia, o que vem para a ribalta é aquele grupo parlamentar truculento e maledicente que terá que mudar rapidamente de estilo. Os parlamentares socialistas não se podem comportar como o BE, que nunca terá responsabilidades governativas, nem como os kamikases dos fóruns da net, que vivem a coberto dos nicks. O PS é um partido da área do poder e tem que se comportar como tal.

12-Janeiro-2003

Publicado por Joana às 04:03 PM | Comentários (8) | TrackBack