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outubro 01, 2003

Uma nova esquerda?

Reflexões com a morte de João Amaral como pano de fundo
A luta entre renovadores e a ala ortodoxa do PC não vai sair do impasse. Os conservadores estão prisioneiros da sua ortodoxia e dos chavões leninistas e da III Internacional e os renovadores, para além de pedirem um congresso, não têm qualquer ideia visível sobre a política portuguesa.

Aliás, o problema da esquerda portuguesa, actualmente, é o de ser um deserto de ideias. A esquerda rege-se por princípios, mas os princípios, se não forem permanentemente validados e reajustados face a uma realidade mutante, tornam-se chavões. A direita é mais pragmática e, numa época de crise, como a que atravessamos, consegue uma aderência maior à realidade.

A esquerda precisa urgentemente de reavaliar a sua estratégia a curto e a longo prazo. A longo prazo, a esquerda que se reclama do marxismo devia reler Marx, principalmente a parte mais teórica (e menos datada) porque se tornou claro que a sociedade sem classes já não está ali ao virar da esquina

O marxismo e a história
Na minha opinião, a teoria marxista é um resumo simplificado e unilateral do desenvolvimento histórico na medida em que só destaca as grandes transformações qualitativas do sistema social mas não tem em devida conta os processos complexos e prolongados que as preparam, nomeadamente o desenvolvimento concreto dos interesses dos diferentes segmentos sociais e da estrutura social mais complexa do que a historiografia marxista tenta fazer crer

Tal representa uma subestimação do desenvolvimento progressivo, contínuo e a longo prazo, e ao mesmo tempo uma sobrevalorização do significado dos «avanços revolucionários» na história. Daí também que o papel histórico das classes e dos interesses que se opuseram ao sistema estabelecido e foram levados a combatê-lo tenha sido unilateralmente privilegiado, enquanto os interesses sociais favoráveis a um desenvolvimento da actividade humana, contínuo, progressivo, tanto económico como não económico, foram pura e simplesmente esquecidos, simplificados ou identificados com os interesses «revolucionários» (Notar, p.ex., a forma como o regime feudal se diferenciou durante a Alta Idade Média, a época do desenvolvimento dos concelhos, p. ex. em Portugal, a evolução da sociedade francesa entre a Fronda e a Revolução Francesa, etc.)

A concepção mecânica da necessidade histórica e a subestimação da liberdade de acção individual exprimem-se na ignorância das motivações da acção subjectiva. Deste ponto de vista são sobretudo as necessidades e os interesses dos homens que ficam fora do campo de reflexão dos «marxistas»; e mesmo a questão relativa ao papel dos interesses humanos na história e na economia, etc., é rechaçada como «psicologismo subjectivista»

A concepção marxista original do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou. A classe operária não constitui a maioria, não está pauperizada e já não é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social. A intelligentsia técnica e económica tornou-se a força motriz decisiva do desenvolvimento das forças produtivas sociais.

Um caso paradigmático foi a revolução bolchevique e a evolução do Estado Soviético. Foi a primeira vez que na história se edificou uma formação social, inclusive no seu sistema económico, de acordo com uma concepção teórica. A instauração do regime bolchevique correspondeu ao estabelecimento de modelos sociais e económicos pré-estabelecidos, pela força, sem quaisquer contemplações pela vontade das populações, como foi o caso da colectivização forçada.

Ora isto é a ideia como motor da história! O Estado Soviético não se baseava no marxismo, mas sim no hegelianismo! Foi Hegel, sem querer, o inspirador teórico daquele evento e do que se seguiu. Todo o movimento comunista, a partir da III internacional se baseia no hegelianismo-leninismo!

Mas em Hegel, a Ideia Absoluta era uma verdade absoluta que a história persegue sem nunca a atingir. Era o motor da história e do aperfeiçoamento humano. A ideia do “Estado Socialista” era um estereótipo escolástico, oposto à dialéctica hegeliana. Seria portanto um hegelianismo-leninismo amputado da dialéctica.

O materialismo histórico criou a ideia geral de que a força motriz do desenvolvimento da sociedade é sobretudo a produção, que se reflecte sempre na existência de camadas sociais distintas, de interesses sociais contraditórios e que conduz finalmente, por força da sua própria contradição interna, à transformação revolucionária de todo o sistema social. Porém, só as transformações das relações económicas que trouxeram consigo um desenvolvimento social superior, mais produtivo e eficaz economicamente, puderam impor-se e manter-se. Todas as tentativas revolucionárias, levadas por visões idealistas, que não corresponderam às necessidades económicas e não conseguiram gerar novos sistemas económicos viáveis, ruíram rapidamente como a revolta dos escravos de Spartacus, como o movimento dos Hussitas e diversos movimentos «milenários» e, mais lentamente e com maiores custos, como o Estado Soviético e as democracias populares da Europa de Leste.

Só uma análise científica concreta dos interesses sociais pode realmente descobrir-lhes o conteúdo e função na sociedade.
Teorias que num dado momento eram objectivamente verdadeiras e ao mesmo tempo serviam o interesse de um grupo social que lutava por transformações progressistas da sociedade podem, num estado de evolução posterior, imobilizar-se em teorias insuficientes, unilaterais ou mesmo falsas; da mesma maneira que um grupo social, outrora progressista, se pode tornar transmissor de interesses muito conservadores.
Os próprios conhecimentos produzidos por Karl Marx, por muito importantes que na sua época tenham sido, eram apenas os conhecimentos histórica e humanamente limitados de só indivíduo; por isso, qualquer tentativa de os apresentar como definitivos, encerrados e irrefutáveis, transforma-os em dogmas ideológicos que deixam de ter a ver o que quer que seja com a ciência

A esquerda agora
No que respeita ao curto prazo, há a necessidade de gerir uma sociedade baseada na apropriação privada dos meios de produção que, conforme pretendi demonstrar nos textos anteriores, não tem alternativa a curto e a médio prazo. Essa gestão terá que se basear na eficiência económica e no consenso social. Para haver consenso social é preciso distribuir riqueza. Mas distribuir riqueza, mantendo o sistema a funcionar com prosperidade e de uma forma sustentável. Distribuir o que não há é ilusório e conduz, mais tarde ou mais cedo, ao endividamento, à crise e ao atraso económico.
Quando A Guterres ganhou as eleições de 1995, tinha esta concepção, ou pelo menos eu julguei que ele a tinha e teve o meu apoio. Todavia foi incapaz de promover qualquer política coerente, viu-se arrastado pelos lobbies do aparelho PS, nomeadamente o do Grande Porto, promoveu, ele próprio, ou deixou que promovessem, a criação de mais lobbies e os sucessivos governos tiveram uma gestão cada vez mais laxista e ruinosa, até se chegar à demissão de Guterres.
Todavia, Guterres mostrou, na tomada de decisão de demitir-se, uma clarividência e consciência da situação em que o país estava e da impossibilidade de ele próprio rectificar a situação, que não era acompanhada pelos seus pares, nomeadamente (e citando apenas como exemplo) por G de Oliveira Martins que, apesar de excelente pessoa, nunca percebeu quanto era o deficit e fez uma triste figura ao longo dos últimos 4 meses do governo de Guterres.

Julgo, para terminar, que a esquerda deveria fazer uma profunda reflexão sobre a actual situação. António Barreto e outros têm vindo a terreiro com reflexões e ideias novas.

Todavia, o que vem para a ribalta é aquele grupo parlamentar truculento e maledicente que terá que mudar rapidamente de estilo. Os parlamentares socialistas não se podem comportar como o BE, que nunca terá responsabilidades governativas, nem como os kamikases dos fóruns da net, que vivem a coberto dos nicks. O PS é um partido da área do poder e tem que se comportar como tal.

12-Janeiro-2003

Publicado por Joana às outubro 1, 2003 04:03 PM

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Comentários

à guisa de comentários, seguem-se algumas reflexões (ou irreflexões) sobre esta matéria.

Publicado por: Joana às outubro 15, 2003 09:55 PM

O materialismo dialéctico alicerça-se no pensamento do “jovem Marx”. Os conceitos fundamentais do materialismo dialéctico foram gerados durante as polémicas com os hegelianos, ao longo das primeiras obras de fôlego de Marx e Engels (A Sagrada Família e a Ideologia Alemã, entre outras). E se Marx não tivesse escrito mais nada depois da Crítica da Economia Política, o materialismo histórico teria existido na mesma.

Publicado por: Nota 1 às outubro 15, 2003 09:56 PM

Do ponto de vista da Teoria Económica, “O Capital” apenas tem valor arqueológico. Quem, no pleno uso das faculdades mentais, acredita na Lei da tendência decrescente da Taxa de Lucro?; na Lei da pauperização crescente do proletariado?; Quem pode acreditar que a classe operária constitui a maioria, está pauperizada e é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social? Na minha opinião, a Teoria da Reprodução Simples e a Teoria da Reprodução Ampliada têm, descontando obviamente o século de diferença, uma importância inferior ao Tableau Économique de Quesnay.

Igualmente, a concepção marxista original (isto é, a de Marx e não dos seus epígonos) do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou e, ao invés, ocorreu e continua a ocorrer o seu enfraquecimento relativo.

N.B.- Mesmo que se objecte que o conceito de proletariado será diferente, hoje em dia, e inclua os trabalhadores intelectuais e a intelligentsia, eu oporia que, de acordo com Marx, sendo a consciência social determinada pelo ser social, então este proletariado não teria nada (ou muito pouco) a ver com o proletariado de Marx.

Publicado por: Nota 2 às outubro 15, 2003 10:07 PM

A questão central do pensamento comunista actual é que, em vez de se confrontarem as teorias com a realidade, validam-se ou rejeitam-se unicamente com base numa comparação com categorias dogmáticas, axiomas teóricos e distinções abstractas onde não cabem concepções novas. O carácter escolástico de polémicas baseadas neste sistema só é comparável com a escolástica religiosa da Idade Média, em que a arte da interpretação dos textos sagrados era mais importante do que a realidade.

Publicado por: Nota 3 às outubro 15, 2003 10:09 PM

Qualquer recém-chegado ao materialismo histórico sabe que, segundo este, numa formação social coexistem diversos modos de produção, sendo um o dominante. Isto não é novidade nenhuma. A questão é que estes conceitos perderam a força vivificadora da análise dialéctica, foram transformados em relações mecânicas, numa espécie de fábrica de salsichas onde entrava o modo de produção esclavagista e saía o modo de produção feudal, entrava o modo de produção feudal e saía o modo de produção capitalista, e depois o socialista, o comunista etc.
Como os epígonos de Marx não conseguiam meter naqueles axiomas as sociedades asiáticas (as civilizações dos grandes rios, nomeadamente a China e a Índia) e a estabilidade e ausência de dinamismo social que evidenciaram ao longo de milénios, andaram a afadigar-se e apareceram com o modo de produção asiático. Tocaram fanfarras: a história estava toda explicada. Tudo era transparente e já não havia lacuna nenhuma. A humanidade não passava de um conjunto imenso de títeres que obedeciam mecanicamente, desde sempre, à lógica implacável das sucessivas teses – antíteses - sínteses que faziam mover a história, num determinismo inexorável, até aos amanhãs que cantam. É de um ridículo atroz ler as actas dos sucessivos congressos que se realizaram sobre o modo de produção asiático, para colmatar essa aparente lacuna de Marx. Todo este dogmatismo não estará eivado da concepção da Ideia hegeliana, como motor da história? Todavia, enquanto que, em Hegel, a verdade estava no próprio processo de conhecer, em que a Ideia é uma verdade absoluta que a história persegue sem nunca a atingir, nos epígonos de Marx é uma ideia cristalizada nos amanhãs que cantam. Em Hegel havia idealismo, mas havia dialéctica; nos epígonos de Marx o idealismo foi substituído pelo mecanicismo e a dialéctica por um escolasticismo axiomático.

Publicado por: Nota 4 às outubro 15, 2003 10:14 PM

Ora Marx apenas se preocupou com as forças económicas e sociais que foram as forças motrizes da transformação da sociedade feudal na sociedade capitalista e que estavam, segundo ele, a transformar a sociedade capitalista em que vivia. Para além do prefácio à Crítica da Economia Política e de alguns parágrafos no Manifesto, não há mais nada de concreto sobre o Materialismo Histórico na obra de Marx. Essa “ciência”, tal como a conhecemos hoje, foi criada pelo pensamento soviético e transformou-se numa vulgata.
O Marx, do tempo em que era mais filósofo e menos sindicalista, ter-se-ia rido e feito, certamente, um escrito ainda mais escarninho contra estes mecanicistas, do que os que fez contra os hegelianos. Estou a vê-lo a escarnecer da descoberta do caminho marítimo para o modo de produção asiático, citando alguma estrofe de Camões sobre o imorredouro feito.

Publicado por: Nota 5 às outubro 15, 2003 10:16 PM

Foi a primeira vez que na história se edificou uma formação social, inclusive no seu sistema económico, de acordo com uma concepção teórica. Se há defeitos substanciais neste sistema, eles devem vir já da teoria. Como citava frequentemente Engels, “a prova do pudim está em comê-lo”. Se as coisas deram para o torto, é porque a teoria de base estava errada. A minha tese é que esse erro começou no facto dos epígonos de Marx terem privilegiado o Marx sindicalista em detrimento do Marx filósofo e continuou pelo declive de espartilhar e reduzir a engrenagens mecânicas, o pensamento dialéctico de Marx e Engels. Mas o pecado original já está em Marx, no Marx da última vintena de anos.

Publicado por: Nota 6 às outubro 15, 2003 10:17 PM

Lembro-me da discussão (do debate) que tivemos no Expresso online sobre estas matérias e é importante a Joana ter reposto esta questão, mesmo em arquivo.

Publicado por: L M às outubro 16, 2003 12:18 PM

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