« Luta de classes em aviões de longo curso | Entrada | Feliz Natal »
dezembro 23, 2003
Álvaro Cunhal no Inverno de 1939-40
Anteontem escrevi um texto sobre a expulsão da URSS da SDN e a política soviética nesses anos de 1939 e 1940 (15-12-1939: a URSS é expulsa da SDN).
Hoje vou dedicar-me a analisar o comportamento do PCP e principalmente do seu líder, Álvaro Cunhal sobre aquela política, durante essa época.
Antes do pacto germano-soviético, as posições do PCP, na imprensa clandestina e na imprensa legal (O Diabo), eram favoráveis a um pacto anglo-russo, como factor estabilizador e anti-fascista. Estavam em uníssono com a política de Litvinov. Todavia, o PCP não se apercebeu, antes da assinatura do pacto germano-soviético e do eclodir da guerra, que a nova política da URSS, após a substituição de Litvinov por Molotov, oscilava entre a frente anti-fascista e um acordo com a Alemanha, dependendo das respectivas “compensações”.
Como a assinatura do Pacto precedeu de pouco mais de uma semana o desencadear da guerra e apenas 2 semanas após esse início, a URSS invadia igualmente a Polónia, o PCP não conseguiu digerir rapidamente todo esse “cataclismo” político.
No “Informe sobre a Situação Internacional”, redigido provavelmente na 2ª quinzena de Outubro de 1939, o PCP (Cunhal, entenda-se) afirma, referindo-se ao Pacto, que “Nem por isso a URSS desistiu de lutar contra o bloco fascista. A URSS não quis limitar-se a ficar de fora da guerra imperialista. Prosseguindo na sua luta contra o fascismo e o imperialismo desmascarou o carácter da guerra e desmembrou o bloco fascista, por meio do pacto germano-soviético, que imediatamente fez desligar o Japão do bloco, considerado inabalável, das potências fascistas”, o que é uma visão absolutamente delirante dos efeitos do pacto, como se viu pelo decurso posterior dos acontecimentos, e acrescenta, mais adiante “Nomeadamente a atitude dos países bálticos (a de serem obrigados a cederem à chantagem soviética) e da Turquia cria uma situação extremamente grave para o capitalismo internacional”.
Mas onde a nova posição do PCP, de equidistância entre a Alemanha nazi e as potências democráticas, se revela mais clara é quando escreve que “Terminadas as operações militares na Polónia e destruída a mistificação da guerra ideológica, as propostas da paz de Hitler criaram a Chamberlain e Daladier uma situação difícil. São efectivamente vagas as propostas de Hitler, mas a argumentação que as acompanha e alguns dos seus princípios gerais não podem ser facilmente contrabatidos pelos representantes do imperialismo franco-britânico? Como podem eles justificar a continuação da guerra ofensiva contra a Alemanha? Pela reconstituição da Polónia? Mas o Estado polaco revelou-se um aglomerado inconsistente”.
Portanto, a luta contra o Eixo fascista era “a mistificação da guerra ideológica”. Enuncia, além disso, a tese dos Estados inconsistentes saídos do Tratado de Versalhes, que era uma dos refrãos preferidos dos dirigentes nazis e que a nova política soviética estava igualmente a utilizá-los, como escrevi no meu artigo anterior. O PCP revelava-se um aluno fiel da nova política soviética.
Mais adiante, no mesmo informe, Cunhal assinala que “a paz criaria dificuldades económicas insuperáveis para os governos capitalistas. Tornar-se-ia necessário canalizar para a produção útil todas as actividades de guerra; superprodução e desemprego voltariam, enormemente agravados. Cada um dos governos capitalistas da Europa sabe o que isto significa para o capitalismo. Por isso todos fogem da paz, mesmo quando são obrigados a propô-la. Por isso os trabalhadores devem lutar obstinadamente pela paz”. Portanto, as potências democráticas eram igualmente responsáveis pela guerra. Já não havia diferença entre democracia e fascismo.
Essa indiferenciação era visível num artigo sobre uma mensagem de Jules Romains: "Diz Jules Romains que a guerra foi provocada pelos países totalitários. Mas não sei por que razão, refere-se sempre e unicamente à Alemanha. Não existirão para Jules Romains outros países totalitários?" (O Diabo, 16/12/1939). Os beligerantes são iguais, ambos têm «telhados de vidro»(O Diabo, 23/12/1939).
Quando foi desencadeada a agressão à Finlândia uma nota de O Diabo sugere que «não seria por acaso que os ingleses e americanos protestam contra a invasão da Finlândia em auxílio ao governo popular de Otto Kuusinen».(O Diabo, 23/12/1939) Motivo? “Interesses imperialistas nos jazigos de níquel de Petsamo”. Este texto é paradigmático da propaganda comunista. O “governo popular de Otto Kuusinen” era um governo fantoche cujas circunstâncias da sua criação descrevi no meu artigo anterior. Portanto a URSS invadiu a Finlândia em auxílio de um “governo” fantoche cuja “existência” só veio a público depois do início da invasão. O governo virtual de Kuusinen foi criado para orquestrar a agressão e desvaneceu-se, sem deixar vestígios, logo que foi assinado o tratado de paz em 12-3-1940.
Nas vésperas da agressão alemã à Dinamarca e Noruega (iniciada em 9-4-39) e posterior ataque à Holanda e Bélgica, PCP publica esta brilhante e consistente previsão política :«Não há pois perigo da Alemanha atacar os neutros. Seria estender a frente e reduzir as suas possibilidades de resistência numa frente reduzida. Podemos concluir portanto que a violação dos neutros, vizinhos da Alemanha, convém mais aos aliados Ocidentais que à própria Alemanha? De certo que convém [...]. Outro factor é o constante apelo feito aos neutros para que entrem na guerra contra a Alemanha [...]. À Grã-Bretanha convinha-lhe a extensão da frente de batalha. Por isso se explica o convite feito aos neutros para estarem a seu lado.»(O Diabo, 10/2/1940).
Isto é, 2 meses antes da Alemanha iniciar a agressão aos países neutros , o PCP escrevia que o perigo para esses países vinha essencialmente da França e da Grã-Bretanha, os principais fautores da guerra. Deveria igualmente dizer que esse perigo vinha da URSS, que à data mantinha uma guerra de agressão contra a Finlândia, tentando à custa de pesadas baixas perfurar a Linha Mannerheim, o que só viria a conseguir em fins daquele mês.
Mas a agressão àqueles países não alterou as posições do PCP. Se um mês antes colocava a interrogação: «Mas haverá na verdade alguma diferença entre a Alemanha do sr. Hitler e a França do sr. Daladier ou mesmo a Inglaterra do sr. Chamberlain? («Nem Maginot, nem Siegfried», O Diabo, 9/3/1940), dias depois da capitulação da Dinamarca, quando a batalha da Noruega se desenrolava, Cunhal escrevia, falando na primeira pessoa, e com um cinismo brutal: «Eu muito francamente declaro que, hoje em dia, o sr. Chamberlain me merece tanta simpatia como o sr. Hitler ou o sr. Daladier (a ordem dos nomes é arbitrária)».(Álvaro Cunha!, «Ricochete - 2 », O Diabo, 290, 13/4/1940).
Se Chamberlain era conservador, Daladier era radical-socialista e havia sido, com Leon Blum e outros, um dos obreiros do Front Populaire, onde os comunistas franceses entravam. A Alemanha tinha acabado de ocupar a Dinamarca, que capitulara, e estava em vias de ocupar totalmente a Noruega. O que estava na base da argumentação de Cunhal naqueles artigos não era nenhuma razão ideológica, nem a “emancipação da classe trabalhadora” mas apenas a justificação cínica, e contrária aos mais elementares princípios da ética que defendia, da política externa da URSS.
Ao longo do Inverno de 1939/40, Cunhal foi passando, lentamente, da equidistância entre as potências democráticas e a Alemanha Nazi, para posições claramente germanófilas, na mesma linha das posições seguidas pela liderança soviética, de que Cunhal foi sempre um fiel discípulo.
Cunhal é preso a 30-5-1940, quando as Panzerdivisionen apoiadas pelos Stukas atingiam o mar, cortando a retirada dos exércitos franco-britânicos que combatiam na Bélgica. O reembarque de Dunkerke começava e os alemães estavam a horas de lançar a demolidora ofensiva na frente do Somme que lhes abriria o caminho de Paris.
Quer o afastamento de Cunhal da vida política activa, quer a queda de Paris, refrearam a germanofilia de O Diabo, mas o que foi escrito durante o Inverno de 1939/40 é o paradigma da perversão política mais despudorada, a desvergonha mais absoluta de um homem que exaltava e exalta a “superioridade moral dos comunistas” e, obviamente, a dele próprio, e a prova de que a única coerência que Cunhal tinha era a relativa ao domínio do mundo pelo modelo soviético do comunismo, quaisquer que fossem os meios utilizados para tal.
Notas:
1 - As notas de O Diabo foram retiradas da biografia de Álvaro Cunhal, vol 1 de J Pacheco Pereira.
2 – Este artigo deve ser lido em conjunto com o publicado neste blog em 21 de Dezembro de 2003: “15-12-1939: a URSS é expulsa da SDN”, se se quiser integrá-lo nos acontecimentos que decorriam no palco de guerra europeu.
Publicado por Joana às dezembro 23, 2003 10:15 PM
Trackback pings
TrackBack URL para esta entrada:
http://semiramis.weblog.com.pt/privado/trac.cgi/105038
Comentários
Cara Joana ,
esta sua propensão para escrever, ou citar, ao Kilo, tem que ver com o consumismo da época ou Vc gosta mesmo "duma certa esquerda" ?
Publicado por: zippiz às dezembro 23, 2003 10:59 PM
Este período da história do mundo foi negro e as afirmações do Cunhal, a serem verdadeiras, como tudo indica que sejam, são indecentes.
Como pode um homem desses aparecer depois armado em democrata?
Publicado por: Mocho às dezembro 23, 2003 11:45 PM
Cara Joana,
Não tem nada a ver com o assunto, mas é só um toque de curiosidade.
Mannerheim, acabada que foi a guerra com a União Soviética, veio refazer-se das maleitas para a Praia da Rocha, mais concretamente no Hotel Belavista.
Se por lá passar, deparará com uma placa comemorativa dessa estadia.
Terá vindo a conselho de Steinbroken, o Embaixador virtual criado por Eça?
"Cést trés grave..."
Publicado por: re-tombola às dezembro 24, 2003 12:02 AM
Esta análise está muito contundente, mas infelizmente verdadeira.
Um bom dia de Natal, Joana
Publicado por: Viegas às dezembro 24, 2003 12:07 AM
Poucos tiram lições da história, Joana. A maioria das pessoas só vê o que quer ver.
Não obstante é importante dizer estas coisas.
Aproveito esta visita para lhe desejar um Bom Natal
O blog continua excelente.
Publicado por: L M às dezembro 24, 2003 12:26 AM
Mas o Cunhal terá mesmo escrito isso?
Publicado por: Gros às dezembro 24, 2003 01:47 AM
re-tombola em dezembro 24, 2003 12:02 AM
Não sabia. Mas é natural ... todos os que, no fim da última guerra se “sentiram mal nos seus países”, por razões internas ou externas, vieram para (ou por) Portugal para o exílio.
Actualmente, Mannerheim é um nome importante na Finlândia. Basta ver que a avenida central de Helsínquia tem o seu nome e é a espinha dorsal da cidade. Passa por tudo quanto é importante: Parlamento, Museu Nacional, Filandia-Halle, Museu de Arte Contemporânea, Estação de Caminho de Ferro etc., e a dois passos do Parque e do monumento a Sibelius.
Publicado por: Joana às dezembro 24, 2003 11:46 AM
zippiz em dezembro 23, 2003 10:59 PM
Você acha que, sem as citações, dia e ano, alguém acreditaria que Cunhal tivesse escrito aquilo?
Publicado por: Joana às dezembro 24, 2003 11:47 AM
Viegas e L M:
Obrigada pelas vossas palavras e bom Natal para vocês também
Publicado por: Joana às dezembro 24, 2003 01:14 PM
Esta informação é óptima para quando me vierem dizer que o Cunhal é uma das figuras do século XX.
Este gajo foi mesmo mau.
Publicado por: Gpinto às dezembro 29, 2003 11:47 AM
Este texto é horrível. Não por causa da autora, mas por causa do conteúdo. Como é possível, Santo Deus ter-se escrito isto?
Publicado por: Arroyo às dezembro 30, 2003 01:27 AM
Refiro-me claro aos textos do Cunhal
Publicado por: Arroyo às dezembro 30, 2003 01:29 AM
Este gajo escreveu muitos disparates.
Mas qual o político que não disse asneiras?
Publicado por: SL às dezembro 30, 2003 09:10 AM