maio 31, 2004

Fouché Monárquico

Uma das primeiras medidas de Napoleão, após o seu regresso da ilha de Elba, foi nomear Fouché, pela terceira vez, ministro da polícia. Não seria isto que Fouché quereria, mas Napoleão tinha receio em dar mais. Também não seria esta decisão aquela que Napoleão mais desejaria tomar, mas todos os seus fiéis foram unânimes em aconselhar o regresso de Fouché. Para mais, Napoleão estava fragilizado. Já não era mais que um condottiero militar.

Por outro lado Napoleão era obrigado a reconhecer que todas as previsões de Fouché se tinham realizado: o casamento austríaco, que havia combatido (Fouché havia sugerido que Napoleão se casasse com uma princesa russa), tinha levado à ruptura com a Rússia, sem impedir Metternich de organizar a coligação de 1813 que conduzira à capitulação de Paris; a campanha da Rússia, fortemente desaconselhada por Fouché, tinha sido uma catástrofe; a polícia, retirada da direcção de Fouché, tinha-se desorganizado em pouco tempo; etc., etc..

Napoleão aprestava-se para seguir os conselhos que Fouché lhe havia dado nos anos anteriores. Infelizmente para Napoleão o que importava era os conselhos que eram dados agora: uma tripla política de simpatia pela Revolução, concessões ao liberalismo e moderação para com os monárquicos, ou seja, a pacificação da sociedade francesa. E estes conselhos, Napoleão não estava disposto a seguir.

Quando tomou posse do lugar, Fouché teria tido uma longa conversa com um amigo de longa data, Gaillard, entretanto tornado monárquico, que estava desolado com o seu “comprometimento” com o império. Fouché confidenciou-lhe que sabia que Napoleão o odiava, que este havia voltado ainda mais déspota, não respirando senão ódio e vingança, mas que lhe parecia útil estar perto deste «louco furioso» para o moderar, ou mesmo para abater o seu poder. Teria então dito a Gaillard: «O meu primeiro dever é contrariar todos os projectos do imperador. Antes de 3 meses serei mais poderoso que ele e se ele não me mandar matar, estará a meus pés». Falhou por 10 dias!

Luís XVIII, os republicanos, os monárquicos, os ingleses, Viena e o seu Congresso, todos vêem então em Fouché o único homem com quem se pode negociar – preferem a sua razão fria e calculista ao génio insensato do Imperador.

Quando a Vendeia se revolta, Fouché acaba com a revolta com uma mensagem que envia aos generais monárquicos: «Dentro de alguns meses o Imperador terá triunfado ou terá perdido. Para quê então combater por algo que se pode, provavelmente, obter sem luta? Deponde as armas e esperai». Escreveu Lamartine sobre a actuação de Fouché durante os 100 dias «Fouché intimida o imperador, lisonjeia os republicanos, tranquiliza a França, faz um sinal à Europa, sorri a Luís XVIII, corresponde-se com o senhor de Talleyrand (que estava então em Viena, no Congresso) e tem todos suspensos da sua atitude ... A História, condenando Fouché, não poderá recusar-lhe, durante o período dos cem dias, uma ousadia de atitude, uma superioridade no manejo dos partidos e uma grandeza na intriga que o colocará na primeira fila dos verdadeiros homens de Estado do século, se pudesse haver verdadeiros homens de Estado sem dignidade de carácter e sem virtude».

Napoleão, que tinha uma polícia secreta exclusiva para vigiar o seu ministro da polícia, descobre a existência de uma carta secreta enviada por Metternich e decidiu confrontar Fouché com a sua “traição”. Mas a rede de informadores de Fouché estava mais bem montada e Fouché foi informado da descoberta. No fim do despacho quotidiano com o imperador, Fouché, com a indiferença de quem se esquece de uma bagatela sem importância, revela: «Ah! Já me esquecia de lhe dizer que recebi um bilhete do sr. de Metternich. Tenho tantas coisas importantes que me preocupam! Depois, o seu enviado não me deu o pó para tornar a tinta visível e eu creio que se trata de uma mistificação. Enfim, hei-de trazer-lhe». Napoleão tremeu de raiva, mas conservou o ministro. Afinal, Napoleão, bastante fragilizado, precisava mais de Fouché que o contrário.

Pode parecer estranho que um déspota como Napoleão se fragilize assim perante o “réprobo” Fouché. Quando disseram a Napoleão que Luís XVIII estava a constituir um ministério em Gand, no exílio, e citavam os nomes dos ministros, alguém perguntou «e na pasta da polícia?». Napoleão chacoteou: «M. Fouché, sans doute!». Troça-se quando não se tem força para mais. A relação de Napoleão com Fouché, durante os 100 dias, é uma mistura de ódio e de impotência.

Quando Napoleão regressa, derrotado, de Waterloo, é Fouché quem comanda as operações: é ele que impede a dissolução da Câmara dos Deputados; é ele que força a abdicação de Napoleão; é ele que se instala na presidência do governo provisório, burlando Carnot; é ele que negoceia secretamente com Luís XVIII e consegue, contra a resistência do Conselho, da Câmara e do Senado, que aquele regresse ao trono.

Cometeu então um erro: vendeu o poder a Luís XVIII em troca de um lugar no ministério. Teria sido preferível fazer outra travessia do deserto, esperando por uma nova conjuntura política. Fouché esqueceu-se que a médio prazo não haveria ambiente para ele na corte de Luís XVIII. Havia sido um regicida. A filha de Luís XVI, Duquesa de Angoulême, que também tinha estado prisioneira no Templo, tinha asco ao velho político. Toda a corte o olhava como um réprobo.

É certo que os começos foram auspiciosos: Luís XVIII recebe o assassino do seu irmão, na sala de audiências, onde Fouché, várias vezes perjuro, lhe presta juramento de fidelidade. É Talleyrand quem o conduz apoiando-se no seu ombro (Talleyrand era coxo). Chateaubriand comenta com ironia: «é o vício apoiado no crime». Um mês depois, Luís XVIII e toda a corte apadrinham o casamento de Fouché (que havia enviuvado em 1812) com uma jovem da alta aristocracia.

Todavia, as eleições de Agosto de 1815 deram uma maioria esmagadora à extrema direita (350 ultra-realistas em 400 eleitos). Foi a «Chambre Introuvable», designada assim porque seria impossível encontrar uma assembleia tão à direita como esta. Esta Câmara era demasiado violenta no seu ódio e no seu fanatismo para tolerar ministros como Fouché ou Talleyrand. Talleyrand, para conservar o cargo, tirou o tapete debaixo dos pés de Fouché. Menos de seis meses decorridos da restauração da monarquia, Fouché é despedido e depois exilado, para nunca mais regressar a França. Talleyrand não ganhou muito com o negócio pois foi forçado a resignar dias depois.

Apenas a Áustria o aceita, desde que longe de Viena. Viveu sucessivamente em Praga, em Linz e em Trieste, onde morreu em 26 de Dezembro de 1820. No dia anterior à morte chamou o filho e encarregou-o de queimar todos os seus papéis. A História vinga-se, cruelmente, das figuras que apenas agem em função do momento que passa – enterra-os em vida. Fouché, esquecido, completou essa vingança – queimou a sua “história”.

As memórias que, anos mais tarde, em 1824, foram publicadas como sendo suas, merecem menos confiança que o próprio Fouché.

Bibliografia:
Louis Madelin Fouché 2 volumes Paris 1901
Mémoires de Joseph Fouché, duc d'Otrante, Paris 1824
Actes du Comité de salut public avec la correspondance des représentants en mission, 20 vols, Paris 1889

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Fouché Duque de Otranto

A oposição entre Fouché (e Talleyrand) e Napoleão começa a tornar-se mais evidente à medida que o desejo de paz entre os franceses é contrariado pela continuada política bélica do Imperador. Fouché e Talleyrand pensam na França; Napoleão pensa na sua glória pessoal. A resistência à obsessão guerreira de Napoleão aproxima Fouché e Talleyrand, que não nutriam qualquer estima um pelo outro. Ambos têm um pensamento claro e positivo. Ambos são discípulos de Maquiavel, realistas e cínicos. Ambos passaram pela escola da Igreja e pela escola da Revolução. Ambos têm nervos de aço e são isentos de quaisquer escrúpulos no que respeita a dinheiro e a honra. Ambos serviram com a mesma infidelidade Igreja, Revolução, Directório, Consulado, Império, Monarquia.

Apenas diferem pela origem e comportamentos: Talleyrand era de origem nobre e Fouché de origem plebeia. Talleyrand ama o dinheiro como um personagem de alta estirpe, para o gastar nos prazeres da vida; Fouché ama o dinheiro como um capitalista, para o economizar e obter juros, continuando a viver de forma espartana; Talleyrand é um espírito ágil, um improvisador e um analista brilhante, Fouché é um espírito analítico e um calculista lúcido e frio baseado na informação que, com trabalho árduo, pacientemente recolhe e tria.

O desencadear da guerra da Espanha, na tentativa insensata de colocar no trono espanhol um irmão incapaz, marca a aproximação entre os dois mais notáveis e hábeis ministros de Napoleão. Fouché pressentiu que aquela guerra iria transformar a Espanha, de aliada dócil, numa enorme Vendeia. E Napoleão, que até então se sentia seguro pela hostilidade que reinava entre Fouché e Talleyrand, ao saber do encontro público entre aqueles dois conspiradores profissionais, regressa imediatamente de Espanha, insulta ambos e despede o menos indispensável: Talleyrand.

Fouché mantém-se em funções e salvou a França. Com Napoleão ausente em Viena, os ingleses desembarcam em Walqueren e tomam Flessinga, na Holanda. Perante a incapacidade dos ministros em tomar decisões na ausência do amo, é Fouché quem convoca os guardas nacionais, organiza a defesa, obtém para Bernadotte o comando das operações militares e consegue a derrota dos ingleses. Quando os colegas julgavam que o Imperador o iria punir por tomar decisões sem esperar a aprovação do amo, Napoleão aprova a sua conduta e fá-lo Duque de Otranto.

Mas Fouché tem a sua própria política. A paz era indispensável para manter o statu quo e a estabilidade das instituições e conservar os Bourbons longe do poder. Com esse objectivo entabula negociações secretas com o gabinete de Saint-James para avaliar a hipótese de um tratado de paz. A Inglaterra era o Deus ex-machina da oposição ao Império napoleónico. Nunca havia reconhecido o Império, subsidiava as potências continentais para fazerem a guerra, mantinha em Portugal um dispositivo militar que se revelou invencível e que poderia servir de base para uma campanha contra o sul da França, arregimentava e subvencionava agentes monárquicos para destabilizar a sociedade francesa desejosa do fim de tantas e tão sangrentas guerras, aspirando ardentemente pela paz. Áustria, Rússia e Prússia faziam a guerra, perdiam a guerra, voltavam a fazê-la, voltavam a perdê-la, mas a Inglaterra permanecia incólume, sempre por detrás de todas as guerras e de todas as conspirações contra Napoleão. Quando Napoleão soube das diligências de Fouché, demitiu-o e substituiu-o por Savary, Duque de Rovigo. Entre 1810 e 1813, Fouché ficará sem funções ministeriais. Aquando da demissão Fouché teria declarado: «O profeta predisse que dentro de 40 dias Nínive será destruída. Mas eu poderei predizer, sem receio de enganar, que em menos de 4 anos o império de Napoleão deixará de existir».

Savary era um cortesão incompetente, um fanático destituído de engenho. Enquanto Napoleão estava na Rússia, dá-se a tentativa de golpe de estado de Malet. Além de não a detectar, Savary deixa-se aprisionar pelos golpistas, o que o cobre de ridículo. A facilidade como Malet, general obscuro, e mais dois generais em situação de detenção, desprovidos de meios, se conseguem apossar das sedes do poder em Paris mostrou a fragilidade das instituições imperiais e a incompetência do ministério na ausência do Imperador. A fragilidade dos autocratas reside em que não conseguem obter o servilismo e simultaneamente a competência.

Napoleão vê-se forçado a transigir com Fouché, mas, entre o reconhecimento da sua competência e o receio da sua capacidade conspirativa, apenas lhe dá funções que o mantenham longe de Paris. Quando os aliados entram em França e cercam Paris, Fouché regressa rapidamente, mas comete um erro político: chega tarde – quando entrou em Paris já esta havia capitulado, o Senado havia proclamado Luís XVIII rei (4-04-1814), Napoleão abdicado em Fontainebleau e Talleyrand chefiava o governo provisório. Chegar tarde demais, ainda que apenas 4 dias, é um dos piores erros políticos!

Ninguém lhe liga, ninguém quer nada com ele, Fouché parecia ter-se tornado despiciendo. Todavia a insensatez dos Bourbons e da alta nobreza que regressara, uma mistura de despotismo e anarquia, e a perseguição encarniçada a quem tinha servido o império e a república, criou rapidamente um enorme mal estar em França e deu origem a que conspirações se começassem a desenhar. Os Bourbons pareciam não ter aprendido nada com a revolução, com o longo exílio e com o facto de só terem regressado a França atrás das baionetas dos aliados. O cenário estava construído para o regresso de Napoleão que, da ilha de Elba, estava ao corrente do que se passava no continente e do sentimento geral da população francesa.
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Quando Napoleão, menos de um ano depois do regresso dos Bourbons, abandona a ilha de Elba e desembarca na Provença, aqueles que passavam ao largo de Fouché acotovelam-se agora pressurosamente na sua residência solicitando que ele salve a Monarquia. Sugerem-lhe uma pasta num eventual governo do Duque de Richelieu. Fouché não aceita porque sabe que, naquela altura, já nada havia a fazer. Responde habilidosamente que a sua «aceitação na hora presente seria nociva aos interesses do Rei». Apenas Fouché conseguiria trocar as voltas ao partido do Rei assegurando que lhe estava a fazer um favor! «Salvem o Rei, que eu me encarrego de salvar a monarquia», teria então dito. Mas a verdade é que os Bourbons não tinham apoios para se oporem a Napoleão. Haveria que esperar pelos inevitáveis erros de Napoleão.

O «Ogre de Corse» entrou assim sem resistência em Paris, após todos os exércitos enviados contra ele se terem passado para o seu comando.

Publicado por Joana em 09:55 AM | Comentários (4) | TrackBack

Fouché Bonapartista

À frente da polícia, Fouché estava numa posição privilegiada no duelo entre o Directório e Bonaparte, então no Egipto. Instalando uma sofisticada organização policial e de delação, corrompendo tudo e todos (entre eles Josefina), Fouché sabe mais que todos os comparsas deste drama. Sabe por exemplo que Bonaparte está a caminho de França, enquanto o Directório está tranquilo pois julga-o lá longe a contemplar as pirâmides.

Como ministro da polícia do Directório, Fouché deixou de ser o homem de Barras, para passar a ser o homem de ... Fouché. Barras já não interessava, pois Barras negociava com Luís XVIII a restauração da monarquia. Ora para Fouché, um regicida, este seria o cenário a evitar. A carta de Bonaparte, general que ambicionava o poder, era de longe mais interessante.

Assim, depois da chegada de Bonaparte a Paris, sabe que se prepara um golpe de estado, mas não diz nada. Três meses depois de ter sido nomeado sob proposta de Barras, Fouché trai Barras, pois verifica que os trunfos estão agora do lado de Bonaparte. Faz malograr as negociações de Barras com Luís XVIII, prendendo os agentes monárquicos que tinham os fios da meada e facilita a conspiração bonapartista, embora sem tomar parte nela. Dias antes do 18 de Brumário (9-11-1799) dá uma recepção em sua casa. Quando os convivas se encontram apercebem-se que apenas estão presentes todos os principais conspiradores e ... o presidente do Directório, Gohier (!?) contra o qual era dirigida a conspiração.

No 18 de Brumário, Fouché controlou sempre a situação. A situação do próprio Fouché, porquanto o nervosismo e as hesitações da “camarilha” de Bonaparte e a incompetência e a tibieza do Directório e dos corpos legislativas mantiveram durante horas as dúvidas sobre para que lado se inclinaria o poder.

Foi Fouché que se encarregou, logo que se desenhou quem seria o vencedor, de elaborar proclamações para a imprensa que davam uma visão completamente distorcida do que havia acontecido, redigidos de forma a evitar que se pusesse em dúvida a legalidade do que afinal não passava de um golpe de estado cesarista.

A primeira acção de Bonaparte, como 1º Cônsul foi a invasão da Itália, para eliminar o dispositivo militar austríaco. A batalha de Marengo selou o triunfo dos exércitos da República. É conhecido o seu desenlace – considerada perdida, tornou-se, horas depois, num triunfo total. Não foi apenas o Barão Scarpia da “Tosca” que recebe a informação da vitória de Melas, no 1º acto, e da sua completa derrota, no 2º acto. A Paris também chegaram essas 2 informações opostas: quando chegou a notícia da derrota de Bonaparte, Carnot e outros dirigentes trataram logo da “herança” do 1º Cônsul. Fouché não se comprometeu, mas também não se opôs. No dia seguinte soube-se da vitória. Carnot foi despedido e Fouché manteve-se, mas sem a confiança de Bonaparte

No natal de 1800, um ano depois do 18 de Brumário, há um atentado contra Bonaparte, de que este escapa ileso, mas que vitima dezenas de pessoas. Bonaparte julga que foram os jacobinos e acusa, encolerizado, Fouché, antigo jacobino, enquanto este mantém que foram os monárquicos. Ao fim de 2 semanas, durante as quais a sua posição esteve periclitante, Fouché tem a sua vitória “à Marengo” – afinal confirmou-se que os autores eram os monárquicos, chefiados por Cadoudal e subvencionados pelos ingleses.

Todavia, insatisfeito por Fouché não aplanar o caminho para a monarquia, Bonaparte demite-o de ministro, mas de forma rebuscada – o ministério é suprimido e Fouché torna-se senador. Mas Bonaparte precisa de Fouché e, 2 anos depois, este volta a ser o ministro da polícia. A imperícia dos sucessores de Fouché foi suficiente para fazer dele um personagem imprescindível. Durante esses 2 anos foram cometidos diversos erros políticos: a ruptura com o general Moreau, o rapto e a execução do Duque de Enghien, etc. Balzac, que deu de Fouché uma imagem odiosa, sugere que este teria pressionado aquela acção. Não acredito. Aliás, Fouché declararia, numa frase cínica, que a execução do Duque de Enghien «foi pior que um crime, foi um erro».

Aqui revela-se outro traço do carácter de Fouché: ele nunca foi servidor de alguém e ainda menos o lacaio. Não sacrifica inteiramente a outrem a sua independência de espírito e a sua vontade própria. Fouché (como Talleyrand) não se comporta como os restantes próceres do império e quando, como qualquer ministro lisonjeiro e servil, aceita ordens sem replicar, há uma diferença: não as cumpre. Se lhe é ordenado proceder a prisões com as quais não concorda, adverte dissimuladamente os interessados; se não consegue eximir-se à aplicação de ordens com as quais discorda, sublinha que o faz expressamente por vontade do imperador.

A política de Fouché durante o império subordinava-se ao axioma de que o «Império deveria ser o herdeiro da Revolução» e que o trono imperial foi erigido «não sobre os despojos, mas sobre as instituições da Revolução». Portanto cabe ao Império defender e perpetuar a obra da Revolução, isto é, a manutenção e o aperfeiçoamento das instituições que permitiam a liberdade económica, a eliminação das coacções feudais e a igualdade de oportunidades para toda a sociedade. Para tal é necessário um Estado forte. Nesse sentido Fouché reprime à esquerda, acusada de destabilizar a sociedade, e à direita, acusada de querer o regresso do “Ancien Régime”.

A sua relação com a religião católica é típica da sua política do “Juste milieu”. Defensor do Estado laico e da doutrina da neutralidade do Estado e da integral igualdade de todos os cultos, Fouché reprime as autoridades eclesiásticas que contrariam estes propósitos, prende os pregadores mais exaltados, etc.. Mas à medida que as relações do Imperador com a cúria romana se degradam e que este pretende uma maior repressão sobre o clero, Fouché protege o clero do que considera serem os excessos de Napoleão.

Quanto mais Napoleão se torna prepotente e autoritário, mais Fouché se torna amável e conciliador. Em vez de lhe dizer as verdades desagradáveis directamente, escreve-as em relatórios dizendo que «consta» ou «um embaixador terá dito», obrigando Napoleão a tragar a leitura de escândalos familiares e notícias cáusticas de forma impessoal. Não trai a mínima emoção quando Napoleão o ameaça: «o senhor é um traidor e eu devia mandar cortar-lhe a cabeça», respondendo placidamente «Não é essa a minha opinião, Sire». Dezenas de vezes ouve ameaças; dezenas de vezes é informado de projectos para o destituir e proscrever. Fica tranquilo pois sabe que no dia seguinte o Imperador o chamará novamente.

Este poder deriva de Fouché conhecer todos os podres do Império e os negócios sujos da família Bonaparte (histórias de jogo dos irmãos, os deboches de Paulina, as aventuras extra-conjugais do Imperador e de Josefina). Fouché vigia quer os inimigos do império, quer os amigos, quer o próprio imperador e apenas fornece as informações que considera oportunas.

Publicado por Joana em 09:45 AM | Comentários (3) | TrackBack

Fouché Ministro da Polícia

Após a queda de Robespierre, Fouché tem uma evolução curiosa: recusa alinhar com a reacção termidoriana, senta-se na esquerda da Convenção e apoia, embora de forma dissimulada, Babeuf e a conspiração dos igualitários. Acusado na Convenção de Babovista (uma espécie de comunismo pré-marxista), defende-se bem e nada se prova. Consta aliás que teria enviado a Barras uma Memória, alertando para o perigo desta conspiração. Babeuf foi preso e executado.

O primeiro ano após o 9 Thermidor foi passado a defender-se das acusações dos massacres perpetrados nas suas missões proconsulares. Defende-se bem, mas o seu melhor argumento decorre da atitude dúplice que sempre havia tomado, nomeadamente em Lyon, onde se havia demarcado de Collot e granjeado o ódio de Robespierre. Os massacres eram explicados pelas ordens e instabilidade da situação e as suas acções de clemência tornadas o paradigma da sua conduta. Fouché jogou igualmente com o facto de que alguns dos líderes termidorianos tinham as mãos tintas de sangue, como Tallien, o carrasco de Bordéus, e de que a maioria moderada da Convenção, o Marais, tinha pactuado, por acção ou omissão, com a tirania de Robespierre.

A forma altiva e, na aparência, coerente como se defendeu surtiu efeito: ordenada a sua prisão, conseguiu que a Convenção o deixasse em liberdade. Pediu a suspensão do mandato e retirou-se da vida pública. Fouché sobreviveu, enquanto muitos dos “Montagnards” foram ou guilhotinados ou desterrados para a Guiana que, na maioria dos casos, também significou a morte.

Um ano depois, a jornada do 13 de Vendemiário (5 de Outubro), onde as tropas da Convenção, comandadas pelo jovem general Bonaparte esmagam a revolta monárquica e salvam a república, foi o toque a reunir das diferentes facções republicanas. Fouché, a fazer a sua travessia do deserto, é repescado por Barras, para testa de ferro de negócios de fornecimentos ao exército e, simultaneamente, para seu espião. Cargos políticos estavam-lhe vedados pela reputação que tinha.

Mas mesmo esse exílio “interior” findou com o golpe do 18 de Frutidor (4-09-1797), quando a ala esquerda dos termidorianos se apodera do poder. Segundo parece Fouché foi um dos artífices desta conspiração que levou Barras ao poder. Barras premiou-o nomeando-o ministro da república em Milão (capital da República Cisalpina, satélite de França) e, depois, na Holanda.

O Thermidor salvou-o do cadafalso; o Vendemiário da proscrição; o Frutidor salvou-o da obscuridade e do esquecimento. Em 20 de Julho de 1799, Fouché é nomeado, pelo Directório, ministro da polícia.

Um jacobino, ministro da polícia? Não, como dizia Mirabeau, os jacobinos, quando ministros, não são ministros jacobinos (o mesmo se costuma dizer agora dos socialistas). Barras havia lançado o nome de Fouché, a medo. Mas, para sua surpresa, Sieyés e Talleyrand apoiaram-no com entusiasmo. Sieyés e Talleyrand tinham aprendido o suficiente, na escola da revolução, para saberem que apenas um ex-jacobino se sentiria com a audácia necessária para esmagar os seus antigos correligionários com os métodos violentos que tinha aprendido com eles. Uma das primeiras medidas de Fouché foi, justamente, fechar o Clube dos Jacobinos.

Tomou essa medida, como sempre, sem tergiversações. Os jacobinos, para Fouché, protagonizavam então o papel dos vencidos recalcitrantes, expondo desnecessariamente, pelos seus excessos, a França e a Revolução à reacção e à contra-revolução.

Quando anunciou essa medida o Directório ficou incrédulo. Pois quê, dissolver um clube cujo poder fazia tremer o Directório há um ano? Fouché foi fulminante: manobrou os corpos legislativos para fazer passar a lei e foi ele pessoalmente ao clube dos jacobinos, em plena sessão, onde dissolveu a assembleia, fechou as portas e levou as chaves para as depor nas mãos de um Directório estupefacto.

No dia anterior havia avisado o general Bernadotte, presidente do clube que iria proceder ao fecho do clube e que se ele ainda estivesse à cabeça, a sua cabeça pagaria por isso. O futuro Rei da Suécia, perante a frieza e a firmeza do ex-metralhador de Lyon nem pôs em dúvida as palavras de Fouché. Afinal deveu a Fouché a cabeça e a coroa. E a família de Fouché encontrou na Suécia um local de exílio após a morte deste.

Fouché havia sido jacobino o tempo suficiente para saber que por detrás da retórica violenta não havia qualquer força consistente.

E a talhe de foice queria acrescentar que Bernadotte, quando granadeiro, no início do Terror, fez inscrever no braço, numa tatuagem, a divisa «Mort aux Rois», encimada pelo barrete frígio. Foi subindo na carreira militar e, no início do Império, Napoleão fê-lo marechal. Anos depois, em 1810, Carlos XIII, Rei da Suécia, adoptou-o como sucessor. Sucedeu-lhe no trono em 1818 com o nome de Carlos XIV. Mas para não ser prejudicado nos seus direitos colaborou com os aliados, Rússia, Áustria, Prússia e Inglaterra, na coligação para derrubar Napoleão. A sua dinastia ainda se mantém na Suécia.

Mas só deixou ver o braço, o braço tatuado, «in articulo mortis», impondo ao seu médico absoluto sigilo. A revolucionária tatuagem foi-lhe sempre uma obsessão muda, mas incómoda.

Publicado por Joana em 09:38 AM | Comentários (3) | TrackBack

Fouché revolucionário

Fouché nasceu em 31 de Maio de 1759 no seio de uma família modesta de pequenos comerciantes. A sua natureza reservada e estudiosa levaram os pais a fazê-lo ingressar na carreira eclesiástica. Entra na Congregação do Oratório e por aí fica, como professor de seminário, até ao início da revolução.

Nunca tomou ordens. Aliás, Fouché nunca se entregou inteiramente a quem serviu: Igreja, Revolução, Directório, Consulado, Império, Monarquia – Fouché apenas se comprometeu consigo próprio.

Eleito deputado à Convenção por Nantes, em 1792, com a missão de pugnar pelos interesses da classe média, que desejava um regime monárquico ou republicano, mas constitucional e ordeiro, começou por se sentar do lado da Gironda. E sentou-se do lado da Gironda não, provavelmente, para cumprir promessas eleitorais, mas porque a Gironda era então a mais forte. E Fouché sempre esteve do lado do mais forte.

Naqueles dias turbulentos era preciso prudência. Fouché rapidamente se apercebeu que numa revolução os ídolos de um dia são os traidores do dia seguinte e que ela não pertence aos primeiros que a desencadearam, mas ao último que a termina e fica com ela como um espólio. Por isso Fouché permanece numa relativa obscuridade, evitando intervenções na tribuna e nos jornais, mas fazendo-se eleger para comités e juntas, onde pode, na sombra, pela sua discrição, influenciar os acontecimentos e proteger-se da inveja e do desgaste da imagem.

Há decisões que ficam indeléveis na história e na memória das gentes e Fouché teve que tomar uma. Em Janeiro de 1793 a Convenção julgou o Rei. A obrigação de Fouché para com os eleitores moderados que o tinham eleito e para com a Gironda, junto à qual se sentava, era votar contra a morte do Rei. No dia anterior à votação leu, aos seus amigos, o discurso que iria proferir afim de justificar o pedido de clemência. Mas, no dia da votação, ao ver a agitação das secções populares, Fouché, arguto calculista, apercebeu-se que o poder da rua iria intimidar muitos convencionais e que tudo fazia prever que a maioria pendesse afinal para o lado da morte do Rei, maioria pequena, mas maioria. Ora Fouché sempre esteve do lado da maioria. Votou a favor da morte do Rei. O ser regicida foi um facto que nunca conseguiu apagar e que se tornou um pesado ónus nos últimos anos da sua vida. Mesmo depois de ter traído Napoleão após Waterloo e facilitado o regresso de Luís XVIII, não conseguiu conservar o cargo de ministro que tinha sido a moeda de troca do acordo. Instado pelos ultra-realistas, Luís XVIII foi forçado a demiti-lo e exilá-lo de França.

No julgamento do Rei revela-se um traço fundamental do carácter de Fouché – quando trai um partido nunca é de forma lenta e hesitante. É às claras, de um momento para o outro, que, com uma despudorada audácia, ele se transfere de um partido ao partido adversário, com armas e bagagens, e passa a adoptar a retórica e os argumentos do seu novo partido. Muitos anos mais tarde, confessaria, cinicamente, que então era preciso «uivar com os lobos e se submeter às necessidades das circunstâncias». Não teria sido necessária esta confissão tardia: as suas acções eram óbvias.

Fouché não gostava de situações de risco não controlável, como seja conviver com os radicais revolucionários da Comuna de Paris e das secções dos sans-culottes. Preferiu comissões de serviço longe de Paris, à espera de ver quem triunfaria na Convenção. Foi uma má escolha. Trânsfuga do Oratório, convencional regicida, se bem que outros o foram e a quem a opinião pública poupou e a história foi indulgente, o que perdeu Fouché perante a história foram justamente estas comissões, onde Fouché se distinguiu por um raro exagero declamatório, talvez para evitar ser acusado de ser moderado.

Fez um périplo pela província, organizando o recrutamento e os abastecimentos e fazendo discursos de teor comunista (ou igualitário) e terrorista : «Tudo é permitido aos que agem no sentido da Revolução» ... « todo o homem que tem mais do que lhe é preciso, já não usa, mas abusa. E assim, deixando o que lhe é estritamente necessário, todo o resto ... pertence à República». «Aos republicanos bastam a espada (“du fer”), o pão e 40 écus de renda» escrevia o futuro castelão do palácio de Ferrières.

As missivas que Fouché enviou a Paris durante estas missões são, talvez, o pior para o julgamento que a história lhe fez. São tenebrosas, de uma ferocidade fria e configuram a imagem de um carrasco sanguinário.

Após estas provas de acção e retórica revolucionárias, Fouché foi para Lyon, juntamente com Collot d’Herbois, punir a contra-revolução, no cumprimento de um bárbaro decreto da Convenção que ordenava a destruição da segunda cidade da França e que a «reunião das casas que subsistissem usará de futuro o nome de Ville-Affranchie», onde se tornou conhecido como o Metralhador de Lyon, executando, a canhão e em poucas semanas, 1.600 pessoas. Isto sem falar em muitas centenas de execuções pela guilhotina.

Lyon tinha 140.000 habitantes, 5 meses depois, Ville-Affranchie tinha 80.000 habitantes. Escreve Fouché «sim, confessamos que derramámos muito sangue impuro, mas foi por humanidade, por dever». A hipocrisia da retórica revolucionária é uma constante em toda e qualquer revolução.

Todavia, quando Collot d’Herbois abandonou Lyon, Fouché, talvez por ter farejado que a situação em Paris poderia mudar, mudou de postura, chegando a punir aqueles que o haviam ajudado antes. Em Paris Robespierre liquidava a extrema esquerda, os exagerados de Hébert. Para Fouché, tal deve ter soado a que a Revolução iria entrar por uma via mais moderada. O seu último acto em Lyon foi mesmo o de ordenar a execução do carrasco e respectivo ajudante.

Todavia equivocou-se. Robespierre havia liquidado a ala direita da Montanha (os Dantonistas) e a ala esquerda (os Hebertistas) apenas para governar sem empecilhos. O terror revolucionário prosseguia com menos exageros de retórica, mas com mais firmeza sanguinária. Portanto, a mudança de Fouché para uma atitude de maior clemência não passou desapercebida às autoridades revolucionárias, que primeiro o acusaram de moderado e depois de andar a oprimir os patriotas. O Comité de Salvação Pública ordenou o seu regresso a Paris. Fouché havia estado 9 meses ausente do epicentro revolucionário.

A guerra entre Robespierre e Fouché ia começar. Curiosamente haviam travado amizade em Arras, quando Fouché aí estivera colocado, como professor do colégio do Oratório. Fouché teria mesmo ajudado Robespierre a custear a viagem para Paris quando este foi eleito para os Estados Gerais.

Porém, Fouché não era um Hébert ou um Danton. Evitando debates incendiários na Convenção, onde não podia competir com os oradores da Montanha, Fouché adoptou a técnica de sobrevivência dos animais menos aptos para a luta física – fingiu-se morto. Morto, isto é, trabalhando na sombra. Semanas depois, surpreendentemente, perante a estupefacção geral, Fouché é eleito presidente do Clube dos Jacobinos por larga maioria.

Robespierre, furioso, fulmina-o então com um discurso em que o qualifica de «impostor vil e desprezível» e consegue a exclusão de Fouché do Clube dos Jacobinos por conduta indigna. O destino de Fouché parecia traçado. Mas Fouché passa as seis semanas seguintes a conspirar na sombra, junto dos convencionais. Como Tallien e outros, não tem domicílio fixo, para não ser preso de noite, de surpresa. Robespierre teme-o mais que os outros «o indivíduo Fouché não me interessa ... denunciei-o aqui menos por causa dos seus crimes do que por se esconder para cometer outros e porque o vejo como o chefe da conspiração que temos que liquidar».

Se Tallien, Billaud, Collot d’Herbois e Barras são os rostos mais visíveis do 9 Thermidor (27-07-1794), onde a facção de Robespierre é liquidada, Fouché terá sido o conspirador com maior peso na obtenção do apoio dos membros hesitantes da Convenção. Foi seguramente aquele que Robespierre mais temia.

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Fouché – um Perfil

Fouché, um dos homens mais poderosos da sua época e um dos mais notáveis de todos os tempos, encontrou pouca estima da parte dos seus contemporâneos e, ainda menos, justiça da posteridade. Os protagonistas da Revolução e do Império produziram centenas de memórias e autobiografias. Todos, republicanos, bonapartistas, monárquicos, corre-lhes da pena um fel venenoso quando escrevem o seu nome. Nenhuma injúria lhe é poupada: traidor nato, miserável intriguista, réptil peçonhento, trânsfuga profissional, alma baixa de polícia. Os mais literatos apodam-no de Tartufo ou Scapin. Há um notável consenso dos seus contemporâneos sobre o seu carácter. Foi o homem mais desprezado e difamado da Revolução e do Império. Napoleão, nas sua meditações em Santa Helena, parecia não ter senão um lamento, o de não ter mandado enforcar «esse Fígaro, esse tratante»

Durante 23 anos, desde o dia em que o presidente da Convenção declarou a sessão aberta, em 1792, até àquele em que naufragou, na “Chambre Introuvable”, o ministério Talleyrand-Fouché, em 1815, esteve sempre em actividade, esteve sempre na crista da onda.

Os seus avatares são imensos: em 1790 professor eclesiástico e em 1792 salteador de igrejas; em 1792 próximo dos Girondinos e em 1793 partidário da Montanha; em 1793 comunista e poucos anos depois multimilionário; em 1793 regicida e pouco mais de uma década após, Duque de Otranto; em 1793 assegurando que uma renda anual de 40 écus (240 libras) era o bastante para um republicano e um quarto de século depois deixando, ao morrer, uma fortuna avaliada em 30 milhões de libras (cerca de 80 milhões de euros actuais, em termos da cotação do ouro, ou cerca de 400 milhões em termos de poder de compra) (*). Foi representante do povo e membro activo dos comités, comissário da Convenção em 6 departamentos, presidente do Clube dos Jacobinos, activista da revolução do Thermidor, conselheiro de Babeuf, agente de Barras, diplomata do Directório em Itália e na Holanda, ministro da polícia geral da República, participante do drama do Brumário, ministro de topo do Primeiro-Cônsul Bonaparte e do Imperador Napoleão e envolvido em todas as intrigas entre 1799 e 1810, governador geral da Ilíria em 1813, plenipotenciário do Imperador em Itália, conspirador eminente sob a primeira restauração, ministro e árbitro dos partidos durante os 100 dias, chefe do poder executivo e ministro da restauração, Fouché esteve em todos os actos desse drama imenso que foi da Revolução à Restauração passando pelo Império.

Foi um resistente. Os Girondinos caiem, Fouché fica; os líderes da Montanha são sucessivamente guilhotinados, Fouché sobrevive; Directório, Consulado, Império, 1ª Restauração, Império novamente (100 dias) desaparecem, afundam-se, mas Fouché permanece, graças à sua reserva subtil e à audácia que tem por ser absolutamente desprovido da mais pequena parcela de carácter e de ter uma absoluta falta de convicções.

O poder de Fouché reside no seu sangue frio inabalável. Paciente e dissimulado submete-se, sem um sobressalto, com a face impenetrável ou um sorriso gelado, às mais grosseiras injúrias e humilhações. Robespierre e Napoleão quebraram ambos contra esta impassibilidade marmórea. O sangue, os sentidos, a alma, o sistema nervoso, não têm qualquer papel neste personagem, apenas o cérebro comanda as suas acções. Espera dissimulada e pacientemente que o ardor dos adversários se esgote ou estes percam o domínio de si próprios, e que lhes consiga descobrir algum ponto fraco. Urdir a sua trama do fundo do seu gabinete, entrincheirado atrás dos papéis e ferir impiedosamente sem que ninguém saiba como e donde, é a sua arma.

Quem o conheceu pessoalmente é unânime em atestar que nunca um aspecto físico se coadunou melhor com o carácter ambíguo e insondável que era o seu. Alto, magro, ossudo, ligeiramente curvado, face exangue de uma lividez estranha que nunca corava, nem empalidecia, lábios descorados, um rosto fechado, impenetrável. O seu olhar, cinzento e inexpressivo seria, como disse Robespierre, «olhos que a natureza tinha escondido para permitir a este homem dissimular a sua alma atrás desse véu impenetrável». A sua fealdade, sem banalidade, acentuava o seu aspecto sinistro.

Porém, repentinamente, esta fisionomia fechada abria-se e fulminava um olhar acutilante, rápido e investigador que devassava o íntimo do interlocutor e os lábios crispavam-se num sorriso irónico. E surgia o grande inquisidor da polícia francesa.

Provavelmente Murnau inspirou-se nas descrições de Fouché para compor o seu personagem Nosferatu ...

Todavia, Fouché não é vingativo. Combate com determinação e impiedosamente quem se interpõe entre ele e o seu objectivo. Esmaga quem o quer liquidar. Mas passada a refrega não odeia nem se vinga. Pode lutar, usando toda a manhosice de que a sua mente é fértil, até à liquidação política total do seu adversário, mas tendo-o vencido, este deixou de ser seu adversário. Fouché perdoou sempre tudo – velhas rivalidades, injúrias, ataques pessoais, etc. – mas nunca perdoou a alguém que se lhe atravessava no caminho.

Como ministro da polícia, Fouché explorou e serviu-se do que mais baixo havia na humanidade. Conheceu, melhor que ninguém, como se trafica com a consciência humana. Viu de perto pessoas que ele julgava honestas capitularem vergonhosamente pela corrupção e gente que estigmatizava os tiranos cair no deboche que criticava. Comprou tantas consciências com reputação de íntegras, enganou tantos políticos que se julgavam hábeis, que concluiu que a sociedade se compunha de celerados mais ou menos hipócritas e de imbecis mais ou menos felizes.

No fundo, a sua benevolência e insensibilidade perante a injúria, e a sua clemência e moderação, decorriam do imenso e tranquilo desprezo que votava aos seus semelhantes.

A este universo corrupto apenas escapa o seu lar. Fouché foi sempre um marido fiel e terno (apesar da mulher ser, segundo escreve Barras, de uma «fealdade horrível») e um pai exemplar. Sempre.

Concluindo, Fouce, tal como este perfil o descreve, é um homem de Estado da escola positivista que perante uma situação complexa com diversos problemas vai analisá-los, decompô-los, resolvê-los uns após os outros, com o tempo e a oportunidade que as circunstâncias exigem. A sua mente está liberta de quaisquer peias: convicções, escrúpulos, amizades, ódios, receios. Não subestima nem sobrestima o adversário.

(*) As estimativas sobre o valor das moedas são minhas. Na época havia écus de 3 libras e écus de 6 libras. Presumo que Fouché se deveria referir ao écu de 6 libras (ou francos).
40 écus corresponderiam assim a cerca de 3.000 a 3.500€ em termos de poder de compra actual, ou seja, cerca de 250 a 300€ mensais. Julgo que Álvaro Cunhal também dizia que um comunista podia viver perfeitamente com o ordenado mínimo nacional ... nada é novo sob o sol!


Nota - ler igualmente:
Fouché Monárquico
Fouché Duque de Otranto
Fouché Bonapartista
Fouché Ministro da Polícia
Fouché revolucionário


Publicado por Joana em 09:17 AM | Comentários (6) | TrackBack

maio 28, 2004

Portugal não é pequeno, apenas mesquinho

Eça escrevia, no primeiro número das Farpas, em 1871, que, em Portugal, se quer «o prestígio da realeza e a majestade do poder; mas exige-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguer e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais de dois pares de botinas».

A actual polémica acerca dos vencimentos dos dois directores-gerais do fisco, estabelecidos segundo a fasquia dos privados, é apenas mais um sintoma da doença endémica do país, já caracterizada naquela frase do Eça – um coquetel de inveja, mesquinhez, maledicência, intriga e boataria.

Esta polémica é apenas um epifenómeno de uma questão de fundo – a sordidez com que se encara a remuneração dos cargos políticos. A remuneração das figuras públicas em Portugal é ridícula para a responsabilidade das funções que desempenham.

Estas baixas remunerações levaram a situações perversas. Lembremo-nos, por exemplo, da questão dos bilhetes das viagens de representação que eram trocados por outros em classe económica, para a família também poder ir. Isto nem sequer atinge a dignidade de uma fraude ... é apenas o espelho da miséria financeira e moral (porque uma produz a outra) em que vegetam os nossos representantes.

Lembremo-nos da incompetência, cada vez maior, dos nossos governantes e da dificuldade crescente em se constituírem governos minimamente capazes tecnicamente. Os grandes nomes da economia, finanças, engenharia, etc., fogem como o diabo da cruz de se deixarem arregimentar para os elencos governamentais. Para quê? Para ganharem uma miséria e serem expostos à devassa pública e à maledicência dos sus concidadãos ?

O mercado onde procurar governantes está cada vez mais exíguo: gente do aparelho partidário, incapaz de ganhar o sustento de outra maneira; gente das universidades que faz jus ao aforisma «quem sabe, faz, quem não sabe, ensina»; gente da função pública cristalizada em procedimentos obsoletos e sem visão nem estratégia; em suma, gente que não conhece o tecido produtivo do país, que não sabe, por dentro, o que é uma indústria, o que é o sistema financeiro ... gente que esconde a incompetência atrás da sua retórica.

E o mais curioso é que enquanto os portugueses exigem que os seus representantes e governantes sejam honestos, competentes e mal pagos, tentam, eles próprios, ser manhosos, incumpridores e bem pagos.

O país exige dos seus representantes e governantes rigor, competência e espírito de sacrifício, mas não quer remunerar devidamente essas qualidades. O paradoxo é que não obtém nem uma coisa, nem outra: paga mal aos seus governantes e representantes, mas estes acabam por nem isso merecerem. Ou seja, paga mal e tem como resultado o remunerar acima da produtividade dos eleitos.

O barato sai caro. De tanto porfiar nas baixas remunerações dos seus representantes e governantes e neste modelo miserabilista, o pais acabou por os estar a remunerar acima do que eles merecem.

Publicado por Joana em 07:46 PM | Comentários (52) | TrackBack

maio 27, 2004

A Perversão dos Efeitos Colaterais

A greve é um direito que os trabalhadores conquistaram mercê da sua acção solidária e persistente e que se tornou uma aquisição consensual para todo o espectro político e social.

Todavia, e à medida que o movimento sindical enfraquece e vai perdendo base social de apoio, a greve tem mudado perigosamente de formato. Deixou de ser o resultado da adesão de largas massas de trabalhadores e da sua generosidade militante, para se especializar, cada vez mais, em greves de pequenos segmentos laborais, de reduzidas dimensões, mas de elevados efeitos colaterais.

A greve actual não busca o protesto dentro da sua esfera de actividade. Esse protesto existe, mas é despiciendo na estratégia global. A greve actual procura o efeito colateral, ela visa tomar, como reféns da sua causa, parte significativa da população e assim potenciar os seus efeitos.

Sucede porém que esta estratégia é uma arma de dois gumes. Se é verdade que, enquanto ocorre, potencia em muito os seus efeitos, pelos incómodos e instabilidade que causa, a médio e a longo prazo vira-se contra os seus autores, retirando-lhes, progressivamente, a base social de apoio. E é uma estratégia perversa porque é sucessivamente causa e efeito do declínio sindical.

Tomemos o caso das greves de transporte. Têm, como se sabe, elevados efeitos “colaterais” mas, paradoxalmente, são efeitos “classistas” – prejudicam mais quem é mais desfavorecido economicamente. São dramáticas para quem trabalha e não tem carro; são penosas para quem, tendo carro, tem que cumprir horários; são epidérmicas para quem não está sujeito a horários; e são completamente inócuas apenas para quem vive dos rendimentos.

Desconheço se as greves de transportes têm permitido conseguir os objectivos que o pessoal que as promove pretende atingir. Há porém um efeito que foi obtido e que não esteve, nem está, seguramente, na mente dos seus promotores – degradar a imagem do movimento sindical, levar a um progressivo distanciamento entre a classe trabalhadora e os sindicatos e enfraquecer o sindicalismo.

Esta estratégia da procura de efeitos colaterais é, sublinho, perversa porque, quanto mais o movimento sindical enfraquece, mais a imaginação dos sindicalistas se empenha em encontrar formas de produzir o máximo estrago com cada vez menos efectivos e com cada vez menos apoio popular.

Quando os trabalhadores de um dado sector se começam a interrogar sobre o facto das lutas laborais os estarem a levar a um beco sem saída e diminuem a sua militância e a sua adesão, os dirigentes sindicais passam à fase seguinte: utilizarem um segmento desse sector, eventualmente pequeno mas indispensável ao seu funcionamento, para obterem o mesmo efeito colateral.

Regressando ao caso dos transportes, esta fase acontece quando as greves são feitas apenas pelos maquinistas, motoristas ou por outros segmentos dos trabalhadores dos transportes, reduzidos, mas indispensáveis ao seu funcionamento. Neste caso, a greve de um minúsculo segmento laboral leva à quase total paralisação de todo o sector e à exasperação de centenas de milhares de utentes dos serviços.

Tomemos o caso das greves nos estabelecimentos de ensino secundário. À medida que os professores foram perdendo o entusiasmo pelas greves, os sindicatos criaram incentivos: passaram a marcar as greves às sextas-feiras! Com o tempo, também este incentivo se começou a revelar insuficiente. Os sindicatos apostaram no pessoal auxiliar, pouco numeroso, mas indispensável para as escolas se manterem abertas. Actualmente a adesão dos professores às greves é muito fraca. Todavia a expressão dessa fraca adesão é potenciada pela muito maior adesão do pessoal auxiliar. E assim diversas escolas fecham, não pela adesão dos professores, mas pela adesão do pessoal auxiliar.

Há década e meia, ao que julgo, que o pessoal dos museus faz sistematicamente greve nos dias em que se prevê um grande afluxo de turistas estrangeiros. Esta greve tornou-se num dos nossos mais impressivos elementos folclóricos das festas da Páscoa. Desconheço se essa greve sazonal e persistente trouxe algumas vantagens para os grevistas. Provavelmente já nem serão os mesmos que, em época tão remota, a iniciaram. Provavelmente já a fazem apenas por instinto atávico, um impulso sazonal similar aos comportamentos com que os documentários da vida animal do National Geographic Magazin nos deliciam e instruem. Há uma coisa que seguramente conseguiram: a incompreensão e o desagrado das pessoas, quando não suscitam mesmo o ridículo.

Agora foi a vez dos inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteira que haviam agendado greves para 27 e 28 de Maio e 11, 12, 16 e 17 de Junho, exactamente os dias mais problemáticos do Rock in Rio e do Euro 2004, exactamente os dias em que a conjugação da ameaça terrorista e da realização de espectáculos que concitam o interesse e a adesão de milhões de pessoas em todo o mundo, maior impacte têm sobre a tranquilidade da população. A precisão com que os dias foram escolhidos não deixava qualquer margem para dúvidas – o sindicato dos inspectores do SEF procurava apenas a maximização dos efeitos colaterais.

Simplesmente, o SCIF foi, na sua malevolência primária, de um extrema ingenuidade. Mesmo admitindo que as suas reivindicações fossem justas, os dias escolhidos para a greve configuraram uma situação de chantagem e de utilização da população do país como refém dos 575 funcionários que agendaram as greves. Dificilmente algum governo aceitaria negociar numa situação destas.

Por outro lado, os inspectores colocaram-se na mira da contra-ofensiva governamental, que exploraria a inoportunidade da greve e os receios da opinião pública. Os grevistas ficariam responsabilizados, perante a opinião pública, por algo que pudesse acontecer com a segurança daqueles eventos e tornaram-se um alvo fácil e credível. Mesmo um governo inábil como o nosso conseguiria fazer arcar os grevistas com todo o ónus da situação e retirar-lhes qualquer capacidade reivindicativa após o fim dos eventos.

O SCIF compreendeu, tarde demais, que tinha perdido em todos os tabuleiros e que urgia retirar para minimizar as perdas. Assim, um dia após ter ameaçado, em conferência de imprensa, recorrer aos tribunais caso o Governo avançasse com uma requisição civil para enfrentar as greves dos inspectores, desconvocou a greve.

E para o desastre ser mais evidente, essa desconvocação foi feita apesar do comunicado do MAI que desmente que haja horas extraordinárias em dívida e que afirma que o que existe são «expectativas criadas pelo anterior executivo» que, segundo esse comunicado, iriam criar «inaceitáveis disparidades de remunerações relativamente a outras forças e serviços de segurança». Ou seja, o SCIF desconvoca a greve após o endurecimento da posição do MAI sobre as suas reivindicações. O comentário do SCIF é que as afirmações do MAI são «ofensivas e totalmente absurdas» e que «vêm ... desvirtuar dois anos de negociações com a tutela, já que ao longo de todas as reuniões o Governo nunca pôs em causa a existência da dívida». Afirmações que não convencem ninguém – o SCIF colocara-se num impasse, já não tinha espaço de manobra e apenas sobejou a retórica.

Sempre que as lutas dos trabalhadores são conduzidas com estratégias erradas, que as levam a um impasse, a um beco sem saída, é o movimento sindical que sai ferido, que perde força. São as estratégias erróneas, tais como as que descrevi atrás, que debilitam o movimento sindical e lhe retiram o apoio popular. A liderança sindical, à medida que sente diminuir o apoio, aposta na fuga para a frente – tentando com os meios cada vez mais exíguos de que dispõe, obter um impacte significativo com os efeitos colaterais. Mas é a vertigem pelo abismo, pois este é um processo que em vez de levar ao fortalecimento do sindicalismo, leva ao seu enfraquecimento progressivo

Publicado por Joana em 09:24 PM | Comentários (23) | TrackBack

maio 26, 2004

País Miserando

Manuela Ferreira Leite achava-se num impasse. A crise orçamental estava a exigir um desgaste tremendo à máquina governativa. Só em consumo de Directores-Gerais de Impostos o ritmo era impressionante. Era pois preciso, com carácter de urgência, um Director-Geral dos Impostos de alta performance, com elevado índice de octanas, ou a ministra corria o risco de esgotar os stocks, já bastante exaustos, daquele consumível.

Com a argúcia e o olhar de águia que a caracteriza, quando não está a preencher as declarações de IRS, a ministra decidiu ir aprovisionar-se de Directores-Gerais de Impostos fora de uma função pública exaurida de competências, incapaz de despertar de uma sonolência secular.

Confrontou-se então com um problema: o leque salarial no sector privado tem uma amplitude muito superior ao da função pública. O pessoal pouco qualificado é mais mal pago no sector privado, enquanto que, à medida que a qualificação sobe, o pessoal do sector privado é cada vez mais bem pago, em comparação com o da função pública. Isto é compreensível. A função pública não se rege por critérios de competitividade. Rege-se por critérios de antiguidade e de carreiras baseadas em habilitações académicas e tempo de serviço, independentes do desempenho profissional. Na função pública promove-se a antiguidade e não o mérito.

A ministra resolveu este problema com elegante simplicidade: colocou a fasquia salarial do novo Director-Geral dos Impostos ao nível dos salários do sector público. No caso vertente, o novo Director-Geral dos Impostos vai ganhar o mesmo que ganhava no Millenium-BCP (23.500 euros mensais).

O vencimento do novo director-geral de Impostos causou espanto. Nalguns casos, até indignação. E os sindicatos falaram mesmo de revolta. Afinal, é mais do que a remuneração da ministra...

O caso serviu para alimentar de sangue o vampirismo dos portugas, que exuma sempre que fareja o vil metal em mãos de outrem. Ferro Rodrigues considerou mesmo aquela contratação "um insulto aos quadros da Administração Pública ... qual a autoridade moral da ministra das Finanças para com os restantes funcionários públicos", questionou no debate mensal de hoje, no Parlamento. PC, alinhando pela teoria da conspiração capitalista clama contra «o superboy, SA». O sindicato considerou a contratação uma «afronta ideológica e política à função pública» e garantiu que existem, a preço de saldo, na dita função pública «15 a 20 pessoas» tão capazes como o Dr. Paulo Jorge. O dirigente sindical esqueceu-se que, actualmente, se preferem os artigos de marca, aos saldos. Um analista político sugeriu haver um risco para a «estabilidade da alta administração» e um ataque à noção de serviço público e da devoção pela coisa pública inerente a esse serviço.

O grave desta questão é que, talvez com a excepção do dirigente sindical, todos têm razão. E todos têm razão porque a função pública bateu no fundo. Mas todos têm razão porque cada um vê o problema segundo a sua óptica estreita.

A ministra tem razão em que é preciso uma lufada de ar fresco e uma visão empresarial para reorganizar os serviços. Mas a ministra já está no governo há dois anos. Já despediu vários Directores-Gerais. Não seria preferível ter começado por reformar a administração pública?

A ministra poderá contrapor que esta era uma medida urgente e que a reorganização da função pública demorará alguns anos a ser conseguida. É um facto, mas por isso mesmo já deveria ter começado há muito. E o que é que tem sido feito nesse sentido? Muito pouco, para a tarefa ciclópica que é a de modernizar uma administração pública com vícios seculares, com uma qualificação baixa e uma produtividade baixíssima. A reforma deveria ter sido desencadeada logo no início desta governação.

O PS tem formalmente razão. Mas que fazer? Reformar a função pública? Mas se o PS não o fez quando governo e, quando oposição, tem apoiado a contestação sindical a todas as medidas, por muito tímidas que sejam, que o governo pretende tomar relativamente àquele desiderato.

O PCP tem razão dentro da sua óptica de defesa dos interesses corporativos, independentemente do interesse geral do país. Foram estratégias desse tipo que levaram à implosão das economias “socialistas” da Europa do Leste. Como os preços eram administrativos e não regulados pelo mercado, as remunerações dos factores de produção regeram-se por critérios igualmente não-económicos, o que levou à completa ruína dessas economias. O PCP limita-se a seguir os seus instintos primitivos. Racionalidade é coisa a não esperar dos seus dirigentes.

Arguir que esta nomeação é um ataque à noção de serviço público e à devoção pela coisa pública inerente a esse serviço é, formalmente, uma verdade. Mas será que ainda existe essa noção? Certamente que haverá funcionários públicos com a noção de serviço público, mas são seguramente uma minoria cada vez menos significativa. E mesmo os que têm essa noção, será que estarão a seguir os procedimentos mais adequados? Não estarão, com devoção, cristalizados em métodos antiquados e obsoletos?

É um facto que esta contratação pode ser tomada como uma «afronta ideológica e política à função pública». Mas não será igualmente uma «afronta ideológica e política» a recusa da função pública em se deixar reformar? Quando o governo encetou o processo do Código Laboral, que se destinava ao sector privado, quem fazia as greves de protesto era o sector público. Porquê? Obviamente como uma manobra de antecipação, para dissuadir o executivo de cair igualmente em tentações reformistas no que respeita à função pública.

Resumindo: ao fazer esta contratação a ministra reconhece um facto evidente – a administração pública está financeira e moralmente falida. Mas o papel de um ministro não é apenas o de diagnosticar situações. O diagnóstico é apenas uma primeira fase do tratamento de um problema. Falta resolvê-lo. E aqui a ministra e este governo têm tido uma acção insuficiente. Fazem diagnósticos, enunciam algumas medidas, mas só muito timidamente tentam implementar algumas.

Publicado por Joana em 10:22 PM | Comentários (24) | TrackBack

maio 25, 2004

Theias que os políticos tecem

O processo Theias, desde as apreciações que a classe política fez sobre o seu desempenho, até aos comentários sobre a sua demissão, são o retrato da nossa classe política.

Praticamente desde que tomou posse que Theias foi considerado uma escolha errada. Um erro de casting como lhe chamei então. Quem primeiro se deu conta disso foram os autarcas, cujos projectos e candidaturas ficaram em “banho Maria” e cujo diálogo com o ministro evidenciava um sujeito indeciso, frágil, sugerindo um dia uma coisa e outro dia outra, completamente diferente e, por vezes, contraditória. O ministro falava ao sabor dos lobbies do sector do ambiente ou das opiniões de quem falava com ele.

E os autarcas do PSD estavam entre os mais críticos, talvez por esperarem mais, talvez por se quererem adiantar aos críticos de outros quadrantes, como uma providência cautelar para minimizar as críticas dos outros. Se aquilo que autarcas de relevo do PSD diziam em reuniões com terceiros, o disseram em reuniões das estruturas do partido, então desde muito cedo que Durão Barroso deve ter-se sentido pressionado para mudar o ministro.

Segundo é público, Durão Barroso teve de intervir para apaziguar a relação do ministro do Ambiente com os seus secretários de Estado. As «gaffes do ministro» eram incómodas para o governo e para Barroso acima de tudo. Apenas os ambientalistas apoiavam o ministro, não pela sua competência, mas pela sua fragilidade. A fragilidade de um ministro do Ambiente facilita os ambientalistas pescarem em águas turvas. Quem gosta da intriga e do boato, prefere situações fluidas.

Por isso é incompreensível Durão Barroso, na despedida de Amílcar Theias, manifestar o apreço e o reconhecimento pelo trabalho desempenhado pelo antigo ministro da pasta do Ambiente, alegando que o despedia apenas porque reconhecia que aquele era o momento de mudar.

Durão Barroso deveria ter guardado "de Conrado o prudente silêncio”. Na verdade, anunciar uma demissão do Governo por volta da meia-noite não é um acto normal, não pode ser considerado «o momento de mudar», quando simultaneamente se declara ter apreço pelo trabalho desempenhado. Se se tem apreço, não se muda de ministro à meia-noite. Se Durão tem apreço pelo trabalho de Theias é porque este estaria a fazer bom trabalho, logo não deveria ser demitido ou, havendo conveniência na sua substituição, esta poderia esperar por uma remodelação mais vasta.

É normal, quando se substitui alguém, dizer algumas mundanidades. Mas neste caso aquelas afirmações mundanas de Durão não colam com o timing da demissão. Estão deslocadas.

Uma teoria sugere que o despedimento de Theias na véspera do congresso do PSD, e àquela hora, fora do horário normal de expediente, se destinou a pacificar os autarcas exasperados pela inacção do ministro, ou sectores incomodados pela vertigem do ministro em abrir a boca apenas para dar tiros no pé. Embora frágil, não se vê outra explicação com um mínimo de pertinência. Todas as outras razões apontadas não explicam o porquê daquele timing. Mas mesmo esta explicação não é favorável ao primeiro ministro. Ela prova que Theias já deveria ter sido substituído há muito e que a sua manutenção foi um erro inexplicável de Barroso.

Toda a actuação de Barroso foi de uma grande fragilidade, porquanto a sua persistência em conservar um ministro contra as críticas dos seus próprios autarcas, um ministro desacreditado perante os gestores das entidades privadas e públicas que actuam no domínio ambiental, incompatibilizado com os colegas e com os seus secretários de Estado, prometendo decidir uma coisa num dia e o inverso na semana seguinte, etc., é inexplicável por causa racional.

Diz-se que Durão Barroso o foi mantendo porque considerava Theias um homem sério. Na verdade era. Mas era também uma personalidade frágil e manipulável. Uma das causas das suas decisões contraditórias era ele ser permeável aos diferentes lobbies: o lobby das incineradoras, os lobbies ambientalistas, etc. Cada vez que falava com um, mudava de opinião. Uma pessoa séria e manipulável não oferece qualquer garantia de tomar decisões sérias. Também aqui Durão Barroso errou.

Outra comportamento paradigmático do estado da nossa vida política, foi o da oposição. Durante mais de um ano a oposição troçou da incompetência do ministro. Dirigentes da oposição disseram publicamente que o ministro era tão fraco que o governo andava «com vergonha do ministro».

Mesmo quando o ministro dava tiros no pé, a oposição associava-se aos tiros, mas guardava-se de elogiar o ministro. Os respectivos autarcas tinham um opinião de tal forma negativa da actuação do ministro, que os líderes nacionais nunca se atreveram a elogiá-lo

A oposição, comentando a demissão mas incapaz de a contestar pelas qualidades do ministro, contestou-a baseada na teoria da conspiração. O PCP considerou, imediatamente, que a exoneração do ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente evidenciava as «dificuldades e fragilidades» do Governo. Francisco Louçã afirmou que a exoneração de Amilcar Theias, é «uma manobra de recurso» de Durão Barroso, um sinal para dentro do partido e do próprio Governo. «Isto é um filme com todas as características de intriga misteriosa, é substituído um ministro repentinamente quando ele próprio tinha apresentado uma resolução do conselho de ministros sobre a privatização das águas, um dos grandes projectos de liberalização com que o Governo se comprometeu», disse. Quanto ao porta voz socialista, este deduziu que há «todos os sinais de que esta não é uma remodelação comandada no seu timing e na sua extensão pelo primeiro-ministro. Pode também ser uma remodelação contra o primeiro-ministro». «Recordo que o ministro Amílcar Theias avançou com a operação de privatização das Águas de Portugal», disse o socialista, adiantando que «a intenção do ministro Amílcar Theias de fazer acompanhar essa operação de uma remodelação na administração da empresa Águas de Portugal pode estar associada a este desenlace».

Paradoxalmente o projecto de liberalização do sector das águas, dias antes criticado duramente, era agora um «grande projecto de liberalização a que o governo se havia comprometido». A hipocrisia não podia ser maior

Apenas Alberto João Jardim, o «sátrapa da Madeira», considerou que a saída de Theias era «uma notícia alegre». «Respirei fundo, porque ele tinha encrencado tudo o que tinha pendente com a Madeira». Infelizmente, Theias tinha «encrencado» tudo, em todo o país. Apenas a hipocrisia e o receio de chamarem as coisas pelos nomes impediu os políticos «continentais» de reconhecerem o mesmo.

O caso Theias é de facto paradigmático da situação em que se encontra a política em Portugal. Foi apenas por isso que eu gastei mais tempo do que esta figura apagada mereceria.

Publicado por Joana em 07:33 PM | Comentários (10) | TrackBack

Theias que os mídia tecem

Durante mais de um ano os meios de comunicação teceram críticas à actuação do ministro Theias. Quando se falava na eventualidade de uma remodelação, Amílcar Theias aparecia sempre à cabeça. Estava na calha – seria o primeiro membro do governo a ser despedido.

Finalmente, depois de esperar tempo em demasia, Durão Barroso fez a vontade aos mídia e demitiu Theias.

Título dos jornais: Durão tira Theias sem explicação. Como sem explicação? Então se os meios de comunicação andavam há mais de um ano a explicar que o Ministro Amílcar Theias era uma desgraça e deveria ser remodelado?

A demissão de Theias só pecou por tardia.

Já há mais de um ano, e neste blog, desde que ele começou, que eu venho criticando a política (ou a ausência dela) de Amílcar Theias e da sua equipa. Foi em «Com Vergonha do Ministro» onde escrevi entre outras coisas que «O ministro Theias não tem qualquer perfil para o lugar». Posteriormente, em «Mau Ambiente» fiz uma crítica acerada ao ministro e ao seu Secretário de Estado do Ambiente. Entretanto e já em 25-06-03 havia escrito no Expresso online que « Theias foi um erro de casting» muito antes desta “teoria” ter começado a circular na comunicação social.

A situação do ambiente em Portugal é péssima e é necessário alguém enérgico para tomar decisões (matéria em que o ministro Theias era absolutamente incapaz). Em primeiro lugar há dezenas de candidaturas ao Fundo de Coesão que estão completamente «encrencadas» como diria AJ Jardim, algumas ainda desde o tempo de Sócrates (o ministro, não o filósofo!). Tem que ser pacificada a relação entre os autarcas e o Ambiente, bastante degradada pelas dilações permanentes do ministério em termos de aprovação das candidaturas. Trata-se de projectos importantes a nível de abastecimento de águas e saneamento e de tratamento de resíduos sólidos. E são investimentos públicos, comparticipados a fundo perdido e com retorno financeiro, de que a economia do país tanto precisa

Em segundo lugar tem que haver coragem de dizer não ao fundamentalismo ambiental que se enquistou como um polvo em institutos e organismos públicos e que só tem causado prejuízos. O desleixo governamental de décadas deixou em autogestão uma série de institutos pagos pelo dinheiro dos contribuintes. Assim, em Portugal, começaram a ser classificadas áreas sob os mais variados pretextos: REN, rede natura, biótipo Corine, paisagem protegida, etc., etc. O país ficou todo classificado.

Quando se tentaram construir centrais eólicas, como estas têm que se situar em locais altos e menos habitados, verificou-se que não havia locais disponíveis: estavam todos classificados. Simplesmente a alternativa às centrais eólicas é o incremento da energia térmica e o não cumprimento dos protocolos de Quioto e das directivas da UE. Lá teve que ser: começaram a “desclassificar” as áreas em causa, com as dilações burocráticas e os custos que tudo isso representa.

Outra ideia peregrina foi a de que a limpeza das matas e florestas destrói a biodiversidade. Não é por acaso que muitos dos incêndios do ano passado começaram em matas nacionais e zonas protegidas. Igualmente diversos agricultores se queixaram na altura que técnicos do Estado os impediram, em devido tempo, de proceder à desmatação de matas e florestas exactamente para proteger a biodiversidade. Mas há um alibi forte: a culpa é dos outros - quem pegou fogo, a mão criminosa, falta de meios dos bombeiros, etc.. Para os ambientalistas a culpa é sempre dos outros.

A tarefa dos ambientalistas é facilitada pela ignorância do mundo rural dos nossos fazedores de opinião. Quando se falou na hipóteses de colocar o ICN, os parques naturais e as zonas protegidas, debaixo da alçada das Florestas, gritou-se que tal representaria um verdadeiro golpe de Estado no Ambiente e uma traição a trinta anos de política ambiental. Sabe-se a que os 30 anos de política ambiental conduziram. Paisagens protegidas por lei e desprotegidas pela ignorância militante de quem as deveria proteger, desde o Parque Natural de Sintra-Cascais até à Tapada de Mafra.

A situação tornou-se extremamente grave e há que tomar medidas imediatas. Os incêndios florestais não se combatem com mais bombeiros e mais meios. Um incêndio numa floresta não tratada é imparável. E quantos mais anos de ausência de ausência de tratamento se acumulam mais rápido e devastador é o fogo, no caso de se desencadear. Tem que haver uma intervenção imediata nas florestas, passando por cima do polvo ambientalista, para que não se repitam as catástrofes dos últimos anos.

Depois é fácil dizer que a culpa é dos madeireiros, de interesses imobiliários, do secretário de Estado das Florestas ser o homem das celuloses, de mão criminosa, etc. Em Portugal prefere-se encontrar bodes expiatórios mais mediáticos e de efeito seguro do que encontrar as razões das coisas e providenciar que o desleixo seja eliminado. É evidente: encontra-se um bode expiatório e os ânimos ficam calmos, enquanto que eliminar o desleixo é uma acção lenta, que bule com muitos interesses instalados em diversos sectores, pouco mediática e de efeito a longo prazo. Esquecemo-nos que encontrar um bode expiatório fictício não tem qualquer efeito, a curto, a médio e a longo prazo. É apenas o ópio das consciências.

Preferimos os boatos e a teoria da conspiração ao estudo dos problemas e ao incómodo de os resolver.

Por isso, após meia dúzia de horas de cenários conspirativos, o silêncio absoluto. Theias regressou ao nada da comunicação.

Publicado por Joana em 10:45 AM | Comentários (16) | TrackBack

maio 20, 2004

Santo António e o Pecado do Lucro

A morte de António Champalimaud e os obituários que, nos dias que se seguiram, foram aparecendo nos meios de comunicação, é o exemplo do país que temos – um país pequeno, mesquinho, reverente, que não sabe lidar com o sucesso dos seus filhos.

Entre a subserviência da AR que se “curvou” perante a figura que... e a diabolização feita pelos jornalistas e fazedores de opinião «politicamente correctos», não há qualquer distância: são lídimos exemplares de uma espécie mesquinha e subserviente, porque a mesquinhez e a subserviência são as duas faces de uma mesma moeda.

Champalimaud foi um empresário de sucesso, frio, objectivo e impiedoso. Se não o fosse, não teria feito (e refeito) a sua extraordinária fortuna. Essa frieza tornaram-no numa figura solitária mas única, que os empresários olham com distanciamento, os políticos com desconfiança e os sindicalistas com ódio.

É óbvio que soube aproveitar as facilidades concedidas pela legislação salazarista. Mas é hipocrisia acusá-lo de o ter feito. A legislação existia, porque não a aproveitar? Aliás, se fosse possível “medir a protecção” auferida pelos grandes empresários da época salazarista, certamente que, no caso de Champalimaud, entre o deve e o haver, o benefício líquido de Champalimaud seria inferior ao dos demais.

Ainda hoje, um reverente admirador do bonzo Mário Mesquita, escrevia no Público que «António Champalimaud representava "o mais típico industrial da era salazarista, mandão e prepotente", que erigiu o seu "império cimenteiro e bancário à sombra da protecção que lhe conferia a legislação proteccionista do "condicionamento industrial" e os instrumentos ditatoriais do regime».

Quanto ao “Império Bancário”, sabe-se como a aquisição do BPA por Champalimaud falhou por intervenção do poder político, devido a uma lei posterior feita pelo governo de Marcelo Caetano e com efeitos retroactivos, o que num Estado de Direito seria inconstitucional. Quanto aos Cimentos, o Sr. Luís Costa ignora que a indústria de Cimentos tem uma barreira à entrada fortíssima dada pelo rácio peso/custo muito elevado. Os custos de transporte e a perecibilidade do produto tornam a concorrência a mais de 100 ou 150 kms praticamente impossível. Por outro lado, a dimensão mínima óptima de uma cimenteira é bastante inferior ao consumo anual de cimento em Portugal. Portanto, com ou sem protecção e a menos que houvesse um grande atraso tecnológico, seria impossível a uma cimenteira estrangeira concorrer no mercado português, excepto em algumas áreas fronteiriças do nordeste.

A maior linha de cimentos em Portugal foi construída em Souselas justamente porque aí existe o maciço calcário mais a norte do nosso país. Mas mesmo assim há entrepostos de moagem na Maia e em diversos pontos do norte do país. O produto sai de Souselas ainda na fase de clinker (que não é perecível) e é moído e ensacado nesses entrepostos, onde é distribuído. No caso da Siderurgia, Champalimaud teve efectivamente vantagens. Todavia, uma unidade com aquela dimensão não seria competitiva em economia aberta. E viu-se o que sucedeu, após a nacionalização, com as tentativas canhestras para a manter. Se Champalimaud tivesse continuado à frente da Siderurgia, talvez o país não perdesse tanto dinheiro com a tentativa frustrada de a manter à tona de água.

Este comportamento instável dos portugueses perante o sucesso empresarial é fruto do nosso atraso ideológico. O conceito do lucro como pecado é uma “aquisição” do cristianismo medieval e perdurou nos países católicos, onde a ética protestante não penetrou, nomeadamente naqueles onde o reaccionarismo clerical sobreviveu mais tempo. É conhecida a proposição de São Jerónimo postulando que «dives aut iniquus aut iniqui haeres» (O opulento é criminoso ou filho de criminoso). Nicolau Santos, no Expresso de há dias, punha-a a circular na “versão de Balzac”.

Santo Agostinho exprimiu o receio de que o comércio afastasse os homens do caminho de Deus e a doutrina de que nullus christianus debet esse mercator (Nenhum cristão deve ser mercador) era geral na Igreja dos começos da Idade Média. No Concílio de Latrão de 1179 foi decretada uma série de proibições severas para a usura. Embora com o desenvolvimento da actividade comercial o Direito Canónica começasse a aceitar alguns “desvios” relativamente à “pureza” primitiva, como o conceito do «justo preço» e o do lucrum cessans (lucro cessante) para justificar o juro dos empréstimos em dinheiro, nunca se libertou da concepção pecaminosa do lucro.

Se as doutrinas protestante e puritana foram ou não conducentes, por si mesmas, ao desenvolvimento do espírito capitalista e, portanto, do próprio capitalismo, é problema que não me proponho aqui resolver. O que é historicamente certo é que com o fim do predomínio do Direito Canónico ocorrem profundas alterações nas relações entre o pensamento teológico e pensamento económico. A harmonia entre os princípios da Igreja e a sociedade feudal que fora a determinante da universalização do âmbito do Direito Canónico, declinou com o fim da sociedade feudal. O pensamento canónico, como concepção social, pretendeu encontrar a unidade onde ela não existia, e manteve-se vigente enquanto o equilíbrio instável se não rompeu por completo. Não obstante as tentativas sucessivamente feitas para introduzir elementos éticos, como esteios da armadura do pensamento económico, este rompeu com eles, ante as solicitações dos novos impulsos sociais que lhe eram antagónicos.

É curioso igualmente verificar que, contrariamente às ideias de Marx sobre os países onde as concepções comunistas se afirmariam mais cedo, foi exactamente nos países da Europa Ocidental mais atrasados que os Partidos Comunistas se revelaram mais fortes e têm sobrevivido mais tempo. Se exceptuarmos a Alemanha imperial e de Weimar (que constitui um caso específico, explicado por outras circunstâncias), é no sul da Europa que os partidos comunistas se têm mantido com maior capacidade de sobrevivência.

Nos países onde a ética protestante mais se entranhou na sociedade, os partidos comunistas e afins são, praticamente, inexistentes. Igualmente nesses países o sucesso empresarial é visto com uma óptica completamente diversa daquela que predomina nos países em que o clericalismo mais perdurou.

No fundo, o horror ao lucro, pecaminoso e demonizado, une o clericalismo tardio (o Direito Canónico medieval) e o comunismo, nomeadamente o comunismo cujos conceitos cristalizaram no leninismo. Esse horror ao lucro e ao sucesso empresarial permanece entranhado na nossa sociedade, mesmo nas elites intelectuais que pululam na comunicação social e que se julgam avançadas e modernistas. É uma mistura paradoxal do reaccionarismo clerical milenar, entranhado no subconsciente social, caldeado por conceitos leninistas ultrapassados e esvaziados de conteúdo.

Publicado por Joana em 08:08 PM | TrackBack

maio 18, 2004

Perspectivas Sombrias

No início deste ano, tudo parecia apontar para que 2004 não fosse um ano de recessão como foi o de 2003, muito embora fosse previsível uma retoma apenas medíocre.

O elemento vulnerável neste cenário era a procura externa. Na situação orçamental em que Portugal se encontra e com o tipo de economia que tem, não é possível uma recuperação baseada na procura interna. Uma estratégia baseada na despesa pública conduziria, visto a oferta interna ser insuficiente, ao aumento das importações e ao consequente aumento do défice externo, para além do aumento do défice orçamental.

O Banco de Portugal previa para a procura interna um crescimento negativo ou muito próximo de zero. Portanto a retoma, mesmo medíocre, assentaria no crescimento das exportações o que permitiria a previsão de um crescimento positivo, ainda que diminuto, para o PIB.

Seria exequível um crescimento das exportações de bens e serviços suficiente para sustentar a retoma? Seria se as economias dos nossos parceiros comerciais estivessem em expansão. Ora tal não está a acontecer. A Europa apresenta um fraco crescimento e não se vislumbram sinais de que essa situação se modifique.

A subida do euro face ao dólar também complica a nossa situação. Alguns pensam que, uma vez que a maior parte das nossas exportações é dirigida para países que têm o euro como moeda ou como referência para as suas moedas, a subida do dólar não afecta as nossas exportações. Esse raciocínio é errado, pois, mesmo nesses países, competimos com exportações oriundas de países de fora da União Europeia e que têm o dólar como referência. Inclusivamente o turismo pode ser afectado.

As contínuas dificuldades da nossa situação económica podem levar a que, em 2004, as cobranças de impostos desçam. Além disso, é provável que continue a ocorrer o aumento do desemprego, conduzindo a um incremento correspondente das respectivas transferências sociais. Tudo isto terá repercussões negativas no défice orçamental. Com o objectivo de 3% do PIB como referência para o défice, haverá ainda o risco de, durante o ano, se ir cortando mais nas despesas de investimento público, induzindo um maior decréscimo da procura interna.

Entretanto, a subida galopante do preço do petróleo (atingiu o preço máximo dos últimos 20 anos, ultrapassando os 40 dólares) veio pôr ainda mais em causa a recuperação económica na Europa e, por indução, a retoma económica portuguesa .

Seis dos 12 estados da Zona Euro vão ultrapassar o limite de 3% de défice público. Entre os estados membros em falta encontram-se a Alemanha, a França e a Itália, as três maiores economias da Eurolândia. Também o Reino Unido vai exceder os 3%. O défice orçamental português deverá fixar-se, este ano, em 3,5% do PIB, de acordo com as previsões da Primavera da Comissão Europeia e só o recurso às receitas extraordinárias nos vai colocar abaixo da fasquia dos 3%. A pergunta que se põe é saber se, em face do incumprimento geral, valerá a pena hipotecar receitas extraordinárias para esse efeito.

Face a esta conjuntura, a OCDE reviu em baixa os indicadores de crescimento do PIB português que tinha avançado anteriormente. Para o ano em curso, a OCDE estima que a criação de riqueza tenha um incremento de 0,8 % (contra 1,5 % nas estimativas de Novembro passado), enquanto que para o próximo ano o crescimento deverá atingir os 2,4 % (já mais próximos dos 2,6 % avançados em Novembro).

Face a essas previsões Portugal continuará, em 2004, a divergir da média da Eurolândia, e aproximar-se-á de um ritmo de convergência no ano que vem. Para o conjunto dos 12 Estados que adoptaram o euro como moeda, a OCDE estima um crescimento de 1,6 por cento (o dobro do português) em 2004, e de 2,4 por cento (ao mesmo nível do de Portugal) em 2005.

A OCDE continua a sustentar que a recuperação da economia portuguesa será alicerçada na dinâmica exportadora, prevendo mesmo que as vendas de bens e serviços ao estrangeiro registem um incremento de 5,2 %este ano (mais 1,3 % do que em 2003). Penso que estas previsões incorporam um elevado risco. Na verdade, e de acordo com o INE, as exportações portuguesas caíram 4,3 % em Janeiro e Fevereiro (face ao período homólogo de 2003). Tendo presente que a procura interna continua muito débil nos países da Zona Euro, para onde Portugal encaminha parte substancial das suas exportações, este é um sector onde as previsões apresentam um potencial de falibilidade que não pode ser descurado.

Perspectivas sombrias, sem dúvida.

Não me parece que haja na sociedade portuguesa uma consciência da situação sombria da economia portuguesa. E os que a têm, por a sentirem na pele, não se interessam pelas causas que levaram a essa situação e pelas possíveis soluções para ela. Apenas dão socos no ar.

O governo terá consciência da situação. Mas está encurralado entre a sua incompetência e o receio de desagradar ainda mais ao eleitorado. Durante os 2 primeiros anos da legislatura, época ideal para se fazerem as reformas impopulares, o governo titubeou e não foi capaz de fazer as reformas que se impunham. Não será nos dois últimos anos, em que terá que encontrar maneira de ganhar as próximas eleições que as conseguirá fazer. É certo que conseguiu melhorar alguns parâmetros macroeconómicos, como o défice orçamental e o défice das contas com o exterior. Mas são as reformas estruturais que valem e permitem sustentar uma evolução positiva dos parâmetros macroeconómicos. E aí a prestação do governo foi muito insuficiente.

Como escreveu Pina Moura há tempos: "O Governo tem conseguido fechar a torneira que enche essa represa (contendo a despesa pública) mas não interferiu, de maneira nenhuma, nas fissuras que já mostram essa barragem. Continuamos com o risco de naufrágio". É evidente que Pina Moura não terá grande autoridade moral para dizer isto, até porque as fissuras já vinham do tempo dele e, principalmente, do ministro que o antecedeu, mas isso não invalida que tenha acertado.

Publicado por Joana em 10:24 PM | Comentários (33) | TrackBack

Fundamentalismo Cristão

Já sai Froilás, furente da albarrã
Já manda infantes levigar a liça
Já seu Monteiro atroz matilha atiça
Já ruge a arraia pela barbacã

Já vem Mafalda, a lábios de romã
Já toda nua vai sofrer justiça
Já baixa e geme a ponte levadiça
Já dobram sinos na feral manhã

Já, solta, a adúltera em carreira vai
Já dos alões a brônzea trela cai
Já ruem, saltam, pelo trilho em fora

Já ela expira envolta em seu cabelo
Já volta o Gardingo para o seu Castelo
Já seus uchões lhe dão comer agora

.... tive que recuar um milénio e adequar o cenário e a linguagem àquela época tenebrosa.

Publicado por Joana em 10:08 PM | Comentários (13) | TrackBack

maio 16, 2004

Abruptamente ... no presente

Tenho que confessar que detesto os pregadores de moral que condenam, com pretensa e seráfica virtude, os vícios alheios, vícios que quando são eles próprios a praticar, os ignoram candidamente, ou os justificam pelas circunstâncias, ou, quando confrontados formalmente com eles, apenas aceitam que se cometeram “exageros”.

É óbvio que os factos descritos no relatório das “sevícias” não desculpam os actos cometidos na prisão de Abu Ghraib. «O mal não pode ser comparado com outro mal. Deve ser condenado por si só». É óbvio que ir desenterrar agora aquele relatório numa tentativa de desculpabilização das sevícias de Abu Ghraib seria uma manobra canhestra.

Então porquê tanta irritação? Tanto incómodo? Tal sucede apenas porque os mais tenazes pregadores moralistas sobre as sevícias de Abu Ghraib são, politicamente, os mesmos que ignoraram o relatório das “sevícias” e que conseguiram que a comunicação social lhe desse pouco ou nenhum relevo. Pelo menos é um relatório praticamente desconhecido de quem não conviveu com essa época e também, provavelmente, de quem conviveu com ela.

No Público, Eunice Lourenço indigna-se escrevendo que foi «Assim como podiam ter ido buscar os crimes da Inquisição para contrapor à condenação das torturas feita pelo Vaticano. E a esquerda cai no erro de, entrar no jogo, justificando e até mesmo negando aquilo que foram, obviamente, os exageros da Revolução

Curiosa, esta indignação. 30 anos de distância é o período de apenas uma geração. Provavelmente mais de metade da população portuguesa actual viveu aquele período. Os crimes da Inquisição ocorreram há mais de 7 gerações. Ocorreram numa sociedade estruturada de forma diferente e com uma estrutura mental igualmente diferente. Para criticar uma comparação, obviamente inadequada, Eunice Lourenço estabelece outra comparação, completamente absurda. E ao dar conselhos à esquerda, Eunice Lourenço devia começar por os dar a si própria. E um deles é que aquilo que num caso são apenas “exageros”, porque não o serão no outro? Ou se num caso forem “sevícias bárbaras” porque não o serão no primeiro?

Quem desenterrou o relatório das “sevícias” errou, se pretendeu estabelecer uma comparação desculpabilizadora. Uma barbaridade não desculpa a outra. Se apenas pretendeu demonstrar a hipocrisia de alguns segmentos políticos portugueses, acertou em cheio. O comportamento de muitos jornalistas, “fazedores de opinião” ou simplesmente blogueiros é prova disso.

Também é curiosa a forma como muitos jornalistas e “fazedores de opinião” reagiram perante a divulgação das imagens aterradoras da decapitação do cidadão americano Nicholas Berg. Uma divulgação parcial, porque mostrar uma decapitação por vídeo, na íntegra, excede a nossa capacidade de conviver com o horror.

No Público de ontem o articulista de «O Horror Infinito», Amílcar Correia, dedica-lhe meio parágrafo e o resto do artigo às sevícias físicas e morais dos soldados americanos. Augusto Seabra faz o mesmo, este domingo, em “A Espiral Alucinante”: um curto e cauteloso parágrafo inicial, dedicado à decapitação, para depois teorizar sobre as sevícias.

As sevícias perpetradas das pelos soldados americanos em Abu Ghraib são condenáveis. A bárbara decapitação pública de Nick Berg é condenável. Ambas o são, uma independentemente da outra. Mas é profundamente hipócrita referir “en passant” uma para se poder dedicar, com mais profundidade e com a “consciência tranquilizada”, à outra.

Miguel Sousa Tavares é mais conspirativo: esta decapitação é uma ajuda prestada pela Al-Qaida a Bush, quando a popularidade deste decrescia em face dos desmandos cometidos por soldados americanos no Iraque. Saberiam aqueles ferozes decapitadores islâmicos que quando separavam a cabeça do corpo de Nick Berg, aos gritos de Alá é grande, estavam a dar uma preciosa ajuda a Bush? Está tudo explicado – aquela decapitação está integrada numa manobra mais vasta que visa o branqueamento das acções americanas no Iraque, com a cumplicidade da Al-Qaida.

Há uma coisa em que MST tem razão. Esta execução abre uma porta para aliviar a consciência da América face às fotografias das humilhações e maus tratos sofridos pelos prisioneiros americanos. Quando a barbaridade atinge tal clímax, direitos humanos, tolerância, tudo é postergado e a sociedade aceita acções que consideraria inaceitáveis normalmente.

E isto deve ser combatido. A nossa sociedade vive do primado do Direito. Também tem, no seu seio, criminosos e gente violenta. Mas as instituições funcionam, melhor ou menos bem, e o Direito, por regra, triunfa. Também neste caso terá de triunfar.

Publicado por Joana em 11:30 PM | Comentários (30) | TrackBack

Barbara, a Guerra e Prèvert

Um poema apropriado a esta época. No fim um comentário.

Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-la
Et tu marchais souriante
Epanouie ravie ruisselante
Sous la pluie
Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest
Et je t'ai croisée rue de Siam
Tu souriais
Et moi je souriais de même
Rappelle-toi Barbara
Toi que je ne connaissais pas
Toi qui ne me connaissais pas

Rappelle-toi
Rappelle-toi quand même ce jour-la
N'oublie pas
Un homme sous un porche s'abritait
Et il a crié ton nom
Barbara
Et tu as couru vers lui sous la pluie
Ruisselante ravie épanouie
Et tu t'es jetée dans ses bras
Rappelle-toi cela Barbara
Et ne m'en veux pas si je te tutoie
Je dis tu a tous ceux que j'aime
Même si je ne les ai vus qu'une seule fois
Je dis tu a tous ceux qui s'aiment
Même si je ne les connais pas
Rappelle-toi Barbara
N'oublie pas
Cette pluie sage et heureuse
Sur ton visage heureux
Sur cette ville heureuse
Cette pluie sur la mer
Sur l'arsenal
Sur le bateau d'Ouessant
Oh Barbara
Quelle connerie la guerre
Qu'es-tu devenue maintenant
Sous cette pluie de fer
De feu d'acier de sang
Et celui qui te serrait dans ses bras
Amoureusement
Est-il mort disparu ou bien encore vivant
Oh Barbara
Il pleut sans cesse sur Brest
Comme il pleuvait avant
Mais ce n'est plus pareil et tout est abîme
C'est une pluie de deuil terrible et désolée
Ce n'est même plus l'orage
De fer d'acier de sang
Tout simplement des nuages
Qui crèvent comme des chiens
Des chiens qui disparaissent
Au fil de l'eau sur Brest
Et vont pourrir au loin
Au loin très loin de Brest
Dont il ne reste rien.

Em 1944 os aliados cercaram Brest durante 43 dias. Efectuaram 165 bombardeamentos e destruíram quase completamente a cidade. Houve mais de 25.000 mortos civis.
Prèvert, homem de esquerda e anti-nazi, está dividido entre a necessidade da derrota dos nazis e o desastre humanitário que essa derrota acarretou para Brest.

Por isso esta doçura de tonalidades trágicas, uma forma directa e comovente de denunciar o horror da guerra: sem amigos e nem inimigos, sem distinguir nós e os outros. Apenas vítimas.

Publicado por Joana em 08:03 PM | Comentários (16) | TrackBack

maio 13, 2004

Abruptamente ... no passado

Um artigo publicado por Pacheco Pereira no seu blog Abrupto, e citado hoje numa notícia do Público, está a causar muitos incómodos.

Em causa não está, certamente, a similitude dos comportamentos entre a «vanguarda esclarecida e revolucionária» do MFA e os «torcionários com mentalidade fascista» do exército americano no Iraque. Não há qualquer similitude possível, se exceptuarmos os factos em si, ou seja, as sevícias, pois o contexto é completamente diferente. No caso da «vanguarda esclarecida e revolucionária» do MFA não existiu a insuportável componente racista: os torturandos não eram oriundos de um povo do 3º mundo, mas pertenciam ao próprio povo. Nestes casos o contexto é o critério fundamental. Conforme o contexto, assim as sevícias serão revoltantes ou irrelevantes.

Também não há qualquer semelhança entre os protagonistas dos dois dramas. Em Portugal, em 1975, quem praticava aqueles actos era a «vanguarda esclarecida e revolucionária» do MFA, uma vanguarda a quem a teoria política tinha então atribuído, como missão histórica, a redenção do proletariado e a construção de uma sociedade sem classes. Ora pelo postulado da superioridade moral da esquerda radical, postulado que ela própria criou e erigiu em dogma, os seus actos, por mais sanguinários que sejam, inscrevem-se na necessidade histórica de um processo que conduzirá, inexoravelmente, um passo em frente e dois para trás, aos amanhãs que cantam. Enquanto isso, no Iraque, quem pratica aqueles actos insidiosos é o imperialismo americano que não se pode reclamar daquela providência cautelar, porquanto o seu lugar, pelos mesmos postulados teóricos, é a sarjeta da história.

Aliás, o Barnabé, o blog-órgão do pensamento radical, num texto sóbrio, liminar, despojado de adjectivos e impudicamente despido de argumentos, manifestou a sua posição com a certeza tranquila de quem sabe que a teoria, por postulado, lhe dá sempre razão e que, por via disso, qualquer argumento é despiciendo. Pior, é pernicioso, pois pode lançar a suspeita iníqua e desnecessária de que a sua convicção nas certezas foi abalada, suspeita que obviamente não pode ser deixada fermentar por aí, à solta.

E no fim desta sólida in-argumentação, o Barnabé prometeu, ou melhor, condescendeu, que quando “deixarem de tratar toda a gente como idiota, cá estaremos para o debate”.

Mas, Barnabé, será mesmo necessária essa condição tão restritiva? O BE habituou todos os que não comungam dos seus postulados, teoremas e teses, a serem tratados como idiotas. Para o BE toda essa massa informe, viciada pelo canto de sereia da democracia representativa, não passa de um conjunto não-ordenado de néscios que não foram iluminados pela sua sabedoria doutrinal. Se a propriedade de só haver debate quando se deixar de tratar toda a (outra) gente como idiota, se tornar uma função bijectiva, como será possível estabelecer qualquer debate? Não ficarão cortados todos os canais de comunicação entre a elite intelectual do país (o BE, Barnabé und so und so ...) e a massa informe da população vitimada e intelectualmente diminuída pelo vírus da democracia representativa.

Mas quando se têm convicções alicerçadas em teorias tão sólidas, para que serve o debate? E para que servem os argumentos?

Publicado por Joana em 11:46 PM | Comentários (43) | TrackBack

O Espectro da Destruição do Estado Social

Um espectro assombra a Europa – o espectro da Destruição do Estado Social. Todas as forças sociais da velha Europa se aliaram numa sagrada caçada a esse espectro: as oposições de esquerda em França e na Itália, a oposição de direita na Alemanha, socialistas e radicais portugueses e os sindicatos ... todos.

Onde está o partido no governo que não tivesse sido desacreditado pelos seus adversários (oposição e sindicatos) sob o anátema de preparar a destruição do Estado Social ? Onde está o partido da oposição que não tivesse sido desacreditado por outros partidos oposicionistas e pelos sindicatos como estando conluiado nesse fim iníquo?

O Estado Social tornou-se um espectro que assombra os políticos que quando na oposição vivem no pesadelo da sua destruição, e que, quando governo, vivem no pesadelo de não saberem como pagá-lo.

A invocação do Estado Social tornou-se uma vaca sagrada do pensamento político de um importante segmento da esquerda. Acredita na virtude imaterial do espírito da solidariedade social que permitiria conceder reformas a todos aos 60 anos e sustentar desafogadamente todos os milhões de reformados; que permitiria que todos os estudantes se matriculassem gratuitamente no ensino superior, estudando o que entendessem pelo tempo que lhes apetecesse; que permitiria que todos tivessem acesso gratuito, sem excepções nem restrições, à saúde, justiça, etc.. E o que há de imaterial nesta ficção do espírito da solidariedade social é que a sua gratuitidade e a sua generosidade são fictícias. Alguém tem que pagar.

Mas a questão não é só a de alguém ter que pagar – o Estado português sempre descobriu filantropos malgré eux. A questão é a repercussão dessa punção no rendimento nacional no desenvolvimento económico.

Vejamos o caso português. Nos últimos vinte anos a nossa economia cresceu 80%; as arrecadações fiscais, 155%; a despesa total, 170%; os salários, as pensões e os subsídios, 209% (números de Medina Carreira). O peso das despesas públicas subiu assim mais de 50% entre 1980 e 2000 (30,9% do PIB em 1980 e 46,6% em 2000), com o crescimento económico sempre em desaceleração (7,5% em média anual nos anos 60, 4,5% nos anos 80, 2,7% nos 90 e, provavelmente, não mais que 1,5% entre 2000 e 2010). Entre 1980 e 2000 a carga fiscal portuguesa aproximou-se muito da média da UE dos 15. O número de funcionários públicos e de pensionistas (SS+CGA) era de 560.000 funcionários e 1.780.000 pensionistas, em 1980 e cresceu para 747.000 funcionários e 2.907.000 pensionistas, em 2000. Nesse período a população terá crescido entre 5% a 10%.

Os números actuais do peso do Estado no PIB são similares aos da Europa desenvolvida. As prestações sociais é que não têm comparação. O modelo do nosso Estado Social é comparável ao da Europa desenvolvida pelo ónus que representa para o contribuinte português. As retribuições que este recebe é que são parcas. O Estado Social português vive em autofagia.

A expansão da punção fiscal foi dupla da criação de riqueza (PIB), mas apesar do bom comportamento financeiro dos impostos, entre 1980 e 2000, regista-se um enfraquecimento acelerado da capacidade fiscal para suportar as despesas. Todos falam em combater a evasão fiscal. É óbvio que deverá ser combatida. Aliás, a evolução das arrecadações fiscais face ao PIB mostra que tem diminuído. Todavia aqueles que mais clamam contra a evasão fiscal apenas pretendem extorquir dinheiro para continuar a alimentar o monstro, o Bal Marduk desta Babilónia do extremo ocidente europeu. Não pretendem desonerar os contribuintes cumpridores.

Alguns políticos da oposição têm sugerido mezinhas neo-keynesianas. Aumento dos gastos públicos e “esquecer” os limites impostos pelo PEC. São eles, todavia, que se esquecem que não existe em Portugal uma oferta interna capaz de prover ao aumento da procura interna resultante do aumento do rendimento disponível induzido pelo aumento da despesa pública. A contrapartida do aumento da procura interna seria o aumento das importações e o agravamento dramático da nossa balança de transacções com o exterior. Não aumentaria apenas o défice público, mas também o défice com o exterior e o endividamento geral do país. Mesmo que não houvesse os limites impostos pelo PEC seria uma política insustentável a médio prazo e com uma heraça extremamente penalizadora.

Outros políticos da oposição nem sugerem nada. Apenas querem manter o que está e, se possível, com mais regalias. Essa esquerda pensa que o Estado Social se conquistou, se defende e defenderá com acções de rua ou com o castigo pelo voto de quem o quiser reformar. Essa esquerda esquece, ou finge esquecer, que se a economia não providenciar, de forma sustentada, fundos para alimentar o Estado Social este não funciona, ou funciona mal. Essa esquerda apenas está a alimentar falácias que, a terem apoio, nos levariam, a todos, a um impasse.

Precisamos de modernizar a economia criando condições favoráveis ao investimento, nacional ou estrangeiro, apostar na qualificação da mão de obra, quer directamente pelo Estado, quer incentivando essa qualificação nas empresas e melhorar muito o desempenho da administração pública, desburocratizando os seus procedimentos, requalificando o pessoal e implementando uma avaliação eficaz do seu desempenho.

Em simultâneo precisamos de repensar um novo modelo do Estado Social. Sem dramatismos nem demagogias. É necessário manter o Estado Social, mas não este e a funcionar da forma como está. Se não lhe introduzirmos modificações profundas as maiores vítimas serão os mais desfavorecidos da nossa geração e das gerações seguintes. Pior, seremos todos nós e de forma cada vez mais gravosa.

Publicado por Joana em 08:15 PM | Comentários (24) | TrackBack

Eles Governam, Eles Perdem

A Europa vive uma época em que não se vislumbra uma luz no fundo do túnel.

A Europa das primeiras décadas do após guerra já não existe. A Europa ocidental era então uma economia com elevado crescimento, protegida do exterior, com uma distribuição etária que permitiu implementar um bom sistema de transferências e de regalias sociais. Hoje é uma economia estagnada, sujeita a uma forte concorrência internacional, nomeadamente da parte dos países emergentes, e com uma pirâmide etária invertida que torna o universo dos beneficiários das regalias sociais muito elevado face ao universo da população activa. Isto é matéria de facto e não de ideologia.

Todavia, no velho continente, muitos continuam a defender que o desenvolvimento económico pode ter como motor o estímulo do consumo, a expansão da despesa pública e do défice, e o aumento do emprego público, em vez da implementação de estratégias de estímulo à oferta e à criação de investimento privado e ao aumento da produtividade de uma forma sustentada, o que, no caso português, por exemplo, significaria investir na qualificação dos nossos recursos humanos, simplificar e desburocratizar a justiça e a administração pública, modernizar a administração fiscal, e tornar a nossa fiscalidade mais adequada ao investimento e à competitividade.

Portanto, uma economia que aposte nas exportações e na substituição das importações. Uma economia onde a alta competitividade seja decisiva.

Ou seja, a luta entre aqueles querem conservar e aqueles que pretendem mudar. As preferências próximas das sociedades europeias irão condicionar o futuro das próximas gerações. Ora as pugnas políticas e eleitorais na Europa, e particularmente em Portugal, têm sido conduzidas sob o signo do obscurecimento das realidades económicas, prometendo-se a manutenção e o reforço de regalias para as quais não há dinheiro para sustentar, ou que, se se tentasse sustentar mediante o agravamento da fiscalidade e o aumento dos défices, levaria à diminuição da competitividade externa e à bancarrota a médio prazo.

A notória inadequação do funcionamento do nosso Estado social à evolução económica e demográfica das últimas duas décadas pode torná-lo a grande vítima da inércia e da falta de visão de muitos responsáveis políticos. Neste clima político de insensatez e de demagogia delirante é de temer o pior. Na Europa, nos últimos anos, tem-se assistido a tímidas tentativas de reforma por parte dos governos, contestadas com a truculência mais veemente pelos sindicatos e oposições, seguidas das derrotas eleitorais desses mesmos governos e a retoma do mesmo cenário, mas com protagonistas trocados, excepto um deles, os sindicatos, sempre na mais feroz oposição. E isto não tem a ver com uma questão de opção partidária – acontece com a direita em França e com a esquerda na Alemanha, está a acontecer com a direita em Portugal e acontecerá com a esquerda, se esta ganhar as próximas eleições.

É por isso que “Eles Governam, Eles Perdem”, porque mentir ... mentem todos: uns prometendo o que sabem que não poderão cumprir e com quimeras que sabem ser ilusórias, outros mentem quando, ao fazer reformas que não são “nem carne, nem peixe”, mentem a uns dizendo que são “peixe” e a outros dizendo que são “carne”.

Publicado por Joana em 07:53 PM | Comentários (26) | TrackBack

maio 11, 2004

A vida de um difamador sem profissionalismo

O obituário de Champalimaud por Nicolau Santos (A morte de um litigador profissional) é, no que se refere à actuação de Champalimaud antes do 25 de Abril, um monte de calúnias.

Quem o começa a ler pensará que Champalimaud subiu na vida dando o golpe do baú. Não se percebe como é possível, parágrafos volvidos, escrever que “Champalimaud foi um homem de grande visão antes de 1974”.

Nicolau Santos escreve que “a compra do BPA, que esteve quase a conseguir, iludindo o seu proprietário Cupertino de Miranda, só falhou por intervenção do poder político”. Na única parte em que acertou (“só falhou por intervenção do poder político”) esqueceu-se de acrescentar que foi devido a uma lei feita apressadamente pelo governo de Marcelo Caetano e com efeitos retroactivos, o que num Estado de Direito seria inconstitucional.

Não é verdade que a Lei do Condicionamento Industrial se destinasse a proteger os “grupos nacionais”. A Lei do Condicionamento Industrial destinava-se a evitar que qualquer empresário, nacional ou estrangeiro, entrasse num dado sector industrial, sem autorização governamental e aprovação dos industriais já existentes no sector. A Lei do Condicionamento Industrial era uma barreira à entrada, artificial, institucional, para proteger os interesses já instalados num sector, não os "grupos nacionais" como tal.

Se é verdade que os Mellos cresceram sob a protecção da Lei do Condicionamento Industrial e do governo salazarista, Champalimaud teve mais litígios com os governos de Salazar e Caetano que prebendas.

A indústria cimenteira portuguesa e o nosso know-how nesse sector, deveu-se a Champalimaud. Provavelmente se Champalimaud se tivesse mantido com o controlo da Siderurgia Nacional, nunca ela se tornaria obsoleta. Ou se Champalimaud verificasse que haveria esse risco, em virtude da escala de produção não poder acompanhar a dimensão mínima óptima e a concorrência numa economia aberta, transferiria atempadamente esses investimentos para outro sector industrial mais inovador.

Contrariamente à tradição empresarial portuguesa, António Champalimaud, homem desassombrado e independente num país pequenino e reverente, nunca prestou vassalagem aos governos ou ao Estado e sempre deu as maiores provas de independência e obstinação. Basta ver como, após o 25 de Abril e à nacionalização dos seus activos – Cimentos, Siderurgia, Banca e Seguradoras – conseguiu, refugiado no Brasil, reconstituir um império: Um ultraje para um país mesquinho que olha normalmente com inveja para quem triunfa. Apesar das nacionalizações e dos litígios com os governos portugueses, nomeadamente com o de Marcelo Caetano, Champalimaud surge em 153.º na lista de 2004 dos 500 mais ricos do mundo elaborada pela revista americana Forbes – a maior fortuna portuguesa e uma das maiores do mundo – sem dever nada a ninguém, bem pelo contrário.

Quando regressou a Portugal, em 1994, Champalimaud era, obviamente, um septuagenário azedo. A sua dimensão de empresário industrial não pode ser avaliada por estes últimos 10 anos em Portugal.

A citação final de Balzac é a cereja no bolo do Nicolau. A maior parte do dinheiro ganho por Balzac foi extorquido a "balzaquianas", desiludidas da vida. Foi dinheiro de “alcova”. Só não fez uma grande fortuna porque a sua velocidade a gastar o dinheiro era superior às “remunerações” auferidas.

Publicado por Joana em 09:17 AM | Comentários (13) | TrackBack

maio 10, 2004

Natália

Natália é uma jovem ucraniana que chegou a Portugal há 3 anos. Entrou para o 7º ano de uma escola da capital. Reprovou esse ano. Era previsível: chegou a meio do ano e não sabia falar português.

Está actualmente no 9º ano. É a melhor aluna da turma e, neste último período, foi, inclusivamente, a melhor aluna a Português. Ficou toda orgulhosa!

Não é uma escola de um bairro problemático. Nos rankings das escolas nacionais é uma das escolas públicas do topo. Natália é uma das melhores alunas de uma escola que é das mais bem classificadas entre as escolas do país.

A diferença entre a Natália é a média dos colegas não parece ser uma questão de QI. É sobretudo uma questão de disciplina, profissionalismo e capacidade de trabalho. Determinada e trabalhadora, rapidamente se apercebeu das regras do funcionamento do nosso sistema escola e das saídas para o superior. Sabe o que quer ser e, provavelmente, vai consegui-lo.

Tem um irmão mais velho que entrou este ano em Engenharia Informática. Queria ir para Medicina mas a média não lho permitiu. Também não admira em face das dificuldades com a língua e dos problemas de adaptação.

Ambos vieram de um sistema de ensino mais exigente. Provavelmente o ambiente familiar interiorizou neles a necessidade do rigor, disciplina e trabalho. Não o foi certamente à custa da presença assídua dos progenitores: o pai, engenheiro civil, é motorista de longo curso e a mãe, engenheira têxtil, é empregada doméstica.

Natália gosta de estar em Portugal e está bem integrada na turma, apesar de estrangeira e de ser um ano mais velha que a média etária da turma (devido ao seu chumbo inicial). Vai a todos os eventos escolares, viagens de estudo, etc..

A baixa qualificação dos portugueses é realimentada pela baixa qualificação dos pais e pela sua demissão como educadores; por um sistema de ensino baseado no facilitismo e no conceito de que é possível a aprendizagem sem esforço. Não admira por isso que as Natálias cheguem ao nosso país e ao fim de poucos anos estejam entre os melhores alunos. Não são elas que são génios – somos nós que não conseguimos sair do círculo vicioso da nossa baixa qualificação.

Publicado por Joana em 09:05 PM | Comentários (11) | TrackBack

A Rã e o Preço dos Combustíveis

A polémica sobre o aumento do preço dos combustíveis faz lembrar a história do cientista investigador.

Um cientista estava, no seu laboratório, a investigar a influência das pernas no comportamento da rã.

Gritou: Salta! ... e a rã saltou.

E anotou no seu canhenho: A rã com as duas pernas, salta.

Cortou-lhe então uma perna, voltou a colocá-la na mesa laboratorial e gritou: Salta! ... e a rã saltou.

E anotou, novamente, no seu canhenho: A rã só com uma perna, salta.

Cortou-lhe então a outra perna, voltou a colocá-la na mesa laboratorial e gritou: Salta! ... e a rã nada. Insistiu: Salta! ... e a rã sempre imóvel.

E anotou, finalmente, no seu canhenho: A rã sem nenhuma perna fica surda.

Houve duas ocorrências na sequência da liberalização do mercado dos combustíveis:
1) o progressivo aumento do preço do crude
2) o progressivo aumento do preço dos combustíveis.

O crude é a matéria prima na produção dos combustíveis. O preço destes tem subido à medida que sobe o preço daquele. Há dias, o preço do barril de crude atingiu os 40 dólares, o máximo desde a Guerra do Golfo em 1990. É da ordem natural das coisas que o preço de um bem suba quando sobe o preço da matéria prima da qual ele provém. A Economia está segura e tranquila sobre esta relação.

Mas diversos sectores continuam a ligar o aumento do preço dos combustíveis à liberalização do mercado dos combustíveis. A única ligação segura entre essas duas realidades económicas é a ocorrência temporal. A rã também deixou de obedecer às ordens do cientista depois de ter ficado sem pernas.

Publicado por Joana em 10:00 AM | Comentários (17) | TrackBack

Nem com cão, nem com gato

Em Janeiro escrevi aqui que era «importante salvar a Sorefame, o know-how que ela tem e que se deve pôr a imaginação a funcionar para, no quadro institucional vigente e dentro das obrigações internacionais do país, encontrar uma solução para a manutenção daquela empresa e do seu quadro de efectivos».


Como não frequento a política e me limito a opinar num blog para meu entretenimento pessoal, posso permitir-me banalidades, pois uma afirmação assim, repetida em público e sempre despida de qualquer conteúdo operacional, é uma banalidade. Todavia, Sampaio, o Presidente da República, ao afirmar aos trabalhadores da fábrica da Amadora que o «Governo deve fazer qualquer coisa de decisivo para manter o património industrial da Bombardier ... além disso, é uma actividade industrial de qualidade» não disse apenas uma banalidade. Ao dizê-la na qualidade de PR, tornou-a uma banalidade demagógica.

Não foi certamente por coincidência que, na mesma altura, se anunciava que a CP e a EMEF poderiam assegurar a manutenção da fábrica da Bombardier, na Amadora. A figura que estaria a ser estudada pelos Ministérios da Economia e dos Transportes passaria pelo sector público empresarial assumir a manutenção da produção nas instalações da Amadora. O objectivo do Governo seria «encontrar uma solução que evite a descontinuidade da capacidade instalada de produção de comboios na Amadora e a salvaguarda dos postos de trabalho». E Carlos Tavares, prudentemente, adiantou que «tem de ser uma solução economicamente viável. Não basta ter a empresa, ela tem de vender a alguém».

Ora a EMEF é uma empresa do grupo CP que opera na área da manutenção e reparação de material circulante. Tem uma coisa em comum com a Bombardier – Sorefame: tem problemas de falta de encomendas. Teve outra coisa em comum: Ambas concorreram, em consórcio, à renovação de 57 comboios da linha da Azambuja, e perderam.

A EMEF, com falta de encomendas, arrendou parte das suas oficinas do Entroncamento à Alsthom, justamente quem vencera esse concurso.

A CP, patrona da EMEF, é, como é do conhecimento público, um dos maiores sorvedouros do dinheiro dos contribuintes. A CP foi um case-study da má gestão de uma empresa ferroviária, tendo tido honras de constar do currículo de algumas universidades estrangeiras pelas piores razões possíveis.

Pretende-se salvar a Sorefame pelo know-how que ela tem. Mas o know-how não é algo estático; vive da permanente inovação tecnológica e qualificação dos recursos humanos. Mas a inovação tecnológica não convive com uma cultura empresarial que recusa o risco, que se preocupa mais em proteger aquilo que está instalado do que em substituir aquilo que se tornou obsoleto. Em suma, uma cultura não-empresarial.

«Salvar» a Sorefame atrelando-a à CP faria com que o know-how actual se tornasse, pouco a pouco, obsoleto. Não se salvaria o know-how, pois este desapareceria, e a manutenção dos postos de trabalho só seria assegurada desviando fundos de projectos mais viáveis e inovadores, para os enterrar num poço sem fundo. Ou seja, aquilo que os governos portugueses mais têm feito nas últimas décadas.

É fácil dizer que se «deve fazer qualquer coisa de decisivo»: Qualquer um de nós sabe dizer isto, desde que dotado de fala. O que é difícil é fazer algo «decisivo» e «economicamente viável». O PR caiu na banalidade demagógica. É grave, mas não se espera do PR que decida coisas. É grave apenas, porque se esperaria que o PR revelasse algum bom senso e contenção.

Mas o governo não pode (ou não devia) cair na armadilha das promessas demagógicas. Porque é ao governo que cabe decidir, e as decisões do governo têm reflexo no bolso dos contribuintes. O governo não pode estar a criar mais elefantes brancos à custa dos contribuintes. Uma das mais importantes promessas eleitorais, que aliás tem constituído um refrão dos sucessivos governos desde a adesão à UE, foi a de «menos Estado e melhor Estado». As sucessivas incompetências governativas têm impedido o «melhor Estado». Que a demagogia não nos retroceda para «mais Estado».

Diz-se que quem não tem cão caça com gato. Mas isso é válido para quem sabe caçar. Quem não sabe caçar, não vale a pena tentar caçar nem com cão, nem, muito menos, com o gato.

Publicado por Joana em 09:42 AM | Comentários (9) | TrackBack

maio 06, 2004

«Teodisseia» Financeira

O desânimo grassava nas hostes governamentais. A Ministra das Finanças anda há dois anos numa pugna infrene para fazer diminuir a despesa pública. Ela congela os vencimentos dos funcionários; ela a corta na aquisição de consumíveis; ela emite despachos draconianos; ela despede Directores-Gerais de Impostos; ela faz declarações sinistras ad terrorem; e a despesa pública, em vez de diminuir, como mandariam as boas regras, aumenta.

Quanto mais a Manuela Ferreira Leite corta na despesa, mais esta aumenta. A questão deixou de ser política. Deixou mesmo de ser financeira. Passou a ser mística. A questão tornou-se no enredo de um thriller escatológico e a despesa pública numa espécie mutante trazida por algum meteorito vindo de uma nebulosa distante.

Em face de um argumento tão tenebrosamente sinistro, os crentes encomendam-se a Deus, os ateus ao determinismo histórico e os agnósticos desligam o televisor.

Manuela Ferreira Leite encomendou-se a Deus. Não lhe sobrava outra alternativa, nem Directores-Gerais de Impostos em quantidade suficiente. Ela já que não conseguia resolver a questão de outra maneira.

Mas Manuela Ferreira Leite desconfia que, mesmo para Deus, a tarefa ciclópica de reduzir a despesa pública portuguesa poderá não ser uma «pêra doce». Provavelmente levará bem mais que os 6 dias do Génesis, dado que depois disso, e exceptuando umas visitas fugidias para ralhar com o povo eleito, Ele não tem, ao que se sabe, praticado em tarefas tão espinhosas e desmedidas. Financistas respeitáveis têm mesmo afirmado que, no estado em que as nossas finanças se encontram e tendo em mente o empenho dos funcionários em gastar e a ligeireza dos contribuintes em evadirem-se, poderá ser tarefa para vários anos, mesmo tratando-se de Alguém omnisciente e omnipresente.

Perante esta perspectiva, Manuela Ferreira Leite vai, prudentemente, por etapas. Em primeiro lugar, e como providência cautelar, Manuela Ferreira Leite pediu a Deus que os socialistas não regressassem ao poder tão cedo. Na verdade, e dada a inabilidade do governo, só Ele poderá impedir isso. Se não o conseguisse, seria o Maelstrom orçamental: a descida de Portugal aos insondáveis e profundos abismos orçamentais. Se Ele, na sua potência e paciência infinitas, conseguir tal empenho junto do eleitorado, então talvez tenha tempo suficiente para realizar o milagre da desmultiplicação do défice orçamental.

Sousa Franco respondeu-lhe imediatamente, para dizer que ela estava a invocar o nome de Deus em vão porque está desesperada. Trata-se de uma evidente artimanha política. Com Deus nas Finanças Públicas, cada vez que Sousa Franco, nos seus almoços mundanos, alteasse a voz numa facécia jocosa sobre os insondáveis caminhos financeiros do Senhor, estaria a blasfemar. Ora mesmo um socialista laico evita blasfemar. E que seria de Sousa Franco sem as suas piadas sobre o governo que está, seja ele qual for, seja ele de que cor for?

E para justificar Portugal, e a si própria, com respeito ao problema da subsistência do défice público no país e do livre arbítrio do Homem (neste caso, contribuintes e funcionários públicos), a Ministra das Finanças está entretanto a preparar um Ensaio de Teodiceia sobre a Bondade do Contribuinte, a Liberdade da Função Pública e a Origem do Buraco Orçamental para concluir que a verdadeira teodiceia, a justificação do Défice Orçamental em Portugal, é o próprio Portugal, enquanto absoluta realização do défice público.

Em Portugal, quando não conseguimos resolver um problema, dissertamos sobre ele.

Publicado por Joana em 07:43 PM | Comentários (21) | TrackBack

maio 05, 2004

Competição Cerrada

Um dos conceitos mais queridos da esquerda era o de que Portugal tinha a direita mais estúpida da Europa. Com o descalabro financeiro e governativo de Guterres aquele conceito começou a perder operacionalidade. Não porque a esquerda deixasse de ter esse julgamento sobre as capacidades cognitivas da direita, mas porque começou a sentir que poderia estar em vias de ser considerada a esquerda mais estúpida da Europa. Pior ainda, mais estúpida e mais incompetente.

Finalmente, a esquerda e a direita portuguesas pareciam estar irmanadas num consenso sobre um conceito importante para a compreensão do país. Tinham em comum algo de exaltante: eram as mais estúpidas da Europa.

Desde então esquerda e direita têm dirimido forças na arena da estupidez política.

Ferro Rodrigues, por exemplo, tem sido incansável a carrear todos os seus trunfos para ultrapassar definitivamente a direita. Insatisfeito com os disparates que cometera no caso Casa Pia, Ferro, deu um último, inesperado e espectacular golpe que lhe asseguraria definitivamente o troféu: Escolheu para cabeça de lista à eleições europeias o homem que foi o principal artífice do défice orçamental português, o homem que após sair do governo andou a apregoar que aquele governo era o pior que tinha havido em Portugal desde os tempos de D. Maria, o homem que, enquanto Pina Moura andava às voltas a tentar remediar as contas, se entretinha em almoços mundanos a atirar-lhe chistes malevolentes e em voz alta, para que qualquer jornalista nas imediações pudesse ouvir e anotar, em suma, Sousa Franco, o homem que pela prosápia que ostenta, ainda não conseguiu perceber o buraco orçamental em que meteu o país.

Ao pé deste esforço entumecido de Ferro Rodrigues, as ladainhas facundas do Rosas no Público e os dislates desdenhosos do Louça na AR não passavam de cartas sem pintas nos trunfos da esquerda.

A direita tentava, desajeitadamente, contrapor os seus lances. O gambito Theias parecia uma jogada magistral, mas foi mal sucedido. Foi um gambito com uma peça tão insignificante que ninguém a tomou. Nem os ambientalistas deram por ela.

Manuela Ferreira Leite, o peso pesado de Durão, entrou finalmente na liça. Segundo se depreende, e após várias experiências falhadas, tudo indica que vai, mais dia menos dia, empossar Deus como Director-geral dos Impostos. Aparentemente, só ele conseguirá deter a evasão fiscal. Mas trata-se de uma jogada que, embora cheia de intenções, é claramente insuficiente face ao avanço da esquerda.

Finalmente, apareceu a jogada salvadora. Na recta final, um concorrente aparentemente menor, mas pleno de engodo, apesar da sua figura macilenta, de um pergaminho ressequido, retrato de um Nosferatu quando adolescente míope, produz-se num anúncio onde lhe escasseia a malevolência satânica, mas lhe sobeja o cretinismo tolo.

Não precisou de muito para se impor. Pouca coisa, embora absoluta, irremediavelmente pimba. Apenas:

digaomanel.com

Publicado por Joana em 08:14 PM | Comentários (14) | TrackBack

maio 04, 2004

Da Banalidade Banal à Perversa

O Presidente da República encetou a segunda semana da educação do seu mandato proferindo as banalidades a que já nos habituou.

Há banalidades que são inconsequentes porque embora sejam afirmações correctas, como são proferidas em excesso e sem conteúdo operacional, não servem rigorosamente para nada. São inócuas.

Inscreve-se neste conceito de banalidade banal a declaração do PR de que «rejeitava a tentação de um permanente experimentalismo, pautado pelo ritmo de reformas legislativas que se contradizem ou se anulam umas às outras» e a afirmação de que «Não podemos estar sempre a recomeçar. Devemos sim, realizar um esforço diário de inovação, de procura de melhores condições para a formação das nossas crianças»

Todos concordam, actualmente, com esta afirmação. Há mais de 30 anos que gerações sucessivas de jovens têm sido utilizadas como cobaias pelos investigadores do Ministério da Educação e Direcções Regionais. Todos têm colaborado com afinco nessa investigação exaltante: milhares de investigadores e milhões de cobaias. É seguramente a maior investigação laboratorial jamais conduzida em todo o mundo. Nem o Dr. Mengele teve tanto material e um prazo tão dilatado à disposição. Os que investigam profundamente numa legislatura, na seguinte afirmam que os jovens não devem ser tratados como cobaias, e vice-versa. Cada facção política parece querer estas preciosas cobaias apenas para si, para os seus investigadores, repudiando a experimentação quando não é ela a conduzi-la.

Onde estava Sampaio nos outros excitantes momentos desta monumental investigação? Quando, por exemplo, se liquidou o ensino profissional em nome da luta contra o elitismo, esquecendo justamente que o elitismo era pensar que o único ensino «digno» era o clássico. O elitismo destruiu o ensino profissional baseado no conceito perverso que estava a travar uma luta contra o elitismo.

E as sucessivas «reformas» quer curriculares, quer nas avaliações? E a reforma (!?) actual que permanece ainda um mistério, o que faz com que os adolescentes que estão no 9º ano ainda não saibam, neste altura do ano lectivo, que opção tomar?

Há um segundo tipo de banalidades, que o são apenas por serem proferidas em excesso e continuadamente, afirmações erróneas que se tornaram chavões e que, por via disso, não são inconsequentes, mas sim perversas.

Inscreve-se neste âmbito de banalidade perversa a estafada afirmação, proferida hoje por Sampaio, de pedir mais investimento na área da Educação: «qualquer desinvestimento do Estado na área do ensino será um erro. ... Portugal não investe demais na educação. . Bem pelo contrário, necessita de investir nesta área, e muito, não apenas durante um, dois ou três anos, mas de forma continuada e persistente».

Ora Portugal é, depois da Finlândia, o país da UE que investe mais na educação em termos do PIB. E é o país da UE que, de longe, piores resultados tem. Assim, se o PR fizesse alguma ideia do que anda a dizer, pediria a todos os agentes da educação, e ao Ministro à cabeça, que investissem melhor o dinheiro que o Estado saca aos contribuintes; exigiria a todos os agentes da educação, com o Ministro, os Secretários de Estado e o pessoal do Ministério e das Direcções Regionais à cabeça, que melhorassem o seu desempenho e que estabelecessem procedimentos para optimizar a aplicação dos dinheiros públicos, minimizar as ineficiências e melhorar a qualidade do ensino.

Quando profissionais de um dado sector público são confrontados com o facto do seu sector funcionar mal, não cumprir as suas responsabilidades, custar caro, desperdiçar recursos, não satisfazer a sociedade e os cidadãos, têm duas respostas que se complementam: a primeira é que a culpa da crise do sistema não tem nada a ver com eles, apesar de serem eles que o põem a funcionar e lhe dão existência e identidade, mas sim que a culpa é dos governos, dos ministros e dos políticos em geral; a segunda é a de que os recursos financeiros são insuficientes e que se for aplicado mais dinheiro a solução está ali, no horizonte próximo. É apenas uma questão de mais dinheiro.

É claro que se forem aplicados mais recursos financeiros, verificar-se-á, tempos volvidos, que tudo continua na mesma insuportável mediocridade. Voltam as interrogações e voltam aquelas duas respostas liminares e irrefutáveis.

Pelos vistos, o PR também interiorizou aquela ladainha.

Publicado por Joana em 07:51 PM | Comentários (10) | TrackBack

O Democrata Prodi

Romano Prodi é o presidente da Comissão Europeia. Normalmente um presidente é suposto representar toda a população a que preside, mesmo aqueles que não votaram nele. É a regra dos países democráticos. Escrevi isto em 2 de Janeiro deste ano, quando Prodi ameaçou as «ovelhas negras» da Europa com a «Europa a duas velocidades», casos os países recalcitrantes não cedessem ao «diktat» franco-alemão.

Há poucos dias Romano Prodi, em face da decisão do governo de Tony Blair de referendar a Constituição Europeia, declarou que um «não» britânico à Constituição Europeia terá "consequências graves para a Grã-Bretanha". Não especificou quais. Também não precisava: tratava-se apenas de uma ameaça.

O democrata Prodi estava visivelmente contrariado por Tony Blair pretender consultar o eleitorado britânico sobre matéria que envolve a soberania da nação.

Quando a Irlanda disse não ao Tratado de Nice, Romano Prodi, o estrénuo democrata, não gostou do voto do povo irlandês e foi a Dublin dizer ao Governo da República da Irlanda que o povo deste país «estava a exercer a ditadura das regras da democracia sobre os restantes povos membros». Palavras então de Prodi à Rádio Irlandesa: «Se o Tratado de Nice não for rectificado teremos sérias consequências políticas ... Porque deseja a Irlanda ditar as regras da democracia nos outros países? A ideia da Europa é a única grande ideia do nosso tempo e do futuro. Todas as dificuldades actuais resultam do facto de que a Europa está a viver um processo democrático».

Por outras palavras: para Prodi a democracia só é aceitável e líquida quando o voto surge na convergência com os interesses dos «países grandes» da Europa. Mas se uma nação se nega a esses interesses e vota, livremente, contra eles, então está a submeter os outros à ditadura da sua vontade.

Pleiteando incansavelmente sobre esta matéria, Romano Prodi advertiu noutra entrevista que se a Constituição Europeia não for adoptada, a Europa será "ingovernável". "Se a Constituição não for adoptada, se não conseguirmos progressivamente ultrapassar essa regra da unanimidade para alcançar um número crescente de decisões de maioria qualificada, a Europa será ingovernável a 15 (Estados-membros), 25 ou 35".

Portanto, o presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi acha que, actualmente, a UE está ingovernável. Ele deve sabê-lo, visto ser o presidente.

Noutra declaração, Prodi afirmou ainda que “Se tivermos uma Constituição, se tivermos regras, poderemos gerir perfeitamente a Europa e a Europa tornar-se-á uma verdadeira potência mundial”

Resumindo o pensamento Prodiano, quando os países pequenos e médios pretendem exprimir a sua vontade, estão a submeter os outros à ditadura da sua vontade. Nem mesmo a Grã-Bretanha escapa à sua visão totalitária da democracia. Em contrapartida se se aceitar uma constituição que permita que o directório franco-alemão-italiano imponha as suas regras, então haverá a «democracia» e a « Europa tornar-se-á uma verdadeira potência mundial». Aliás, as dificuldades actuais resultam do facto de que a Europa está a viver um processo democrático. Quando se travar esse processo incomodamente democrático, emergirá uma grande potência.

Por enquanto, e no que se refere às relações com os EUA, a Itália ainda não alinha totalmente com o eixo franco-alemão, mas quando Prodi, o líder da «Coligação Oliveira», vencer Berlusconi nas eleições de 2006, então a sintonia entre os 3 grandes será total.

Porque Romano Prodi, embora Presidente da Comissão Europeia, mantém, paralelamente, uma acção política importante em Itália, como dirigente da Coligação Oliveira. Assim, quando fala, nunca se sabe se o faz na condição de Presidente da Comissão Europeia ou de chefe da oposição em Itália.

Há um ponto em que o Presidente da Comissão Europeia Romano Prodi e o dirigente político italiano Romano Prodi estão de acordo: o apoio ao eixo franco-alemão e à política europeia de reforço do papel dos grandes países consubstanciada no projecto da nova constituição europeia e no novo sistema de votação no Conselho por maioria qualificada que permite o bloqueio de decisões naquele órgão, caso aqueles dois países, juntamente com a Itália, se aliem.

Roman Prodi, católico, oriundo da democracia cristã, acabou chefiando, em Itália, um governo integrando comunistas. Tem-se visto que o espírito seminarista temperado no aço do proletariado leva ao totalitarismo mais hipócrita – Stalin havia sido um seminarista. Espera-se que Prodi não vá tão longe.

Publicado por Joana em 09:27 AM | Comentários (16) | TrackBack

maio 03, 2004

A Vertigem da Guerra

Chegam-nos imagens de torturas físicas e morais perpetradas pelas forças da coligação no Iraque.

Escrevi em 07-Abril-2003, em Retóricas que « se a coligação, depois de ter vencido a guerra, não souber vencer a paz, é bem provável que comecem a aparecer focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas». Ora a coligação estava preparada politica e militarmente para vencer a guerra porém, o que se tem passado depois da queda do regime de Saddam, mostrou que não estava preparada para vencer a paz.

Em primeiro lugar não é possível encerrar um país num dia e recomeçá-lo no dia seguinte com nova gerência e novo pessoal. Havia uma administração pública, uma polícia e um exército que estavam dominados pelo partido Baas. Mas, num regime totalitário, o ser-se um aderente do partido do poder é, na maioria dos casos, apenas uma necessidade de sobrevivência profissional ou mesmo física, não é um vínculo ideológico profundo. Foi assim com os regimes fascistas, foi (e é) assim, em escala muito maior, com os regimes comunistas.

Ora a desbaasificação foi um erro. O Iraque ficou, de um dia para o outro, sem exército, sem polícia, sem a maior parte da administração pública. As forças da coligação não podiam suprir essas carências. Eram diminutas, eram estrangeiras e não estavam preparadas para exercerem o poder civil.

O vazio do poder institucional foi preenchido pelo poder das ruas e pelo poder do clero mais militante. Quando há um vazio do poder, este é tendencialmente tomado pelos grupos sociais com mais protagonismo, normalmente os grupos mais radicais. Sempre foi assim. E assim foi acontecendo, pouco a pouco, no Iraque.

Há tentativas recentes de inverter esta situação. Todavia já se perdeu muito tempo e já se deixou a situação degradar-se demasiado.

Em segundo lugar as forças militares teriam que estar altamente disciplinadas para enfrentar eventuais acções de resistência. Numa guerra não convencional, a “outra parte”, a resistência, não segue as mesmas regras por diversas razões: não é um exército profissional e combate com os meios de que dispõem. A própria exiguidade dos meios leva-a a não respeitar, ou a não achar respeitáveis, as normas de conduta militar.

As forças da coligação deveriam ter uma disciplina rigorosa para não caírem na tentação de aplicar a lei de talião. Faz parte da lógica deste tipo de situações, surgirem entre as forças militares, elementos que cometem excessos pela vingança de terem visto morrerem camaradas seus em circunstâncias que reputam de contrárias à ética militar, ou por escape em face do estado de tensão criado neles pelas acções dos grupos armados, ou apenas pela perversão do poder militar.

Isto é sabido e acontece sempre, a menos que uma disciplina rigorosa se mantenha nas fileiras. Tradicionalmente, actos desses, quando sucediam, eram abafados pelas hierarquias militares e políticas. Todavia vivemos, actualmente, num mundo cada vez mais mediático e numa sociedade aberta, onde seria pouco provável abafar semelhantes actos. E o que estas fotografias mostram é que a coligação também não estava preparada, militarmente, para fazer face a este tipo de guerra.

Já escrevi aqui, por diversas vezes, que uma democracia não se instala na ponta das baionetas. Também não se detêm acções de resistência com actos torcionários sobre prisioneiros. Apenas fazem aumentar a sua base social de apoio.

Mesmo apenas pontuais, a acreditar nas afirmações do comando da coligação, estes actos são muito negativos para quem quer conquistar a opinião pública iraquiana e mundial. O comando da coligação tem que ter mão firme na disciplina das suas fileiras e uma justiça firme e rápida para julgar e punir estes actos.

Publicado por Joana em 09:56 AM | Comentários (71) | TrackBack