Ganhámos na simpatia, onde poucos nos batem, ganhámos na organização, onde tantas vezes falhamos e onde a maioria estaria descrente, e temos bastantes possibilidades de ganhar dentro do campo, o que muito poucos acreditariam.
Quando eu escrevi, há uma semana, «Perfeito ... até agora», dei conta da forma perfeita como tudo havia até então decorrido e desejei que, independentemente dos nossos resultados desportivos, mostrássemos à Europa que merecemos o respeito, o apreço e a admiração que tantas vezes nos negam.
E isso tem acontecido. O director executivo da UEFA ainda hoje classificou o Euro2004 como o melhor de sempre e que o difícil era encontrar pontos em que a organização não tivesse estado muito bem.
Muitos perguntam-se porque se conseguiu esta extraordinária adesão, este consenso total no apoio e no entusiasmo com a nossa prestação no Euro2004, e não conseguimos a mesma coesão para outros desígnios.
É simples. No caso da selecção, o nosso consenso é no apoio ao seleccionado dirigido por esse espantoso condutor de homens que é Scolari. No caso da comunidade nacional seria preciso um consenso naquilo que podemos fazer pelo nosso país e não apenas digladiarmo-nos para obter aquilo que nos achamos no direito de exigir ao nosso país.
Estou comovida, as lágrimas sulcam-me o rosto e enevoam-me o olhar e é apressadamente que dedilho as teclas, antes que toda esta humidade curto-circuite os integrados do teclado.
Manuela Ferreira Leite foi, durante mais de dois anos, a implacável ministra das Finanças que fechou os cordões à bolsa, lançando milhões de famílias portuguesas no holocausto da escassez consumista para satisfazer as imposições «estúpidas» do PEC. Foi a besta apocalíptica dos funcionários públicos, que viram os seus vencimentos congelados e pairar sobre eles o espectro de incómodas avaliações de desempenho. Foi a «Némesis Especial por Conta» dos taxistas e de muitos médios e pequenos empresários. Foi a Inimiga Pública nº 1 dos autarcas no desespero de obrarem para aliciarem o seu eleitorado local.
Em dois dias, apenas dois ... menos que os dias da criação, com uma rapidez que assombra as divindades semitas, e outras mais a ocidente, Manuela Ferreira Leite tornou-se numa heroína da coisa pública. O Expresso reconheceu-a como a natural e desejada sucessora de Durão Barroso. Foi descoberto que afinal Manuela Ferreira Leite é uma social-democrata e não uma neo-liberal empedernida. Apareceu ao JA Lima transfigurada na Virgem dos Aflitos, única capaz de se opor à satânica Família Addams que se apresta para dominar primeiro o PSD, depois o país, e a seguir ... a seguir «só o céu é o limite», segundo tese inovadora que ele, emocionadamente, postulou hoje.
Miguel Sousa Tavares, esta noite na TVI, alternava o rosto cerrado e um fluido catarroso de sangue misturado com nicotina a escorrer-lhe pelas comissuras dos lábios, quando sibilava os insultos mais soezes ao PSL, com um rosto impante de felicidade quando perorava que a Manuela Ferreira Leite seria a figura incontornável para chefiar o governo de gestão até às desejadas eleições antecipadas.
Violinos elevam as suas melodias (nenhuma delas, por enquanto, da autoria de Chopin) quando o recém sacralizado nome de Manuela Ferreira Leite é pronunciado nos meios de comunicação em loas sublimes e exaltantes.
A ascensão da Virgem Manuela das profundezas satânicas até aparecer aos pastorinhos da comunicação social para lhes revelar o segredo do «golpe de Estado» foi um dos momentos mais divinais desta semana pródiga em transfigurações inesperadas.
Uma ascensão fulgurante e divina. Uma promoção inesperada. E fora da época.
Timeo Danaos et dona firentes
As declarações de Durão Barroso, hoje, em Istambul são claras. Alguém tem que ceder. Sampaio, Santana Lopes, os Anti-Santanistas ou o próprio Durão Barroso.
Perspectiva-se um ultimato lançado por Durão Barroso àquele quarteto.
Sampaio terá que dizer, preto no branco, se aceita (ou não) a solução que decorre da normalidade constitucional (o nº 2 do partido mais votado ser indigitado 1º Ministro) ou outra solução no quadro do PSD.
Vai ser difícil por duas razões: 1) Sampaio é um homem com uma absoluta incapacidade de decisão; 2) Sampaio detesta Santana Lopes e ficará de candeias às avessas com o PS, o seu partido, se o aceitar.
Os Anti-Santanistas terão que deixar de andar a dar tiros no pé e conformarem-se com as decisões dos órgãos dirigentes do PSD. Manuela Ferreira Leite, principalmente, terá que se convencer que ela é a pessoa cuja saída do governo é mais urgente, apesar de ser a nº 2 dele. Ela é a nº 2 na hierarquia governativa, mas a nº 1 na calha para sair. A menos que o PSD queira cometer suicídio.
Santana Lopes, no caso de Durão Barroso não conseguir do PR a alternativa natural terá que se conformar com a solução possível. Vai ser complicado. Os membros do governo que torcem o nariz a Santana Lopes, nomeadamente a Manuela Ferreira Leite, estão completamente desacreditados, pela sua acção governativa, junto de muitos dos barões do PSD e perante a totalidade dos dirigentes autárquicos (que têm um grande peso dentro do PSD e apoiam PSL).
No caso dos ultimatos anteriores não conduzirem a alternativas viáveis, Durão Barroso terá que lançar um ultimato a si próprio: vai para Bruxelas e deixa este país de elites mesquinhas e invejosas entregue à imaginação da Pitonisa de Belém, ou fica e diz que assim não tem condições de aceitar o cargo de Presidente da Comissão Europeia.
Esta última alternativa seria, obviamente, uma machadada no prestígio internacional de Portugal; um labéu vergonhoso no currículo de Sampaio, e não trará quaisquer vantagens governativas, pois não estou a ver Durão Barroso capaz de fazer uma remodelação em termos. Falta-lhe coragem política para tal. Provavelmente a prestação governativa melhorará com alguns ajustes de pormenor, e a retoma inevitável poderá trazer alguns dividendos eleitorais ao PSD, em comparação com a actual situação. Mas não sei se será suficiente para vencer as próximas eleições.
Não há soluções boas, mas isso já é sina do nosso país. Todavia há umas que são menos péssimas que outras
Alea jacta est. Resta saber se os dados ao menos têm pintas.
Algumas figuras do PSD andam a tentar protagonizar o papel de Panurgo no rebanho partidário. Com uma diferença: não se sentindo separados do resto do rebanho pela inteligência cínica e a filosofia de vida do herói de Rabelais, preferem serem eles próprios a mandarem-se para o oceano profundo, na expectativa que os outros os sigam. Resta saber se os membros dos órgãos dirigentes do PSD se comportarão como os carneiros de Panurgo, ou se pertencem a uma espécie mais racional.
Marcelo iniciou esta tentação pelo abismo ao inundar o seu comentário dominical da TVI de recados ao PR e deixas para os dirigentes do PSD. O primeiro que ele mandou pela borda fora foi Balsemão cuja sucessão a Sá Carneiro teria sido objecto, desde o início, de forte oposição interna o que levou à instabilidade e à queda do seu Governo poucos meses depois. É claro que se esqueceu de dizer que o governo caiu porque o parceiro da coligação, o CDS dirigido por Freitas do Amaral, lhe tirou o tapete debaixo dos pés. Poderá estranhar-se que ele tenha tido esse esquecimento, tendo feito parte dos elencos governativos da época, mas se não se tivesse esquecido, nunca poderia dar aquele exemplo ... e era o único que Marcelo tinha à disposição! Marcelo, além de apostar no racionalismo ovino dos seus correligionários, também conta com a memória curta ou deficiente informação dos seus ouvintes.
Manuela Ferreira Leite, ministra de Estado e das Finanças, fala publicamente num «golpe de estado no partido». Frase de enorme alcance na conjuntura actual que, conjugada com os recados de Marcelo ao PR, configuram uma situação de incontornável instabilidade na coligação que será uma fundamentação magnífica para o PR dissolver a AR e convocar eleições antecipadas.
Foi um esplêndido mergulho no oceano, à espera que os outros próceres do PSD a acompanhem. Acompanhá-la-ão? Mas se a figura de Manuela Ferreira Leite é, internamente, a mais responsabilizada pela «banhada» eleitoral de 13 de Junho? Como política, MFL apenas tem uma qualidade: é determinada. Mas é completamente destituída de pensamento estratégico e de inteligência política. E a determinação cega e irracional dá maus resultados e péssimos dividendos políticos. Se houver eleições antecipadas, MLF, por inerência, ficará à frente do executivo e cada dia de desempenho dessas funções será menos 0,5% de votos para os partidos da coligação.
Para quem busca as profundezas do abismo político e ser acompanhada nessa descida do Maelstrom, MLF não poderia ter desempenhado melhor o papel!
O impagável Nicolau Santos escreve no Expresso on-line (E nós por cá?) que não poria quaisquer reservas ao nome de Manuela Ferreira Leite para suceder a Durão Barroso. Se fosse outro articulista diria que estava a dar um «presente envenenado» ao PSD. Mas o Nicolau? ... nunca. Ele escreve o que pensa. É aliás uma qualidade que só merece os nossos encómios por assim se expor, de peito e mente abertos, ao descrédito público. Infelizmente compartilha uma outra qualidade (pelo menos) com Ferro Rodrigues: não percebe nada de Economia. Mas o Ferro tem muitas atenuantes: fez o curso no tempo das passagens administrativas, embora as más línguas possam alegar que foi ele próprio, ao que julgo Vice-Presidente da Associação de Estudantes na altura, o grande obreiro e impulsionador desse sistema inovador de avaliação de desempenho.
Fala-se de mais dois ou três nomes sonantes que compartilham dessa tentação pelo abismo. Esperemos pelas próximas cenas para ver se o aforisma «Abyssus abyssum invocat» se irá aplicar, literal ou metaforicamente, a esta tragicomédia.
Durão Barroso vai ser indigitado para a Presidência da Comissão Europeia. Tudo indica que, durante as conversações que tem mantido com Sampaio se assegurou que este aceitaria o cenário de mudança de Primeiro-Ministro escolhido entre as forças que constituem a coligação e não enveredaria por eleições antecipadas. Constitucionalmente será essa a solução, embora o PR a possa iludir não aceitando os nomes propostos para PM e obrigando a eleições antecipadas.
A questão seguinte será a do nome do PM. Como Santana Lopes é o número 2 do PSD deverá ser ele, em teoria, a ser encarregado de formar o novo governo. Provisoriamente, e enquanto esse governo não tomar posse, mantém-se o governo actual com Manuel Ferreira Leite à frente, visto ser a número 2 do executivo.
Concentremo-nos neste cenário, que parece ser o mais provável.
Há dias, a seguir às eleições europeias, analisei aqui (cf. Eles Governam (mal), eles Perdem) a actuação governativa e a eventual remodelação. Na altura não coloquei a hipótese de um dos remodeláveis ser o próprio 1º Ministro, por razões óbvias, mas pus em dúvida a sua capacidade de fazer uma remodelação adequada e escrevi «Durão Barroso será capaz de escolher as pessoas certas? Durão Barroso é um político cinzento, sem carisma nem imaginação, que se viu promovido ao poder mercê dos desvarios financeiros e políticos do guterrismo».
Na minha opinião, e contrariamente ao que tenho lido ou ouvido a muitos analistas, Durão Barroso era um dos grandes empecilhos a uma remodelação adequada. É demasiado cinzento para tomar decisões audazes. É preciso alguém com capacidade de decisão e dinamismo para executar essa tarefa. Haverá? Em face da mediocridade da actual classe política ponho algumas reticências. Mas, se não houver soluções óptimas, o PSD terá que viver com as soluções que tem e a solução Santana Lopes parece ser a mais consensual internamente.
Santana Lopes criou todavia muitos anti-corpos. Santana Lopes é persona non grata dos politicamente correctos. Isso faz com que tenha contra ele a generalidade dos escrevinhadores da imprensa escrita e dos comentaristas televisivos. Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de pertencer à mesma área política, tem sido impiedoso: várias vezes caracterizou Santana Lopes como sendo «superficial e ignorante». Ainda hoje, na TVI, evitando sempre «citar o nome de PSL em vão», fartou-se de enviar recados para o PR (que poderia convocar eleições antecipadas se suspeitasse que a solução proposta pela coligação pudesse conduzir a uma situação instável) e para o interior do PSD (alertando contra o perigo essa instabilidade, obviamente consubstanciada no PSL).
Ora o pior que pode acontecer à coligação é a manutenção de um governo com Manuela Ferreira Leite à frente. Ando a escrever aqui, há diversos meses, que essa senhora não tem perfil para ministra das Finanças. Não tem uma estratégia consequente para além de cortes na despesa e no aumento da carga fiscal. Essa estratégia cega e obsessiva levou-a, pelas razões que indiquei noutros artigos, à necessidade de obter receitas extraordinárias mediante a venda de património para situar o défice abaixo do limite do PEC. Não passa de uma controladora de despesas. Um governo liderado por ela iria acentuar o desgaste já existente na coligação.
Portanto, PSL vai ter contra ele os «politicamente correctos» dentro e fora do PSD. Basta ver a obstrução permanente que tem tido durante o seu mandato à frente da CML.
O facto de PSL ter contra ele os «politicamente correctos» não significa que ele não seja, porventura, o político actual do PSD mais capaz de congregar um elenco capaz de impulsionar a desejada retoma, fazer a reforma da administração pública e algumas das reformas que o actual governo foi incapaz de levar à prática e, simultaneamente, dar a componente política que faça a população acreditar nas virtualidades dessas mesmas reformas. E isto porque os «politicamente correctos» são absolutamente estéreis do ponto de vista operacional: a sua principal «qualidade» é não deixar fazer nada, é deitar abaixo tudo o que se pretende fazer, é pensar que o dinheiro vem de rotativas que, algures, imprimem as notas que forem necessárias para suportar a despesa pública em que eles estão desejosos de participar.
Mas é essa mesma «qualidade» de não deixar fazer nada, que os torna perigosos pela erosão que produzem a partir da comunicação social, onde predominam. PSL não precisa deles para «fazer», porque eles não querem e, pior, não sabem «fazer», mas teria que, no mínimo, os neutralizar, porque têm uma enorme pertinácia em «desfazer», em meter paus em todas as engrenagens, em envenenar a opinião pública e, por via disso, em criar instabilidade social, política e governativa. Ora a forma como PSL chega a 1º Ministro não é de molde a conferir-lhe uma autoridade que lhe permita tornear esses obstáculos.
Por isso vejo a solução PSL muito complicada em levar à prática, nas circunstâncias actuais.
Mas também não estou a ver outros políticos no topo da hierarquia do PSD que constituam uma alternativa preferível ao PSL
Vejamos as cenas dos próximos capítulos, até porque PSL é uma figura que não pára de nos surpreender.
Todavia, há um cenário que o PSD terá que ter em conta: o PR pode ser tentado a inviabilizar um 1º Ministro, ou um elenco governativo, alegando as «razões» sugeridas por Marcelo Rebelo de Sousa, ou outras, e marcar eleições no prazo de 90 dias, com um governo de gestão, que seria o governo actual chefiado por Manuela Ferreira Leite. Esse cenário seria catastrófico para a coligação, pois Manuela Ferreira Leite para além de inábil como ministra das Finanças é politicamente um desastre: basta que nos lembremos das guerras que teve quando foi ministra da Educação.
Esse cenário levaria os partidos da coligação a um desastre eleitoral superior ao que tiveram há duas semanas, mesmo concorrendo separados.
Durante vários meses aventou-se a hipótese de António Vitorino ser o sucessor de Romano Prodi na Presidência da Comissão Europeia. Era uma hipótese ténue, visto ter contra ela a oposição do bloco de direita, que tudo fazia prever ser maioritário no Parlamento Europeu quando fosse a votação para a sucessão de Prodi.
Mas apesar disso havia um consenso nacional sobre essa matéria. Era um cargo de prestígio; era uma afirmação de que Portugal tinha visibilidade no seio da Europa; tornou-se um desígnio nacional, em suma.
A evolução da política europeia foi no sentido que já era previsível, quando publiquei aqui «O Nosso Homem em Bruxelas», em 10-02-2004, e a candidatura de António Vitorino caiu. Apesar disso, tudo indicou que, quer o governo português, quer o PS continuaram empenhados nessa candidatura.
Entretanto começou a perfilar-se no horizonte o nome de Durão Barroso. Nos meios de comunicação nacionais não pareceu que essa possibilidade tivesse muito crédito. Inclusive, alguns candidatos a «fazedores de opinião» davam a entender que tal não passaria de uma manobra publicitária do próprio: fazer correr que era candidato e que recusava.
Finalmente apareceu escrito, preto no branco: Durão Barroso era, no complexo equilíbrio de forças dentro da UE, o candidato mais consensual. Tudo dependia da sua aceitação.
Então, de um momento para o outro, o que era verdade incontestável passou a ser mentira, igualmente incontestável, o que era A passou a não-A. Agora, é «do mais tacanho provincianismo supor que a indicação de um português seja em benefício para o país» como escrevinha A. Seabra hoje, no Público, ou declarou na passada 6ª feira, à SIC, João Soares, numa entrevista em que mostrou novamente que não passa de um político invejoso e mesquinho; a escolha de Durão Barroso foi feita apenas por ter um perfil baixo (e a escolha de António Vitorino seria por ter um perfil alto?); a «escolha condiz com a relativa desvalorização da Comissão» (e no caso de Vitorino seria diferente?); não passou da quarta escolha (e no caso de Vitorino isso constituiria um empecilho?), etc., etc.
Enquanto a candidatura de um político socialista para a Presidência da Comissão Europeia era um desígnio nacional, em que a classe política portuguesa, da direita à esquerda, estava irmanada e empenhada solidariamente, a candidatura de uma figura do centro-direita não teve, para a esquerda, ou melhor, para a esquerda com mais visibilidade pública, qualquer valor, não confere qualquer prestígio ao país, não passa de uma quarta escolha; etc., etc..
Ler os jornais dos últimos dias e cotejar as opiniões aí emitidas com aquelas que vieram a lume durante o período em que a candidatura de Vitorino permaneceu em aberto é um espectáculo interessante, do ponto de vista sociológico, mas absolutamente deprimente do ponto de vista da hipocrisia política e do estado de mesquinhez em que o país vegeta.
O Euro2004 tem sido, até agora, perfeito. Apesar da situação geográfica periférica do país, centenas de milhares de estrangeiros demandaram Portugal para assistirem ao torneio, ou apenas para estarem presentes durante a sua realização. Apesar do mata ... mata competitivo, as claques têm-se comportado com uma correcção notável. Até onde me foi possível observar, Portugal está a constituir um local de estada extraordinariamente agradável para todos esses estrangeiros.
A nossa natural simpatia para com os forasteiros não tem sido afectada pelos rescaldos das pugnas desportivas. Soubemos perder com dignidade, e soubemos ganhar com dignidade acrescida. Ganhámos à Espanha, mas não achincalhámos os espanhóis. Portámo-nos para com eles com a correcção que gostaríamos que tivessem tido connosco se tivesse sucedido o inverso.
Espero ardentemente que tudo isto continue, quaisquer que sejam os resultados desportivos, qualquer que seja o percurso da nossa selecção. Quero continuar a ver nas ruas e nas praças os rostos felizes dos adeptos que nos visitam. Felizes e inebriantes de alegria, porque as suas selecções ganharam, felizes, serenamente, porque se continuam a sentir bem entre nós, apesar das suas selecções terem perdido.
Que aquele troço da Rua da Oura seja uma excepção despiciente na tolerância, correcção e alegria que tem rodeado este evento.
Se isso acontecer, Portugal ganhará sempre o Euro2004. E isso independentemente da selecção que os acasos do futebol levarem à conquista da taça, pois granjeará entre os nossos visitantes o respeito, a admiração e a simpatia pela nossa forma de estar, a nossa tolerância e a nossa hospitalidade, predicados que eles se encarregarão de transmitir aos seus conterrâneos quando regressarem às suas terras. E essa será a vitória mais frutuosa e a mais perdurável.
Apaixonei-me pelo futebol. Dou por mim de olhos grudados nos televisor a observar as peripécias do Euro 2004: os adeptos sentados nas bermas dos passeios a beberricarem cerveja em enormes copos de plástico; o tropel de fãs a dirigirem-se para os estádios; a mole imensa das bancadas agitando freneticamente bandeiras, cachecóis ou, os mais deserdados, apenas os braços e as cabeças pintalgadas; a turbamulta a abandonar os estádios, uns exuberantes, na sua exaltante alegria, outros deprimidos, rindo-se nervosamente para as objectivas; e os rios de cerveja a correrem nas noites citadinas, com uns a emborcarem-na, exultantes, para festejarem a alegria da vitória e outros a absorverem-na, lenta mas metodicamente, para diluirem a amargura da derrota e todos irmanados no fim da noite, quer na bebedeira, quer, os azarados de Albufeira, nos calabouços municipais.
Já notei, todavia, que a minha recente paixão futebolística exprime-se de forma diferente da do pessoal cá de casa. Eles excitam-se com as deambulações dos jogadores pelo campo, com aquele passe magistral, de mais de 50 metros, que colocou a bola exactamente em ..., com a desmarcação primorosa de ..., com a precisão e potência do remate de ..., etc., etc .... Outro dia era o entusiasmo por um acrobata toque de calcanhar numa bola executado por um sueco com um nome esquisito, meio eslavo, meio islâmico, que, de costas, mandou o esférico para o fundo das redes. Segundo depreendi foi uma jogada magistral, uma obra-prima de execução.
Eu sou pouco sensível a esses arrebatamentos proporcionados pela actuação dos protagonistas que actuam no relvado. Interesso-me mais por outros protagonistas. Interesso-me pelos panoramas que as objectivas nos trazem das bancadas, dos acessos aos estádios, das praças e avenidas, olho para todo aquele pessoal e, mentalmente, elaboro estimativas sobre a quantidade de gente trajada de amarelo e azul, ou de vermelho e branco, ou de azul e vermelho, ou de vermelho axadrezado, ou ... etc. Depois, mentalmente ... maquinalmente ... calculo os euros que aqueles diversos subconjuntos irão consumir em cerveja, em souvenirs, na restauração, em alojamentos, nas viagens (foi excelente, e de enorme alcance económico, a ideia de andarem a mudar, todos os jogos, as selecções de um estádio para outro) e ... na economia paralela.
Seguidamente olho para o rectângulo relvado e faço figas para que ganhe a selecção do subconjunto cujas estimativas atingiram o valor mais elevado. É um método simples, elementar e neutro: não preciso de saber o nome dos países envolvidos na refrega: guio-me apenas pelas cores, pois as cores das camisolas dos adeptos e as suas pinturas faciais identificam sem ambiguidades as respectivas selecções.
Já tive algumas arrelias. Aquela selecção dos laranjas deveria ter ganho (teria sido prudente terem mudado previamente de cor, pois em Portugal o Junho tem sido aziago para o laranja). Será decepcionante para a nossa balança de transacções com o exterior se aqueles dezenas de milhares de laranjas abandonarem prematuramente o país. Nem quero pensar na quantidade de euros que aquela derrota nos pode custar! Foi um sábado para esquecer, pois no outro jogo, a selecção de um país distante, todos de vermelho, poucos e pobretanas, bateu o pé a uma selecção na qual depositava, e ainda deposito, muitas esperanças em termos de dinamização da procura.
Hoje nada disso aconteceu. As vitória foram indiscutivelmente merecidas, pois as selecções vencedoras eram as que tinham adeptos mais habilitados em termos de poder aquisitivo, pela acção conjunta do seu número e do seu rendimento per capita. Foi uma jornada bem conseguida. Provavelmente valeu 0,05% do PIB.
Muitos ficarão surpreendidos, ou mesmo chocados, em pensar como é possível ter esta paixão pelo futebol e nunca citar a bola. Alguns, mais precipitados em tirar conclusões, dirão que será o desdém próprio de uma intelectual blasée. Nada disso. Ainda hoje, durante a transmissão do jogo que se realizou naquele relvado ao pé do Colombo, o locutor disse, para cima de quarenta vezes, que a selecção que ganhou era especialista em jogar sem bola.
Jogar sem bola parece-me simples. Acabei de o fazer e não me atrapalhei. Será que poderei estar no próximo europeu?
É bom haver este entusiasmo pela exibição dos símbolos nacionais. É pena que ele esteja directamente relacionado com o epifenómeno futebolístico.
É bom que amemos a nossa pátria. É péssimo que nos envergonhemos de mostrar esse amor e que apenas quando surgem ocasiões ou actos, em que os segmentos sociais mais entusiasmados na sua adesão são os que representam 90% da população e 0% dos agentes culturais, é que desponta esse apego aos símbolos nacionais. Um apego popular, da ralé, imediatamente catalogado de bacoco, incipiente e barato pela intelectualidade bem pensante.
Quantos de nós, dos que lêem estas linhas, não sentiriam vergonha em ostentarem os símbolos nacionais fora dos estádios desportivos? Este sentimento está de tal forma arreigado entre a intelectualidade que a leva a considerar que tal corresponde à tradição.
Ora isso é completamente falso. Por exemplo, em casa dos meus avós era normal hastearem a bandeira nacional nas ocasiões festivas, como o 5 de Outubro, o 1º de Dezembro, etc.. Na sala de visitas havia, e ainda há, o busto representativo da república, com o barrete frígio. Os meus avós eram republicanos convictos. Agora são apenas idosos desiludidos, intrigados com alguns aspectos da sociedade actual. Já não hasteiam a bandeira à janela, há uns 40 anos, porque as pessoas deixaram de o fazer.
Mas se eles engalanavam as janelas era porque tal constituía a regra e não a excepção. E se constituía a regra é porque era a tradição, contrariamente aos que pensam que a tradição começou com os comportamentos que nos têm tentado impor nas últimas décadas.
Não é preciso ir mais longe. Basta estudar a história da 1ª República para nos apercebermos da importância dos símbolos nacionais e da sua ostentação. Quer durante as duas décadas que precederam a sua implantação, quer durante a sua perturbada existência, quer ainda após a sua queda, no período da ditadura, em que o apego à democracia se exprimia pela exibição dos símbolos da república, que a ditadura nunca teve coragem de modificar.
A ditadura teve, nessa situação, o discernimento que escasseia nos nossos intelectuais: se não os podes vencer, alia-te a eles. E pouco a pouco, anexou esses símbolos para si própria. Mas mesmo com essa anexação, a exibição excessiva desses símbolos era indício claro de oposição ao regime a que a polícia política estava sempre atenta.
O paradoxal foi que à medida que o regime ficou desacreditado as mentes mais tacanhas anexaram os símbolos nacionais ao descrédito do regime. Ou seja, a ditadura conseguiu, por via indirecta, no estertor da sua morte, aquilo que não havia conseguido no auge do seu poder: desacreditar a exibição dos símbolos nacionais. Os nossos fazedores de opinião que, eles sim, são «baratos, imediatistas e pouco consistentes» encarregaram-se dessa tarefa patriótica e libertadora, ajudados pela degradação do regime.
Foram esses intelectuais «baratos, imediatistas e pouco consistentes», objectivamente aliados ao salazarismo nesta matéria, que têm desacreditado a exibição dos símbolos nacionais: bandeira, hino, etc.. E a sua inconsistência e hipocrisia são tais que consideram que as tradições são os comportamentos que correspondem aos seus desejos e convicções.
Esperemos que continue a acontecer o que tenho verificado na última década: uma progressiva recuperação do apego aos nossos símbolos nacionais.
Que isto não se esgote no epifenómeno futebolístico.
Portugal encheu-se de bandeiras. Flutuando nas fachadas dos edifícios, esvoaçando das janelas ou das antenas dos automóveis, afixadas nas boleias dos camiões, hasteadas nos quintais das moradias, dependuradas nos estendais da roupa, coladas nas montras das lojas, pintadas nas caras dos adeptos, etc., etc. Segundo parece, foi a resposta do país ao apelo feito pelo brasileiro que treina a selecção nacional.
Um sociólogo da nossa praça, Carlos Fortuna, que foi já presidente da Associação Portuguesa de Sociologia, apostrofou imediatamente, e os meios de comunicação deram a evidência que a qualidade do personagem e a importância das afirmações merecia, que esta onda de bandeiras nacionais, compradas a preço de saldo no hipermercado ou distribuídas com a aquisição de jornais da especialidade (da bola...) não passava de "um nacionalismo barato, imediatista e pouco consistente". "Este nacionalismo a propósito do futebol é pouco e a bandeira custa um euro. A verdade sociológica mais profunda é que este é um nacionalismo barato"
É usual entre os americanos hastearem a bandeira nos pátios das suas residências, engalanarem as janelas das suas casas, ou dos locais onde trabalham em todas as ocasiões festivas, e agitarem freneticamente bandeirinhas, nas bermas das estradas enquanto passam comitivas que querem saudar. Mas os americanos são um povo do novo mundo, que descende de gente que fugiu da Europa por não suportar o lastro do nosso elevado índice civilizacional. E Carlos Fortuna é peremptório: tal não passa de «nacionalismo barato», e Carlos Fortuna é um douto professor universitário de sociologia.
Os noruegueses quando chegam às suas casa de campo, ou melhor, de neve, a primeira coisa que fazem, depois de retirar a neve que se amontoou à porta de casa, é hastearem a sua bandeira nacional. Quem percorre as estradas alcantiladas nas encostas norueguesas apenas vê os carros, os pequenos troços limpos para permitirem o estacionamento, as bandeiras e os noruegueses estiraçados em peles, julgo que de borrego, deleitando-se ao sol primaveril. O resto é apenas a alvura da neve e do gelo. Mas trata-se, indubitavelmente, de indivíduos transviados pelas baixas temperaturas que lhes congelaram os cérebros e obstruem a fluidez dos processos cognitivos, pois o eminente sociólogo Carlos Fortuna é definitivo: tal não passa de "um nacionalismo imediatista e pouco consistente", e Carlos Fortuna é um ex- presidente da Associação Portuguesa de Sociologia.
Na passada 2ª feira percorri, ao princípio da tarde, a Rua Augusta. Do Terreiro do Paço até à Praça a Figueira e Restauradores viam-se milhares de suecos de todas as idades e géneros, todos trajando as camisolas da sua equipa nacional e usando a sua bandeira nacional por tudo quanto era sítio, incluindo as pinturas nos óculos. Milhares de suecos, e alguma centenas de búlgaros e de outras nacionalidades, todos embandeirados e repletos das insígnias e símbolos nacionais. É claro que aqueles milhares de banalizadores das respectivos símbolos nacionais não passavam de uma turbamulta alcoolizada pelo excesso de cerveja e com as meninges entorpecidas e desnorteadas pelo sol inclemente, pois o prestigiante sociólogo Carlos Fortuna é liminar: tal não passa de "um nacionalismo infantil e artificial", e Carlos Fortuna é um docente da Sociologia Coimbrã.
Os nossos doutos, eminentes e auto-prestigiantes intelectuais humanistas sempre foram unânimes, desde que se atribuíram a si próprios a exaltante missão de fazedores de opinião pública, em considerarem cavernícola, obscena e ainda pior, reaccionária, qualquer exibição, mesmo envergonhada, dos símbolos ou insígnias nacionais.
Agora foram apanhados de surpresa. Um estrangeiro a apelar à exibição dos símbolos nacionais!? Ainda se fosse o satânico Portas! Ah! ... esse era imediatamente grelhado nos micro-ondas dos mídia. Sempre que se abrisse um jornal ouvir-se-iam as risadas chasqueantes a surdirem das dobras das folhas. Mas um estrangeiro ... Zombar de estrangeiros por fazerem apelos à exibição dos símbolos nacionais seria de uma enorme inconveniência ... seria mostrar a nudez tacanha da verdade sem o manto diáfano da auto-glorificação.
Já que estrangeiros estão imunes a estas críticas, resta desfazer nos nativos:
Assim, trata-se de um nacionalismo barato pois as bandeiras foram compradas a preços de saldo em hipermercados. Os nativos deram evidentes provas de falta de elegância. Deveriam tê-las adquirido na Loja das Meias ou no Londres Salão em vez de se aviltarem pelos hipermercados ou pelas lojas dos 300. Não havia necessidade disso ... Alguns levaram mesmo a falta de decoro ao ponto de as obterem a custo zero, em promoções.
Também é um óbvio nacionalismo imediatista, porque os nativos mostraram pouco discernimento e muita precipitação na escolha. Não ligaram a marcas, não apalparam o tecido para avaliarem se era fino e macio ... Nada ... entraram e serviram-se.
E toda esta deselegância, precipitação e falta de charme denota a inconsistência dos nativos. Portanto, para qualquer sociólogo, humanista e intelectual, desde que patenteadamente português, impõe-se a conclusão lógica e inexorável: para além de barato e imediatista, este nacionalismo também é inconsistente.
E não se discute porque, para aquela excelência sociológica coimbrã, as afirmações que produziu representam a «verdade sociológica mais profunda».
Carlos Fortuna, de todos os disparates que disseste só estamos de acordo, tu e eu, numa única coisa: és um génio!
A derrota eleitoral da coligação governamental era esperada. Talvez surpreenda pelo desnível, mas apenas isso.
Alguns políticos da coligação no poder referem a abstenção. Obviamente que uma abstenção tão elevada enviesa sempre os resultados. Mas se a abstenção afectou mais o eleitorado potencial da coligação PSD/PP é porque esse eleitorado não se sentiu mobilizado para votar. E se não se sentiu mobilizado foi porque a actual governação não inspira qualquer entusiasmo.
Já aqui referi por diversas vezes que a actual situação política, económica e social em Portugal é dramática. E pior que isso, não me parece que haja na sociedade portuguesa uma consciência da situação sombria da economia portuguesa. E aqueles que a têm, têm-na a nível individual, por a sentirem na pele, pois estão confusos sobre as causas que levaram a essa situação e as possíveis soluções para ela. Apenas dão socos no ar.
Economicamente, a nossa produtividade é muito baixa, o nosso tecido industrial é muito frágil e vulnerável e os nossos serviços públicos têm um desempenho péssimo e são um sorvedouro inexaurível de dinheiro, o que constitui um ónus pesadíssimo para os contribuintes singulares, que entregam ao Estado muito mais do que as prestações que recebem, em quantidade e qualidade, e para as empresas, cujo peso da fiscalidade nos bens e serviços que produzem e vendem lhes corrói ainda mais a sua já de si baixa competitividade.
O governo deu indícios, no início da sua actuação, de estar consciente da gravidade da situação. Mas durante a primeira metade da legislatura, época ideal para se fazerem as reformas impopulares, o governo foi de uma grande tibieza e não foi capaz de levar à prática as reformas que se impunham. A sua prestação política foi péssima. Reformas que mexem com o statu quo, com hábitos adquiridos, com a necessidade de emagrecer a função pública e melhorar o seu desempenho, com a exigência de uma maior mobilidade do factor trabalho, etc., são impopulares. Têm que ser bem explicadas e os seus protagonistas maioritariamente ganhos para ela.
Não foi nada disto que aconteceu. O governo falou muito de reformas, falou muito, demasiado, do custo dessas reformas, falou em vez de agir. A oposição limitou-se a potenciar o pânico que as declarações governativas lançavam entre quem sentia que o seu statu quo estaria em risco. As reformas passaram a serem vistas como uma ameaça e não como algo absolutamente indispensável para a melhoria do nosso desempenho económico e social e para que a nossa economia se desenvolvesse de forma sustentável.
Pior, a imagem que passou para a opinião pública, em termos de reformas e de combate ao défice, foi puramente virtual: a oposição criticava o governo pelos cortes excessivos na despesa pública que só existiam no universo virtual da nossa classe política, enquanto o governo se defendia justificando a necessidade de cortes que, efectivamente, não aconteciam, ou aconteciam casuisticamente, à toa, sem uma estratégia consequente e com um impacte despiciendo; a oposição brandia a ameaça catastrófica para os direitos do povo trabalhador decorrente das reformas que o governo, afinal ... não estava a fazer ... só dizia que fazia.
Foi uma luta comparável pelo fragor e pela virtualidade à que os deuses da Grécia Clássica travavam no Olimpo, mas nos antípodas da qualidade literária e humana que essas lutas trouxeram à nossa cultura.
Haverá a tentação, nas hostes governamentais, em culparam a ausência de sentido de Estado dos actuais dirigentes do PS. O PS é um partido da área governativa e, de facto, não se percebe a razão de ter andado a reboque do BE no que concerne aos seus conceitos de política económica e financeira. Mais tarde ou mais cedo o PS será chamado às responsabilidades governativas e a época em que se podia distribuir o que não há, acabou. A conjuntura do período de adesão ao euro, que permitiu a Sousa Franco diminuir o défice e aumentar a despesa com a função pública, não se volta a repetir e a herança dos governos Guterres afecta não apenas a capacidade de acção este governo como a dos vindouros. Há compromissos que durarão diversas legislaturas.
É verdade que, a tónica geral das eleições europeias foi a amostragem de um cartão amarelo aos governos em funções (excepto no caso da Espanha e Grécia, onde ainda se encontram no período de graça), em que o eleitorado teria dado a entender que não deseja reformas que bulam com as suas regalias. O facto dessas reformas estarem a ser promovidas nuns casos pela esquerda, noutros pela direita e serem, regra geral, bastante incipientes, não modificou o comportamento do eleitorado.
Todavia, na Alemanha, a CDU tem apoiado, em termos gerais, as reformas que Schroeder está a tentar levar a cabo, e o SPD teve o seu pior resultado eleitoral do após guerra, apenas ligeiramente superior ao que havia obtido nas eleições de Março de 1933, já com Hitler à frente da chancelaria do Reich. O eleitorado alemão não puniu Schroeder só pelas reformas que pretende fazer, mas também pela sua incompetência neste domínio. Como escreve o "Frankfurter Allgemeine Zeitung", o voto dos eleitores não se explica apenas pelo facto de que um partido paga sempre o preço das necessárias reformas. Não é a política de reformas em si mesma que afasta os eleitores, senão a CDU que advoga igualmente uma tal política, não teria obtido resultado tão bons. Não, a verdadeira razão é a exaustão unânime dos cidadãos que não suportam mais a forma como o SPD de Schroeder conduz a sua política.
Portanto, no caso português, as razões têm que ser procuradas na pouca competência mostrada pelo governo no seu exercício. Perdeu muito tempo em legislar reformas tíbias e legislou mal, sem ter em conta o enquadramento constitucional, originando trapalhadas perfeitamente escusadas que só serviram para diminuir o eventual alcance das reformas, ou para as protelar para as calendas gregas.
Também não parece que seja relevante a questão iraquiana. Em primeiro lugar, a participação portuguesa é muito marginal e tem o apoio do PR; em segundo lugar, no conjunto dos países europeus tanto foram punidos governos que apoiaram a guerra do Iraque - como o italiano, o britânico e o polaco como os governos que estiveram conta - como o francês, o alemão ou o belga.
Outra questão, que essa, sim, parece pertinente, é a da coligação eleitoral PSD/PP. Essa coligação é, claramente, redutora em comparação com a situação dos dois partidos concorrendo separadamente. Muitos eleitores PSD, ou que oscilam entre o PS e PSD, não se revêem na imagem política que o PP tem. Numa eleição com um único círculo, era previsível que o resultado do «Força Portugal» seria sempre inferior à soma aritmética de PSD e PP, quer em votos quer em lugares. Aliás, mesmo em eleições legislativas, com círculos eleitorais muito mais pequenos, é duvidoso que a sinergia obtida por listas conjuntas compense a diminuição da base eleitoral. Esta constatação não tem a ver com o desempenho relativo dos respectivos ministros no governo, onde, inclusivamente, há mais fragilidades na área do PSD do que na do PP. Tem a ver com uma situação de facto e em política não podemos tomar os desejos por realidades.
Entramos assim na questão central, que é a da maioria dos membros do executivo não estar à altura da missão que lhe foi cometida. Até agora, e se se exceptuar o caso de Amílcar Theias, as alterações do elenco governativo foram forçadas por incidentes que nada tinham a ver com a respectiva prestação governativa. Impõe-se portanto uma remodelação profunda no governo.
O caso mais grave, pelas responsabilidades que envolve, é o da Ministra das Finanças. A ministra é uma boa controladora, muito útil a esquadrinhar os papéis todos e a cortar despesas, mas uma péssima gestora, absolutamente destituída de qualquer imaginação e pensamento estratégico. A política que conduziu, de cortes à toa na despesa pública teve como contrapartida uma diminuição acentuada das receitas do erário público e a manutenção de um défice orçamental corrente excessivo, que era o que se pretendia evitar.
É certo que conseguiu melhorar alguns parâmetros macroeconómicos, como o défice orçamental global e o défice das contas com o exterior. Mas são as reformas estruturais que valem e permitem sustentar uma evolução positiva dos parâmetros macroeconómicos. E aí a prestação da ministra foi menos que insuficiente. Para manter o défice dentro dos limites, a ministra teve que recorrer à venda de património, o que é um claro sintoma da falência da sua política. Manuela Ferreira Leite não tem perfil para ir além de secretária de Estado do Orçamento ou do Tesouro. Para Ministro exige-se alguém mais político e com maior visão estratégica das incidências económicas das decisões fiscais e orçamentais.
Por outro lado é urgente a reforma da administração pública, a introdução de procedimentos eficazes de avaliação de desempenho e fazer com que aquela tenha uma prestação minimamente compatível com o dinheiro que custa ao país. O custo desta administração pública reflecte-se indirectamente na competitividade do sector privado e, portanto, na produtividade geral da nossa economia. Se não reformarmos a nossa administração pública dentro de alguns anos estaremos novamente na cauda da Europa, mas desta vez na dos 25, e não na dos 15. Francamente, não estou a ver a Manuela Ferreira Leite com capacidade para protagonizar essa mudança.
Mas, na generalidade, o elenco governativo é frágil. Carlos Tavares, Celeste Cardona, Figueiredo Lopes, etc. têm desiludido, nomeadamente o primeiro, visto estar numa área nevrálgica. O Ministro da Saúde tem sido muito contestado, mas seria o normal dado o poder que o lobby dos médicos tem. Em linhas gerais tem feito a política que Correia de Campos faria, se este tivesse continuado no governo. As diferenças entre ambos residem apenas na circunstância de estarem ligados a grupos diferentes ... Todavia, falta a Luís Filipe Pereira uma vertente política adequada ao difícil cargo que exerce.
David Justino é um sedutor a comunicar, mas nada do seu discurso acaba por ter expressão prática. Esta nova reforma curricular, mais uma ..., vai ser mais um desastre. Por sua vez, os enganos na colocação de professores (esta última lista tinha apenas 14 mil erros) são uma trapalhada que não se vê como o ministério a vai resolver. Quando se muda um sistema, qualquer pessoa com experiência sabe que haverá uma fase em que os dois sistemas, o antigo e o novo, têm que coexistir. Seria suicidário não o fazer. As empresas fazem isso quando mudam os programas de gestão financeira e de pessoal. É incompetência absoluta dos serviços do ministério, e indirectamente do ministro, o não terem acautelado esta questão.
Carmona Rodrigues é um técnico de elevado gabarito, embora a sua área profissional seja mais a do ambiente e recursos hídricos, mas ainda não tem o traquejo político suficiente. Todavia a sua acção não tem deslustrado ...
Na minha opinião, apenas Bagão Félix, Marques Mendes e, apesar de alguma incontinência verbal, Morais Sarmento estão acima da mediania.
Mas que remodelação vai Durão Barroso fazer? Existem em Portugal, na área dos partidos do governo, pessoas capazes. Mas quererão elas ir para o governo? Duvido. Ser membro do governo, em Portugal, significa ter uma profissão mal paga e ser objecto permanente da devassa pública por parte dos vampiros da comunicação social. Estes exigem uma alma imaculada, mas não me parece que a pureza e o desprezo pelos bens terrenos de Bento de Núrcia seja compaginável com as qualidades para se exercer com competência um cargo governativo. Cada vez mais a classe política está restrita aos aparelhos partidários (gente que normalmente não tem préstimo para mais nada) e a funcionários públicos e professores universitários (gente que não faz qualquer ideia do funcionamento do tecido empresarial do país). Com o mercado de recrutamento político cada vez mais minguado e enviesado para a mediocridade, será difícil encontrar gente capaz.
E Durão Barroso será capaz de escolher as pessoas certas? Durão Barroso é um político cinzento, sem carisma nem imaginação, que se viu promovido ao poder mercê dos desvarios financeiros e políticos do guterrismo e por Guterres se ter apercebido que seria incapaz de inverter a descida ao abismo e que quanto mais tempo permanecesse no governo, maior seria o rombo na nau socialista. Foi, do ponto de vista estritamente pessoal, uma manobra inteligente, e do ponto de vista de um governante, uma atitude absolutamente destituída de ética.
Ao país, Guterres deixou como herança: o défice orçamental, a convicção que tudo era fácil e conseguido sem esforço, a certeza inabalável que haveria rotativas a produzirem todo o dinheiro que fosse preciso, e ... Durão Barroso. Durão Barroso é, afinal, também uma herança de Guterres.
Resta ainda uma alternativa, que pode ser uma tentação para Durão Barroso e para os autarcas dos partidos da coligação que vêem aproximar as eleições locais de 2005 e não querem perder os seus cargos: alargar os cordões à bolsa, protelar as reformas mais alguns anos e esperar pelas eleições de 2006. Se ganharem as eleições mercê desse expediente (aliás usual no nosso país)... depois se vê quanto a reformas. Se perderem ... quem vier atrás que feche a porta e o PS poderá então ser confrontado com a forma insensata, irresponsável e demagógica como fez oposição durante esta legislatura.
Esperemos que o governo não caia nessa tentação, pois seria o pior que poderia acontecer ao nosso país. Se não for capaz de mostrar competência, pelo menos mostre patriotismo.
Nota 1: Desde o início deste blog que tenho criticado a acção governativa, em termos semelhantes aos actuais. Remeto, entre outros textos, para:
Perspectivas Sombrias maio 18, 2004
Eles Governam, Eles Perdem maio 13, 2004
«Teodisseia» Financeira maio 06, 2004
A Ministra Controleira novembro 20, 2003
Irreflexões nas vésperas do debate orçamental outubro 30, 2003
Isto é apenas uma nota para os maniqueistas, para aqueles, infelizmente bastante numerosos, que quando não lêem exactamente a mesma opinião deles, consideram que quem exprime essa opinião está no campo diametralmente oposto.
Nota 2: Não referi os argumentos expendidos por Vasco Graça Moura na noite eleitoral porque o homem estava claramente perturbado. Mais do que é habitual quando perora sobre matéria política.
Independentemente de complicações físicas que possam ter potenciado a crise cardíaca, e os meios de comunicação já haviam evidenciado, nos dias anteriores, o extremo cansaço físico do candidato, Sousa Franco acabou por ser vítima da crispação em que a campanha eleitoral decorreu. Todavia o que há de paradoxal na lamentável ocorrência é que os desacatos tumultuosos que levaram o candidato PS, qual «boneco puxado por marionetistas furiosos», aos baldões, «uma irrelevante casca de noz num mar em fúria», até à porta de saída da Lota de Matosinhos, muito antes do horário previsto, resultaram da luta entre dois gangs rivais da estrutura concelhia do PS em Matosinhos.
Já aqui assinalei, por diversas vezes, que as estruturas PS da região do Grande Porto representam o caciquismo mais mafioso, estéril e vergonhoso que existe no país. Julguei que as sucessivas derrotas eleitorais, primeira em Gaia e depois no Porto, conjuntamente com a nova liderança de Francisco Assis, pudessem levar os militantes à razão e a empreenderem a limpeza dos estábulos de Áugias do PS Porto.
Tal não parece ter acontecido, pelo menos em Matosinhos, mas provavelmente em mais locais do norte do país.
Este caciquismo é mafioso e estéril. Queixa-se das suas fracas realizações atiçando os seus conterrâneos contra o poder central, Lisboa e o Terreiro do Paço. Quando estes caciques recebem fundos envolvem-se internamente em zaragatas, desentendem-se e fazem com que prazos e custos se empolem desnecessariamente, muito mais do que é o normal da anormalidade das empreitadas de obras públicas portuguesas.
O atraso de consciência cívica dos portugueses presta-se a fenómenos de caciquismo regional. Mas, por exemplo, Alberto João Jardim é diferente. Com ou sem défice democrático, é ele que ganha as eleições e não é sustentado exogenamente pelo seu partido. O PSD precisa mais de Alberto João Jardim que este dele. Alberto João Jardim, com mais ou menos chantagens ao poder central, fez obra e transformou a sua região, que era das mais atrasadas do país, na segunda região a nível do PIB.
Os caciques do PS da região do Porto ganham (quando ganham), as eleições sustentados no prestígio do partido que tinham a obrigação de defenderem e serem eles a prestigiar, chantageiam para receberem dinheiro, mas fazem péssimo uso dele (pelo menos no «uso» que interessa à sua região e à comunidade nacional), e as poucas obras que apresentam custaram rios de dinheiro e demoraram tempos infinitos.
Se o caciquismo de Alberto João Jardim é um fenómeno a combater e desaparecerá com a elevação do nível da consciência cívica nacional, o caciquismo de Narciso Miranda, Fernando Gomes, etc., é um quisto purulento a erradicar urgentemente, porque é mais pernicioso, mais estéril e afecta uma região sete ou oito vezes mais populosa que a Madeira.
Depois dos comentários acintosos de Sousa Franco sobre o governo que acabara de deixar, de Guterres ter avisado que Roma não paga a traidores, surpreendeu o facto de Ferro Rodrigues ter ido repescar Sousa Franco. Como na altura escrevi Afinal Roma paga a traidores.
Os jagunços de Narciso Miranda e Manuel Seabra encarregaram-se, escrevendo direito por linhas tortas (ou melhor, torto, muito torto, por linhas enviesadas), de repor a sentença de Guterres.
Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS),abrangendo 37 países e entre eles o nosso, revela resultados surpreendentes e paradoxais.
No que respeita à relação com os colegas, Portugal aparece no grupo dos seis países onde mais adolescentes dizem gostar muito da escola e são os que mais acham que os colegas são simpáticos e que estes os aceitam tal como são. Simultaneamente com isso, Portugal encontra-se no grupo dos países com maior número de adolescentes que se dizem vítimas de atitudes físicas e psicológicas hostis, discriminação, troça, exclusão.
Portanto sentem-se bem nos recreios, gostam da escola e dos colegas e de que estes trocem deles, os discriminem e excluam.
No que respeita à aprendizagem, os adolescentes portugueses estão entre os que mais se sentem pressionados pelo trabalho na escola e os que mais acreditam que os professores não os consideram capazes.
Resumindo o perfil, os nossos adolescentes são sado-masoquistas entre si, mas ficam emocionalmente perturbados frente aos professores, nas salas de aula.
Este estudo prova algo que poucos ainda compreendiam mas que já era, claramente, matéria do conhecimento dos sucessivos Ministérios da Educação, cujas equipas têm lutado denodadamente, nos últimos 30 anos, para tornarem as escolas um local de convívio e de socialização, evitando fatigar as meninges dos nossos adolescentes com uma memorização cansativa e inglória, e os seus cérebros com questões abstractas e irrelevantes como a matemática e a física.
Este estudo evidencia ainda que o ensino está no bom caminho no que respeita à proporção cada vez menor de professores com serviço docente em comparação com os docentes encarregados dos tempos livres ou mobilizados para a ingente tarefa, conhecida sob a designação de «horário zero». Esta rarefacção do serviço docente deixa o corpo discente mais liberto, menos pressionado, sem o stress inútil das salas de aula.
Todavia as salas de aula representam um importante investimento da comunidade e têm que se manter em funcionamento. Devem, porém, deixar de ser um local concentracionário, fechado, hierático. A má vontade actual dos professores para com os telemóveis dos miúdos dificulta o convívio e a socialização. As portas fechadas são igualmente um obstáculo à permanente partilha de experiências.
Acabemos com essa chaga educativa. Que esses locais percam o soturno aspecto de salas de aula e tenham a alegria esfusiante e o movimento trepidante dos apeadeiros. Que os telemóveis retinem, que os alunos troquem mensagens, que entrem e saiam das aulas sempre que o são apelo do convívio os incite a tal.
Há, obviamente, mínimos que terão que ser cumpridos. Cumpridos!? Que digo eu? Obrigações? Stress? Nunca. As matérias que, longinquamente, se espera que sejam leccionadas terão que atender à fragilidade sensitiva e emocional dos adolescentes portugueses. Por exemplo, se o docente de matemática explicar, na aula, a resolução do seguinte problema: «O Francisco comprou 10 maçãs. A caminho de casa, perdeu duas. Com quantas chegou?» não deverá, num futuro teste de avaliação, de forma alguma, complicar maliciosamente o enunciado, substituindo o «Francisco» pelo «Luís», ou as «maçãs» por «alperces». Estas alterações constituem rasteiras perversas, provocam um desnecessário stress na nossa ínclita geração, perturbam a escola como local de convívio e de socialização e podem lançar muitos na senda da delinquência juvenil.
Sem o saber estávamos no bom caminho. Também não admira. Somos, depois, da Finlândia, o país que mais gasta, em termos relativos, na educação. É natural que esse investimento, pago pelo bolso de todos nós, traga os seus frutos.
Carmona Rodrigues, ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação declarou hoje que até ao final do ano será concluído o estudo preliminar de viabilidade de construção de um túnel sob o rio Tejo para transporte de passageiros em metropolitano.
Segundo elementos da Transtejo, o projecto de Carmona Rodrigues coloca à beira da extinção aquela operadora fluvial de transportes, onde o Estado tem investido largas dezenas de milhões de euros nos últimos anos para a modernização da frota, com a aquisição de diversos catamarãs de última geração.
Todos os que se sentem prejudicados com este projecto já manifestaram a esperança na intervenção do Dr. Sá Fernandes devido aos impactes ambientais, obviamente negativos, desta travessia sub-aquática.
Isto para não falar dos impactes financeiros nos actuais operadores do transporte entre as duas margens.
Ao ler estas notícias e estas imprecações, não posso deixar de me comover com a triste sorte das companhias de diligências, dos fiacres e das seges de aluguer, dos choras, das tipóias e de outros operadores de transporte de inestimável qualidade ambiental, cujo serviço permitia usufruir, com a máxima tranquilidade e todo o tempo disponível, a paisagem rural e citadina, nos seus mais ínfimos e recônditos pormenores e que faliram vítimas de um falso progresso, atentatório do ambiente e da qualidade de vida.
Foi uma infelicidade não existirem nessas épocas Sás Fernandes, ambientalistas e meios de comunicação social que lhes dessem abrigo. Perderam-se irremediavelmente meios de transporte de grande dignidade, bem integrados na paisagem urbana, que iam pelas calçadas cascalhando ferragens, numa estrupida de cadeiras que batiam, e davam a convicção segura que se chegaria algures, embora devagar, com mais solavanco ou menos solavanco, mais hora ou menos hora, conciliando a ginástica lombar, e o trabalho intenso de todos os músculos, com a leitura do jornal que, no início da corrida era o jornal do dia, e no fim, o jornal da véspera.
Foi uma época de um cientismo sórdido, em que os meios de comunicação privilegiavam a inovação, a mudança e a evolução tecnológica, em vez de, como actualmente, privilegiarem o não mexer em nada, não mudar nada, não construir nada, manter tudo estático, tornarmo-nos naquilo que a nossa história magnífica e a nossa inércia inabalável exigem como único destino possível: um museu, com os portugueses todos alinhados, mumificados, expostos em vitrinas, na penumbra, para não abalar a sua serena quietude.
E as portas do museu fechadas pela greve dos funcionários.
A falta de ideias da classe política portuguesa deu nisto. Uma absoluta falta de nível da intervenção política.
O grave desta questão é que todos têm razão no que dizem uns dos outros. Só que não deveriam fazê-lo. Sabem o que dizem dos outros, apenas não deveriam dizer o que sabem.
Quando a ministra das Finanças, pressionada pela substituição atrasada da sua declaração de IRS, questiona o jornalista: «e o senhor, nunca considerou um champô como despesa de saúde?» devia estar calada e assumir o esquecimento. É óbvio que, quase de certeza, aquele jornalista já havia ajeitado uma ou várias declarações de IRS. Se não o tivesse feito, constituiriam uma excepção, que não me atreveria a designar por honrosa, para não ofender a maior parte dos nossos concidadãos. Todavia espera-se que um titular da pasta das finanças seja cumpridor ou, se cometeu inexactidões, que assuma isso, peça desculpas e evite entrar numa competição sobre quem se evadiu mais.
A mesma ministra, há dias, num debate parlamentar, mimoseou o deputado Eduardo Cabrita: "O senhor não merece o ordenado que recebe", "O senhor não sabe do que está a falar", "a pergunta é de um ignorante" e "não percebe o que se lhe explica".
Na verdade Eduardo Cabrita, quer como secretário de Estado da Justiça, quer como deputado, não sabe o que diz: ou é um vazio de ideias, ou fala empolgado de coisas que não têm a ver com a matéria em debate, ou faz insinuações torpes. Basta lembrar as afirmações que ele produziu sobre o caso Moderna e sobre a demissão da Maria José Morgado. Simplesmente é extremamente deselegante, no seio da representação nacional, a ministra chamar a atenção para aqueles atavismos.
E não apenas deselegante. Eu, por exemplo, acho que também a ministra não merece o dinheiro que ganha. Talvez merecesse o vencimento de secretária de Estado do Orçamento. Porém como ministra é uma desgraça: Os cortes à toa na despesa pública e uma ausência de estratégia adequada conduziram a uma diminuição acentuada das receitas do erário público e à manutenção de um défice orçamental excessivo. A Ministra é uma boa controladora, mas uma péssima gestora, absolutamente destituída de qualquer imaginação e pensamento estratégico.
Há dias Carvalhas, em plena AR, chamou cobarde ao Primeiro Ministro. Tinha obviamente razão. Durão Barroso tem tido uma absoluta falta de coragem em levar à prática as reformas que prometeu e de que o país necessita para sair da situação em que está. Também não tem tido coragem para remodelar o governo, tirando o caso do Theias. Mas o Theias não existia era uma marioneta agitada pela mão que estivesse mais a jeito. Carvalhas tinha razão, mas não o devia ter dito: primeiro, porque foi de uma grande falta de educação e de respeito para com o Parlamento; depois porque acertou no epíteto, mas não na razão para tal.
E não apenas mal educado. Eu, por exemplo, acho que Carvalhas foi de uma cobardia obscena na forma como, por exemplo, se comportou com João Amaral, a quem o unia anos de trabalho comum e uma amizade e um convívio extra-partidários. Com o João Amaral e com muitos mais.
O Bloco resolveu reinventar a moca. Mas isso é de somenos importância O Bloco é uma inventona de jovens que falharam na carreira publicitária e que se tentam safar na política, mas sempre na melancólica busca da carreira publicitária perdida. É a política decorativa. O Bloco não tem conteúdos, apenas tem formas; não discute causas, apenas casos. A moca é um mero ícone da sua nostalgia pela cacetada revolucionária. É uma forma de tal modo esvaziada de conteúdo que enquanto a ostenta por todo o país, continua a chamar trauliteira à direita. Nem repara que a moca, agora, é dele.
Uma interveniente na campanha eleitoral (hesito em chamá-la política), Ana Manso, resolveu tornar-se conhecida à maneira de Erostrato - troçou de uma deficiência física de Sousa Franco. Compreende-se: Ana Manso precisava desesperadamente tornar-se conhecida. Por sua vez a experiência tem mostrado que os portugueses estão desinteressados das finanças públicas. Só se interessam pelas próprias finanças, e no curto prazo. Vão atrás de qualquer demagogo que lhes acene com algum dinheiro de imediato, sem pensarem quanto pagarão por isso, mais tarde. Em desespero de causa Ana Manso vingou-se no físico, em vez de atacar as ideias.
No meio deste desconchavo, os políticos portugueses, enervados, tornaram-se susceptíveis. Tudo os ofende. Paulo Portas chamou a Sousa Franco o «pai do défice». Sousa Franco ficou ofendidíssimo e fez prova pública dessa ofensa. Compreende-se, pois Sousa Franco tem um currículo notável nesta matéria: foi o principal artífice do défice, pelo que fez e pela herança que deixou; caluniou publicamente o seu sucessor que tentava, na medida em que o Guterres o permitia, inverter a situação; tem vivido em permanente auto-elogio, afectando não perceber o que andou a fazer. Portas, sempre incontinente, não esteve com embaraços e corrigiu a afirmação: «não é apenas o pai do défice. É o pai, a mãe, o avô, a avó, o gato e o periquito do défice». E Telmo Correia fez eco com o chefe: «E a família do défice está para as finanças públicas como a família Adams está para os filmes de terror».
Agora coube a vez de Pires de Lima ficar muito ofendido por Sousa Franco o ter apelidado de xenófobo e exigiu desculpas públicas. Errada ou certa, é apenas a opinião de Sousa Franco. É uma opinião política e deve ser contestada politicamente. E Pires de Lima deveria responder-lhe à letra se achava que aquela era uma afirmação gratuita ... mas ofendido? ... exigir explicações?
A questão é simples. Não é apenas a população que não respeita os políticos. Eles próprios não se respeitam entre si. E não é só uma questão de não se respeitarem. Sentem-se igualmente que se estão a afundar numa mediocridade sem perspectivas e por via disso tornam-se muito susceptíveis: quando alguém receia estar a ser medíocre, a mais leve alusão nesse sentido deixa-o à beira de uma crise de nervos.
E para além de uma persistente falta de respeito mútuo e de uma desoladora crise geral de nervos, também estão a ser vítimas de uma incómoda incontinência verbal.
Passeando-me outro dia pela Feira do Livro dei com o pavilhão da Oficina do Livro que ostentava, em tudo que era sítio, uma frase cheia de intenções sublimes:
«É Bom Trabalhar nas Obras»
É comovente a nostalgia que os intelectuais têm pelo trabalho manual. Não qualquer trabalho. Tem que ser um trabalho duro, árduo, que implique sofrimento, suor, músculos entumecidos, físico extremado, exaurido; o ferro malhando na bigorna, a picareta faiscando na pedreira; sol inclemente, abrasador; as trevas gélidas do fundo da mina; bíceps magníficos, feições duras, angulosas, determinadas; mais suor ... muito suor ... e os bíceps ... ah! Aqueles bíceps!
Neste imaginário obreirista não colhe qualquer trabalho manual. Empregado(a) de balcão ou de mesa não têm estatuto. Afixar «É Bom Servir à Mesa» seria despiciente. Servir à mesa? Bah! Afixar «É Bom Estar Atrás de um Balcão »? Pior! Poderia ser tomado como um insulto para as enfadadas funcionárias que estavam dentro do pavilhão ... atrás do balcão. Algo como o «Arbeit Macht Frei» que encimava os portões que acolhiam os clientes de Auschwitz.
Afixar «É Bom Estar no Fundo da Mina» resultaria incompreensível. As poucas que ainda existem, no nosso país, estão à beira da exaustão. Restam as obras. Pois que o nosso ícone seja «Trabalhar nas Obras»!
Portanto os nossos intelectuais idealizam aquilo que os nossos não-intelectuais abominam: Trabalhar nas obras. Recrutamos ucranianos para trabalharem nas obras, quando afinal existem tantos intelectuais nostálgicos, aspirando por empunharem a picareta, acarretarem baldes de massa, empilharem tijolos, empoleirarem-se nos andaimes ... o Nirvana!
Antero de Quental, influenciado pelo obreirismo de Proudhon e à imagem deste, partiu para Paris para exercer a profissão de tipógrafo. Como bom diletante intelectual português, não lhe servia uma tipografia na Coimbra onde estudara, nem na Lisboa queirosiana. Além do que os tipógrafos portugueses eram-lhe conhecidos ... gente inculta, analfabeta, que não compreendia a elevação dos seus pensamentos. Paris sempre é Paris!
Antero deu-se mal com a experiência: os tipógrafos reais, mesmo os parisienses, não eram os mesmos dos ícones obreiristas e anarquistas dos livros que lia e que escrevia, mas era o Antero, oriundo de uma família burguesa, licenciado em Coimbra, enfim, tudo o que há de mais inadequado para tal experiência.
Os intelectuais da Oficina do Livro serão, provavelmente, mais bem sucedidos.
Mas, se falharem nas obras, poderão sempre encetar uma carreira mais próxima do ideal e da ambição do intelectual contemporâneo 3º-mundista: ir mondar arroz para o Bangla-Desh; ir, no âmbito de uma ONG, para Fallujah ou para a Faixa de Gaza ... ou talvez descarregar sacos de farinha na Africa Central; etc., etc..