Fouché, um dos homens mais poderosos da sua época e um dos mais notáveis de todos os tempos, encontrou pouca estima da parte dos seus contemporâneos e, ainda menos, justiça da posteridade. Os protagonistas da Revolução e do Império produziram centenas de memórias e autobiografias. Todos, republicanos, bonapartistas, monárquicos, corre-lhes da pena um fel venenoso quando escrevem o seu nome. Nenhuma injúria lhe é poupada: traidor nato, miserável intriguista, réptil peçonhento, trânsfuga profissional, alma baixa de polícia. Os mais literatos apodam-no de Tartufo ou Scapin. Há um notável consenso dos seus contemporâneos sobre o seu carácter. Foi o homem mais desprezado e difamado da Revolução e do Império. Napoleão, nas sua meditações em Santa Helena, parecia não ter senão um lamento, o de não ter mandado enforcar «esse Fígaro, esse tratante»
Durante 23 anos, desde o dia em que o presidente da Convenção declarou a sessão aberta, em 1792, até àquele em que naufragou, na Chambre Introuvable, o ministério Talleyrand-Fouché, em 1815, esteve sempre em actividade, esteve sempre na crista da onda.
Os seus avatares são imensos: em 1790 professor eclesiástico e em 1792 salteador de igrejas; em 1792 próximo dos Girondinos e em 1793 partidário da Montanha; em 1793 comunista e poucos anos depois multimilionário; em 1793 regicida e pouco mais de uma década após, Duque de Otranto; em 1793 assegurando que uma renda anual de 40 écus (240 libras) era o bastante para um republicano e um quarto de século depois deixando, ao morrer, uma fortuna avaliada em 30 milhões de libras (cerca de 80 milhões de euros actuais, em termos da cotação do ouro, ou cerca de 400 milhões em termos de poder de compra) (*). Foi representante do povo e membro activo dos comités, comissário da Convenção em 6 departamentos, presidente do Clube dos Jacobinos, activista da revolução do Thermidor, conselheiro de Babeuf, agente de Barras, diplomata do Directório em Itália e na Holanda, ministro da polícia geral da República, participante do drama do Brumário, ministro de topo do Primeiro-Cônsul Bonaparte e do Imperador Napoleão e envolvido em todas as intrigas entre 1799 e 1810, governador geral da Ilíria em 1813, plenipotenciário do Imperador em Itália, conspirador eminente sob a primeira restauração, ministro e árbitro dos partidos durante os 100 dias, chefe do poder executivo e ministro da restauração, Fouché esteve em todos os actos desse drama imenso que foi da Revolução à Restauração passando pelo Império.
Foi um resistente. Os Girondinos caiem, Fouché fica; os líderes da Montanha são sucessivamente guilhotinados, Fouché sobrevive; Directório, Consulado, Império, 1ª Restauração, Império novamente (100 dias) desaparecem, afundam-se, mas Fouché permanece, graças à sua reserva subtil e à audácia que tem por ser absolutamente desprovido da mais pequena parcela de carácter e de ter uma absoluta falta de convicções.
O poder de Fouché reside no seu sangue frio inabalável. Paciente e dissimulado submete-se, sem um sobressalto, com a face impenetrável ou um sorriso gelado, às mais grosseiras injúrias e humilhações. Robespierre e Napoleão quebraram ambos contra esta impassibilidade marmórea. O sangue, os sentidos, a alma, o sistema nervoso, não têm qualquer papel neste personagem, apenas o cérebro comanda as suas acções. Espera dissimulada e pacientemente que o ardor dos adversários se esgote ou estes percam o domínio de si próprios, e que lhes consiga descobrir algum ponto fraco. Urdir a sua trama do fundo do seu gabinete, entrincheirado atrás dos papéis e ferir impiedosamente sem que ninguém saiba como e donde, é a sua arma.
Quem o conheceu pessoalmente é unânime em atestar que nunca um aspecto físico se coadunou melhor com o carácter ambíguo e insondável que era o seu. Alto, magro, ossudo, ligeiramente curvado, face exangue de uma lividez estranha que nunca corava, nem empalidecia, lábios descorados, um rosto fechado, impenetrável. O seu olhar, cinzento e inexpressivo seria, como disse Robespierre, «olhos que a natureza tinha escondido para permitir a este homem dissimular a sua alma atrás desse véu impenetrável». A sua fealdade, sem banalidade, acentuava o seu aspecto sinistro.
Porém, repentinamente, esta fisionomia fechada abria-se e fulminava um olhar acutilante, rápido e investigador que devassava o íntimo do interlocutor e os lábios crispavam-se num sorriso irónico. E surgia o grande inquisidor da polícia francesa.
Provavelmente Murnau inspirou-se nas descrições de Fouché para compor o seu personagem Nosferatu ...
Todavia, Fouché não é vingativo. Combate com determinação e impiedosamente quem se interpõe entre ele e o seu objectivo. Esmaga quem o quer liquidar. Mas passada a refrega não odeia nem se vinga. Pode lutar, usando toda a manhosice de que a sua mente é fértil, até à liquidação política total do seu adversário, mas tendo-o vencido, este deixou de ser seu adversário. Fouché perdoou sempre tudo velhas rivalidades, injúrias, ataques pessoais, etc. mas nunca perdoou a alguém que se lhe atravessava no caminho.
Como ministro da polícia, Fouché explorou e serviu-se do que mais baixo havia na humanidade. Conheceu, melhor que ninguém, como se trafica com a consciência humana. Viu de perto pessoas que ele julgava honestas capitularem vergonhosamente pela corrupção e gente que estigmatizava os tiranos cair no deboche que criticava. Comprou tantas consciências com reputação de íntegras, enganou tantos políticos que se julgavam hábeis, que concluiu que a sociedade se compunha de celerados mais ou menos hipócritas e de imbecis mais ou menos felizes.
No fundo, a sua benevolência e insensibilidade perante a injúria, e a sua clemência e moderação, decorriam do imenso e tranquilo desprezo que votava aos seus semelhantes.
A este universo corrupto apenas escapa o seu lar. Fouché foi sempre um marido fiel e terno (apesar da mulher ser, segundo escreve Barras, de uma «fealdade horrível») e um pai exemplar. Sempre.
Concluindo, Fouce, tal como este perfil o descreve, é um homem de Estado da escola positivista que perante uma situação complexa com diversos problemas vai analisá-los, decompô-los, resolvê-los uns após os outros, com o tempo e a oportunidade que as circunstâncias exigem. A sua mente está liberta de quaisquer peias: convicções, escrúpulos, amizades, ódios, receios. Não subestima nem sobrestima o adversário.
(*) As estimativas sobre o valor das moedas são minhas. Na época havia écus de 3 libras e écus de 6 libras. Presumo que Fouché se deveria referir ao écu de 6 libras (ou francos).
40 écus corresponderiam assim a cerca de 3.000 a 3.500 em termos de poder de compra actual, ou seja, cerca de 250 a 300 mensais. Julgo que Álvaro Cunhal também dizia que um comunista podia viver perfeitamente com o ordenado mínimo nacional ... nada é novo sob o sol!
Nota - ler igualmente:
Fouché Monárquico
Fouché Duque de Otranto
Fouché Bonapartista
Fouché Ministro da Polícia
Fouché revolucionário
Comparar Álvaro Cunhal com Fouché? Não estou a perceber.
Afixado por: Senaqueribe em maio 31, 2004 02:22 PMLembro-me da polémica àcerca das declarações de Álvaro Cunhal sobre os salários dos funcionários do PCP.
Na altura o pessoal gozava por o PCP fazer reinvidicações salariais e ao mesmo yempo dizer que o OMN era suficiente.
Velhos tempos.
Isto do Fouché trás água no bico.
Esta gaja não dá ponto sem nó.
Isso do Álvaro Cunhal é mais um veneno.
Afixado por: Cisco Kid em maio 31, 2004 04:50 PMVamos ao campeonato de quem é pior?
Fouché ou Cunhal?
O OMN ou o SMN - Salário Mínimo Nacional?
Afixado por: Nereu em junho 1, 2004 02:04 PM