O debate social e político em Portugal está sobremaneira empobrecido.
Vem isto a propósito dos meus dois últimos textos sobre a questão do túnel do Marquês e de alguns comentários com que fui mimoseada quer aqui, quer no Expresso on-line. Mas não só, todo o debate sobre essa matéria foi inquinado.
Em primeiro lugar disse, e sublinhei várias vezes, que, no meu parecer, não julgava aquela obra prioritária, principalmente pelos custos que seguramente acarreta, dada a sua complexidade. Tem algumas vantagens desnivela o cruzamento com a Rua Artilharia 1 e retira bastante tráfego da rotunda do Marquês de Pombal. Em contrapartida, ao facilitar os acessos a Lisboa, pode, eventualmente, conduzir a um aumento diário do número de veículos no centro da cidade.
Acho todavia bastante primitiva a teoria de que não se devem melhorar os acessos à cidade para evitar a entrada de mais veículos. Esta tese é absolutamente estúpida. A entrada dos veículos no coração da cidade combate-se com a melhoria da oferta dos transportes públicos, em quantidade e em qualidade, principalmente o transporte ferroviário comboios, metropolitano, eléctricos rápidos, etc., aumentando e diversificando os eixos radiais e densificando a malha. Eventualmente, como medida desmotivadora, poderão estabelecer-se portagens ou passes que autorizem, mediante pagamento, a circulação em determinadas zonas, nunca colocando obstáculos à fluidez do tráfego.
Sintetizando, não considero a obra prioritária porque as suas inegáveis vantagens não compensam, segundo julgo, os respectivos custos, e isto tendo em conta projectos alternativos de que a cidade está carenciada. Mas isto é apenas uma opinião baseada em estimativas pessoais, porque desconheço os custos exactos da obra, os estudos de tráfego (calculo que tenha havido), etc..
Em segundo lugar assistiu-se a uma tentativa de baralhar o debate trazendo à colação assuntos que não tinham nada a ver com o que estava em causa. O TAFL apenas deu provimento à alegação que pedia a realização de um EIA. Não deu provimento às restantes alegações. Ora o pessoal dissertou abundantemente sobre os declives, sobre a insegurança do troço, sobre a falta de projecto, etc.. Ora o EIA não tem nada a ver com isso. Tal é matéria da engenharia e não do ambiente rasantes, geologia, geotecnia e mecânica dos solos, hidrologia, estruturas etc.. São matérias do âmbito dos projectistas.
Outro disparate foi a afirmação de que não havia projecto. Uma obra pode ser adjudicada sem projecto de execução. O que não é possível é começar qualquer parcela da obra, sem que essa parcela tenha um projecto de execução. Tomemos o exemplo de um hotel. Posso adjudicar a construção de um hotel baseada num anteprojecto, estimativas de quantidades e séries de preços. Posso iniciar as escavações para os pisos enterrados, sem projecto de execução. Todavia só posso começar com as fundações após ter o projecto de estruturas. E assim sucessivamente. Os projectos de execução relativos às especialidades (electricidade, ar condicionado, elevadores, etc.) também podem começar posteriormente. Com este faseamento conseguem-se grandes ganhos nos prazos, mas obriga a uma coordenação extremamente rigorosa. É assim que no estrangeiro se fazem as obras importantes que se querem em prazos curtos. É assim que em Portugal já se fazem muitas obras. Veja-se a rapidez com que foi executado o Estádio da Luz.
Depois alguns aprendizes de feiticeiro apareceram a citar o Decreto-Lei n.º 69/2000, Mas apenas citaram o título. O Público foi mais longe e hoje citou uma parcela do anexo 1 que diz que « b) Construção de auto-estradas e de estradas destinadas ao tráfego motorizado, com duas faixas de rodagem, com separador, e pelo menos duas vias cada », mas esqueceu-se de continuar !? O texto completo é: « b) Construção de auto-estradas e de estradas destinadas ao tráfego motorizado, com duas faixas de rodagem, com separador, e pelo menos duas vias cada, e c) Construção de itinerários principais e de itinerários complementares, de acordo com o Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho, em troços superiores a 10 km».
Este texto não é muito claro e permite mais que uma leitura. Todavia, e adicionalmente, a obra em questão é uma via subterrânea e não de superfície. Por outro lado, e eu chamei a atenção para essa circunstância logo de início, este próprio decreto dispõe, no artigo 3º que «Em circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, o licenciamento ou a autorização de um projecto específico pode, por iniciativa do proponente e mediante despacho do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e do ministro da tutela, ser efectuado com dispensa, total ou parcial, do procedimento de AIA.». Ora só hoje começaram a aparecer referências nos jornais a essa possibilidade e por efeito das declarações dos políticos envolvidos neste caso. Os jornalistas não estudam nada. Limitam-se a contar o que ouvem, aqui e acolá.
Portanto grande parte das diatribes jornalísticas e dos comentaristas da net fundava-se apenas quer na ignorância, quer na necessidade imperiosa de utilizar qualquer coisa, como arma de arremesso político.
A minha tentativa de caracterizar os factos em questão, com a objectividade e o rigor de que fui capaz, sofreu tratos de polé. Como não coloquei imediatamente o baraço ao pescoço do PSL, fui acusada de Santanista. Quem me invectivava não estava interessado no apuramento dos factos, estava apenas interessado no canhoneio político. Os factos eram apenas um empecilho incómodo e despiciendo.
O pessoal da net que discute estas matérias com ligeireza e falta de rigor, não é inteiramente culpado por o fazer. Há uma escola portuguesa de falta de rigor e de falar sem saber o que se diz. E os jornalistas são o exemplo mais lídimo dessa escola e têm sido os docentes por excelência dessa Universidade «das Bocas». Se os jornalistas começassem a abordar estas questões com rigor, isso seria pedagógico para toda a sociedade e, por arrastamento, mesmo para os comentadores da net mais relapsos.
Teríamos então debates mais consistentes e uma maior sensatez na abordagem dos problemas que nos afligem. A continuar como estamos, só temos gritaria sem conteúdo e um país permanentemente adiado.
A nossa ignorância é um espanto. Os nossos profissionais (e amadores) da comunicação social escrevem sobre matérias, frequentemente complexas, sem ter previamente feito qualquer estudo nem obtido uma informação rigorosa, e peroram sobre elas com total superficialidade, muita ignorância e uma auto-convicção notável. Por sua vez, e cada vez mais, os nossos políticos vão resvalando para a mesma superficialidade e ignorância. A ausência de profissionalismo na nossa sociedade é enorme e esconde-se atrás do biombo das frases feitas, dos grandes chavões e da dramatização verbal.
As questões emergentes da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa são um exemplo paradigmático disso.
O Secretário de Estado do Ambiente tem razão quando afirma que «este não é um projecto que esteja na listagem taxativa dos anexos do decreto-lei que em Portugal transpôs a legislação europeia sobre avaliação de impacte ambiental». Mas isto tem sido o entendimento do Ministério, neste e no anterior governo, e do Instituto do Ambiente, relativamente ao Anexo 1 do Decreto-Lei que regula a avaliação do impacte ambiental.
Por outro lado, o próprio Ministério, de acordo com o mesmo decreto, pode dispensar a avaliação do impacte ambiental, quando tal for requerida e se a fundamentação desse requerimento tiver parecer favorável do próprio ministério. Todavia esqueceu-se que existe um instrumento legal a acção popular que pode ser interposta para exigir um EIA (Estudo de impacte ambiental). Cabe então aos tribunais dar ou não provimento a essa acção. Ora, a partir da altura em que estas questões estão sob a alçada dos tribunais, como a experiência recente tem mostrado, tudo pode acontecer: os juizes podem decidir «A», «não-A» ou nem uma coisa nem outra. E essas decisões podem ser revogadas e repostas nas instâncias sucessivas.
Ontem escrevi aqui que « Santana Lopes deveria ter-se rodeado de todas as cautelas. Numa obra na rede viária (referia-me à rede viária urbana), como num parque de estacionamento subterrâneo, não é, em princípio, preciso um estudo de impacte ambiental. Todavia a legislação prevê, como matéria geral, que pode ser interposta uma acção popular a exigir um estudo de impacte ambiental. Qualquer obra viária tem algum impacte ambiental pó, ruídos, alterações nas circulações viárias, etc. cujas medidas mitigadoras fazem parte do próprio caderno de encargos, mas cuja eficácia pode ser posta em causa por essa acção popular e obrigar a um estudo independente. Santana Lopes deveria ter previsto isso. O facto de João Soares ter feito a maior parte das suas obras públicas sem licenciamentos, e sempre sem estudos de impacte ambiental, não colhia. João Soares é dos «bons», é fixe.»
Portanto, o Secretário de Estado do Ambiente apenas parcialmente tem razão. Esqueceu-se, infelizmente para ele, para SL e para os utentes do eixo Oeiras-Lisboa, de outras possibilidades que a lei confere aos cidadãos recalcitrantes.
Adicionalmente o Fernando Madrinha, jornalista de créditos reconhecidos, deveria ter-se informado melhor antes de vir para o Expresso on-line desfiar um rosário de banalidades cujo único mérito pode ser o de entreter o apetite das piranhas do on-line.
Os regimes democráticos, no sentido de aperfeiçoar a cidadania, dotaram-se de instrumentos para defender legalmente os direitos dos cidadãos. Todavia, onde a mesquinhez impera, o uso desses instrumentos legais pode levar à completa paralisia e o que foi imaginado para defesa dos cidadãos pode ser pervertido para tornar a generalidade dos cidadãos vítima dos seus efeitos.
No caso em apreço, a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa cria um precedente que pode paralisar a gestão urbana, já de si embaraçada por diversas peias administrativas. Basta observar as declarações proferidas ontem pelo vereador Vasco Franco (PS), que detinha o pelouro das obras na vereação anterior. Apesar de ser contrário àquela obra, admitiu que não era hábito exigir-se um EIA em circunstâncias semelhantes (teria dificuldade em admitir outra coisa, visto que nas obras municipais sob a sua direcção não houve nenhum EIA) e deu a entender que aquela decisão poderia abrir um precedente embaraçoso. Isto apesar de ter dito que, à cautela, teria sido preferível mandar fazer previamente um EIA (noblesse oblige).
Não sei quem irá ganhar com esta decisão. Quem perde são os cidadãos da zona de Lisboa, que irão esperar mais 10 a 12 meses pela conclusão da obra (é duvidoso que o EIA venha a inviabilizar o empreendimento). Quanto a dividendos políticos, o PSL vai, com toda a certeza, explorar a dicotomia «os que querem fazer obra» versus «os que só sabem criar empecilhos». Não sei quem angariará mais votos com esta controvérsia. Os meios de comunicação e os kamikazes da net estarão, na maioria, contra PSL. Porém a população em geral está farta de empecilhos e quer ver obra (qualquer que ela seja). Basta observar o descrédito com que a população vê os ambientalistas, que apenas têm audiência, e muita, junto dos meios de comunicação e alguma entre os políticos fragilizados pela incompetência e vulneráveis pela falta de coragem. O futuro o dirá.
E o que é paradoxal é esta controvérsia surgir acerca de uma obra que não é prioritária, pelo menos segundo o meu entendimento, e cujo rácio benefício/custo me parece bastante duvidoso.
É difícil fazer algo em Portugal. É certo que ninguém gosta das coisas como elas estão. Todavia isso tornou-se no desporto nacional de que poucos querem abdicar, face à escassez das infra-estruturas para outros tipos de desportos. O desporto nacional é dizer mal do que está. Serve para anedotas, chistes, motejos, sarcasmos, facécias, boatos, risotas, má-língua, escárnio, etc.. Parte dos comentaristas nacionais vivem de dizer mal se as coisas se começassem a endireitar, onde iriam eles buscar matéria para entreter a sua ociosidade?
Porém pretender fazer qualquer coisa desencadeia a tempestade. Como assim, estão a pretender destruir o manancial que fecunda a nossa inesgotável verve? E gera-se como que um conluio social para embaraçar, obstruir, impedir, sabotar, etc., o que se pretende fazer.
Há 3 ou 4 anos, tive, indirectamente, por via familiar, uma experiência interessante e elucidativa sobre como funciona em Portugal o «não deixar fazer».
Um grupo de moradores pretendera construir um parque de estacionamento subterrâneo. Essa pretensão teve apoio entusiástico da vereação lisboeta e da Junta de Freguesia. Tudo indiciava que o empreendimento iria correr célere, sobre rodas. Puro engano! Durante 7 anos os processos arrastaram-se pelos diversos serviços camarários. E os mais recalcitrantes e impiedosos foram os arquitectos dos «Espaços Verdes», com permanentes e absurdas exigências que iam encarecendo o projecto e fazendo subir as estimativas da obra.
Numa das audiências com o presidente da edilidade lisboeta, e perante o desespero da associação, João Soares, sempre bonacheirão, sugeriu:
- Façam a obra mesmo sem estar licenciada! Têm todo o apoio da CML. Não levantaremos problemas e a polícia municipal será avisada para não pedir as licenças. Vejam ali o Parque da Praça do Município que foi feito sem licenciamento. Os serviços nunca mais aprovavam e eu fiz as obras clandestinamente. Se eu estivesse à espera dos serviços a obra ainda estava por fazer. Façam como eu fiz!
O presidente da associação, advogado experiente, redarguiu:
- O senhor é o Presidente da CML. Nós estamos sujeitos a que qualquer um meta uma providência cautelar baseada no facto da obra não estar licenciada e depois ficamos com a obra embargada. E quem paga os custos da imobilização do estaleiro?
O presidente da associação tinha razão. Havia gente que estava contra a obra, obra que durante alguns meses iria causar alguma incomodidade. Outros apenas por mesquinhez. E o mais surpreendente é que quem contestava a obra tinha imediata audiência nos meios de comunicação social. O próprio órgão da freguesia, cuja Junta apoiava unanimemente a obra, trouxe um artigo «revelando» que se tratava de um parque para ricos, cujos lugares custavam mais de 8 mil contos cada um (custaram, no cômputo global, cerca de 2.100 contos cada).
A obra acabou por arrancar, após um laborioso licenciamento. A meio do seu curso e perante os protestos indignados de alguns moradores, fez-se uma reunião no auditório da Junta. Umas avós, em crise de histerismo, gritavam que as suas casas já tinham fendas onde «cabiam mãos». Os prédios circundantes ameaçavam a ruína mais definitiva! Em face de tamanha catástrofe, a Junta, o representante da vereação e um técnico do LNEC prometeram uma vistoria rigorosa.
Um parênteses para referir que qualquer obra deste género obriga a que todas a edificações circundantes sejam previamente vistoriadas e que às fendas existentes sejam aplicados extensómetros para que as vistorias a efectuar no fim da obra possam avaliar se houve danos e qual a gravidade destes.
Foi portanto feita uma vistoria por técnicos do LNEC cuja conclusão foi que todas as afirmações catastrofistas produzidas durante a reunião magna eram absolutamente falsas. Nunca mais ninguém falou na derrocada iminente dos edifícios!
A obra chegou finalmente aos arranjos exteriores. O projecto licenciado pela CML previa ajardinar dois baldios existentes nas traseiras dos prédios. Quando se aperceberam disso a fúria dos moradores protestantes não teve freio. Pois quê! Um sítio tão perfeito para estacionar ser outorgado para habitação de seres vegetativos sem inteligência e inúteis? Esta pretensão de ajardinar baldios era a prova óbvia que o parque era uma obra de ricos e que a CML estava bandeada com a classe possidente!
Então deu-se uma coisa curiosa: João Soares, a Vereação, a Junta, os arquitectos dos Espaços Verdes, todos os que tinham tido as exigências mais fundamentalistas nos ajardinamentos, que durante 7 anos tinham andado cheios de legalidades, a encanar a perna à rã, capitularam em poucas semanas perante a ânsia de betão dos moradores protestantes. O projecto dos jardins foi rasgado e a própria CML fez um projecto com estacionamento à superfície, com meia dúzia de árvores exiladas em sítios em que não causassem quaisquer incómodos aos carros. A CML pagou inclusivamente a diferença, pois embora o estacionamento fosse ligeiramente mais barato que o ajardinamento, houve um sobrecusto pelo facto da obra estar interrompida cerca de 2 meses.
Vem isto a propósito das obras do túnel do Marquês. Nunca me pareceu que fosse uma obra prioritária, tendo em atenção as carências de Lisboa. Seria igualmente uma obra cara e com uma forte probabilidade de deslizamento de custos e prazos, como acontece com frequência em obras, em Portugal, que metam túneis, ainda por cima um túnel debaixo do X do Metro. Em Portugal poupa-se, quase sempre, nas sondagens geotécnicas e depois há surpresas. Mas uma coisa é discutir a sua prioridade e a sua complexidade técnica, outra é andar, desde que ela foi lançada, a semear empecilhos.
Por outro lado Santana Lopes deveria saber, pela experiência que já tinha da questão do Casino que ele é persona non grata dos tugas politicamente correctos. Por isso Santana Lopes deveria ter-se rodeado de todas as cautelas. Numa obra na rede viária, como num parque de estacionamento subterrâneo, não é, em princípio, preciso um estudo de impacte ambiental. Todavia a legislação prevê, como matéria geral, que pode ser posta uma acção popular a exigir um estudo de impacte ambiental. Qualquer obra viária tem algum impacte ambiental pó, ruídos, alterações nas circulações viárias, etc. cujas medidas mitigadoras fazem parte do próprio caderno de encargos, mas cuja eficácia pode ser posta em causa por essa acção popular e obrigar a um estudo independente.
Santana Lopes deveria ter previsto isso. O facto de João Soares ter feito a maior parte das suas obras públicas sem licenciamentos, e sempre sem estudos de impacte ambiental, não colhia. João Soares é dos «bons», é fixe.
Carmona Rodrigues é um técnico de reconhecido prestígio na área da engenharia hidráulica e ambiental. Mas neste caso também havia necessidade de engenharia política. Esta não era uma obra normal. Era uma obra de Santana Lopes, a Némesis da intelectualidade portuguesa.
Os regimes democráticos munem-se de cautelas para defender legalmente os direitos dos cidadãos. Nos países onde a mesquinhez impera, o uso desses instrumentos legais pode levar à completa paralisia e o que foi imaginado para defesa dos cidadãos pode ser pervertido para tornar esses cidadãos vítimas dos seus efeitos.
E agora? Um estudo de impacte ambiental demora no mínimo 3 meses. Feito por uma entidade independente obriga a um concurso. Elaboração do processo de concursos, prazos para apresentação de propostas, apreciação, audiência prévia, etc., nunca menos de 2 a 3 meses. Depois do estudo feito, há o período obrigatório de discussão pública. Depois a apreciação pelo Instituto do Ambiente, etc., etc.. No cômputo geral será um processo que demorará no mínimo 10 a 12 meses.
É claro que eu não conheço o teor do despacho e pode haver formas agilizadas de desembaraçar esta questão. Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.
Quem entra na cidade por aquele eixo que se prepare para sofrer.
Finalmente havia-se encontrado uma solução para a situação incómoda em que se encontrava a ilha de Chipre. Em 1974 o norte de Chipre foi invadido pelas tropas turcas, numa acção coordenada entre a Turquia, EUA e Grã-Bretanha (cf . Henri Kissinger - Years of Upheaval). Tudo gente amiga da União Europeia. As tropas turcas ocuparam cerca de 40% do território (3.355 km2 num total de 9.250 km2), apesar da população turca constituir menos de 18% da população. Muitos milhares de cipriotas gregos foram expulsos do norte da ilha. Uma centena de milhares de colonos turcos, provenientes da Anatólia, foram ocupando esse vazio. Os turcos proclamaram a RTNC (República Turca do Norte de Chipre), apenas reconhecida pela própria Turquia.
Passaram-se 30 anos. A parte sul de Chipre, tornou-se a pequena Suíça do Mediterrâneo. O Chipre que vai aderir à UE a 1 de Maio é uma pequena nação com um grande dinamismo económico, com um PIB e com um nível educacional superiores aos nossos. Chipre superou o seu passado de colónia britânica e as destruições e as vagas de refugiados provocadas pela invasão turca.
Se para a maioria dos países candidatos à UE a questão económica é que tem pesado, no caso de Chipre sempre se tratou de uma necessidade geoestratégica para a proteger da Turquia. Provavelmente o cidadão cipriota grego será mais um «contribuinte» que um «beneficiário» dos fundos europeus.
A UE e a ONU cozinharam um plano de união para resolver esse problema incómodo. Koffi Annan disse que o seu plano era complexo porque foi elaborado com o principal objectivo de garantir a segurança dos cipriotas de ambos os lados da ilha. Garantia a segurança de cristalizar e reconhecer a ocupação de quase todo o norte da ilha pelos turcos (apenas 7% era retirada); garantia a segurança de que «alguns colonos» turcos seriam repatriados, sabe-se lá quando e quantos; garantia a segurança de que a força ocupante de 30.000 soldados turcos se iria retirar num prazo longo, lentamente, lá para as calendas «cipriotas». E os cipriotas turcos e a maior parte dos colonos tornavam-se cidadãos europeus de direito.
A UE, os EUA, a Grécia, a Turquia e a ONU pediram aos cipriotas gregos para não deixarem escapar esta oportunidade de resolver um conflito de décadas. Bastava desistirem do que era deles por direito. Aos pedidos seguiram-se mais garantias. A estas seguiram-se ameaças de isolamento internacional e ostracização em Bruxelas. A tia, velha e artrítica, não gosta de problemas difíceis de resolver. Os cipriotas que fossem bons alunos!
Mas os cipriotas gregos não quiseram ser bons alunos. Quanto mais os ameaçavam, mais eles ficavam relutantes em aceitarem o plano. As pressões americanas, interessados que a Turquia, uma aliada imprescindível, angariasse um visto para a Europa, caíram muito mal em Chipre. Nem os EUA, nem a Grã-Bretanha, antiga potência colonial, conseguiram convencer os cipriotas gregos que aquelas pressões eram apenas uma prova de amizade e não tinham nada a ver com uma atitude pró-turca. Ninguém os conseguiu convencer porque razão representando os cipriotas turcos perto de 18% da população, tinham que ficar com mais de 30% da superfície da ilha. Ninguém os conseguiu convencer que as garantias que agora lhes davam eram mais firmes que as anteriores resoluções da ONU que ficaram todas no papel.
No sábado, os cipriotas gregos recusaram o plano apresentado pelo secretário-geral da ONU por cerca de 76% dos votos, uma votação maciça. Os cipriotas turcos, apesar da campanha de alguns dos seus dirigentes pelo não, aprovaram o plano com perto de 65% dos votos.
Estes resultados acabaram com as esperanças de que toda a ilha de Chipre pudesse entrar na União Europeia, a 1 de Maio. Estes resultado implicam a manutenção da divisão da ilha, e apenas legitima a adesão à União Europeia, no próximo dia 1 de Maio, da República de Chipre, a "parte grega" da ilha internacionalmente reconhecida.
A União Europeia, a tia velha e artrítica, ficou «consternada». Como é possível, numa pequena ilha do leste do Mediterrâneo, um povo, cercado por 30.000 soldados turcos, cujas únicas armas que tem é a sua férrea vontade de não ceder e a sua capacidade de subir na prosperidade a pulso, sem fundos alheios, fazer uma desfeita destas?
Como é que a tia velha e artrítica vai dirimir esta herança, um imbroglio territorial em que parte do seu território vai ficar ocupada por um exército invasor, ilegalmente? E receber no seu seio, no dia 1 de Maio, um país de irredutíveis, ainda por cima com direito de veto? Que aborrecimento! A União Europeia não merecia isto!
Já se fala em Bruxelas em retaliações. Com toda a razão. Uma a tia velha e artrítica tem mais facilidade em engrossar a voz com um pequeno povo de 600 mil habitantes que com uma potência regional de 70 milhões de habitantes de quem os EUA necessitam, principalmente agora, com a crise iraquiana.
O problema é que estes irredutíveis não precisam de dinheiro. Isso já mostraram que sabem fazer. O que eles querem é protecção e não ficar à mercê da gulodice turca. Ora a Europa apenas sabe dirimir os problemas dando ou retirando dinheiros. Uma a tia velha e artrítica apenas se impõe aos sobrinhos-netos pela chantagem das dádivas. Se há um sobrinho-neto imune ao vil metal lá se vai a força da tia. Ele quer protecção? Mas se a tia está cheia de achaques e mal se consegue mover no sofá! Uma tia que quando tem que se mostrar militarmente forte, precisa de bajular o parente americano.
E a Turquia, que tão prestimosa tem sido em alguns lugares da cena internacional, a troco das potências ocidentais fecharem os olhos sobre a situação dos direitos humanos, da minoria curda, etc., que se vai encontrar, a partir de 1 de Maio próximo, na desconfortável posição de ocupar parte do território europeu, pela força das armas e ilegalmente? E ainda por cima uma Turquia que se apresenta como candidata à adesão?
Dava tanto jeito varrer este problema para debaixo do tapete
Bruxelas está mesmo muito aborrecida!
Já há o distanciamento temporal suficiente para se fazer uma análise objectiva do 25 de Abril e dos acontecimentos que lhe sucederam. Sucede todavia que nos debates sobre esses acontecimentos se mistura quase sempre o clima emocional de quem os viveu. E a emoção é inimiga da razão.
Em primeiro lugar tem que ser dito sem ambiguidades que os acontecimentos designados por 25 de Abril constituem, pelo menos na forma, uma revolução.
Na verdade, a forma como esses acontecimentos se encadearam é típica de uma revolução.
Em primeiro lugar houve a fronda dos notáveis. Aconteceu em França, porventura a revolução mais «típica», com a convocação dos Estados Gerais, a tomada da Bastilha e a «Revolução dos Notáveis»; aconteceu em Portugal com a ala liberal do marcelismo, o pronunciamento militar do 25 de Abril e o primeiro governo provisório.
A segunda fase corresponde ao desmoronamento do poder instituído até então, que degenera no vazio do poder do Estado: O poder «cai na rua». O «poder da rua» não corresponde, necessariamente, ao sentir da população. Corresponde apenas ao protagonismo de sectores da população mais facilmente mobilizáveis para a acção pública pelas forças mais radicais, explorando o facto das forças que se poderiam opor ou não estarem ainda organizadas ou (as ligadas ao anterior regime) estarem desacreditadas.
Esta segunda fase foi, em Portugal, designada por PREC (processo revolucionário em curso) e desenvolveu-se entre o 28 de Setembro de 1974 e a queda de Vasco Gonçalves, sendo derrotada definitivamente em 25 de Novembro de 1975. Comparando com a revolução francesa, correspondeu ao período entre 1790 e 1794, compreendendo o «Terror» (1792-94) e que foi derrotada no 8 Thermidor. É óbvio que a similitude está nos aspectos teóricos. Na prática esta fase saldou-se em França por mais de uma dezena de milhares de vítimas, enquanto em Portugal, país de brandos costumes, não teriam chegado à dezena. Houve todavia situações de grande violência verbal e alguma violência física que poderiam ter degenerado numa guerra civil eventualmente sangrenta.
A terceira fase é a fase do refluxo revolucionário, onde as forças em luta tentam chegar a um equilíbrio. As forças que derrotaram o «PREC» (ou o «Terror») apenas conjunturalmente estiveram unidas; aparecem clivagens entre elas e não há uma autoridade institucional que se faça respeitar integralmente. Foi a fase dos sucessivos governos provisórios em Portugal e, continuando a nossa comparação com a revolução francesa, foi a fase da reacção thermidoriana e do Directório.
A quarta fase é a da necessidade de uma autoridade forte para conseguir manter o precário equilíbrio a que se havia chegado e evitar que a situação descambe ou se descontrole. Em França foi o bonapartismo, que teve características muito peculiares e que acabou por arrastar a França para guerras sucessivas que se prolongaram por 15 anos e que levaram à sua derrota. Em Portugal o enquadramento era diferente e o fenómeno eanista acabou por não ter a expressão que inicialmente se pensou que poderia vir a ter. O eanismo em Portugal seria uma versão muito mitigada do bonapartismo francês porque as forças democráticas tinham conseguido encontrar equilíbrios e consensos que dispensaram um solução de tutela militar.
Finalmente, após estes fluxos e refluxos (ou «avanços e recuos») gera-se uma situação de equilíbrio cuja configuração política e social que corresponde à «consciência possível» da sociedade. Dá-se, pouco a pouco, uma normalização institucional e recupera-se a autoridade do Estado, alicerçada num novo «contrato social».
Portanto, na forma como decorreu, o 25 de Abril foi uma revolução. Mas sê-lo-ia pelos resultados?
Muitos têm a opinião que uma revolução deveria corresponder a uma alteração das estruturas sociais. Em França, em 1789-1799 o regime feudal foi destruído e substituído pelo regime capitalista, embora numa fase ainda primitiva. Na Rússia o regime capitalista foi substituído pelo regime socialista (também aqui, a sucessão de acontecimentos revolução de Fevereiro, a tomada de poder pelos sovietes, a dissolução da Assembleia Constituinte, a Guerra Civil e a emergência do estalinismo configura um encadeamento de ocorrências assimilável ao figurino «tipo» de uma revolução).
Em Portugal houve forças que tentaram o estabelecimento de um regime socialista com a apropriação colectiva dos meios de produção. Cunhal declarou várias vezes que o Estado Socialista estava próximo. Nacionalizaram-se diversos sectores da economia portuguesa e criaram-se as Unidades Colectivas de Produção (UCP) com as terras ocupadas aos proprietários. Muitos imóveis foram ocupados. O MFA, alcandorado a «vanguarda revolucionária das forças armadas» (um conceito bebido na sebenta leninista), que tinha a realização de eleições como ponto central do seu programa inicial, acabou por as permitir, mas obrigando os partidos concorrentes a assinarem um pacto prévio comprometendo-se a respeitarem as «conquistas revolucionárias».
Face à derrota eleitoral, o MFA, o PC e a extrema-esquerda tentaram expedientes alternativos para anularem o voto popular. Os meios de comunicação, nas mãos daquelas forças, desdenhavam da Constituinte e sugeriam modelos institucionais alternativos. Mas esse processo revolucionário foi interrompido com a queda de Vasco Gonçalves, na sequência de parte do MFA ter verificado o seu isolamento progressivo no país. Mesmo a nível do «poder de rua», as mobilizações de massas conseguidas por Mário Soares mostraram que a extrema-esquerda civil e militar estava isolada. O 25 de Novembro foi a tradução militar da derrota eleitoral. A partir daí as «conquistas revolucionárias» foram revertendo lentamente. Os sectores industriais básicos e os sectores segurador e bancário que haviam sido nacionalizados, foram posteriormente privatizados. O modelo comunista de reforma agrária foi igualmente liquidado. As tentativas de ruptura social do país falharam como tal e apenas se traduziram na nossa ruína económica, ruína de que só lentamente o país foi emergindo posteriormente.
O que mudou de facto Portugal foi a democracia. A democracia acabou por vencer e consolidar-se pouco a pouco. Neste entendimento, não houve, de acordo com a perspectiva anteriormente enunciada, uma revolução, mas sim, como escreveu Boaventura Sousa Santos, uma «Crise Revolucionária», isto é, uma tentativa revolucionária que se gorou.
Canotilho e Vital Moreira escreveram, em 1993, que «entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976 desenvolveu-se uma revolução, certamente uma das mais profundas e popularmente participadas das revoluções portuguesas». Compreende-se o entusiasmo dos autores que participaram de corpo e alma nessa revolução, escrevendo numa época ainda bem próxima. Todavia todas as revoluções são participadas. É mesmo uma das características das revoluções ou das «crises revolucionárias». Mas o 25 de Abril não alterou, qualitativamente, a estrutura social portuguesa.
A revolução de 1820, e as sucessivas crises e guerras civis até ao triunfo da causa liberal, saldou-se na liquidação do regime feudal e a instauração de uma estrutura social que permitiu o estabelecimento do sistema capitalista. Essa revolução teve um impacte muito mais profundo na sociedade portuguesa do que o 25 de Abril. Alterou, qualitativamente essa sociedade, coisa que não aconteceu com o 25 de Abril. Neste entendimento, Vital Moreira e Canotilho erraram naquela caracterização, embora possam alegar em sua defesa o entusiasmo de que estavam possuídos por terem participado naqueles eventos.
O 25 de Abril trouxe a democracia, assim como o 5 de Outubro trouxe a república e assim como a crise revolucionária de 1383-1385 trouxe a mudança da dinastia. Em todos eles se produziu um significativo aperfeiçoamento do regime social. Nos três casos, houve igualmente a mudança dos protagonistas políticos a partir de 1385, uma nova nobreza (alguns oriundos da burguesia) substituiu, em grande parte, a antiga nobreza, desapossada; na república os próceres monárquicos (e os respectivos partidos) desapareceram de cena para dar origem a toda uma nova classe política; no 25 de Abril aconteceu o mesmo, os anteriores protagonistas políticos desapareceram, quase todos, de cena.
Mas uma revolução não significa necessariamente uma ruptura na estrutura social. Pode significar apenas a mudança da superestrutura política. Nesse entendimento aqueles três eventos podem ser considerados revoluções. Mas o 28 de Maio de 1926 também teve impacte semelhante, isto é, levou à substituição dos protagonistas políticos. Há todavia uma diferença significativa. Nos três casos acima assinalados houve aperfeiçoamentos e modernizações das sociedades respectivas, sem rupturas qualitativas. No caso do 28 de Maio, embora alguns dos seus promotores iniciais pretendessem, ingenuamente, um aperfeiçoamento, o que aconteceu foi uma regressão social, a liquidação da democracia e o estabelecimento de um regime autoritário.
Mas mais: haver uma revolução, não significa que ela triunfe. O que cada grupo social, que participa na revolução, entende por triunfo, depende dos objectivos que cada um tinha, quer à partida, quer objectivos estabelecidos no decurso do processo revolucionário.
O entendimento dos diversos grupos políticos e sociais sobre o 25 de Abril reflecte portanto as expectativas que cada um tinha sobre o seu resultado. Os que pretendiam que fosse, de facto, uma revolução com uma transformação qualitativa das estruturas sociais e económicas, falam de revolução inacabada, revolução desvirtuada e caracterizam-na, teoricamente, como uma «crise revolucionária». Mas apesar disso, ou talvez por isso mesmo, referem-se a ela como uma espécie de ícone milagroso, sebastiânico. Algo que estará predestinado que se cumpra, como um acto messiânico. Quando falam do 25 de Abril não se referem à conquista da liberdade e da democracia, nem à normalização da vida democrática. Referem-se aos objectivos da revolução social que, durante o PREC, lhes pareceram possíveis de serem atingidos, que foram derrotados primeiro nas urnas e depois no interior das forças armadas, mas que mantêm um carácter mítico e onírico. O 25 de Abril não é o que sucedeu realmente, mas sim o que poderia ter acontecido e que há de acontecer fatalmente
Pode parecer paradoxal que aqueles que acham que o 25 de Abril foi uma revolução inacabada, uma revolução desvirtuada ou uma «crise revolucionária» sejam os que mais se insurgem contra a «rasura» do «R» que deu «Evolução». A questão é que, nessa discussão, eles não estão a caracterizar o 25 de Abril «em si», mas um 25 de Abril com as potencialidades de ruptura social que desejavam que tivesse ocorrido e que haverá de ocorrer. É o paradigma do «25 de Abril sempre».
Daí o debate acalorado sobre revolução versus evolução. Parece uma questão bizantina face aos resultados obtidos nos últimos 30 anos, mas mexe com o mito de uma revolução que não se cumpriu por uma fatalidade histórica, mas que se mantém como algo que se irá cumprir como um fim pré-determinado.
Nas vésperas do 25 de Abril o país vivia o rescaldo da «primavera marcelista». Marcelo Caetano tinha sucedido a Salazar, em fins de 1968, apoiado pela ala liberal do regime.
Marcelo Caetano não era propriamente um liberal. Ainda muito jovem aderiu às correntes integralistas, conviveu com António Sardinha e, posteriormente, foi o ideólogo mais consistente do corporativismo. Todavia a lenta agonia do salazarismo, nomeadamente após o início das guerras coloniais e das contestações estudantis, levou-o a perceber que seria necessária uma liberalização do regime, quer política, quer, principalmente, económica.
A liberalização económica e o fomento industrial foram os maiores, e porventura os únicos, trunfos da governação marcelista. Era um modelo de desenvolvimento fortemente voltado para a abertura ao exterior e de apoio à iniciativa privada. As leis restritivas de inspiração corporativista foram eliminadas e o país conheceu uma época de forte expansão económica. A estratégia de Rogério Martins, o Ministro da Indústria, baseava-se numa avaliação inteligente das vantagens comparativas de Portugal posição estratégica (polo de Sines); mão de obra barata e adaptável (inúmeras unidades estrangeiras que se fixaram em Portugal na área da electrónica, componentes de automóveis, etc.), químicas e químico-metalúrgicas pesadas, etc..
Todavia a liberalização económica teria, obrigatoriamente, que marchar par e passo com a liberalização política. E esta não foi possível. As eleições de 1969, certamente as menos fraudulentas do regime do «Estado Novo», nem por isso deixaram de ser fraudulentas: o recenseamento cobriu apenas uma parcela do eleitorado potencial, a campanha eleitoral não foi nem livre nem justa e não houve fiscalização adequada do acto eleitoral. Por sua vez a abertura sindical não teve continuidade e, a partir de 1970, deu-se uma reversão dessa política de abertura.
Por outro lado a manutenção das guerras coloniais sem que se descortinasse qualquer solução política ou militar, era um ónus terrível a nível internacional, dificultando as relações exteriores de Portugal com as evidentes implicações económicas, quer no investimento externo, quer nas pautas aduaneiras com os espaços económicos que se formavam na Europa. Era também um grave problema interno, embora não que houvesse um forte movimento popular contra a guerra. A própria oposição, durante a campanha eleitoral de 1969, evitou pronunciar-se a favor do abandono do Ultramar. A concepção imperial do Portugal «Uno e Indivisível do Minho a Timor» ainda era muito forte entre a população. Todavia muitos jovens fugiam ao serviço militar através da emigração clandestina, engrossando a forte emigração dos últimos anos do marcelismo, que sangrou abundantemente as camadas mais laboriosas da nossa população. Era, mesmo indirectamente, uma forma de contestação à guerra colonial, com reflexos muito negativos na economia e na demografia do país. Adicionalmente, o enorme esforço financeiro a que a guerra obrigava era um entrave ao fomento económico e industrial.
O modelo marcelista entrou em esgotamento durante 1973, pelas causas estruturais acima descritas, agravadas sobremaneira pelo choque petrolífero de 1973, com o aumento dramático do preço do crude e as implicações decorrentes: agravamento do défice comercial, derrapagem da situação monetária e financeira, etc..
Paradoxalmente um movimento de origem corporativa de jovens oficiais de carreira indignados com a promulgação de um decreto que prejudicava as suas possibilidades de progressão de carreira em detrimento dos oficiais milicianos deu origem, em poucos meses, a um movimento de contestação ao regime que levaria à liquidação deste por um golpe militar em 25 de Abril de 1974.
Nos meses que precederam o golpe, Marcelo Caetano tentou manter o regime a todo o custo: abriu secretamente negociações com o PAIGC para uma solução negociada e uma eventual independência da parcela colonial em que a situação militar era, de longe, a mais difícil e a repulsa por ser mobilizado para o seu contingente era total; nomeou Spínola e Costa Gomes para as chefias do Estado-Maior, talvez com o intuito de controlar a oficialidade intermédia, e depois demitiu-os quando verificou que não só não conseguiu esse desiderato, como Spínola e Costa Gomes se poderiam tornar os chefes de um eventual movimento insurreccional.
Marcelo Caetano estaria provavelmente convencido que as estruturas que apoiavam o regime eram muito mais fortes do que eram realmente. A «brigada do reumático» que em 14 de Março de 1974 lhe foi prestar vassalagem, já não tinha autoridade hierárquica real sobre as forças armadas. As estruturas políticas estavam desacreditadas. As cedências de Marcelo Caetano à ala conservadora não serviram de nada porque esta só tinha força no papel; na prática já não tinha um peso real. Quando o golpe militar saiu à rua, na madrugada de 25 de Abril, não apareceu ninguém a defender o regime. Nenhuma das unidades militares potencialmente aptas a fazê-lo, nenhuma entidade civil, ninguém se levantou em sua defesa.
O próprio Marcelo Caetano parece ter decidido que não valia a pena resistir. Em 16 de Março tinha ficado à frente do ministério, no Comando da Região Aérea, em Monsanto, como estava determinado. Em 25 de Abril decidiu, sem deixar quaisquer instruções aos outros membros do governo, refugiar-se no Quartel do Carmo, numa posição muito exposta.
É o destino dos regimes portugueses. Caiem de maduros basta um ligeiro abanão. Foi assim em 1 de Dezembro de 1640, em 24 de Agosto de 1820, em 5 de Outubro de 1910 e em 25 de Abril de 1974. Posteriormente, em todas aquelas revoluções, passado o estupor inicial, houve tentativas de contra-revolução, mas todas incipientes, se exceptuar-mos o caso da guerra civil ocorrida na sequência da revolução liberal.
O DN escreve na sua edição de hoje:
«O primeiro-ministro inaugura hoje, na Residência Oficial de S. Bento, uma galeria de fotografias de antigos chefes do Governo desde a Revolução do 25 de Abril. De Adelino da Palma Carlos, que esteve dois meses em funções, até Cavaco Silva (120 meses), passando pelo general Vasco Gonçalves, que completou um ano e dois meses em S. Bento, durante o Verão Quente de 1975. Os outros antigos primeiros-ministros com direito a foto na galeria são António Guterres (77 meses), Mário Soares (53), Pinto Balsemão (30), Sá Carneiro (11), Pinheiro de Azevedo (10), Mota Pinto (8), Lourdes Pintasilgo (6) e Nobre da Costa (3). Todos eles foram convidados para a cerimónia.»
Acrescentamos nós: Á data do fecho da edição ainda não se conheciam as respostas àquele convite de Adelino da Palma Carlos, Sá Carneiro, Pinheiro de Azevedo, Mota Pinto e Nobre da Costa. Espera-se todavia que não recusem, pois seria uma indelicadeza, para além do significado político profundamente negativo de tal recusa
Não é apenas a economia portuguesa que está num impasse. Toda a economia europeia está estagnada. Pontualmente haverá excepções, mas as principais economias europeias marcam passo.
Os Estados Unidos, o Japão, os países emergentes, todos dão mostras de retoma. A economia americana parece no bom caminho, apesar dos défices orçamentais provocados principalmente pelas despesas militares.
Face às declarações de Alan Greenspan é previsível que o dólar volte a subir em face do euro, mas agora com uma economia americana mais forte e competitiva. Uma subida que se prenuncia e presumivelmente mais sustentada. A Europa vai ficar cada vez mais distante dos EUA e do Japão.
A economia europeia está a perder competitividade e a população europeia está a envelhecer. Está a envelhecer não apenas biologicamente mas, principalmente, pelo seu estado de espírito, pela sua postura. Os europeus estão mentalmente velhos, perderam o espírito competitivo, o dinamismo, o destemor pelo risco.
As economias e as sociedades europeias precisam de profundas reformas estruturais, precisam de criar novos modelos económicos e sociais que permitam sair do actual impasse e da estagnação.
Mas para isso é preciso audácia, sentido das responsabilidades e não ter receio do risco. As economias francesa e alemã estão estagnadas. Os governos de Jospin e a primeira legislatura de Schroeder agravaram a situação das respectivas economias com medidas sociais completamente desenquadradas face a uma realidade que já existia, mas que eles não perceberam. Agora são absolutamente vitais reformas de que ninguém quer pagar os custos, embora todos considerem indispensáveis. O governo francês que sucedeu a Jospin tentou algumas reformas, mas levou com um cartão amarelo, a raiar o vermelho, nas regionais. Schroeder vê-se a braços com manifestações permanentes. Em Itália há manifestações gigantescas contra a política social de Berlusconi. Cá, apenas medidas tímidas, de impacte reduzido e muito contestadas.
A Europa (e Portugal) tem que escolher: ou reformar as suas estruturas económicas e sociais, permitir uma maior mobilidade e dinamismo económico e social e recuperar uma mentalidade aberta ao risco e à competição; ou manter o seu modelo, cada vez mais obsoleto e contraproducente e deixar-se estagnar, envelhecer com algumas poupanças que ainda tem, deslizando, prematuramente encanecida, para uma reforma sem esperança nem horizontes.
Mas para escolher, tem que perceber o que está em jogo. E a maioria dos europeus não percebeu, não quer perceber e tem raiva a quem percebe.
Numa manhã de 22 de Abril, uma chusma de marinheiros avistava uma montanha verdejante, frondosa, magnífica, prolongada de vagas cordilheiras por detrás duma atmosfera de ouro fluido. As naus de Pedro Álvares Cabral aportavam ao Brasil. Era o ano de 1500. Tão longe estamos dessa ocorrência ... longe no tempo ... longe no espírito.
Também neste dia nasceu Immanuel Kant. Era 1724. Para quê lembrar? A cidade onde nasceu já não é alemã, já não é Konigsberg, já não é habitada por alemães que comemorassem o nascimento do seu conterrâneo. Restam os seus livros e a sua filosofia, para distrair a Europa na sua senectude.
Igualmente nesse dia, em 1870, nascia Lenine. Reduziu a filosofia de Marx a chavões, fáceis de entender pelas massas, criou uma organização centralizada, hierarquizada e ideologicamente homogénea, apta para conquistar o poder, no estilo de Bakunine, mas que se revelou absolutamente perversa na gestão desse mesmo poder, implodindo e deixando milhões de órfãos que se arrastam pelo mundo e pela net, em busca de tábuas de salvação. Qualquer coisa serve. Mesmo que tenham que andar de turbante ou burqa, suspirando que qualquer entidade, nem que seja a Al-Qaida, dê uma lição ao imperialismo capitalista.
Talvez os americanos, mais jovens e ainda longe da reforma, vejam doutra maneira o ano de 1732, quando, neste mesmo dia, nascia George Washington, na colónia britânica da Virgínia, na América do Norte.
A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Quando me refiro quer à esquerda quer à direita, não faço a injustiça de me referir a «toda» a esquerda nem a «toda» a direita. Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias e no acinte e desdém que mostram (ou mostraram) pelas ideias dos outros.
Esta similitude, eventualmente incompreensível, pela aparente distância ideológica entre aqueles campos, tem todavia explicações simples.
Quer a «actual» esquerda, quer a «antiga» direita, são (ou eram) conservadoras e reaccionárias face a um mundo em mutação de que elas não eram agentes da mudança. A direita «antiga» lutava para manter (ou restaurar) um mundo cujo sentido das transformações abominava, cujos mecanismos de mudança lhe eram incompreensíveis e que lhe prefiguravam um novo mundo cuja dominação considerava monstruosa. Foram os anti-dreyfusards, foi a Action Française, foram os Camelots du Roi, foram os diversos partidos de direita alemães que emergiram da primeira guerra mundial e da liquidação da revolução espartaquista, foram os nazis com as suas SA e, posteriormente, com as SS, foram os «fasci di combattimenti» e os «Camise Nere» de Mussolini, e isto só para falar das principais nações ocidentais.
A esquerda «actual» herdou tudo isso. Também ela está órfã de conceitos que ruíram; também ela se agarra desesperadamente a um statu quo obsoleto; também ela luta para manter um mundo cujo sentido das transformações abomina e cujos mecanismos de mudança lhe são totalmente inexplicáveis e também ela se insurge contra a perspectiva de um novo mundo que prefigura como monstruoso.
É esse horror perante uma mudança que diaboliza, que torna a esquerda «actual» profundamente reaccionária, intolerante, argumentando de forma trauliteira, agarrando-se, no seu naufrágio, a todos os despojos que lhe sugiram a possibilidade de reversão, de barreira à mudança, pactuando com formas medievas, violentas e bárbaras de contestação à nossa sociedade e, sempre que a ocasião surge, actuando com toda a violência, vandalizando cidades inteiras em nome da «luta contra a globalização» ou por um «mundo alternativo». E, tal como a direita de há 80 anos, com a benevolência dos meios de comunicação que conseguem entrever alguns «argumentos» naquela violência bárbara e gratuita.
Mas o que há de mais perverso na esquerda «actual» é que ela continua a reclamar-se de Marx. Ora o fundamento do pensamento marxista era a análise dialéctica das condições sociais, da base material da sociedade, das relações de produção emergentes dessa base material e da forma como essa base material influencia a superestrutura. É da essência do marxismo o não ficar asilado no statu quo, o encontrar explicações adequadas para as mudanças e o devir social, ou seja, ser capaz de interpretar o mundo na sua mudança e nunca ficar atemorizado perante essa mudança, rejeitando-a liminarmente.
A esquerda «actual», todavia, na sequência da interpretação soviética do marxismo, reduziu este a chavões e depois a um mero tropo patrocinador que, prudentemente, já não é matéria para nenhum debate, não vá o diabo tecê-las.
Os filósofos (?!) soviéticos deitaram Marx no «leito de Procusta» das exigências político-ideológicas estalinistas e foi esse «Marx» desfigurado e deformado que a esquerda «actual» usa como travesti ideológico.
Neste entendimento, a esquerda «actual» é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda «actual» não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.
Usa os argumentos mais soezes e acusa, paradoxalmente, a direita de trauliteira, quando foi ela que herdou essa postura argumentativa. A esquerda «actual» adoptou, por convenção, por postulado (que só essa esquerda reconhece) que a direita, quando riposta é, por definição, trauliteira, enquanto ela, a esquerda «actual», pode debitar as maiores insolências, ser da máxima truculência, do maior vazio argumentativo, que está permanentemente desculpada: a esquerda «actual» é a detentora da verdade e tudo o que a contraria é trauliteiro.
E o que é paradoxal nesta convicção da esquerda em deter a verdade absoluta é que os seus ícones e os seus mitos foram todos derrubados. Nada escapou à inclemência, à razia do devir histórico. Parafraseando Marx, tudo o que era sólido, se dissolveu no ar.
A História é feita de fluxos e refluxos. A esquerda «actual» espanta-se e impreca o «neo-liberalismo», mas este é a resposta para os indispensáveis reajustamentos estruturais necessários para equilibrar e sanear as economias e as sociedades ocidentais, para alavancar progressos na prosperidade e na riqueza dessas sociedades, que estavam a estagnar. O «neo-liberalismo» não veio para ficar. Nada na História vem para ficar. Tudo é feito de mudança. O «neo-liberalismo» veio como refluxo para inverter correntes que, sem essa inversão, teriam conduzido o mundo ocidental à ruína económica e social.
Mas o «neo-liberalismo», tendo embora os seus méritos na situação actual, quando acabar de desempenhar o seu papel histórico, a sua missão, terá esgotado o seu modelo. E sobre os seus restos erguer-se-á um modelo novo, mais aperfeiçoado, mais adequado á nova realidade. E assim sucessivamente.
Mas tudo isto, para quem cristalizou no marxismo ortorrômbico, é muito difícil de entender.
Abu Mazen, ex-primeiro ministro da AP
Dirigente pragmático e pouco propenso aos excessos retóricos e belicistas caros à liderança palestiniana, Abu Mazen foi um dos pioneiros no estabelecimento de pontes de diálogo com Israel em meados da década de setenta, quando a OLP começou a perceber que a existência de um Estado próprio na Palestina só seria possível aceitando a convivência com Israel.
Abu Mazen coordenou nos bastidores todo o trabalho diplomático que levou à Conferência de Madrid de 30-10-1991 e que esteve na base dos acordos de Oslo, dos quais Abu Mazen é justamente considerado o verdadeiro arquitecto pelo lado palestiniano.
Quando, na sequência do 11 de Setembro e da luta anti-terrorista, os Estados Unidos começaram a apoiar os argumentos de Ariel Sharon de que a AP era responsável pelo terrorismo contra Israel, e a UE, embora condenando o belicismo de Sharon, concordou que sem profundas transformações na cúpula do poder palestiniano não poderia ser reatado o diálogo político e o processo de paz, o futuro de Arafat como chefe todo poderoso da AP tornou-se incerto.
Em 24-6-2002, George W. Bush condicionava o futuro Estado palestiniano ao afastamento de Arafat das estruturas de comando militar e político palestinianos. A UE, que não tem força para dizer que sim, nem o contrário ... embora afirmando que Arafat era um interlocutor imprescindível, foi receptiva à ideia de relegá-lo para uma presidência simbólica da AP e de concentrar o poder executivo real num primeiro ministro. Essa ideia foi também partilhada pelos países árabes moderados.
O Road Map, que entretanto foi apresentado, obrigava à criação de uma organização na Palestina que fosse um embrião de um Estado constitucional e democrático, separando as organizações políticas e as instituições autonómicas provisórias, criando um governo mais eficiente através da desconcentração e do equilíbrio de poderes.
A primeira fase do plano, elaborado e divulgado em 17-9-2002, incidia na superação da violência e na reestruturação das instituições da AP, baseadas num estado de direito e num sistema de democracia parlamentar, com a realização de eleições e a criação da figura do primeiro ministro; na segunda fase, no segundo semestre de 2003, haveria uma conferência internacional de paz para Próximo Oriente e a criação de um "Estado palestiniano independente com fronteiras provisórias e dotado de soberania"; Numa terceira fase, posterior, seriam definidos as questões em aberto, como as fronteiras definitivas, etc..
Abu Mazen (nome de guerra de Mahmoud Abbas) manteve-se em segundo plano durante este período. Todavia, teve, no início de 2003 um encontro secreto com Sharon onde se abordou a extensão do futuro Estado palestino provisório. Abu Mazen entendia que tal entidade não podia ser viável com menos de 65% da superfície de Cisjordânia, além de uma administração conjunta para Jerusalém oriental. Sharon sugeriu 53% do território cisjordano e afirmou que a questão de Jerusalém não era negociável.
Após diversas manobras dilatórias e ter conseguido desconvocar eleições legislativas, a pretexto das ocupações e ataques israelitas, Arafat não conseguiu resistir às pressões internas e externas e propôs ao Conselho Central da OLP a criação da figura de 1º Ministro e a indigitação, em 8-3-03, de Abu Mazen para ocupar o cargo.
Seguiu-se uma comédia de enganos, ou pior, uma tragédia, que retirou qualquer margem de manobra a Abu Mazen, atacado em 3 frentes: as intrigas e manobras de Arafat, que não aceitava perder peso nas decisões da AP; a impunidade com que continuaram a perpetrar atentados o Hamas, a Jihad Islâmica e as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa; e a atitude do governo de Sharon, que não desistiu de retaliar face aos atentados e prosseguiu com a sua política de execuções extra-judiciais.
Farto da situação, em 6-09-2003, o primeiro ministro palestino Abu Mazen dirigiu-se ao Conselho Legislativo Palestino reunido em Ramallah. No fim do discurso anunciou aos deputados palestinos que tinha acabado de entregar a sua carta de demissão a Yasser Arafat. Foi uma reunião onde não foram admitidos os meios de comunicação, mas no dia seguinte o texto integral do seu discurso apareceu no Al-Ayam.
Este discurso teve pouca divulgação nos meios europeus. Inclusivamente foi passada a ideia de que Abu Mazen tinha considerado Israel o responsável pelo seu desaire. É óbvio que criticou Israel: edificação do muro, manutenção das barragens nas estradas e ruas, etc. Todavia as relações com Israel ocuparam apenas 2% do seu discurso, uma centena de palavras em 6.300. Tudo o resto foi consagrado à análise das relações de força no seio da direcção palestina.
Abu Mazen fez algumas revelações interessantes:
Contrariamente ao que aparece normalmente nos meios de comunicação, a Autoridade Palestina não se considera habilitada a negociar com Israel. A única parte habilitada a fazê-lo é a OLP. Aliás, foi enquanto Presidente da OLP que Arafat assinou os acordos de Oslo. Disse Abu Mazen: «As negociações não são assunto do governo, são assunto da OLP, que define a política, e do comité de negociações, que leva à prática essa política».
Este é um ponto de incompreensão entre israelitas e palestinos. Após os Acordos de Oslo, os Israelitas pensaram ter encontrado um parceiro para gerir os assuntos comuns. De forma alguma, disse Abu Mazen, os habitantes dos territórios, através dos seus representantes da Autoridade Palestina, não têm voto nesta matéria. A única entidade habilitada a tal é a OLP, que é uma coligação de movimentos sem qualquer legitimidade democrática, que pretende falar em nome de todos os palestinos, quer vivam nos territórios, quer em qualquer país do mundo. Assim sendo, o interesse que determina as escolhas dos negociadores não é o interesse dos habitantes dos territórios, mas o superior interesse da «libertação da Palestina».
Ora o actual representante legítimo da OLP em matéria de política estrangeira é Faruk Kaddumi, que se opôs em 1993 aos acordos de Oslo e que se mantém em Tunis, sede da OLP. É claro que em matéria de relações correntes, como com os países doadores, isso não coloca problemas práticos, porquanto sendo Arafat presidente da AP e da OLP, quando se fala com Arafat pode julgar-se que se está a falar com o Presidente da AP, quando afinal ele se porta como Presidente da OLP, ou vice-versa.
Porém em matéria de política estrangeira, desde que não se passe por Arafat, surge a questão: será o ministro dos negócios estrangeiros da AP ou Faruk Kaddumi o interlocutor? Ora esta questão não é inócua, visto a AP e a OLP em Tunis terem discursos políticos contraditórios.
A questão ganhou acuidade quando, sob pressão americana e israelita, Arafat decidiu abdicar de parte do seu poder para um governo dirigido por um 1º Ministro, como parte do «Road Map». Pensou-se que seria uma forma elegante de neutralizar Arafat. Arafat todavia fez tudo para sabotar este plano. E a primeira acção foi exactamente a manutenção de duas direcções de negócios estrangeiros nos territórios sob controlo da AP e em Tunis. Em consequência, disse Abu Mazen, «as nossas missões diplomáticas, os nossos embaixadores e as nossas embaixadas ... não podem fazer nada».
Ora se a legitimidade estiver em Tunis isso significa que o que está em vigor, em matéria de política internacional, é o programa integral da OLP anterior aos acordos de Oslo, cujo objectivo não era o de assegurar a independência dos territórios e a coexistência dos dois Estados, mas libertar a Palestina inteiramente e liquidar a existência de Israel. Se a legitimidade estiver no ministro da AP, isso significa uma porta aberta para um compromisso histórico fundado no reconhecimento da legitimidade do Estado de Israel enquanto Estado judeu.
No que respeita à gestão interna houve algumas revelações importantes. Abu Mazen referiu-se às deduções sobre os salários dos funcionários que se haviam elevado a 15% «... pessoalmente não sei para onde vão essas deduções, mas isso não é importante, o que é importante é que essas deduções prejudicam 150.000 empregados. Tínhamos meios de as suprimir, mas alguns protestaram dizendo que assim atingiríamos a Intifada. Pergunto-me o que terá a Intifada a ver com estas deduções».
Destas declarações deduzem-se duas coisas: aquelas deduções financiam a Intifada e se o 1º Ministro ignora o seu destino é porque se destinam a actividades que Arafat controla e que escapam à acção do governo. Como os salários dos empregados da AP são pagos por fundos da UE, então 15% dos fundos concedidos pela UE servem para financiar a Intifada.
Outra questão é a dos monopólios (petróleo, tabaco, etc.). «Porquê há estes monopólios e no interesse de quem?», perguntou Abu Mazen. E aproveitou para acentuar que a abolição do monopólio do petróleo, i.e., a transferência da responsabilidade da aquisição dos produtos petrolíferos da Comissão do Petróleo para o Ministério das Finanças trouxe uma poupança de 6 milhões de dólares por mês e acrescentou «isto significa que se roubavam 72 milhões de dólares por ano» sem especificar quem eram os ladrões.
Outra questão era a forma de pagamento às forças de segurança (numerosas e por vezes paralelas e concorrentes). O Ministério das Finanças queria que, a exemplo da generalidade dos empregados da AP, aqueles fossem pagos por transferência bancária. Ora isto pôs em cólera os chefes dos serviços, habituados a receberem de Arafat envelopes com dinheiro em notas que distribuíam segundo o seu arbítrio pelos seus homens. Era um meio de manterem o controlo absoluto sobre os seus homens e um meio de Arafat assegurar a sua fidelidade. Também era um meio de realocar parte do dinheiro a outros fins, pessoais ou militares.
O argumento apresentado era que as transferências bancárias poderiam denunciar a Israel os nomes dos agentes de segurança. Mas, para Abu Mazen, esta era uma falsa questão pois após os Acordos de Oslo e de acordo com o que ficou estipulado, haviam sido entregues a Israel as listas nominativas de todo o pessoal da OLP que entrasse nos territórios. Abu Mazen não conseguiu levar a dele avante, Apenas o pessoal sob a autoridade do Ministério do Interior, i.e., do governo, passou a ser pago desta maneira (Nota: em 1-4-2004 o actual Ministro das Finanças da AP conseguiu aquele desiderato. Falta saber se tem continuidade).
Abu Mazen disse que aqueles que «beneficiavam do sistema ... organizaram 2 manifestações contra o ministério das finanças», manifestações não pacíficas: «o ministério foi assaltado e os seus bens em Gaza roubados».
Abu Mazen explica como não era possível o governo funcionar: «cada dia recebia uma nova decisão de Arafat. As embaixadas não estão sob a nossa responsabilidade. Então para que serve o ministério dos negócios estrangeiros? Não sabemos. O trabalho dos governadores não está sob a nossa responsabilidade. Então para que serve o ministério do interior? O aeroporto não está sob a nossa responsabilidade. Então, quem é o responsável? É a OLP. O Conselho económico palestiniano para o desenvolvimento e reconstrução está sob a responsabilidade da OLP. A Comissão do serviço público está sob a responsabilidade da OLP».
A imagem que fica é a de um Estado-OLP que gere não apenas a política internacional, como a gestão corrente. E é como Presidente da OLP, uma organização sem qualquer legitimidade nem representatividade democrática, que Arafat detém as rédeas do poder.
Os meios de comunicação também não escapam ao totalitarismo de Arafat. Abu Mazen continua: «Quando me encontrei com Collin Powell, a televisão palestina obteve os direitos de transmissão da conferência de imprensa. Todas as agências de informação e todas as cadeias de televisão do mundo difundiram a nossa conferência de imprensa. O meu discurso no Conselho Legislativo foi transmitido pelo menos por 3 cadeias de televisão. Mas não foi pela nossa». Abu Mazen perguntou a razão ao seu ministro da informação. Este disse-lhe que havia recebido ordens de Arafat para «transmitir desenhos animados no momento do discurso».
Um elemento essencial do «Road Map» era a unificação dos serviços de segurança para combater o terrorismo e que esses serviços ficassem sob a autoridade do 1º ministro. Não foi conseguida nem uma coisa, nem outra. A unificação, que implicava a erradicação de organizações consideradas terroristas, foi evitada pelo próprio Abu Mazen, sob a alegação que tal poderia desencadear uma guerra civil. Quanto ao resto, três quartas partes das forças de segurança continuaram sob a autoridade de Arafat, que recusou «qualquer espécie de coordenação entre elas e o resto dos serviços».
Abu Mazen concluiu que em face de uma tensão sempre crescente, com Arafat a recusar cumprir os compromissos assumidos, «entreguei hoje ao irmão Abu Amar (Yasser Arafat) a carta de demissão do governo».
Nota 1
Por curiosidade diga-se que, apesar de ser considerado moderado, Abu Mazen fez algumas declarações, nos anos noventa, exprimindo a convicção que o nazismo não exterminou a milhões de judeus, mas apenas "algumas, poucas, centenas de milhares. Como Abu Mazen cursou na URSS, na Escola de Estudos Orientais da Universidade Estatal de Moscovo, tendo-se doutorado com uma tese sobre alegados contactos secretos entre o movimento sionista e a Alemanha nazi, é caso para perguntar qual o valor científico da escola em questão!!
Nota 2
Ahmad Qureia, o homem que sucedeu a Abu Mazen, embora considerado moderado, esteve envolvido na gestão corrupta da OLP, pois foi chefe do Comité Económico da OLP a partir da década de 80 e é um seguidor fiel de Arafat. Todavia o seu ministro das Finanças, Salaam Fayad, imposto pelos países doadores, tem tido alguns resultados apreciáveis no sentido de uma maior transparência financeira do funcionamento das estruturas da AP, conforme escrevi há dias, no artigo «Bush, Sharon e Arafat». Mas o poder de Arafat mantém-se inatingível.
O ministro da Administração Interna, Figueiredo Lopes disse, numa entrevista à Antena 1 e respondendo a uma pergunta sobre o futuro da GNR no Iraque na hipótese da situação descambar, que «Se, por hipótese, o conflito se agudizar e a GNR não tiver condições para exercer a sua missão a única coisa a fazer é retirar». Questionado sobre a possibilidade de, no caso de agravamento da situação no Iraque, substituir a GNR pelo Exército, o Figueiredo Lopes garantiu que «nem sequer está a ser equacionada a hipótese de enviar as Forças Armadas».
A força da GNR é uma força de manutenção da segurança pública, sem meios militares para se empenhar num conflito militar. Ela foi para o Iraque nessas circunstâncias e só partiu depois de ter sido assegurada a existência de condições no terreno que permitissem a sua acção.
Portanto o que Figueiredo Lopes disse foi o que consta dos acordos que possibilitaram a ida daquele contingente e do protocolo internacional, assinado pelo governo português, estabelecendo as condições em que a GNR operaria no Iraque.
Os nossos meios de comunicação pegaram naquelas declarações e verteram-nas em «comunicacioguês»: Figueiredo Lopes admite retirar a GNR do Iraque.
Figueiredo Lopes, homem tímido, de perfil baixo ... ou melhor, sem perfil para ministro ... apressou-se a desmentir aquela frase que os jornalistas tinham vertido em «comunicacioguês» e a tentar clarificar a sua posição. Debalde. A sua clarificação foi retrovertida em «comunicacioguês» assim: Figueiredo Lopes dá o dito por não dito.
Lendo melhor a frase anterior, verifica-se que ela encerra algo de verdade. De facto, Figueiredo Lopes dá o dito (o dito pela comunicação social) por não dito (ele, na verdade, não tinha dito aquilo).
Não há mesmo nada a fazer. A dislexia dos jornalistas é total e absoluta. A dislexia dos jornalistas e de Santana Lopes e Ana Gomes, os mais mediáticos dos nossos políticos que, por via disso, também foram contagiados pela dislexia mediática, embora cada um com sintomatologia diversa.
Enquanto Figueiredo Lopes foi vítima da dislexia jornalística, Durão Barroso foi vítima de uma crise de incontinência verbal. Durão Barroso criticou o Governo espanhol dizendo que «O novo Governo espanhol anunciou que ia retirar as tropas do Iraque e imediatamente disse que ia aumentar a presença no Afeganistão. Sentiu necessidade de o dizer, reparem nisso. Imediatamente a Al Qaeda reforçou as ameaças contra Espanha. E neste momento a situação naquele país não é de forma alguma mais segura do que em Portugal, bem pelo contrário» e, mais adiante, «há muito mais risco em Espanha do que em Portugal, apesar de o novo Governo espanhol ter dito o que disse» e que «não se compra segurança com a tentativa de ceder a qualquer forma de terrorismo».
Eu já fiz aqui acusações mais fortes a Zapatero que as que Durão formulou. Zapatero tem personalidade frágil: na altura das eleições dizia que ia retirar do Iraque; logo a seguir disse que as tropas espanholas permaneceriam a seguir a 30 de Junho, mas apenas se ficassem sob o comando da ONU; ontem, pressionado pelos parceiros radicais da coligação no poder, disse que as ia retirar imediatamente; amanhã, pressionado por Bush e Kerry, fará sabe-se lá o quê; etc.. Todavia Durão não falou na qualidade de «blogueiro». Analistas políticos têm sido severos com Zapatero. Todavia Durão Barroso não é um analista político (pelo menos por enquanto). Durão Barroso é o Primeiro Ministro de Portugal e deve ter sentido de Estado quando faz afirmações públicas sobre Primeiros Ministros de outros países.
Pior, Durão Barroso é o Primeiro Ministro de um país que não tem forças militares no Iraque e que apenas mantém nesse país um contingente insignificante de forças de segurança. Durão Barroso tem o direito de discordar da decisão de Zapatero. Todavia a insignificância da presença portuguesa no Iraque não lhe confere qualquer autoridade para emitir, publicamente, aqueles juízos de valor.
Por outro lado, Durão Barroso asseverou que a situação em Portugal é muito mais segura que em Espanha. Tem sido, é um facto. Mas o terrorismo não tem lógica e vive da surpresa. Os meios de profilaxia e combate ao terrorismo em Portugal são mínimos e, certamente, muito inferiores aos da Espanha. Nada garante que o que foi verdade até agora, continue a ser verdade. Durão Barroso teria feito bem melhor em estar calado sobre esta matéria, tecendo comparações de que poderá um dia arrepender-se.
Esperemos que tal não venha a acontecer.
A declaração de Bush após a reunião com Sharon representa um trunfo para este e uma evidência que a estratégia política seguida por Arafat na sequência da sua cimeira com Barak e Clinton, falhou redondamente.
Em primeiro lugar deve ser salientado que a declaração de Bush não constitui uma ruptura com a anterior política americana. A renúncia ao retorno dos refugiados ao território de Israel e rectificações fronteiriças importantes e favoráveis a Israel já tinham estado na mesa da cimeira referida, com o apoio de Clinton. Por sua vez, a declaração de Bush é ambígua, porquanto se dá a Israel, aparentemente, luz verde para continuar com o muro de separação, considera que este visa apenas a protecção da população israelita contra o terrorismo, não significando de forma alguma uma fronteira definitiva, pois esta terá que ser definida no âmbito de um acordo de paz.
Na verdade, a crer nos mapas que foram divulgados sobre a implantação do muro de separação, o território da Cisjordânia seria amputado de perto de 40% da sua área e dividido em duas partes separadas por um largo corredor correspondente ao actual distrito de Jerusalém da Cisjordânia (a zona de Ramallah, Nablus e Jenin, a norte, e a de Hebron e Belém a sul). Na fronteira ocidental da Cisjordânia a punção é ligeira em termos de área e, para além de corredores de protecção a alguns colonatos (nomeadamente no distrito palestino de Salfit), visa essencialmente objectivos estratégicos e militares relacionados com a orografia do terreno.
Todavia, no lado oriental, o muro amputa a Cisjordânia dos distritos de Tubas e Jericó (que fazem fronteira com a Jordânia) e da parte oriental dos distritos de Belém e Hebron (que fazem fronteira com o Mar Morto e com o deserto do Neguev). Praticamente todo o distrito de Jerusalém, no centro da Cisjordânia (que vai da fronteira de 1949 até ao Mar Morto), é engolido pelo muro.
A maior parte das áreas anexadas é muito fracamente povoada: vale do Jordão e do Mar Morto. Todavia o mesmo não acontece com o distrito de Jerusalém. Em alguns sítios há um duplo muro, pois pequenas bolsas de áreas sob controlo palestino ficam separadas do resto dos territórios. Estes mapas foram divulgados por entidades pró-palestinianas e não há confirmação israelita. Os troços do muro que já foram construídos não são indicativos, porque estão implantados nas zonas de maior densidade demográfica, seguindo ou a linha verde, ou afastando-se dela apenas um ou dois quilómetros.
A ser verídico o traçado do muro, este inviabiliza na prática um Estado palestiniano. A Cisjordânia ficaria reduzida às 2 bolsas acima descritas e a duas ou três bolsas minúsculas encravadas no território israelita. Aliás todos os cantões palestinos ficariam encravados dentro de Israel. Apenas em Gaza, onde o muro acompanharia a linha verde, ficaria com fronteira com o Egipto.
A estratégia de Arafat tem falhado completamente:
Falhou quando rompeu as negociações da cimeira com Clinton e Barak, pensando que Clinton seria substituído por um líder republicano, menos susceptível à influência do lobby judaico que os democratas, e que Barak cederia com uma segunda intifada.
Ora a segunda intifada, desencadeada semanas depois, a pretexto da visita de Sharon à esplanada das Mesquitas, falhou completamente os objectivos. Em primeiro lugar, e ao contrário da primeira intifada que foi a luta de David (os jovens que atiravam pedras), contra Golias (os meios mecanizados israelitas), e que tanta simpatia despertou na Europa, atingindo o moral do exército israelita, na segunda intifada, Arafat apostou nas armas e no terror. Simplesmente as armas ligeiras dos palestinianos não são suficientes face ao poderio militar israelita e o terror liquidou de facto Ehud Barak, mas para levar ao poder Ariel Sharon.
Portanto a primeira consequência da estratégia de Arafat foi a eleição de Ariel Sharon e o progressivo declínio da esquerda israelita.
Durante muitos anos, o terrorismo palestiniano, localizado, e passando como resistência, não incomodou sobremaneira os líderes ocidentais. O 11 de Setembro alterou tudo isso. Deixou de haver bons e maus terroristas ... passou apenas a haver terroristas. Para além disso, as manifestações de alegria de muitos populares palestinianos nos dias seguintes ao 11 de Setembro deixaram certamente marcas no povo americano e no mundo ocidental em geral. O terrorismo de Arafat passou a ser contraproducente.
É certo que, para os meios de comunicação ocidentais, Arafat condenava, em inglês o terrorismo. Mas em árabe fazia discursos populistas inflamados que, objectivamente, incentivavam a população palestina para acções terroristas. Apenas recentemente, após um ultimato da administração Bush, Arafat se decidiu a fazer, em árabe, a primeira declaração pública de condenação do terrorismo.
Durante anos os países doadores (essencialmente a UE, a França e a Alemanha) «assobiaram para o lado» fingindo não ver a corrupção da Autoridade Palestiniana e de Yasser Arafat, enquanto subsidiavam os vencimentos dos 150.000 funcionários da AP e davam outros generosos subsídios. A desculpa era que no 3º mundo as coisas são assim... . Algumas reportagens que começaram a aparecer a partir de 1996 chamando a atenção para os desvios dos fundos destinados ao povo palestino, não tiveram sequência. Em 1997, um primeiro inquérito internacional revelou a desaparição inexplicável de mil milhões de dólares. As autoridades palestinianas atribuíram a situação à juventude das estruturas administrativas da AP.
Descobriu-se entretanto que fortuna de Arafat é a 6ª fortuna mundial, logo a seguir à da Isabel II, Rainha da Grã-Bretanha. Sob pressão internacional, Arafat viu-se obrigado a aceitar uma comissão de inquérito sobre a origem da sua fortuna pessoal e sobre a corrupção na AP. À frente dessa comissão encontra-se Salaam Fayad, ex-funcionário do FMI, tornado entretanto ministro das finanças palestino sob pressão internacional e das forças internas palestinianas exasperadas com a corrupção e miséria dos territórios. Arafat foi obrigado a aceitar pois seria a única forma de passar a receber novamente os subsídios. A 2ª intifada, com as consequentes retaliações israelitas, havia arruinado completamente a economia palestina e a AP precisa desesperadamente de auxílio internacional.
Em teoria o dinheiro era para o tesouro palestino. Na prática era distribuído em envelopes aos próceres palestinos que depois os distribuíam, também em envelopes, aos seus homens. O esquema funcionava de forma idêntica ao dos grupos mafiosos de Chicago dos anos 30. Salaam Fayad afirmou que Arafat pagava mensalmente 20 milhões de dólares às suas forças de segurança, em envelopes, cash. Parte do dinheiro com que fica, Arafat usa-o para reforçar a sua popularidade, distribuindo-o em propaganda, financiamento de manifestações, etc. Arafat vive modestamente, mas em contrapartida, a sua mulher Suha leva uma vida luxuosa em Paris. Suha recebe mensalmente 100 mil dólares. Os Tunisinos (os homens da OLP que se mantiveram em Tunis após os acordos de Oslo e que, na maioria, recusam estes acordos) levam igualmente uma vida faustosa.
Salaam Fayad revelou igualmente que havia uma rede de monopólios abarcando farinhas, cimentos, petróleos, etc.. No caso dos petróleos a Sociedade Geral do Petróleo comprava os carburantes a uma sociedade israelita e misturava-o com querosene. Os automobilistas palestinos além de pagarem preços exorbitantes, arruinavam as suas viaturas. Este monopólio foi entretanto liquidado. Quando Salaam Fayad desmembrou esta sociedade, quem a chefiava fugiu dos territórios e anda foragido. A partir daí os automobilistas passaram a pagar menos 20% na gasolina e 80% a menos no gasóleo. O conselheiro económico de Arafat (Mohamed Rachid) também desapareceu da circulação. Aparentemente começou a colaborar com os investigadores de Salaam Fayad na desmontagem de todo o esquema de corrupção e roubos da administração anterior.
Salaam Fayad tem recebido muitas ameaças, o seu escritório foi várias vezes devassado. Quando Salaam Fayad quis substituir o chefe da organização de Protecção, que no fundo se dedica à extorsão da população palestina, Arafat enviou homens armados para impedir essa substituição. Mas Salaam Fayad é intocável, pois sem ele Arafat perderá os fundos internacionais, que correspondem a 60% do orçamento da AP.
Finalmente, em 1 de Abril deste ano, Salaam Fayad conseguiu impor que os pagamentos às forças de segurança fossem feitos por transferência bancária, assegurando a transparência deste processo. Descobriu-se nessa altura, por exemplo, que um dos chefes de segurança tinha 7.000 efectivos falsos na sua folha de pagamentos.
Agora, a aprovação do plano de Sharon por Bush coloca ainda mais a AP nas mãos de Israel. A UE pode emitir débeis reprovações do acordo de Bush-Sharon, mas a UE está desacreditada como mediadora, e o facto de que, dos donativos que forneceu à AP, 15% (as famosas deduções) foram para financiar o terrorismo e uma parte significativa para engrossar a fortuna de Arafat, fragiliza a sua posição perante a opinião pública israelita e perante os contribuintes europeus.
E Arafat não tem mais trunfos: as ameaças terroristas são inócuas, pois os israelitas sabem que os grupos terroristas só não fazem pior porque a vigilância e o profissionalismo dos serviços israelitas os impedem. O terrorismo para Israel tornou-se uma ameaça que é independente da forma como Israel retalia. Em qualquer dos casos os objectivos do Hamas e de outras organizações terroristas é a liquidação do Estado de Israel. Assim, este não tem outra alternativa.
As declarações de Bush são a última machadada na já cambaleante estratégia de Arafat. E Arafat não pode contar com a vitória de Kerry, pois este será sempre mais favorável a Israel que Bush. Aliás, a aprovação de Bush ao plano Sharon insere-se na necessidade daquele cativar apoios judaicos ou, pelo menos, neutralizar o eleitorado judaico, normalmente democrata.
Apesar de tudo, não vejo viabilidade do muro de separação passar a constituir fronteira. É uma punção demasiado elevada nos territórios da Cisjordânia para poder servir de base a um acordo de paz. Serve todavia de moeda de troca perante uma AP cada vez mais fragilizada, apesar da retórica inflamada de alguns dos seus líderes e dos líderes das organizações terroristas.
ANTRAM fez saber que vai apresentar uma queixa à Comissão Europeia, esta semana, condenando o aumento dos preços desde a liberalização do mercado, que ocorreu em Janeiro deste ano.
O protesto da associação é baseado num estudo efectuado por esta, no qual conclui que os custos dos transportadores agravaram-se em cerca de dez milhões de euros por mês desde a liberalização dos preços dos combustíveis. A ANTRAM vai alertar Bruxelas para o facto dos «preços praticados nos postos das três principais petrolíferas serem iguais e variarem sempre em sintonia quando seria expectável que fossem diferentes de empresa para empresa».
A ANTRAM não vai queixar-se do governo português. Afinal, a única intervenção governamental foi o estabelecimento da ecotaxa para o Fundo Florestal Permanente. O governo português deixou de ter controlo nos preços dos combustíveis (excepto por via indirecta, reduzindo ou aumentando os impostos sobre os combustíveis).
A ANTRAM não vai queixar-se das empresas petrolíferas. É certo que detectou que os preços variavam sempre em sintonia. Mas como o preço do crude está, em certa medida, regulado pelo cartel da OPEP através das decisões deste sobre as quantidades produzidas, quando o crude aumenta, seria lógico que todas as petrolíferas aumentassem os seus preços em proporção similar, ou seja, que variassem em sintonia. Certamente será isso que as filiadas da ANTRAM fazem quando variam os preços dos seus factores de produção: salários, combustíveis, veículos, etc.. Também variam em sintonia.
Todavia, a ANTRAM esperava que tal não acontecesse no seu mercado de factores. Assim sendo, a ANTRAM vai queixar-se, em Bruxelas, da Teoria Económica: queixar-se das funções de produção, queixar-se da teoria da utilidade e das curvas de indiferença, em suma, queixar-se da lógica do mercado ... quando são os outros a segui-la ...
Muitas empresas portuguesas habituadas a viverem desde longa data sob o aconchego da protecção estatal com as vantagens que essa protecção tem (para elas) e desvantagens que essa protecção tem (para a sociedade em geral e o consumidor em particular) têm dificuldade em adaptar-se às regras do mercado, excepto quando estas as favorecem.
O ocaso de Portas no mediatismo da vida política nacional tem sido desesperante. Um nome que durante os primeiros 18 meses de governo era pronunciado diariamente, que tinha sobre ele todos os holofotes da comunicação social, que um semanário de referência lhe dedicava páginas sobre páginas todas as semanas, que era objecto de colóquios, conferências, comícios, imprecações, oratórias, prédicas, gritos, soluços, suspiros, mesas redondas, quadradas, elípticas e bicudas, passou a ser ignorado de um dia para a noite. Bastou que estivesse concluído o Processo Moderna.
Reconheçamos que foi extremamente injusto. Uma carreira política que se desenhava fulgurante e cheia de potencialidades ser desvanecida por meras questões processuais ...ou pior, por ausência de questões processuais. Como é possível tanta mesquinhez? Como é transitória e vã a glória deste mundo! Sic transit gloria mundi! Actualmente, já poucos se lembram do Portas. Apenas Soares tenta promovê-lo, mas desajeitadamente. Além do que já ninguém liga ao Soares, que está completamente xexé. É preciso algo inovador.
Pela acção governamental não parece possível conseguir tal desiderato. A pasta ministerial que Portas sobraça é espinhosa. Um Ministério da Defesa sub-equipado, e sob a tutela espiritual do PR, não se presta a grandes feitos. Se tivesse as possibilidades humanas e materiais do Rumsfeld e a tutela de um Bush, outro galo lhe cantaria. Provavelmente já estaria no Deserto Sírio, na estrada de Damasco, cabelos ao vento, fácies heróico e lábios arrepanhados num rictus firme, a comandar um blitzkrieg sobre essa cidade infiel.
Mas em Portugal apenas lhe restam os submarinos. Porém, os submarinos têm uma característica profundamente antipática para um político: devem estar imersos. Ora estar imerso é, para um político, a contrariedade máxima.
E Portas tem, nesta tentativa premente de relançar a sua imagem, um aliado de peso. É que não foi apenas Porta que caiu no olvido, O Expresso está de rastos: J A Lima e J A Saraiva limitam-se a escrevinhar umas trivialidades que lançam às vorazes piranhas que infestam o on-line para as manterem entretidas a estraçalharem-lhes os parágrafos. A edição semanal está pelas ruas da amargura. Foram tentadas abordagens novas, mas sem resultados. Mesmo um figurino estilo «24 Horas» falhou, pois o «24 Horas» é inimitável.
Semiramis, sempre atenta à vida política e mundana dos tugas, conseguiu todavia desvendar algo que está a preparar na sombra e que promete bastante. Há dias, num restaurante discreto dos arredores de Lisboa, Portas, JAS e JAL tiveram um longo almoço onde delinearam uma estratégia para trazer novamente Portas para a ribalta e o Expresso para as bancas.
Semiramis, numa mesa prudentemente resguardada da curiosidade de estranhos, não conseguiu, por via disso, inteiro acesso aos planos daqueles discretos comensais, mas o facto da conta ser paga por Luís Filipe Vieira que almoçava, com Dias da Cunha, noutra mesa judiciosamente afastada, e de esta factura ser posteriormente entregue, de forma disfarçada e conspirativa, a um circunspecto JA Lima, já fornece um indício seguro de que algo se irá passar nos próximos dias na comunicação social.
Compadrio com os mídia, almoços pagos por outrem e ligações perigosas com os sórdidos meios futebolísticos são uma ementa suculenta para qualquer semanário à beira da exaustão inspirativa e para qualquer político em crise de protagonismo.
Por outro lado perspectiva-se uma reabertura do processo Moderna. Segundo pudemos observar, Portas teria fornecido, aos seus colegas de infortúnio mediático, dezenas de fotografias de um Jaguar em zonas de estacionamento proibido, em cima de passeios, relvados, e a circular a 185km/h, em contra-mão, defronte do Palácio de Belém. Segundo obviamente se depreende, este copioso acervo documental poderá ser carreado para o processo como novo elemento de prova, permitindo a sua reabertura e, em simultâneo, o recomeço da excitante e imaginativa novela jornalística. O sorriso escarninho do JAL era óbvio.
Aguardam-se novos e prometedores desenvolvimentos nesta matéria. Não podemos deixar empalidecer a estrela de Portas; não podemos deixar o Expresso resvalar para a banalidade mais insípida. Há que proteger essas duas instituições nacionais.
Todos nós precisamos de um Portas com protagonismo: são os meios de comunicação em crise de material, é a oposição em crise de causas, é o governo em crise de ideias, é o PR em crise de banalidades, é o Soares em crise de senilidade, é o défice em crise tout court e é o Durão absolutamente, definitivamente.
Ou o Western spaghetti em versão TAP
Fernando Pinto conseguiu, apesar de uma conjuntura muito negativa (o 11 de Setembro, e o medo que esse atentado gerou nas viagens aéreas, as guerras no Afeganistão e no Iraque, o aumento da ameaça terrorista e a recessão económica, portuguesa e mundial), que a TAP fechasse o exercício de 2003 com resultados operacionais positivos.
E os resultados foram positivos quer se entre ou não com os resultados extraordinários, fruto da anulação de provisões. A TAP passou de 100 ou 120 milhões de euros de prejuízo para resultados positivos em 3 anos. Enquanto a TAP, anteriormente condenada à falência ou à venda ao desbarato, se tornava lucrativa, a maioria das companhias aéreas enfrentava situações difíceis. Ironicamente foi a Swissair, cuja parceria estratégica com a TAP iria permitir a salvação desta, que faliu entretanto.
Fernando Pinto deu, há semanas, uma entrevista à RR, conduzida por JM Fernandes e Graça Franco, onde se revelou um gestor de corpo inteiro: disse o que tinha relevo para a função que exerce, iludiu o que era matéria política, que não foi para isso que o contrataram, e mostrou ao longo de toda a entrevista um completo conhecimento do negócio, uma visão organizativa e estratégica exemplar.
Fernando Pinto, a avaliar pela entrevista, conseguiu os resultados na TAP apostando na participação dos trabalhadores e, acima de tudo, na sua capacidade de transmitir uma mensagem clara, com conteúdo estratégico e que foi compreendida. Não o fez com falsas demagogias: negociou saídas e reduziu em 700 os efectivos da empresa. Simultaneamente aumentou o número de voos por avião, ao criar a placa giratória em Lisboa e ao mudar o perfil das vendas. Com estas medidas, e apesar da redução do pessoal, fez crescer as operações da TAP em cerca de 35%.
Com a sua gestão, a TAP reduziu, nos últimos dois anos, o endividamento em 220 milhões. Entretanto, a TAP já entregou ao Estado, em impostos, mais do que havia recebido deste, como ajuda, em 1997 (928 milhões contra 900 milhões de euros).
Cardoso e Cunha, depois das tiradas pessimistas durante a fase do encerramento do exercício e apuramento de resultados, entrou num período claramente optimista. Em entrevista ao «Diário Económico», Cardoso e Cunha considerou que a TAP vai entrar numa «fase de afirmação, após ter fechado o ciclo de recuperação», e estimou que todas as unidades de negócios da TAP deverão apresentar, em 2004, resultados operativos fortemente positivos, avaliando-os em 46,3 milhões de euros, o dobro do registado em 2003.
Cardoso e Cunha esquece todavia algumas coisas: em primeiro lugar que os resultados de 2003 estavam muito inflacionados por um resultado extraordinário, obviamente de carácter pontual. E esquece ainda, ironicamente, que foi ele próprio que andou a lembrar isso semanas atrás, para moderar o entusiasmo dos que falavam em mais de 20 milhões de euros de resultados positivos. Se a estimativa dos 46,3 milhões de euros fosse correcta, então não seria do dobro, mas de uma a duas dezenas de vezes que os resultados da TAP aumentariam em 2004.
Mas como eu não me esqueci, proponho que aquela previsão só possa ser tomada em consideração se for reiterada depois de 31 de Março de 2005. É que fiquei muito pouco crédula relativamente às previsões de Cardos e Cunha sobre a TAP.
Enquanto isso, um dirigente do Sindicato de Trabalhadores de Aviação e Aeroportos (SITAVA) acusava Cardoso e Cunha de fazer declarações que em nada contribuem para a recuperação da empresa, por este ter revelado que, nos próximos três anos, a empresa pretende reduzir cerca de mil postos de trabalho e sustentando que quem chega à presidência da TAP tem como principal preocupação o despedimento de trabalhadores, «avançando com números que quase parece um totoloto».
Ora existe um plano, que tem sido consensual na TAP, em que esta vai reduzir os seus efectivos a uma média de 350 por ano. Foi isso que a TAP fez nos dois anos anteriores e, provavelmente, será isso que continuará a fazer. Aquela redução anual representa cerca de mil efectivos em 3 anos, o número avançado por Cardoso e Cunha e o totoloto do dirigente sindical.
O SITAVA defende que a recuperação da TAP não deve ser feita através da redução, mas antes com o aumento dos postos de trabalho. Deste modo o SITAVA está em completa dessintonia com a gestão e com o pessoal da TAP, que tem apoiado os planos de reestruturação de Fernando Pinto. Deste modo os trabalhadores das empresas em dificuldades (TAP, Auto-Europa, etc.) continuam a aceitar planos de recuperação à revelia dos sindicatos, enquanto estes pregam no deserto da comunicação social.
Três japoneses foram feitos reféns e um vídeo foi distribuído mostrando-os aterrorizados e ameaçados de serem queimados vivos se o Japão não retirasse as suas tropas do Iraque até hoje. Clamores empolgados de Alá é grande ouviam-se como som de fundo.
O mais espantoso deste rapto é que das vítimas, duas delas são activistas anti-guerra e anti-nuclear e a terceira está ligada a um jornal de esquerda. Admitindo que não foram os próprios a oferecerem-se como reféns, o que parece pouco crível, tudo indica que os raptores já não conseguem distinguir amigos de inimigos.
Se se tratou, de facto, de um rapto, foi um acto cobarde, porque perpetrado contra gente desarmada e inofensiva, estúpido, porque realizado sobre gente que certamente estaria no Iraque para recolher argumentos contra a actuação da coligação e não para ser vítima dos que se opõem à coligação, bárbaro, porque o video deu uma imagem de selvajaria perante a opinião pública mundial, obviamente contraproducente para a causa dos raptores, se é que estes têm alguma causa.
Entretanto os raptores anunciaram uma dilação de 24 horas no prazo da execução e, à hora em que escrevo estas linhas, há informações contraditórias sobre a situação dos reféns e sobre uma eventual libertação, a exemplo de diversos civis estrangeiros, raptados ao acaso, e que têm sido libertos.
Espera-se que os raptores aproveitem a moratória, que deram, para entretanto ganharem algum discernimento.
O excesso de força conduz à tentação do seu uso imoderado, em alternativa a soluções políticas, em teoria porventura menos prometedoras, mas na prática mais eficazes.
As relações da administração americana do Iraque com os diversos sectores étnicos e religiosos ilustram os erros a que conduz o recurso imoderado à força militar. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. A força militar pode criar condições para facilitar o estabelecimento da democracia. Mas a democracia é, pela própria natureza, o governo do povo pelo povo. O povo tem que ser ganho para a democracia, para o seu exercício, para a compreensão das suas vantagens e das suas limitações. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E a administração americana e as potências ocidentais, em geral, terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode ter expectativas mais amplas pois não haverá condições para mais.
Na normalização do Iraque é indispensável a aliança com os xiitas que compreendem 60% da população e foi marginalizada e espezinhada durante a ditadura de Saddam Hussein. Todavia a maioria dos líderes dessa comunidade rejeita a constituição provisória recentemente promulgada porque esse texto não estabelece a sharia como única fonte direito. Os xiitas, liderados pelo ayatollah Ali Sistani, pretendem uma república islâmica. Uma minoria desta comunidade é adepta de um imã extremista, de 30 anos, Moqtada Al-Sadr que no seu jornal multiplicou os apelos à revolta contra os americanos e que constituiu uma milícia o exército do Mahdi poderosamente equipada. Essa milícia tem ocupado, pouco a pouco, diversas localidades onde tem feito reinar um regime de terror em nome da ordem islâmica, em tudo semelhante às acções de rua dos SA e SS na Alemanha Nazi, só que em vez de destruírem as lojas dos judeus, destroem lojas cujos produtos não estejam em sintonia com as prescrições mais medievas do fundamentalismo islâmico.
A aliança com os líderes espirituais da comunidade xiita tem portanto limites. Os americanos não podem correr o risco de verem surgir no Iraque um regime idêntico ao iraniano e aliado deste. Depois de terem armado Saddam para neutralizar o fundamentalismo iraniano e de verem Saddam tornar-se, de amigo, em inimigo, embora tivesse continuado a ser um contrapeso ao fundamentalismo xiita iraniano, seria o pior dos pesadelos para a administração Bush tornar o Iraque, para além de inimigo dos EUA, aliado do Irão.
Neste entendimento, as autoridades americanas resolveram enveredar por uma reacção musculada: o fecho do jornal de Moqtada Al-Sadr e a prisão de um seu adjunto, Mustafá Yaqubi, acusado de um homicídio de um dignitário xiita moderado, ocorrido há muitos meses. Essas acções levaram à insurreição da facção xiita radical de Moqtada Al-Sadr.
Em simultâneo, numa aparente retaliação face às cenas de selvajaria ocorridas em Fallujah dias atrás, em que 4 civis americanos, funcionários de uma empresa de segurança, foram massacrados, os seus restos incinerados, mutilados, arrastados pelo chão e pendurados para gáudio de uma populaça entusiástica, as forças americanas cercaram Fallujah e têm avançado metodicamente apesar da resistência tenaz. Mesmo durante os períodos de tréguas, os americanos apenas deixam sair da cidade mulheres, crianças e homens em «idade não militar». As forças americanas afirmam que tentam capturar os assassinos dos 4 americanos, porém, o que tudo indica, é que os americanos resolveram responder à barbárie medieval com o método medieval da punição colectiva de um bastião rebelde, como desforra das sucessivas emboscadas que têm sofrido em Fallujah e que culminaram na selvajaria de 31 de Março. A forma lenta como o cilindro militar americano rolou sobre Fallujah indicia que procurava maximizar o número de baixas entre os habitantes em «idade militar».
Estas duas acções musculadas podem alterar radicalmente o anterior enquadramento social e político iraquiano.
Os líderes moderados xiitas, Ali Sistani e o Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque (CSRII), não podem condenar, pelo menos publicamente, a insurreição de Al-Sadr. E ainda menos aprovar a contra-insurreição desencadeada pelas forças americanas. Fazê-lo poderia minar a actual posição de Ali Sistani de líder espiritual da comunidade xiita. Quer se concorde, quer se discorde, não é de boa política apoiar o ocupante estrangeiro contra facções nacionais. Por outro lado não é líquido que não seja do interesse de Ali Sistani esta prova de força contra o ocupante americano, por interposta facção. Ali Sistani poderia recolher alguns dividendos e surgir, perante os americanos, como elemento moderador e imprescindível e fazer vingar as suas teses de uma constituição «mais islâmica».
Enquanto isso os líderes moderados xiitas vão acusando os americanos de terem provocado a insurreição pela sua falta de tacto político. Os líderes xiitas estão assim a posicionar-se para os cenários emergentes da insurreição de Al-Sadr. Se os americanos reprimirem a insurreição e capturarem Al-Sadr, os líderes xiitas moderados ficam sem o labéu de colaboração com o ocupante, livram-se de um líder extremista e ficarão aos olhos dos americanos como interlocutores indispensáveis que merecem colher dividendos políticos.
Se convencerem os americanos a porem fim à sua tentativa de capturar Al-Sadr, consolidam a sua imagem entre a comunidade xiita e os iraquianos em geral e tornam-se igualmente indispensáveis para os americanos para servirem de dique às investidas dos testas de ferro da teocracia iraniana que pretende destabilizar a sociedade iraquiana de modo a não permitir a instauração de um regime tolerante e minimamente democrático.
No entretanto o afluxo de peregrinos a Kerbala para as comemorações do Arbain, festividade xiita, levou a uma trégua e ao início de negociações com Al-Sadr mediadas pelos líderes xiitas. Os americanos "reclamam a dissolução da milícia do Mahdi, o respeito pelos instituições de Estado e as leis, a retirada dos edifícios públicos e o regresso à ordem pública". Em troca, Sadr terá reclamado "a retirada das forças que se preparam para atacar Najaf, garantias sobre a anulação do mandato de captura". Se as negociações chegarem a bom termo, estaremos no segundo cenário descrito acima e será uma vitória para o CSRII. Aliás, como se escreveu acima, o desfecho desta crise será sempre, em maior ou menor grau, uma vitória para o CSRII.
Por sua vez o violento ataque a Fallujah, e as baixas iraquianas que está a causar, tem levado a uma certa aproximação entre sunitas e alguns líderes xiitas. Essa aproximação feita em nome da luta contra um inimigo comum, poderá complicar a situação das forças da coligação no Iraque que, presentemente, apenas contam com um aliado fiel: a minoria curda.
A coligação está desde o início do pós-guerra perante um dilema flagelada por grupos minoritários, mas muito activos, se responde de forma violenta aliena as simpatias da massa da população, se responde de forma tíbia corre o risco de dar uma ideia de fragilidade e fortalecer a imagem desses grupos. Foi isso que aconteceu nas duas situações: em Fallujah ripostou com grande violência e de forma desproporcionada; no que respeita às milícias xiitas radicais deixou que elas crescessem e se armassem, tudo indica que com um forte apoio iraniano. Em ambos os casos faltou tacto político e sentido da oportunidade.
A força militar serve para ganhar a guerra, mas a paz tem que ser ganha pela sabedoria política. A primeira existe, mas tem havido escassez da segunda. Provavelmente porque se pensa que quem tem a força tem tudo.
Quanto a Bush, o facto de não se terem encontrado armas de destruição em massa, a não pacificação do Iraque e o não estabelecimento de uma clara estratégia política para o Iraque lançam dúvidas sobre a competência da sua administração. Se falhar o plano de transferência de soberania a 30 de Junho, quer pelo seu adiamento, quer pela eventual ocorrência do caos generalizado se o plano se mantiver, dificilmente Bush será reeleito.
A polémica sobre o recente livro de Saramago, e as suas declarações públicas, levantou a questão do valor e da legitimidade da democracia representativa. Não vou abordar aqui as raízes totalitárias em que normalmente se filiam as dúvidas que se levantam sobre esse valor e essa legitimidade. E não vou abordar porque considero redutor reduzir essas dúvidas a uma perversão totalitária. Essa perversão pode existir em quem questiona essa legitimidade, existe certamente nas consequências que a ilegitimação da democracia representativa normalmente acarreta, mas não existirá na generalidade das pessoas que possam aderir a esse conceito.
Há uma crise no nosso sistema político. As expectativas criadas pelo estabelecimento do modelo social europeu, e os seus desenvolvimentos subsequentes, estão a ser postergadas pela evolução de um conjunto de variáveis declínio demográfico, emergência dos «Novos Países Industrializados», etc. e pela incapacidade da classe política de adoptar uma estratégia capaz, coerente e constante, e conseguir explicá-la e obter a adesão das populações. Esta crise não tem directamente a ver com a Direita, o Centro ou a Esquerda. Existe em França, com um governo de direita e existe na Alemanha com um governo de esquerda.
Os governos da maioria dos estados europeus não conseguem gerir satisfatoriamente as respectivas economias, não conseguem reformar, de forma satisfatória e sustentada, o Estado Social, e não conseguem compaginar as necessidades de um e de outro e, perante o desconforto que sentem pela dificuldade das medidas, protelam-nas, titubeiam, tomam meias medidas incoerentes e causam danos a ambos sem resolverem os respectivos problemas.
Rosas assegura que a Europa está em crise, uma crise drasticamente agravada pela lógica essencial da globalização capitalista. Esta afirmação, aplicada à Europa, é um perfeito disparate. Quanto mais uma economia é desenvolvida, mais globalização lhe é benéfica. O mercado aproveita aos mais aptos. Por isso, os países mais avançados na lógica do mercado criaram, para a sua população, mecanismos de transferências sociais e instrumentos reguladores para compensarem as assimetrias introduzidas pelo funcionamento do mercado. Como no mercado internacional esses mecanismos não existem, são incipientes ou pontuais, os países mais pobres podem ver a sua balança de trocas com o exterior degradada e empobrecerem ainda mais. Mas a Europa (como um todo) não.
Outra tese do radicalismo de esquerda é a da existência de uma alegada «tensão autoritária e centralista contraditória com a democracia política e que está, paulatinamente, a esvaziá-la de conteúdo, a transformá-la numa burocracia ritualizada, cada vez mais distante dos cidadãos e com menos poder real, que pretende a destruição de mais de um século de conquistas sociais do mundo do trabalho». Essa «tensão autoritária» seria a tentativa dos governos democraticamente eleitos (de esquerda ou de direita) conseguirem reformular o modelo social de forma a adequá-lo às novas situações.
Porém, nunca como hoje, nas nossas sociedades, os cidadãos tiveram tantas possibilidades de participarem na vida pública. A difusão dos meios de comunicação aumenta incessantemente, as pessoas exprimem as suas opiniões em cada vez mais diversificados meios públicos (por exemplo, na net, fóruns, blogs, etc.). Basta ver como as manifestações em Espanha, na noite da véspera eleitoral foram convocadas pela net e telemóveis. Portanto, nunca, como hoje, o autoritarismo teve tão poucas possibilidades de se exercer. E os resultados das eleições espanholas são disso o exemplo mais recente e flagrante.
O problema do Rosas, Saramago, e de outros radicais de esquerda é que, nas urnas, as pessoas, maioritariamente, não têm escolhas idênticas às suas e que os governos não mudam de opinião ao acaso das manifestações de rua. São essas as «tensões autoritárias».
Portanto, a crise do nosso sistema político não tem a ver com «tensões autoritárias», nem com a globalização, nem com uma alegada conspiração para destruir as «conquistas sociais do mundo do trabalho». Tem a ver com a previsível falência do nosso modelo social (ou de toda a economia) que os políticos, quando na oposição, pretendem afincadamente defender, para angariarem votos, e, quando no governo, tentam desesperadamente reformar para evitar a bancarrota.
E tem a ver, e muito, com a falta de líderes capazes de mobilizarem as pessoas para essas reformas. É fácil, e dá dividendos políticos no imediato, distribuir dinheiro. É difícil, face a uma situação complicada e a previsões que apontam para a bancarrota, dizer as verdades, congeminar medidas eficazes e adequadas, e saber obter a adesão das pessoas .
Francamente não estou a ver, na Europa actual, um líder político, no dia do voto de confiança na sede da representação nacional, declarar «Não tenho nada para vos oferecer senão sangue, trabalho insano, lágrimas e suor» ("I have nothing to offer but blood, toil, tears and sweat."). Infelizmente também não vejo qualquer motivação quer da restante classe política, quer da população em geral em dar esse voto de confiança sem reservas mentais.
Também não estou a ver qualquer saída para a crise política actual. Esperemos que ela não surja apenas em desespero de causa, com custos muito superiores ao de soluções planeadas com tempo e discernimento.
Não há crise da democracia. Há uma crise da Europa que chegou ao fim de um ciclo e não atina com um novo modelo para encetar um novo ciclo. A Europa tornou-se numa «tia» de meia idade, ainda próspera, mas avessa a qualquer risco, e que vai deixando as suas economias serem corroídas pela inacção, por essa aversão ao risco.
O Ensaio sobre a Lucidez e a campanha que Saramago desencadeou por todo o país, desdobrando-se em entrevistas, palestras, colóquios, vernissages, etc., de apelo ao voto em branco, corresponde às suas convicções políticas e ideológicas mais viscerais e de longa data, e vem na linha do Ensaio sobre a Cegueira e da desilusão de Saramago por uma evolução política e social que ele é incapaz ou se recusa a compreender. Saramago e estes dois escritos são paradigma do desespero de uma esquerda caduca e sem norte, incapaz de se constituir como alternativa política, social e económica minimamente mobilizadora.
Saramago tem saudades do antigo regime onde tudo era simples. De um lado estavam os «bons», os que combatiam o regime; do outro lado estavam os «maus», os que apoiavam o regime ou, pelo menos, que conviviam com ele ou não o punham em causa. E essa classificação era independente de poder haver, entre os «bons», gente de ética duvidosa, e entre os «maus» gente com valor e préstimo.
E tem igualmente saudades do PREC, que se seguiu à queda do regime, onde essa dicotomia era a mesma, exceptuando o facto de que muitos dos combatentes do regime anterior, dos antigos «bons», terem entretanto enfileirado na hoste dos «maus». Os jornalistas que Saramago saneou politicamente enquanto Director do DN também pertenciam aos «maus», segundo a taxinomia da época.
A democracia representativa não é perfeita, mas se existe défice de democracia ele deve ser superado justamente através do combate à renúncia, à capitulação, ao deixar andar, à desistência, ao voto branco ou nulo e à abstenção. Consegue-se através da participação activa nas eleições e, igualmente, na vida pública e quotidiana. Não se combate apelando à desistência.
Mas a hipocrisia desta contestação da democracia representativa por Saramago está no próprio acto do lançamento do livro. Não foram literatos, críticos da literatura, ou vultos proeminentes da intelectualidade que foram os patrocinadores, mas sim figuras emblemáticas da democracia representativa Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares juntamente com um intelectual comunista, professor e autor do «Joana Come a Papa», por acaso responsável por alguns dos mais atormentados momentos da minha infância.
Saramago contesta a democracia representativa, mas serve-se dos seus corifeus, da liberdade que ela representa e do funcionamento do mercado de bens culturais de que ela é o suporte, para publicitar a sua obra e angariar clientela.
Perante estes factos é importante que tenhamos na lembrança é que os regimes totalitários, de direita ou de esquerda, que a Europa produziu durante o século XX, foram sempre gerados pelo clima de suspeição ou pela menorização da democracia representativa. E o que é mais perverso é que essa contestação usou a liberdade e a possibilidade de crítica que é a própria essência do regime democrático e que mais que uma vez lhe foi fatal.
Saramago e outros atacam a democracia representativa, apesar da liberdade e da prosperidade que esta lhes proporciona, porque ela é um estorvo para que as suas convicções se tornem na ideologia preponderante no país, independentemente do que pensem os outros. A liberdade para eles é um meio para veicularem as suas concepções, mas é um estorvo, porque não obriga a que essas concepções se tornem a ideologia reinante.
Para Saramago e outros, absolutamente convencidos que o que pensam é o que está certo e que só a cegueira ou a falta de lucidez impede a restante população de partilhar dessas convicções, a democracia representativa é uma permanente fonte de decepções.
Quem acredita na democracia representativa luta pelas suas convicções na esperança de que estas tenham acolhimento ou, se constata que essas convicções não são compagináveis com a consciência possível da sociedade, luta por um projecto que contenha aquilo que, dessas convicções, é passível de ser aceite pela sociedade em que vive. Quem não acredita na democracia representativa não põe em questão a adequabilidade das suas convicções à sociedade em que vive; põe sim em questão o discernimento dos eleitores em não perceberam que são aquelas que estão certas e, como consequência, põe em questão a validade da democracia representativa em exprimir a vontade dos eleitores. A democracia está errada porque permite aos eleitores errarem sistematicamente, e o critério do erro é o dos iluminados descrentes do julgamento do voto popular.
Queria deduzir uma última observação sobre a dualidade de critérios: se as teses do Saramago fossem expostas por um intelectual de direita o que não seria! Certamente ao lançamento do seu livro não iriam Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares e o autor do «Joana Come a Papa». Provavelmente nem o M Monteiro ousaria aparecer. Em vez de apreciações na sua maioria contrárias, mas benevolentes, seria o olvido ou, se este não fosse possível, o apelo à união contra o fascismo, que estava à espreita, já ali, ao virar da esquina.
O fascista Brasillach foi executado pelas suas convicções que o levaram a colaborar com Vichy. O facto de ser um escritor de mérito incontestado não lhe serviu de atenuante perante a justiça de uma França que queria ajustar contas com a sua derrocada. Muitos pedidos de clemência, nomeadamente o de Mauriac, que foi um dos que mais tinha sofrido com a pena acerada de Brasillach, foram em vão. Não me consta que intelectuais comunistas, que colaboraram com regimes totalitários, fossem executados por causa disso, excepto pelos próprios regimes, quando se afastavam alguns milímetros da ortodoxia.
Ou como Jorge Ritto foi colocado sob vigilância popular
A luta contra o défice orçamental está a ter contornos inovadores. Já que o governo tem lutado contra o défice mais com o coração do que com a cabeça, outros órgãos de soberania começaram, eles próprios, a agir nesta matéria com mais objectividade e determinação.
O Tribunal da Relação apreciando uma recurso da defesa de Ritto ordenou a sua libertação apesar de reconhecer que « pela própria natureza das coisas, o perigo de continuação da actividade criminosa existe». E isto porque ocorre «a circunstância de sendo ele agora, por motivos óbvios, um alvo apetecível da observação e censura públicas, aqui se incluindo os media, é razoável admitir que tal facto lhe imponha alguma contenção quando e se for tentado a reincidir em actos semelhantes aos aqui indiciados».
Portanto o Estado deixou de tomar a seu cargo a custódia de Jorge Ritto e de arcar com os respectivos custos: alimentação, água, electricidade, gás, dormitório, instalações sanitárias, pessoal adstrito à sua custódia, etc.. E isto porque o Tribunal da Relação, apesar de concordar na perigosidade do ex-detido, considerou esse custo supérfluo e ordenou que Ritto fosse entregue à vigilância popular e à custódia dos mídia.
E o que este acórdão tem de extremamente inovador é o Tribunal da Relação reconhecer que os mídia estão perfeitamente aptos a executarem esta tarefa. Este reconhecimento abre um horizonte de oportunidades, cujas potencialidades ainda só muito remotamente se começam a esquissar.
Não estará longe o dia em que o noticiário nobre da TVI abrirá com Manuela Moura Guedes a anunciar que o conhecido e perigoso traficante X foi capturado após movimentada perseguição, constituído arguido e que o juiz de instrução lhe havia imposto como medida de coacção o termo de identidade e residência sob a vigilância dela mesmo, Manuela Moura Guedes. Entretanto os defensores haviam apresentado um imediato recurso, alegando o excessivo rigor da medida e pedindo que ela fosse comutada em prisão preventiva.
Finalmente começam a aparecer medidas imaginativas de contenção da despesa pública.
As eleições francesas, como as eleições parciais que tem havido na Alemanha, deveriam constituir matéria de reflexão para a actual coligação no poder em Portugal. E igualmente as eleições espanholas, embora o seu enquadramento tenha sido diferente e houvesse factores exógenos que não terão sido despiciendos nas escolhas do eleitorado.
O modelo social europeu está em crise. Mesmo nos países em que a administração pública tem um nível apreciável de eficiência, esse sistema social está financeiramente em falência.
Há diversas razões para que tal aconteça e não me vou alongar sobre cada uma delas, visto constituírem matéria para uma debate bastante extenso. Sumariamente dir-se-á que o modelo foi criado numa época em que a pirâmide etária e a relação entre a população activa e a reformada permitia que as contribuições da primeira subsidiassem as reformas da segunda mais as prestações relativas à maternidade e à educação dos jovens, isto para além de outras transferências sociais vultuosas: saúde, defesa, justiça, etc..
Nas últimas décadas tem havido uma modificação progressiva das proporções entre os diversos segmentos etários e as previsões indicam que a situação se continuará a agravar: cada vez a percentagem dos contribuintes será menor no contexto da população total. Por outro lado, não é possível aumentar as contribuições de quem trabalha, e das empresas, mais que um certo limiar, pois o Estado-Providência já obriga a uma fiscalidade elevada.
Ora sucede que cada vez mais a Europa concorre com os «tigres» asiáticos, com encargos sociais muito reduzidos ou nulos e com baixo nível de fiscalidade. A própria juventude dessa população ajuda a baixar esses níveis de transferências sociais, já de si reduzidos. Concorrendo com empresas com custos muito menores, as empresas europeias perdem competitividade
Como é possível lutar contra essa situação? Uma das formas é aumentar a produtividade. E, neste caso, esse aumento terá que passar por produzir bens ou serviços com elevado valor acrescentado e cuja concorrência se faça mais pela qualidade do que pelo preço. A Europa tem que apostar na inovação tecnológica e na diferenciação dos bens e serviços.
Mas esse eixo de luta não é suficiente, pelo menos a curto prazo. Passa pela iniciativa privada, por incentivos do Estado para a motivar e pela melhoria do sistema educativo, nomeadamente o ensino profissional e a investigação. Os seus resultados, admitindo que essa política seja conduzida de forma eficiente, só se irá traduzir em resultados palpáveis a médio e a longo prazo.
O outro eixo de luta é a reforma do Estado-Providência. Em primeiro lugar torná-lo mais eficiente. Durante anos curou-se de debater a justiça da gratuitidade da prestação de serviços públicos, descuidando quer a eficiência desses serviços - a sua relação qualidade-preço quer o facto de que eles são na realidade pagos através das nossas contribuições, quer ainda a sua insuficiência em matérias como a pobreza e exclusão social.
Tomemos o caso da Educação. As despesas públicas em educação em Portugal (5,7% do PIB) superam a média europeia (5%) e estão muito próximas, por exemplo, da Finlândia (6%), um dos países com melhores níveis de desempenho em todos os indicadores. Mas quando se fala na política de educação e da necessidade de melhorar os seus resultados, quer relativamente a este governo, quer a outro qualquer, é mais dinheiro que se exige. E, todavia, Portugal consegue ser o país que mais gasta com a educação e pior desempenho tem neste domínio.
E o mesmo sucede noutras áreas da administração pública, nomeadamente na saúde, talvez o maior sorvedouro do dinheiro que nós, contribuintes, entregamos ao Estado. Também aqui o dinheiro que se gasta não tem qualquer comparação com a qualidade do serviço que é retribuído aos utentes. E quando se propõe qualquer reforma no intuito de tornar o seu desempenho mais eficiente aparece, demagogicamente, o fantasma do «serviço público», como se serviço público fosse sinónimo de gastar sem peso, conta e medida.
Outra reforma que dificilmente deixará de ter que se fazer, a menos que o declínio demográfico se inverta e a imigração supra algumas das carências, é a do prolongamento do período de vida útil. Na Europa central este assunto está na ordem do dia e tem sido objecto de protestos maciços. Em Portugal, onde a situação demográfica não é tão grave (embora a maior ineficiência da máquina estatal a torne financeiramente quase tão grave) tem-se ensaiado timidamente alguns passos.
Portanto, a questão da reforma da administração pública é urgente e inadiável. Aqui, porém, entramos num domínio difícil, que os políticos e os sindicatos têm preferido ignorar, mesmo quando - ou até sobretudo quando a discutem.
A deterioração da imagem do serviço público, ligada à lentidão e à ineficiência exige que a reforma do Estado se centre em três pontos fulcrais: a busca permanente do aumento de eficiência da máquina pública, por intermédio da racionalização e do incremento da produtividade; a melhoria continuada da qualidade na prestação dos serviços públicos, visando atender aos requisitos da sociedade no que diz respeito à satisfação das suas necessidades sociais básicas e o resgate do serviço público como instrumento de expressão da cidadania e fórum de aprendizado social.
Todavia tem que se ter em conta que a obrigação de obter resultados eficientes na modernização do sector público necessita que os responsáveis pelas diversas unidades deste sector se tornem protagonistas relevantes dessa mudança. Ora a burocracia estatal e autárquica estabelece uma relação de interdependência com os demais grupos da sociedade. Essa interdependência é frequentemente caracterizada como clientelismo. Mas o desenvolvimento dessas relações é contraditório e conflituoso, pois o poder não se exerce de forma monolítica, apresentando clivagens que consolidam diferentes interesses, embora sejam sempre apresentados como interesse público.
Portanto, a modernização do aparelho do Estado deve contemplar a mudança no entendimento do significado do interesse público que não pode ser confundido com o interesse do próprio Estado, ou dos interesses corporativos dos grupos no interior desse aparelho.
Torna-se então claramente perceptível o estreito vínculo que existe entre o processo de modernização do aparelho do Estado e uma gestão inovadora dos recursos humanos desse mesmo Estado. A mudança da cultura burocrática é o fulcro da transformação, e a questão da qualificação profissional ganha então um novo significado. A valorização do funcionário representa a base do processo de construção colectiva do novo paradigma orientado para o cidadão e realizado pelo conjunto do funcionalismo de forma participativa. Isto não significa, necessariamente, mudar sistemas, organizações e legislação, mas sim criar as condições objectivas de desenvolvimento das pessoas que conduzirão e realizarão as reformas.
Para tanto, necessita-se requalificar a força de trabalho. É preciso que a nova estrutura se apoie no conhecimento humano. Assim, os trabalhadores devem ser capazes de mudar o seu enfoque de uma tarefa para outra de acordo com as prioridades e com as mudanças impostas exogenamente. Precisam habituar-se à mobilidade laboral, quer ao nível das tarefas, quer ao nível do local. Por isso, um dos aspectos mais importantes para o alcance de um bom nível de eficiência, é a questão da qualificação dos membros da organização. Essa qualificação permite que as pessoas enfrentem, de forma menos traumática, os desafios profissionais.
Cabe ainda salientar que esse processo de mudança não deve ser visto como a busca por um modelo definitivo, mas a procura de uma forma de estrutura organizacional menos rígida, mais ágil, constantemente adaptável a modificações contínuas.
Portanto, a reforma do aparelho do Estado passa pela adesão dos funcionários a essa reforma e por eles sentirem a sua necessidade em face dos anseios da sociedade civil. Não pode ser posta como uma política contra eles, mas sim com eles.
É óbvio que numa reforma da administração pública haverá gente que terá que ser reafectada a outras tarefas e, eventualmente, dispensada. Mas este último caso será a excepção. Uma organização deve reestruturar-se e reorganizar-se com as pessoas que tem. Criar uma organização com seres ideais entra no domínio da ficção. Deve gerir-se o material humano que se dispõe e não seres ideais, perfeitos e inexistentes.
Nada disto está a ser feito ou sequer planeado, ao que julgo saber, em Portugal. O Governo, em face da situação lamentável que encontrou, está apenas a atacar alguns sintomas. A administração é dispendiosa? Congelam-se os vencimentos e as admissões. E fazem-se declarações ad terrorem que servem para lançar o pânico no funcionalismo público, mas não têm qualquer efeito positivo. Pelo contrário, declarações desse tipo têm normalmente como consequência uma diminuição de produtividade.
E têm outra consequência: o governo não reforma a administração pública, não implementa medidas que, em alguns segmentos, seriam impopulares, mas fica com o ónus de algo que não fez, mas apenas ameaçou. O governo continua a não conseguir controlar a despesa pública, mas fica com o ónus do congelamento salarial. Este governo pode muito bem vir a ter uma punição idêntica ao governo de Raffarin, em França. E se a tiver terá que se culpar, em primeiro lugar, a si próprio.
Poderá alegar que a oposição tem sido demagógica. Mas essa é, frequentemente, a política da oposição. Por isso é que o governo deveria ter agido com competência e determinação, reformando e explicando a necessidade e o alcance das reformas.
É claro que as reformas terão que ser feitas e quanto mais tarde o forem, mais custosas serão e mais sacrifícios exigirão. E têm que ser feitas porque ao estarmos no sistema monetário europeu temos que cumprir, obrigatoriamente certas regras. Não podemos usar a política monetária e a desvalorização cambial para diminuir a despesa real, como acontecia antigamente.
Se não for este governo que as faça, o próximo será obrigado a fazê-las. Se o não conseguir, será o que lhe suceder. Entretanto o país estagnará economicamente e chegará a um limiar em que o eleitorado deixará de se iludir com promessas de vida fácil e resignar-se-á à inevitabilidade das reformas.
Teve que ser. Durante mais de seis meses recusei insistentes convites para figurar no elenco governamental. Recorri a todos os pretextos possíveis: a idade, as obrigações familiares, os vencimentos ministeriais de miséria, a manutenção deste blog, etc., etc...
Ganhei algum tempo ... mas já não é possível dizer que não. Os resultados sucessivos das eleições espanholas e francesas tornaram a situação insustentável. Não podia continuar a recusar. Era o país que o exigia!
Vou ter que abdicar de várias coisas (este blog entre elas) e contentar-me com um vencimento miserável, a exemplo do desgraçado do Bagão Félix cujo vencimento actual é menos de 25% do que tinha antes de ter aceitado ingressar no governo. Lá terei que me sacrificar pela coisa pública. Felizmente o meu motorista passa a encarregar-se de levar e trazer os miúdos ao colégio e jardim-escola, o que sempre é um alívio.
Assim este blog vai fechar, a menos que contrate uma assessora para fazer a sua manutenção. Mas isso depende da dotação orçamental. O futuro o dirá.