O Ensaio sobre a Lucidez e a campanha que Saramago desencadeou por todo o país, desdobrando-se em entrevistas, palestras, colóquios, vernissages, etc., de apelo ao voto em branco, corresponde às suas convicções políticas e ideológicas mais viscerais e de longa data, e vem na linha do Ensaio sobre a Cegueira e da desilusão de Saramago por uma evolução política e social que ele é incapaz ou se recusa a compreender. Saramago e estes dois escritos são paradigma do desespero de uma esquerda caduca e sem norte, incapaz de se constituir como alternativa política, social e económica minimamente mobilizadora.
Saramago tem saudades do antigo regime onde tudo era simples. De um lado estavam os «bons», os que combatiam o regime; do outro lado estavam os «maus», os que apoiavam o regime ou, pelo menos, que conviviam com ele ou não o punham em causa. E essa classificação era independente de poder haver, entre os «bons», gente de ética duvidosa, e entre os «maus» gente com valor e préstimo.
E tem igualmente saudades do PREC, que se seguiu à queda do regime, onde essa dicotomia era a mesma, exceptuando o facto de que muitos dos combatentes do regime anterior, dos antigos «bons», terem entretanto enfileirado na hoste dos «maus». Os jornalistas que Saramago saneou politicamente enquanto Director do DN também pertenciam aos «maus», segundo a taxinomia da época.
A democracia representativa não é perfeita, mas se existe défice de democracia ele deve ser superado justamente através do combate à renúncia, à capitulação, ao deixar andar, à desistência, ao voto branco ou nulo e à abstenção. Consegue-se através da participação activa nas eleições e, igualmente, na vida pública e quotidiana. Não se combate apelando à desistência.
Mas a hipocrisia desta contestação da democracia representativa por Saramago está no próprio acto do lançamento do livro. Não foram literatos, críticos da literatura, ou vultos proeminentes da intelectualidade que foram os patrocinadores, mas sim figuras emblemáticas da democracia representativa Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares juntamente com um intelectual comunista, professor e autor do «Joana Come a Papa», por acaso responsável por alguns dos mais atormentados momentos da minha infância.
Saramago contesta a democracia representativa, mas serve-se dos seus corifeus, da liberdade que ela representa e do funcionamento do mercado de bens culturais de que ela é o suporte, para publicitar a sua obra e angariar clientela.
Perante estes factos é importante que tenhamos na lembrança é que os regimes totalitários, de direita ou de esquerda, que a Europa produziu durante o século XX, foram sempre gerados pelo clima de suspeição ou pela menorização da democracia representativa. E o que é mais perverso é que essa contestação usou a liberdade e a possibilidade de crítica que é a própria essência do regime democrático e que mais que uma vez lhe foi fatal.
Saramago e outros atacam a democracia representativa, apesar da liberdade e da prosperidade que esta lhes proporciona, porque ela é um estorvo para que as suas convicções se tornem na ideologia preponderante no país, independentemente do que pensem os outros. A liberdade para eles é um meio para veicularem as suas concepções, mas é um estorvo, porque não obriga a que essas concepções se tornem a ideologia reinante.
Para Saramago e outros, absolutamente convencidos que o que pensam é o que está certo e que só a cegueira ou a falta de lucidez impede a restante população de partilhar dessas convicções, a democracia representativa é uma permanente fonte de decepções.
Quem acredita na democracia representativa luta pelas suas convicções na esperança de que estas tenham acolhimento ou, se constata que essas convicções não são compagináveis com a consciência possível da sociedade, luta por um projecto que contenha aquilo que, dessas convicções, é passível de ser aceite pela sociedade em que vive. Quem não acredita na democracia representativa não põe em questão a adequabilidade das suas convicções à sociedade em que vive; põe sim em questão o discernimento dos eleitores em não perceberam que são aquelas que estão certas e, como consequência, põe em questão a validade da democracia representativa em exprimir a vontade dos eleitores. A democracia está errada porque permite aos eleitores errarem sistematicamente, e o critério do erro é o dos iluminados descrentes do julgamento do voto popular.
Queria deduzir uma última observação sobre a dualidade de critérios: se as teses do Saramago fossem expostas por um intelectual de direita o que não seria! Certamente ao lançamento do seu livro não iriam Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Soares e o autor do «Joana Come a Papa». Provavelmente nem o M Monteiro ousaria aparecer. Em vez de apreciações na sua maioria contrárias, mas benevolentes, seria o olvido ou, se este não fosse possível, o apelo à união contra o fascismo, que estava à espreita, já ali, ao virar da esquina.
O fascista Brasillach foi executado pelas suas convicções que o levaram a colaborar com Vichy. O facto de ser um escritor de mérito incontestado não lhe serviu de atenuante perante a justiça de uma França que queria ajustar contas com a sua derrocada. Muitos pedidos de clemência, nomeadamente o de Mauriac, que foi um dos que mais tinha sofrido com a pena acerada de Brasillach, foram em vão. Não me consta que intelectuais comunistas, que colaboraram com regimes totalitários, fossem executados por causa disso, excepto pelos próprios regimes, quando se afastavam alguns milímetros da ortodoxia.
Parabéns pela excelente compilação da inúmeras opiniões veiculadas recentemente nos media impressos, ou não, da república.Pena é que não tenha sido possível, pelo menos para mim, perceber qual a sua...
Afixado por: pepe em abril 6, 2004 09:40 PM
Joana ,
Vc já não consegue surpreender ninguém ...
está cada vez mais parecida com os jornalistas - de opinião - do Expresso : são uma "canseira que cansa corpos" !
Gostei da análise. Como já houve muita faladura sobre este assunto é natural que haja coisas que já tenham sido ventiladas, mas não me parece, muito longe disso, uma compilação como escreve o Pepe.
É sempre os mesmos alvos. O Saramago é um grande escritor q também é comunista.
É isso que causa inveja
zippiz - há difernças: os do Expresso são vários, escrevem menos e são mais monótonos.
Além do que esta gaja não deve receber por estas drogas, enquanto os do Expresso devem sacar o dele e não deve ser pouco.
O resto é a mesma droga.
Joana
Não concordo quando dizes que votar em branco é desistir. Que para tentar mudar o que não nos agrada tenhamos de votar em algum partido. Desistir é não votar, é abster-se. Quando entre as várias possibilidades de voto todas nos desagradam profundamente acho que o mais correcto não é escolher o menos mau mas sim votar em branco.
Afixado por: Filipe em abril 7, 2004 08:41 AMConcordo com o Filipe que o voto em branco tem um significado diferente da abstenção. Um eleitor se não se revê em nenhum partido, não é obrigado a votar num deles. E é preferível comparecer que abster-se.
Isso não invalida que a tese do Saramago tenha a ver com a sua não aceitação da democracia representativa pelo facto de não dar os resultados que ele gostaria
Saramago um grande escritor? Porquê? O que é que ele escreve? Aproveita-se alguma coisa de útil?
Eu nunca li nem vou ler. E não vou ler porque não gosto. Não preciso de ler para saber que não gosto. E esta, hein?
Morder a mão que nos dá o pão é uma atitude abominável.
Mas é o que fazem aqueles que vivem felizes e protegidos no seio de uma sociedade e passam a vida a criticá-la. Que moral é esta?
Parabéns a Joana por ter posto o dedo na ferida sem "papas" na língua. De hipócritas e hipocrisias estamos fartos.
Afixado por: Senaqueribe em abril 7, 2004 10:42 AMJoana escreveu:
"Saramago tem saudades do antigo regime onde tudo era simples. De um lado estavam os «bons», os que combatiam o regime; do outro lado estavam os «maus», os que apoiavam o regime..."
Não vivi nesse tempo mas tenho a certeza de que a opinião pública não se regia pelos valores acima expressos. Os maus associados ao regime e os bons à oposição...muito pelo contrário...um erro histórico grave...o valor dos opositores ao regime residia nisso mesmo em serem uma minoria a remar contra a maré...É o mesmo que dizer à posteriori que os índios eram os bons, que os escravos e aqueles que se oponham à escravatura eram os bons, que os negros que lutaram contra o racismo nos EUA (1950-70) ou na África do Sul eram os bons...erro de análise histórica muito grave!!!!!
Afixado por: amsf em abril 7, 2004 12:26 PM"...e vem na linha do Ensaio sobre a Cegueira e da desilusão de Saramago por uma evolução política e social que ele é incapaz ou se recusa a compreender."
1- A cara Joana não leu o Ensaio sobre a Cegueira ou, se o leu, fê-lo à maneira de Marcelo.
2- Se o tivesse lido com olhos de ler não diria que vinha na linha de mas sim que o Ensaio sobre a Lucidez ( que ainda não li na totalidade)é o corolário lógico e a atitude mais sensata por parte de quem ainda não perdeu a consciência da dignidade do homem enquanto individuo e colectividade sem sair dos processos que fazem e definem a essência da democracia: a expressão de vontade livre mesmo que essa vontade seja uma não escolha.
3-( também não leu A Caverna)
4- A sociedade amarrada n'A Caverna merece o nosso voto contra, o nosso voto em branco.
5- era isto que eu queria dizer.
6-o Saramago di-lo muito melhor!
7-leiam-no!
Afixado por: dionisius em abril 7, 2004 01:53 PMSenaqueribe, ainda bem que temos o blog dos assírios para ponto de encontro
Afixado por: Tiglat Pilaser em abril 7, 2004 02:39 PMJá agora, ó Dionisius, eu li o Ensaio sobre a Cegueira, e não sei se for por o ter lido à maneira de Marcelo ou do Jaquim, mas o que eu achei é que aquilo é uma visão absolutamente catastrófica da sociedade.
Afixado por: Tiglat Pilaser em abril 7, 2004 02:42 PMJoana, obviamente, não leu (ou, se leu, não percebeu) «L´Être et le Néant».
«Posso escolher não escolher» é o voto em branco de Saramago avant la lettre.
Isto tá cheio de assírios e filósofos
Afixado por: Sargão em abril 7, 2004 07:46 PMamsf em abril 7, 2004 12:26 PM
Escreveu: «Não vivi nesse tempo mas tenho a certeza de que a opinião pública não se regia pelos valores acima expressos».
Eu também não vivi nesse tempo, mas você não deve ter lido com atenção o meu texto. Eu não referi a «opinião pública», referi-me a Saramago e a alguns outros saudosistas do tempo em que as coisas «lhes» pareciam simples e dicotómicas
dionisius em abril 7, 2004 01:53 PM
Você diz: «Se o tivesse lido com olhos de ler não diria que vinha na linha de mas sim que o Ensaio sobre a Lucidez ( que ainda não li na totalidade)é o corolário lógico... »
Mas foi isso que eu disse. A questão é que você concorda com as opiniões de Saramago nesses 2 livros (o 2º só o conheço dos comentários de Saramago e de terceiros) e eu não
dionisius em abril 7, 2004 01:53 PM
O que folheei da Caverna deu para entender que Saramago não compreende o mundo moderno, não o aceita (ou por outra, aceita-o como um óptimo mercado para os seus livros)e põe-se perante ele como o trabalhador do início da Revolução Industrial, que lutava contra as novas formas de trabalho, destruindo as máquinas.
Se Saramago substituisse os Centros Comerciais (ou a economia competitiva) pela olaria (ou a economia artesanal) provavelmente a esta hora estaria a mondar na planura alentejana e a labutar pelo parco sustento e não em Lanzarote a gozar os merecidos réditos.
Cada fase da evolução social tem as suas vantagens, mas também os seus inconvenientes. Ainda não se inventou a perfeição absoluta.
Por outro lado discordo em absoluto da comparação que ele pretende estabelecer com a Alegoria da Caverna de Platão.
Afixado por: Joana em abril 7, 2004 10:13 PMSoren em abril 7, 2004 05:50 PM
Disse:«Posso escolher não escolher» é o voto em branco de Saramago avant la lettre.
Confesso que não entendo o que tem a ver o «L´Être et le Néant» com Saramago. O Ser e o Nada é uma obra filosófica, um ensaio sobre o conhecimento e a consciência e a sua natureza. Para Sartre o homem é intrínseca e ontologicamente livre e, portanto, tem capacidade de escolha no exercício da sua liberdade e não como mero arbítrio. E entre as escolhas tem, obviamente, a capacidade de não escolher (matematicamente, escolher o conjunto vazio!).
Eu não critiquei a possibilidade de um eleitor votar em branco. Essa possibilidade é-lhe aliás dada.
Critiquei foi o conceito de tornar o voto em branco como o paradigma da regeneração da vida política e social.
dionisius em abril 7, 2004 01:53 PM
Eu queria dizer «planura ribatejana» e não alentejana.
E este engano é mais imperdoável, dado eu ser ribatejana ... de ascendência apenas
O que dizer? talvez o autor do blog não tenha tido contacto com o profundo passado revolucionário, tal como Saramago teve...
O voto branco é o voto anarquista... Porque é que julga é proibido a sua promoção em tempo de campanha?
O voto em branco não é um ponto de partida da regeneração social. É a expressão de uma opinião pessoal.
Que se lixem as alternativas...
Não vejo como é que pessoas como os nossos políticos com vidas construídas para aparentarem o máximo de distinção e origem concebam mudar, senão receberem uma enorme crítica à sua mera existência...
http://www.ateismo.net/diario
Afixado por: André Fernandes Esteves em abril 7, 2004 10:56 PMAssírios, literatos, filósofos, anarquistas, bloguistas.
Isto parece um apeadeiro
pepe em abril 6, 2004 09:40 PM
Desculpe ainda não lhe ter respondido, mas o tipo de crítica que faz é de resposta difícil ou mesmo impossível.
Ou desnecessária.
zippiz em abril 6, 2004 10:46 PM:
Ainda há uma grande diferença: ninguém me paga para fazer isto.
Descrente e Sargão:
E também islamitas nos seus trajes e nomes tradicionais, e outros, muitos outros.
É assim a liberdade!
Vim aqui só para pensarem que sou um filósofo.
Afixado por: desenrascado em abril 8, 2004 12:07 PMAinda não compreendi se o Saramago é cego ou lúcido.
Até agora não percebi nada do que tentei ler dele.
tenho que contratar um explicador.
Talvez o dionisius ou a Joana. Teria 2 visões opostas dos mesmos livros.
O próprio Saramago já veio deitar água na fervura.
Afixado por: Dominó em abril 8, 2004 09:54 PMO que o Saramago disse foi que não atacou a democracia mas sim o sistema.
É claro que como nós vivemos num sistema democrático, então Saramago não atacou a democracia, mas sim a democracia.
Esta confusão resolve-se pensando que pró Saramago a democracia é a Democracia Popular de Cuba e dos antigos regimes da Europa de Leste
O saramago não tem cura!
Afixado por: Mocho em abril 8, 2004 10:27 PMSaramago é um grande escritor que tem todo o direito a emitir as opiniões que julga melhor.
Votar em branco não é renegar a democracia
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Juro que só carreguei uma vez na tecla!
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Afixado por: vde em abril 8, 2004 10:32 PMJuro que só carreguei uma vez na tecla!
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Afixado por: vde em abril 8, 2004 10:33 PMJuro que só carreguei uma vez na tecla!
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O vde também tem todo o direito a emitir opiniões.
Escusava era de ter tanto entusiasmo a repeti-las
A menos que tenha um dedo "pesado". Nesse caso as minhas desculpas.
Afixado por: Rave em abril 8, 2004 10:50 PMO que se tem verificado é que por causa das reformas sociais, na Europa, ultimamente, ganha sempre a oposição.
Ainda agora numa eleição local na Alemanha houve uma transferência de 20% de votos da esquerda para a direita
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