A polémica sobre o recente livro de Saramago, e as suas declarações públicas, levantou a questão do valor e da legitimidade da democracia representativa. Não vou abordar aqui as raízes totalitárias em que normalmente se filiam as dúvidas que se levantam sobre esse valor e essa legitimidade. E não vou abordar porque considero redutor reduzir essas dúvidas a uma perversão totalitária. Essa perversão pode existir em quem questiona essa legitimidade, existe certamente nas consequências que a ilegitimação da democracia representativa normalmente acarreta, mas não existirá na generalidade das pessoas que possam aderir a esse conceito.
Há uma crise no nosso sistema político. As expectativas criadas pelo estabelecimento do modelo social europeu, e os seus desenvolvimentos subsequentes, estão a ser postergadas pela evolução de um conjunto de variáveis declínio demográfico, emergência dos «Novos Países Industrializados», etc. e pela incapacidade da classe política de adoptar uma estratégia capaz, coerente e constante, e conseguir explicá-la e obter a adesão das populações. Esta crise não tem directamente a ver com a Direita, o Centro ou a Esquerda. Existe em França, com um governo de direita e existe na Alemanha com um governo de esquerda.
Os governos da maioria dos estados europeus não conseguem gerir satisfatoriamente as respectivas economias, não conseguem reformar, de forma satisfatória e sustentada, o Estado Social, e não conseguem compaginar as necessidades de um e de outro e, perante o desconforto que sentem pela dificuldade das medidas, protelam-nas, titubeiam, tomam meias medidas incoerentes e causam danos a ambos sem resolverem os respectivos problemas.
Rosas assegura que a Europa está em crise, uma crise drasticamente agravada pela lógica essencial da globalização capitalista. Esta afirmação, aplicada à Europa, é um perfeito disparate. Quanto mais uma economia é desenvolvida, mais globalização lhe é benéfica. O mercado aproveita aos mais aptos. Por isso, os países mais avançados na lógica do mercado criaram, para a sua população, mecanismos de transferências sociais e instrumentos reguladores para compensarem as assimetrias introduzidas pelo funcionamento do mercado. Como no mercado internacional esses mecanismos não existem, são incipientes ou pontuais, os países mais pobres podem ver a sua balança de trocas com o exterior degradada e empobrecerem ainda mais. Mas a Europa (como um todo) não.
Outra tese do radicalismo de esquerda é a da existência de uma alegada «tensão autoritária e centralista contraditória com a democracia política e que está, paulatinamente, a esvaziá-la de conteúdo, a transformá-la numa burocracia ritualizada, cada vez mais distante dos cidadãos e com menos poder real, que pretende a destruição de mais de um século de conquistas sociais do mundo do trabalho». Essa «tensão autoritária» seria a tentativa dos governos democraticamente eleitos (de esquerda ou de direita) conseguirem reformular o modelo social de forma a adequá-lo às novas situações.
Porém, nunca como hoje, nas nossas sociedades, os cidadãos tiveram tantas possibilidades de participarem na vida pública. A difusão dos meios de comunicação aumenta incessantemente, as pessoas exprimem as suas opiniões em cada vez mais diversificados meios públicos (por exemplo, na net, fóruns, blogs, etc.). Basta ver como as manifestações em Espanha, na noite da véspera eleitoral foram convocadas pela net e telemóveis. Portanto, nunca, como hoje, o autoritarismo teve tão poucas possibilidades de se exercer. E os resultados das eleições espanholas são disso o exemplo mais recente e flagrante.
O problema do Rosas, Saramago, e de outros radicais de esquerda é que, nas urnas, as pessoas, maioritariamente, não têm escolhas idênticas às suas e que os governos não mudam de opinião ao acaso das manifestações de rua. São essas as «tensões autoritárias».
Portanto, a crise do nosso sistema político não tem a ver com «tensões autoritárias», nem com a globalização, nem com uma alegada conspiração para destruir as «conquistas sociais do mundo do trabalho». Tem a ver com a previsível falência do nosso modelo social (ou de toda a economia) que os políticos, quando na oposição, pretendem afincadamente defender, para angariarem votos, e, quando no governo, tentam desesperadamente reformar para evitar a bancarrota.
E tem a ver, e muito, com a falta de líderes capazes de mobilizarem as pessoas para essas reformas. É fácil, e dá dividendos políticos no imediato, distribuir dinheiro. É difícil, face a uma situação complicada e a previsões que apontam para a bancarrota, dizer as verdades, congeminar medidas eficazes e adequadas, e saber obter a adesão das pessoas .
Francamente não estou a ver, na Europa actual, um líder político, no dia do voto de confiança na sede da representação nacional, declarar «Não tenho nada para vos oferecer senão sangue, trabalho insano, lágrimas e suor» ("I have nothing to offer but blood, toil, tears and sweat."). Infelizmente também não vejo qualquer motivação quer da restante classe política, quer da população em geral em dar esse voto de confiança sem reservas mentais.
Também não estou a ver qualquer saída para a crise política actual. Esperemos que ela não surja apenas em desespero de causa, com custos muito superiores ao de soluções planeadas com tempo e discernimento.
Não há crise da democracia. Há uma crise da Europa que chegou ao fim de um ciclo e não atina com um novo modelo para encetar um novo ciclo. A Europa tornou-se numa «tia» de meia idade, ainda próspera, mas avessa a qualquer risco, e que vai deixando as suas economias serem corroídas pela inacção, por essa aversão ao risco.
Joana,
com a velha tia Europa neste estado , podemos sempre emigrar para os EUA , enquanto não é preciso visto...
Lanzarote também éuma boa opção...apesar dos radicais vulcões !
zippiz: nunca esperei que você sugerisse essa alternativa ... a dos EUA
Afixado por: Joana em abril 8, 2004 09:15 AMFiquei aterrado com a sua análise. Porque ela é terríica e porque tem credibilidade.
Será que não temos saída?
Ou será que só teremos saída (Deus sabe qual) tarde demais?
Sempre nos desenrascámos, melhor ou pior. Não vale a pena entrar em pânico.
Confiemos na improvisação nacional.
Acho pertinente o texto da autora, mas penso que a crise da Europa é muito mais vasta que que o que a autora dá a entender.
É claro que isto é um texto de blog e não um ensaio.
JOANA/JOÃO II
O ZIPPIZ teve um "lapsus linguae"!
Fugiu-lhe a boca para a verdade.
Veja lá se ele sugeriu Cuba,Vietnam,Coreia do Norte ou mesmo a China!
Safa-te!
Ser de esquerda sim,mas com uma bruta casa,um lustroso automóvel, uns dinheiritos para férias nas Seychelles ou até no Algarve ou ali ao lado na vizinha Espanha.
Estes rapazes são sempre muito dedicados à causa!
Afixado por: ZEUS8441 em abril 8, 2004 12:57 PMAs pessoas queixam-se dos "direitos adquiridos" começarem a implodir.
Esta situação provoca angústia e outros desequilibrios emocionais.
A massa salarial é insuficiente para fazer face aos compromissos assumidos,que se traduzem nas necessidades triviais.
Qual quer governo é penalizado se ousar "tocar" nos "acquis".
Foi pena não ter abordado a questão dos 58% das empresas que não pagam IRC,o que irrita aqueles que pagam taxas elevadas de IRS em relação à fragilidade da "massa salarial".
Cria-se,deste modo,embora de forma simplista,uma plêiade de descontentes,que podem derrubar um governo.
Taxa elevada de carga fiscal para certos grupos sociais e fuga aos impostos são matérias explosivas numa sociedade.
Espreme-se demasiado o limão para produzir todo o sumo.
Arranje uma fórmula mágica para solução do Estado Providência.
Fazer constatações seguidas de lamento afigura-se-me pouco.Muito pouco mesmo!
BOA PÁSCOA
Joana
Para facilitar vou resumir o que penso.
A democracia representativa é uma condição necessária mas não suficiente.
ps1: Coloquei um link no meu blog para o teu. Julgo que não há inconveniente.
ps2: Gostaria que lesses os meus 2 últimos posts e me desses a tua (abalizada e sincera) opiniâo em 2 ou 3 linhas. Têm para aí o triplo do tamanho do teu último post mas não gastarás mais que 10 minutos do teu tempo.
Uma boa Páscoa.
Afixado por: Nilson em abril 8, 2004 06:09 PMUm bom fim de semana (é pena não haver mais assim).
Uma óptima Páscoa.
Não comam muitas amêndoas pois faz mal aos dentes e não ajuda na elegância.
Aproveitem para carregar as baterias.
Julgo que tem razão na crise europeia e nas suas causas. O eleitorado europeu tem votado nos ultimos anos contra os que fazem as reformas, que são impopulares, tentando manter algo que não vai ser possível.
Afixado por: Hector em abril 9, 2004 12:43 AME o curioso é que o governo seguinte não só não repõe a situação anterior às reformas como, por vezes ainda as aprofunda.
O eleitorado europeu dá socos no ar.
Julgo aliás que é uma questão de capacidade de liderança. Chirac e Schroeder não têm capacidade de liderança. Daí serem facilmente contestáveis.
Blair, apesar da política controversa, mantém uma popularidade elevada nas sondagens.
E Aznar se se tivesse recandidatado, mesmo com o 11 de Março, era capaz de ganhar.
Desde o POLITICA-PURA (www.politica-pura.blogspot.com)parabéns por um blog que só conheci agora mas de que vou ficar visitante, enquanto tiver a qualidade que demonstra ter. Cumprimentos! JPD
Afixado por: João Pedro Dias em abril 9, 2004 07:34 PMBoa Páscoa para toda a gente aí em casa.
Um abraço,
Francisco Nunes
ZEUS8441 em abril 8, 2004 12:57 PM :
já tinha reparado que Vc não é muito dado a ironias...
Vc cada vez que escreve algo é uma trovoada de intolerância ...
sobre os USA , aquilo não é seu nem de Bush ... também pertence a 20 milhões de desempregados...
Nilson em abril 8, 2004 06:09 PM
Nilson
Obrigada pelas palavras, mas só hoje posso responder, pois estive fora
Os dois textos descrevem a perversão da lógica da guerra que, frequentemente, resulta da lógica da violência associada à guerra.
Sem os procedimentos que as nações civilizadas fazem as suas forças armadas seguirem, facilmente estas poderiam deixar-se levar por essa lógica da violência. Aliás, a disciplina e o profissionalismo das forças armadas exigem o cumprimento desses procedimentos
E é aqui que eu faço um reparo. Israel, quer se goste ou não do actual governo, é um país democrático, que se regula por procedimentos legais e com meios de comunicação livres, que asseguram a transparência na execução desses procedimentos.
Assim sendo, o erro propositado do piloto israelita só muito dificilmente passaria impune, mesmo que os seus superiores hierárquicos quisessem fechar os olhos. E, com a consciência disso, o piloto dificilmente transgrediria os seus procedimentos. A menos que fosse um caso psiquiátrico.
Afixado por: Joana em abril 12, 2004 09:02 AMNilson em abril 8, 2004 06:09 PM
(Conclusão)
Por outro lado o que há de horroroso numa acção suicida cometida por um miúdo de 15 anos é a manipulação que isso representa. Esse miúdo não é responsável pelos seus actos, foi induzido a isso. Só uma sociedade em completa crise de valores pode regozijar-se com actos desses.
O terrorismo palestino fez com que a AP, que o desencadeou a seguir ao fracasso das negociações Barak-Arafat, ficasse sem alternativas viáveis. Até ao 11 de Setembro, o terrorismo localizado dos palestinos podia ser defendido, por alguns, como resistência. Mas depois disso deixou de haver terrorismos maus e terrorismos «assim-assim» e o terrorismo palestino, exercido contra civis e mediante atentados suicidas, passou a ser encarado com horror em todo o mundo ocidental, excepto no seio dos movimentos radicais.
Quem é aquele que conduz terror (e, consequentemente, aterrado se conduz)?
Reduzidas as palavras a fórmulas, temos que há uma definição - altamente restritiva quanto altamente conveniente - em curso de terrorismo, primariamente inscrita numa visão total e totalizadora do 'real' enquanto terreno da oposição ideal Bem/Mal.
*
Procure-se contabilizar os meios de difusão (media) e a localização relativa dos seus centros de decisão e confronte-se a massificação e seus produtos mentais destes decorrentes com as impossibilidades (sobretudo@net) mães de possibilidades que, afinal, se nos deparam escancaradas. Se ao mesmo tempo que diagnosticamos as limitações do sistema político, jurídico e económico que acompanha o nosso devir social, questionamos e comunicamos, empreendem-se relações de sentido dificilmente apreensíveis pelos múltiplos mecanismos de controlo inerentes à supracitada moldura.
Muito longe de cair nessa outra clássica dicotomia indivíduo/sociedade, tão cara a certas fundações intelectuais, trata-se de sublinhar o universo de significações de que se dispõe na medida das portas abertas pela globalização de modelos e abordagens tecnológicas.
Coitadinhos?
Tudo menos coitadinhos.
Bush, como Bin Laden, dispensam-me, para já, de apresentações. Sharon, José Eduardo dos Santos, Fidel e o 'Duce' norte-coreano também.
Chirac, Blair ou Zapatero idem.
O rio não. O rio que Brecht nos mostra como alvo da cólera das pessoas que o apelidam de violento esquecendo-se das opressoras margens. O rio, comigo, o rio sem mim.
Recusemos as leituras simplistas que encobrem o Sol enquanto se puder dizer que este quando nasce é para todos. O Fim da História ou o Choque de Civilizações são sem dúvida bons títulos para montras e escaparates vários, mas considerar nominalmente a falência do 'ismo' que estiver mais à mão - sempre um esquema pródigo em alimentar-se de contradições - como indiciadora de uma crise de valores (o que quer que isto seja) e por aí ficar redunda num eco nasalado dos exercícios do ridículo hegemónico que os dois livros mencionados veiculam.
A vida, felizmente, não é a preto e branco.
Seria bom que os pregadores do costume usassem, por exemplo, o seu consumo à decidida semelhança da sua prosa e em consonância com ela. Comércio Justo é um bom começo. E o mundo, claro, uma ONG.
*
Terrorismo é o que inspira a e é inspirado pela emoção terror num ciclo autofágico identificado e reconhecido nas sociedades humanas. Há-o português, iraquiano, americano ou chinês, maori, zande, ndembu ou zafimaniry: onde quer que seja, dói.
Estendamos as teias da sua abominação até ao limite de nós próprios, de nosso juízo, de nossos dias. Que nosso nome não rime, pois, com aterrorizador.
A União Europeia não tem líderes, não tem política, não tem nada.
Apenas vontade que não a chateiem, e capitula para evitar incómodos, esqyecendo que os incómodos seguintes vão ser maiores.