abril 11, 2004

A Tentação da Força

O excesso de força conduz à tentação do seu uso imoderado, em alternativa a soluções políticas, em teoria porventura menos prometedoras, mas na prática mais eficazes.

As relações da administração americana do Iraque com os diversos sectores étnicos e religiosos ilustram os erros a que conduz o recurso imoderado à força militar. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. A força militar pode criar condições para facilitar o estabelecimento da democracia. Mas a democracia é, pela própria natureza, o governo do povo pelo povo. O povo tem que ser ganho para a democracia, para o seu exercício, para a compreensão das suas vantagens e das suas limitações. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E a administração americana e as potências ocidentais, em geral, terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode ter expectativas mais amplas pois não haverá condições para mais.

Na normalização do Iraque é indispensável a aliança com os xiitas que compreendem 60% da população e foi marginalizada e espezinhada durante a ditadura de Saddam Hussein. Todavia a maioria dos líderes dessa comunidade rejeita a constituição provisória recentemente promulgada porque esse texto não estabelece a sharia como única fonte direito. Os xiitas, liderados pelo ayatollah Ali Sistani, pretendem uma república islâmica. Uma minoria desta comunidade é adepta de um imã extremista, de 30 anos, Moqtada Al-Sadr que no seu jornal multiplicou os apelos à revolta contra os americanos e que constituiu uma milícia – o exército do Mahdi – poderosamente equipada. Essa milícia tem ocupado, pouco a pouco, diversas localidades onde tem feito reinar um regime de terror em nome da ordem islâmica, em tudo semelhante às acções de rua dos SA e SS na Alemanha Nazi, só que em vez de destruírem as lojas dos judeus, destroem lojas cujos produtos não estejam em sintonia com as prescrições mais medievas do fundamentalismo islâmico.

A aliança com os líderes espirituais da comunidade xiita tem portanto limites. Os americanos não podem correr o risco de verem surgir no Iraque um regime idêntico ao iraniano e aliado deste. Depois de terem armado Saddam para neutralizar o fundamentalismo iraniano e de verem Saddam tornar-se, de amigo, em inimigo, embora tivesse continuado a ser um contrapeso ao fundamentalismo xiita iraniano, seria o pior dos pesadelos para a administração Bush tornar o Iraque, para além de inimigo dos EUA, aliado do Irão.

Neste entendimento, as autoridades americanas resolveram enveredar por uma reacção musculada: o fecho do jornal de Moqtada Al-Sadr e a prisão de um seu adjunto, Mustafá Yaqubi, acusado de um homicídio de um dignitário xiita moderado, ocorrido há muitos meses. Essas acções levaram à insurreição da facção xiita radical de Moqtada Al-Sadr.

Em simultâneo, numa aparente retaliação face às cenas de selvajaria ocorridas em Fallujah dias atrás, em que 4 civis americanos, funcionários de uma empresa de segurança, foram massacrados, os seus restos incinerados, mutilados, arrastados pelo chão e pendurados para gáudio de uma populaça entusiástica, as forças americanas cercaram Fallujah e têm avançado metodicamente apesar da resistência tenaz. Mesmo durante os períodos de tréguas, os americanos apenas deixam sair da cidade mulheres, crianças e homens em «idade não militar». As forças americanas afirmam que tentam capturar os assassinos dos 4 americanos, porém, o que tudo indica, é que os americanos resolveram responder à barbárie medieval com o método medieval da punição colectiva de um bastião rebelde, como desforra das sucessivas emboscadas que têm sofrido em Fallujah e que culminaram na selvajaria de 31 de Março. A forma lenta como o cilindro militar americano rolou sobre Fallujah indicia que procurava maximizar o número de baixas entre os habitantes em «idade militar».

Estas duas acções musculadas podem alterar radicalmente o anterior enquadramento social e político iraquiano.

Os líderes moderados xiitas, Ali Sistani e o Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque (CSRII), não podem condenar, pelo menos publicamente, a insurreição de Al-Sadr. E ainda menos aprovar a contra-insurreição desencadeada pelas forças americanas. Fazê-lo poderia minar a actual posição de Ali Sistani de líder espiritual da comunidade xiita. Quer se concorde, quer se discorde, não é de boa política apoiar o ocupante estrangeiro contra facções nacionais. Por outro lado não é líquido que não seja do interesse de Ali Sistani esta prova de força contra o ocupante americano, por interposta facção. Ali Sistani poderia recolher alguns dividendos e surgir, perante os americanos, como elemento moderador e imprescindível e fazer vingar as suas teses de uma constituição «mais islâmica».

Enquanto isso os líderes moderados xiitas vão acusando os americanos de terem provocado a insurreição pela sua falta de tacto político. Os líderes xiitas estão assim a posicionar-se para os cenários emergentes da insurreição de Al-Sadr. Se os americanos reprimirem a insurreição e capturarem Al-Sadr, os líderes xiitas moderados ficam sem o labéu de colaboração com o ocupante, livram-se de um líder extremista e ficarão aos olhos dos americanos como interlocutores indispensáveis que merecem colher dividendos políticos.

Se convencerem os americanos a porem fim à sua tentativa de capturar Al-Sadr, consolidam a sua imagem entre a comunidade xiita e os iraquianos em geral e tornam-se igualmente indispensáveis para os americanos para servirem de dique às investidas dos testas de ferro da teocracia iraniana que pretende destabilizar a sociedade iraquiana de modo a não permitir a instauração de um regime tolerante e minimamente democrático.

No entretanto o afluxo de peregrinos a Kerbala para as comemorações do Arbain, festividade xiita, levou a uma trégua e ao início de negociações com Al-Sadr mediadas pelos líderes xiitas. Os americanos "reclamam a dissolução da milícia do Mahdi, o respeito pelos instituições de Estado e as leis, a retirada dos edifícios públicos e o regresso à ordem pública". Em troca, Sadr terá reclamado "a retirada das forças que se preparam para atacar Najaf, garantias sobre a anulação do mandato de captura". Se as negociações chegarem a bom termo, estaremos no segundo cenário descrito acima e será uma vitória para o CSRII. Aliás, como se escreveu acima, o desfecho desta crise será sempre, em maior ou menor grau, uma vitória para o CSRII.

Por sua vez o violento ataque a Fallujah, e as baixas iraquianas que está a causar, tem levado a uma certa aproximação entre sunitas e alguns líderes xiitas. Essa aproximação feita em nome da luta contra um inimigo comum, poderá complicar a situação das forças da coligação no Iraque que, presentemente, apenas contam com um aliado fiel: a minoria curda.

A coligação está desde o início do pós-guerra perante um dilema – flagelada por grupos minoritários, mas muito activos, se responde de forma violenta aliena as simpatias da massa da população, se responde de forma tíbia corre o risco de dar uma ideia de fragilidade e fortalecer a imagem desses grupos. Foi isso que aconteceu nas duas situações: em Fallujah ripostou com grande violência e de forma desproporcionada; no que respeita às milícias xiitas radicais deixou que elas crescessem e se armassem, tudo indica que com um forte apoio iraniano. Em ambos os casos faltou tacto político e sentido da oportunidade.

A força militar serve para ganhar a guerra, mas a paz tem que ser ganha pela sabedoria política. A primeira existe, mas tem havido escassez da segunda. Provavelmente porque se pensa que quem tem a força tem tudo.

Quanto a Bush, o facto de não se terem encontrado armas de destruição em massa, a não pacificação do Iraque e o não estabelecimento de uma clara estratégia política para o Iraque lançam dúvidas sobre a competência da sua administração. Se falhar o plano de transferência de soberania a 30 de Junho, quer pelo seu adiamento, quer pela eventual ocorrência do caos generalizado se o plano se mantiver, dificilmente Bush será reeleito.

Publicado por Joana em abril 11, 2004 10:01 PM | TrackBack
Comentários

é impressão minha - o texto é demasiado grande - ou Vc está a "evoluir" para posições mais razoáveis acerca do papel da administraçao Bush nesta invasão do Iraque ?

Afixado por: zippiz em abril 11, 2004 11:10 PM

zippiz em abril 11, 2004 11:10 PM
Como certamente leu textos que escrevi durante a guerra (vide arquivo de Outubro de 2003), verificará que eu sempre tive uma posição semelhante sobre esta matéria

Afixado por: Joana em abril 12, 2004 09:05 AM

Joana
Não quer acrescentar nada ao que escreveu, há um par de semanas, sobre a «sondagem» aos iraquianos?
É que, a avaliar pelo que se está a passar, a «amostra» não deve ter sido muito representativa.
# : - ))

Afixado por: (M)arca Amarela citando (M)arca Amarela em abril 12, 2004 12:52 PM

É normal que em face do que tem acontecido na zona de Falujah que os americanos interviessem daquela maneira.
Só me admira porque demoraram tanto tempo a fazer

Afixado por: fbmatos em abril 12, 2004 01:00 PM

Concordo com o que escreveu. A situação é complicada e todas as saídas são más, embora umas piores que outras.
Vejamos se acontece a menos má

Afixado por: Mané em abril 12, 2004 02:37 PM

(M)arca Amarela citando (M)arca Amarela em abril 12, 2004 12:52 PM : Por falar em fazer testes de leitura antes de terem acesso a um blog, eu queria acrescentar algo ao que escrevi, há um par de semanas, sobre a sondagem aos iraquianos:

1 - Não sei como a sondagem foi feita, mas pelos intervenientes parece séria. Você não discutiu este ponto, aliás ... apenas debita piadas.

2 - Nessa sondagem era dito que 15% dos Iraquianos são de opinião de que as forças estrangeiras devem sair imediatamente do Iraque

3 - 15% dos iraquianos são 3,6 milhões de pessoas.

4 - No texto acima eu falo em «grupos minoritários, mas muito activos», numa minoria da comunidade xiita que «é adepta de um imã extremista», etc.

5 - Se você tivesse feito «testes de leitura antes de ter acesso a um blog» certamente perceberia que não haveria incompatibilidade entre o texto da sondagem e este texto.

6 - Tive ainda o cuidado de sublinhar que a continuação de uma política com pouco ou nenhum tacto pode alienar apoios dos iraquianos para este processo. Isto é, a continuação desta política pode fazer com que a próxima sondagem traga resultados diferentes.

Afixado por: Joana em abril 12, 2004 11:00 PM

Aliás, um tal Al-Sadr (nick) num comentário ao texto sobre a sondagem afirmou que com a retaliação americana em Fallujah, provavelmente já seriam mais de 15%.Pode não concordar comigo, mas pelo menos percebeu o que escrevi.

Afixado por: Joana em abril 12, 2004 11:03 PM

Há uma coisa de verdade aqui. Os americanos estão-se a comportar com grande arrogância e violência.
Mas vão-se arrepender.

Afixado por: Cisco Kid em abril 13, 2004 12:49 AM

Se este caos continuar no Iraque, Bush não é reeleito.
Tem piada porque Bush tem feito a política para o Iraque em função do calendário eleitoral. Mas só tem feito borrada. Não conegue nem uma coisa nem outra

Afixado por: Resende em abril 13, 2004 03:31 PM

A sua análise está demasiada equilibrada para o pessoal da net. Estes tipos querem sangue, ou de um lado ou de outro.

Afixado por: Hector em abril 16, 2004 12:55 AM

Prossegue a acção da resistência iraquiana. Seis soldados norte-americanos foram mortos este sábado durante um ataque com morteiros contra uma base dos EUA na província sunita de Al-Anbar, oeste do Iraque.

Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:16 PM

Prossegue a acção da resistência iraquiana. Seis soldados norte-americanos foram mortos este sábado durante um ataque com morteiros contra uma base dos EUA na província sunita de Al-Anbar, oeste do Iraque.

Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:16 PM

Ontem tinham sido mortos 5 soldados americanos

Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:17 PM
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