O excesso de força conduz à tentação do seu uso imoderado, em alternativa a soluções políticas, em teoria porventura menos prometedoras, mas na prática mais eficazes.
As relações da administração americana do Iraque com os diversos sectores étnicos e religiosos ilustram os erros a que conduz o recurso imoderado à força militar. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. A força militar pode criar condições para facilitar o estabelecimento da democracia. Mas a democracia é, pela própria natureza, o governo do povo pelo povo. O povo tem que ser ganho para a democracia, para o seu exercício, para a compreensão das suas vantagens e das suas limitações. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E a administração americana e as potências ocidentais, em geral, terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode ter expectativas mais amplas pois não haverá condições para mais.
Na normalização do Iraque é indispensável a aliança com os xiitas que compreendem 60% da população e foi marginalizada e espezinhada durante a ditadura de Saddam Hussein. Todavia a maioria dos líderes dessa comunidade rejeita a constituição provisória recentemente promulgada porque esse texto não estabelece a sharia como única fonte direito. Os xiitas, liderados pelo ayatollah Ali Sistani, pretendem uma república islâmica. Uma minoria desta comunidade é adepta de um imã extremista, de 30 anos, Moqtada Al-Sadr que no seu jornal multiplicou os apelos à revolta contra os americanos e que constituiu uma milícia o exército do Mahdi poderosamente equipada. Essa milícia tem ocupado, pouco a pouco, diversas localidades onde tem feito reinar um regime de terror em nome da ordem islâmica, em tudo semelhante às acções de rua dos SA e SS na Alemanha Nazi, só que em vez de destruírem as lojas dos judeus, destroem lojas cujos produtos não estejam em sintonia com as prescrições mais medievas do fundamentalismo islâmico.
A aliança com os líderes espirituais da comunidade xiita tem portanto limites. Os americanos não podem correr o risco de verem surgir no Iraque um regime idêntico ao iraniano e aliado deste. Depois de terem armado Saddam para neutralizar o fundamentalismo iraniano e de verem Saddam tornar-se, de amigo, em inimigo, embora tivesse continuado a ser um contrapeso ao fundamentalismo xiita iraniano, seria o pior dos pesadelos para a administração Bush tornar o Iraque, para além de inimigo dos EUA, aliado do Irão.
Neste entendimento, as autoridades americanas resolveram enveredar por uma reacção musculada: o fecho do jornal de Moqtada Al-Sadr e a prisão de um seu adjunto, Mustafá Yaqubi, acusado de um homicídio de um dignitário xiita moderado, ocorrido há muitos meses. Essas acções levaram à insurreição da facção xiita radical de Moqtada Al-Sadr.
Em simultâneo, numa aparente retaliação face às cenas de selvajaria ocorridas em Fallujah dias atrás, em que 4 civis americanos, funcionários de uma empresa de segurança, foram massacrados, os seus restos incinerados, mutilados, arrastados pelo chão e pendurados para gáudio de uma populaça entusiástica, as forças americanas cercaram Fallujah e têm avançado metodicamente apesar da resistência tenaz. Mesmo durante os períodos de tréguas, os americanos apenas deixam sair da cidade mulheres, crianças e homens em «idade não militar». As forças americanas afirmam que tentam capturar os assassinos dos 4 americanos, porém, o que tudo indica, é que os americanos resolveram responder à barbárie medieval com o método medieval da punição colectiva de um bastião rebelde, como desforra das sucessivas emboscadas que têm sofrido em Fallujah e que culminaram na selvajaria de 31 de Março. A forma lenta como o cilindro militar americano rolou sobre Fallujah indicia que procurava maximizar o número de baixas entre os habitantes em «idade militar».
Estas duas acções musculadas podem alterar radicalmente o anterior enquadramento social e político iraquiano.
Os líderes moderados xiitas, Ali Sistani e o Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque (CSRII), não podem condenar, pelo menos publicamente, a insurreição de Al-Sadr. E ainda menos aprovar a contra-insurreição desencadeada pelas forças americanas. Fazê-lo poderia minar a actual posição de Ali Sistani de líder espiritual da comunidade xiita. Quer se concorde, quer se discorde, não é de boa política apoiar o ocupante estrangeiro contra facções nacionais. Por outro lado não é líquido que não seja do interesse de Ali Sistani esta prova de força contra o ocupante americano, por interposta facção. Ali Sistani poderia recolher alguns dividendos e surgir, perante os americanos, como elemento moderador e imprescindível e fazer vingar as suas teses de uma constituição «mais islâmica».
Enquanto isso os líderes moderados xiitas vão acusando os americanos de terem provocado a insurreição pela sua falta de tacto político. Os líderes xiitas estão assim a posicionar-se para os cenários emergentes da insurreição de Al-Sadr. Se os americanos reprimirem a insurreição e capturarem Al-Sadr, os líderes xiitas moderados ficam sem o labéu de colaboração com o ocupante, livram-se de um líder extremista e ficarão aos olhos dos americanos como interlocutores indispensáveis que merecem colher dividendos políticos.
Se convencerem os americanos a porem fim à sua tentativa de capturar Al-Sadr, consolidam a sua imagem entre a comunidade xiita e os iraquianos em geral e tornam-se igualmente indispensáveis para os americanos para servirem de dique às investidas dos testas de ferro da teocracia iraniana que pretende destabilizar a sociedade iraquiana de modo a não permitir a instauração de um regime tolerante e minimamente democrático.
No entretanto o afluxo de peregrinos a Kerbala para as comemorações do Arbain, festividade xiita, levou a uma trégua e ao início de negociações com Al-Sadr mediadas pelos líderes xiitas. Os americanos "reclamam a dissolução da milícia do Mahdi, o respeito pelos instituições de Estado e as leis, a retirada dos edifícios públicos e o regresso à ordem pública". Em troca, Sadr terá reclamado "a retirada das forças que se preparam para atacar Najaf, garantias sobre a anulação do mandato de captura". Se as negociações chegarem a bom termo, estaremos no segundo cenário descrito acima e será uma vitória para o CSRII. Aliás, como se escreveu acima, o desfecho desta crise será sempre, em maior ou menor grau, uma vitória para o CSRII.
Por sua vez o violento ataque a Fallujah, e as baixas iraquianas que está a causar, tem levado a uma certa aproximação entre sunitas e alguns líderes xiitas. Essa aproximação feita em nome da luta contra um inimigo comum, poderá complicar a situação das forças da coligação no Iraque que, presentemente, apenas contam com um aliado fiel: a minoria curda.
A coligação está desde o início do pós-guerra perante um dilema flagelada por grupos minoritários, mas muito activos, se responde de forma violenta aliena as simpatias da massa da população, se responde de forma tíbia corre o risco de dar uma ideia de fragilidade e fortalecer a imagem desses grupos. Foi isso que aconteceu nas duas situações: em Fallujah ripostou com grande violência e de forma desproporcionada; no que respeita às milícias xiitas radicais deixou que elas crescessem e se armassem, tudo indica que com um forte apoio iraniano. Em ambos os casos faltou tacto político e sentido da oportunidade.
A força militar serve para ganhar a guerra, mas a paz tem que ser ganha pela sabedoria política. A primeira existe, mas tem havido escassez da segunda. Provavelmente porque se pensa que quem tem a força tem tudo.
Quanto a Bush, o facto de não se terem encontrado armas de destruição em massa, a não pacificação do Iraque e o não estabelecimento de uma clara estratégia política para o Iraque lançam dúvidas sobre a competência da sua administração. Se falhar o plano de transferência de soberania a 30 de Junho, quer pelo seu adiamento, quer pela eventual ocorrência do caos generalizado se o plano se mantiver, dificilmente Bush será reeleito.
é impressão minha - o texto é demasiado grande - ou Vc está a "evoluir" para posições mais razoáveis acerca do papel da administraçao Bush nesta invasão do Iraque ?
Afixado por: zippiz em abril 11, 2004 11:10 PMzippiz em abril 11, 2004 11:10 PM
Como certamente leu textos que escrevi durante a guerra (vide arquivo de Outubro de 2003), verificará que eu sempre tive uma posição semelhante sobre esta matéria
Joana
Não quer acrescentar nada ao que escreveu, há um par de semanas, sobre a «sondagem» aos iraquianos?
É que, a avaliar pelo que se está a passar, a «amostra» não deve ter sido muito representativa.
# : - ))
É normal que em face do que tem acontecido na zona de Falujah que os americanos interviessem daquela maneira.
Só me admira porque demoraram tanto tempo a fazer
Concordo com o que escreveu. A situação é complicada e todas as saídas são más, embora umas piores que outras.
Vejamos se acontece a menos má
(M)arca Amarela citando (M)arca Amarela em abril 12, 2004 12:52 PM : Por falar em fazer testes de leitura antes de terem acesso a um blog, eu queria acrescentar algo ao que escrevi, há um par de semanas, sobre a sondagem aos iraquianos:
1 - Não sei como a sondagem foi feita, mas pelos intervenientes parece séria. Você não discutiu este ponto, aliás ... apenas debita piadas.
2 - Nessa sondagem era dito que 15% dos Iraquianos são de opinião de que as forças estrangeiras devem sair imediatamente do Iraque
3 - 15% dos iraquianos são 3,6 milhões de pessoas.
4 - No texto acima eu falo em «grupos minoritários, mas muito activos», numa minoria da comunidade xiita que «é adepta de um imã extremista», etc.
5 - Se você tivesse feito «testes de leitura antes de ter acesso a um blog» certamente perceberia que não haveria incompatibilidade entre o texto da sondagem e este texto.
6 - Tive ainda o cuidado de sublinhar que a continuação de uma política com pouco ou nenhum tacto pode alienar apoios dos iraquianos para este processo. Isto é, a continuação desta política pode fazer com que a próxima sondagem traga resultados diferentes.
Afixado por: Joana em abril 12, 2004 11:00 PMAliás, um tal Al-Sadr (nick) num comentário ao texto sobre a sondagem afirmou que com a retaliação americana em Fallujah, provavelmente já seriam mais de 15%.Pode não concordar comigo, mas pelo menos percebeu o que escrevi.
Há uma coisa de verdade aqui. Os americanos estão-se a comportar com grande arrogância e violência.
Mas vão-se arrepender.
Se este caos continuar no Iraque, Bush não é reeleito.
Tem piada porque Bush tem feito a política para o Iraque em função do calendário eleitoral. Mas só tem feito borrada. Não conegue nem uma coisa nem outra
A sua análise está demasiada equilibrada para o pessoal da net. Estes tipos querem sangue, ou de um lado ou de outro.
Afixado por: Hector em abril 16, 2004 12:55 AMProssegue a acção da resistência iraquiana. Seis soldados norte-americanos foram mortos este sábado durante um ataque com morteiros contra uma base dos EUA na província sunita de Al-Anbar, oeste do Iraque.
Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:16 PMProssegue a acção da resistência iraquiana. Seis soldados norte-americanos foram mortos este sábado durante um ataque com morteiros contra uma base dos EUA na província sunita de Al-Anbar, oeste do Iraque.
Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:16 PMOntem tinham sido mortos 5 soldados americanos
Afixado por: J Mendes em maio 2, 2004 07:17 PM