agosto 12, 2005

Pensamentos para fds

Embora só alguns estejam aptos a gizar uma política, todos são capazes de a julgar
Péricles, Atenas, Século V AC.

Todos têm opiniões sobre a política, poucos são capazes de a julgar, nenhum se revelou apto a gizar uma política capaz.
Semiramis, Portugal, Século XXI AD

O caminho platónico da servidão:
É ao líder que se deve olhar e seguir fielmente, mesmo nos assuntos mais triviais … A sua alma deverá, paulatinamente, ir renunciando ao sonho de agir por livre iniciativa, até se tornar totalmente incapaz de o fazer. Platão (via Popper)

Publicado por Joana às 02:42 PM | Comentários (107) | TrackBack

julho 28, 2005

Debates Monásticos

Era uma noite de Inverno, num mosteiro medieval alcandorado nos Alpes, sob um intenso nevão e uma temperatura inferior a 20º abaixo de zero (de acordo com o actual critério de Celsius). Nessa noite gélida, convidativa à introspecção e à meditação sobre a essência das coisas, um grupo de monges embrenhou-se numa discussão sobre a questão de saber se o leite gelava. Horas a fio debateram e procuraram clarificar os conceitos e a essência do leite e do frio, para assim poderem responder à questão.

Um monge agitava um velho rolo de pergaminho com excertos da Física de Aristóteles, outro exibia a sua erudição citando de memória sentenças aristotélicas da Ética a Nicómaco e da Metafísica. As Etimologias de Isidoro de Sevilha, o Apologeticus de Tertuliano, Clemente de Alexandria e Agostinho de Hipona vieram igualmente iluminar o debate. Um monge mais modernista estribava-se com veemência na Suma Teológica. A discussão prolongou-se pela noite dentro, enquanto a lareira crepitava e, aliada ao calor da contenda, mantinha os monges confortados e ao abrigo da intempérie.

De manhãzinha ainda não tinham conseguido concluir nada. Dúvidas consistentes persistiam sobre a essência do leite e do frio. Não havia razões lógicas que tornassem possível qualquer conclusão fundamentada. Adormeceram sobre aquelas dúvidas angustiantes.

Ninguém se lembrou de colocar uma tigela com leite no parapeito exterior de alguma das janelas do mosteiro.

Publicado por Joana às 06:14 PM | Comentários (31) | TrackBack

março 10, 2005

Aron e Sartre

Faz em 2005 cem anos que nasceram Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Têm muito em comum. Nasceram ambos em 1905; foram condiscípulos na Escola Normal Superior da Rua de Ulm; estiveram, até às suas mortes (Sartre em 1980 e Aron em 1983), empenhados em todas as grandes lutas e eventos do século. Apenas houve duas pequenas diferenças entre ambos: 1) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado certo, de acordo com o pensamento politicamente correcto da época; Aron esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com esse mesmo pensamento politicamente correcto; 2) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com o posterior julgamento da história; Aron esteve, sempre, do lado certo, de acordo com esse mesmo julgamento.

Sartre foi sempre o ídolo do pensamento politicamente correcto, mesmo quando se verificava, poucos anos depois, que tinha apoiado um erro – o pensamento politicamente correcto não tem memória. Aron foi sempre diabolizado pelo pensamento politicamente correcto – as injustiças da História (ou seja, os factos que tramaram o pensamento politicamente correcto) são imperdoáveis para aqueles que tomam as suas ideias como valores absolutos.

Aron pressentiu o que adviria com a ascensão do nazismo. Para ele, o dizer não a Hitler deveria ter ocorrido em Março de 1936 (ocupação militar da Renânia) e não após Munique. O espírito de Munique nascera em 1936. Pelo contrário, Sartre sempre pensou que Hitler seria um epifenómeno transitório e mesmo aquando dos acordos de Munique, não se apercebeu logo da dimensão exacta do que estava em jogo. Após a derrota, Aron foi para Londres, enquanto Sartre, saído do cativeiro, dedicou-se à escrita em Paris. Foi, segundo ele, «un écrivain qui résiste, et non un résistant qui écrit», porque resistir não pode ser uma finalidade em si. Tentaram, mais tarde, fazer dele um resistente, mas como afirmou J-C Casanova num debate recente «Si la résistance consiste à discuter dans un café, alors il y a eu beaucoup de résistants en France!».

Depois de acabada a guerra, Sartre (e os Temps Modernes, a cujo Comité Directivo, Aron também pertenceu de início) envereda pela 3ª via, nem capitalismo, nem comunismo. Mas o futuro Sartre já está prefigurado na apresentação dos Temps Modernes (lançado em Outubro de 1945): quer se queira quer não, todo o texto «possui um sentido»: «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também» «as palavras são pistolas carregadas». Já tive ocasião de me debruçar, aqui, sobre a perversão da filosofia do “intelectual comprometido”.

E pouco a pouco, Sartre deixa-se impregnar pelo fascínio do PCF, que se apresentava como o futuro da humanidade perante os crentes, como o agente decisivo da História. Vai ser o percurso de Sartre, o da tentativa (sempre frustrada, mas sempre permanente) de reconciliar o aventureiro de origem burguesa, motivado pelo seu ego a agir, e o militante revolucionário cujo ego é motivado pela acção. O PC continua, apesar de tudo, a ser a única chave no que respeita à sua vontade de romper com a burguesia e com a «civilização da solidão» que ela traz em si e na qual foi educado. A invasão da Coreia do Sul pela tropas norte-coreanas e a intervenção americana sob o patrocínio da ONU extremou os campos. A partir daí, Sartre tornou-se um compagnon de route do movimento comunista – «Um anticomunista é um cão, persisto e persistirei em dizê-lo».

Aron ficou decididamente, no outro lado da barreira. Para ele, a influência de Estaline não parava no Elba. A força do imperialismo soviético dependia menos do seu potencial militar do que da sua irradiação ou da penetração da sua propaganda. A existência, na própria Europa Ocidental, de grandes partidos comunistas, como em França e na Itália, é descrita por Aron, em 1948, como sendo a de «quintas colunas». Sem dúvida, os milhões de eleitores que confiam nos partidos comunistas ocidentais nutrem-se de esperanças honrosas, mas isso não deve ocultar a realidade, a saber, que os dirigentes e os aparelhos desses partidos fazem a política da URSS no quadro nacional onde exercem as suas actividades.

Aos olhos de Aron, para frustrar os seus objectivos três condições se impunham: primeiramente, o restabelecimento dos grandes equilíbrios económicos, financeiros e monetários; logo - em segundo lugar - a restauração de um poder de Estado; e, em terceiro lugar, a luta decidida contra a ideologia comunista no próprio terreno das ideias e da propaganda.

E disso se encarregou Aron «Os revolucionários têm como que um ódio ao mundo e um desejo da catástrofe. Todos os regimes conhecidos são condenáveis face a um ideal abstracto de igualdade e liberdade. Apenas a Revolução, porque é uma aventura, ou um regime revolucionário, porque este consente no uso permanente da violência, parecem capazes de conjugar este objectivo sublime. O mito da Revolução serve de refúgio ao pensamento utópico, torna-se o intercessor misterioso, imprevisível, entre o real e o ideal. .... A própria violência atrai, fascina, mais que repele. O mito da Revolução converge com o culto fascista da violência

A crítica ideológica [ do intelectual de esquerda] é moralista contra uma parte do mundo e em extremo indulgente perante o movimento revolucionário. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a contra-revolução ou é ministrada por um movimento revolucionário. A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre «revolucionários». Quantos intelectuais aderiram aos PC’s por indignação moral e acabaram subscrevendo de facto o terrorismo soviético e a razão de Estado?

Estes escritos de 1955 tornaram Aron no “lacaio da burguesia”, encarregado de lhe «fornecer a dose de justificações capazes de permitirem a esta ter boa consciência e enfraquecer os seus adversários». E isto não foi dito por nenhum radical, mas sim por Maurice Duverger, que de esquerda nunca teve nada. Tal era o ambiente intelectual que se vivia na época.

E quando lhe objectaram que o anticomunismo conduz ao fascismo, Aron respondeu com firmeza: «Não temos qualquer credo ou qualquer doutrina a opor à doutrina e ao credo comunistas, mas isso não nos humilha, porque as religiões seculares são sempre mistificações. Elas propõem às multidões uma interpretação do drama histórico e atribuem a uma causa única as infelicidades da humanidade. Ora, a verdade é outra, não há uma causa única ... Não há Revolução que, de um golpe, possa inaugurar uma fase nova da humanidade. A religião comunista não tem rival, ela é a última dessas religiões seculares, que acumularam as ruínas e espalharam torrentes de sangue».

Enquanto isso, Sartre apressava-se a estar do lado da causa do proletariado comunista. Em 1954, de regresso de uma viagem à Rússia onde fora passeado, louvado e empanturrado, dá entrevistas onde afirma: «A liberdade de crítica é total na URSS. O contacto é tão alargado, tão aberto, tão fácil quanto possível». E avança esta predição ousada: «Por volta de 1960, antes de 1965, se a França continuar a estagnar, o nível médio de vida na URSS será 30 a 40 por cento superior ao nosso. É bem evidente, para ela e para todos os homens, que a única relação razoável é uma relação de amizade». E Sartre conhece os factos, sabe do Gulag, mas tem uma atitude dúplice, pois embora condene existência dos campos soviéticos, alerta contra a exploração que disso faz, todos os dias, a imprensa burguesa. Todavia, 2 anos depois, o esmagamento da revolta húngara era um facto demasiado evidente e demasiado público – Sartre anuncia então que quebra «as relações com os escritores soviéticos meus amigos, que não denunciaram, ou não podem denunciar, o massacre da Hungria», e descobre, finalmente, que «já passou o tempo das verdades reveladas, das palavras de evangelho: um Partido Comunista não pode viver no Ocidente se não adquirir o direito de livre exame».

Aron tinha mais uma vez acertado. Sartre precisou da brutalidade dos factos para ver, não direi claro, mas alguma ténue luz.

Foi igualmente oposta a posição deles perante o fim da IV República, incapaz de encontrar uma solução para a guerra da Argélia. Sartre preconizava uma nova Frente Popular e o combate ao gaullismo que seria a continuação da política colonial sob uma espécie de monarquia constitucional, Aron apostou no general, prevendo que ele faria uma política contrária aos militares que o tinham chamado. Mais uma vez foi Aron que acertou.

Mas Sartre encontrou outros heróis. Meses antes da crise dos mísseis, escreve «Os cubanos, é preciso repeti-lo, não são comunistas e nunca pensaram em instalar bases de foguetões russos no seu território»!! Fidel é um anjo... Fidel é «o homem para tudo e é o homem de todos os pormenores»... Fidel «é, a um tempo, a ilha, os homens, o gado, as plantas e a terra; ele é a ilha inteira»... vi Fidel no meio dos «seus» cubanos - «os cubanos tinham adormecido um após outro, mas Castro unia-os numa mesma noite branca: a noite nacional, a sua noite...»

Com a crise de Maio de 1968, Sartre abre uma nova página da sua intervenção política. Novos heróis se prefiguram diante dele: os estudantes revoltados e os grupúsculos trotskistas, maoistas e anarquistas que tentavam acaudilhar a revolta. Declara então que o PC e a CGT já não estão na corrida revolucionára: «O que está prestes a formar-se é um novo conceito de sociedade baseado na democracia plena, numa conjunção de socialismo e de liberdade»

Aron, do outro lado da barricada, declara com enorme coragem política, face ao vendaval existente, que os «estudantes franceses formulam várias reivindicações legítimas a partir de motivos de queixa autênticos. Mas uma pequena minoria entre eles, aproveitando a capitulação de muitos professores, graças à inocência política da massa estudantil e dos professores tradicionais, está prestes a conseguir levar a cabo uma operação verdadeiramente subversiva .... Dirijo-me a todos, mas em primeiro lugar aos meus colegas, de todas as correntes de opinião, aos estudantes, tanto aos dirigentes como aos manipulados. Convido todos aqueles que me lerem, e que encontrarem nos meus pontos de vista o eco das suas próprias inquietações, a escreverem-me. Talvez tenha chegado o momento, contra a conjura da lassidão e do terrorismo, de nos reagruparmos, fora de todos os sindicatos, num vasto comité de defesa e de renovação da universidade francesa

Nada mais distante das posições de Sartre que acusa com brutalidade o antigo condiscípulo: «Aposto que Raymond Aron nunca se pôs em causa e é por isso que ele é, na minha opinião, indigno de ser professor. Não é o único, evidentemente, mas vejo-me obrigado a falar dele porque, nestes últimos dias, ele escreveu muita coisa.» Contra Aron, Sartre defendia a eleição dos professores pelos estudantes e a participação dos estudantes nos júris dos exames. «Isso implica que deixemos de pensar, como Aron, que pensarmos sozinhos atrás das nossas secretárias - e pensarmos a mesma coisa há trinta anos - representa um exercício de inteligência». Todavia, esse exercício de inteligência tinha permitido ao pensamento político de Aron ser validado pela história, enquanto o de Sartre era apenas uma verdade absoluta enquanto durava cada contexto; depois ele próprio se encarregava de mudar de rumo.

Também aqui as posições de Aron se revelaram correctas. Foi perseguido e para receber um prémio universitário teve que o fazer clandestinamente, mas as eleições marcadas na sequência da crise foram um triunfo para De Gaulle e uma derrota clamorosa para os protagonistas do Maio de 68. Sartre, perante a recusa do PCF e dos sindicatos de encabeçarem o movimento, propôs a refundação da esquerda, «à esquerda» do PCF

E assim Sartre seguiu um percurso ligado ao radicalismo de esquerda. Em 1972 afirmava em entrevista que «continuava a favor da pena de morte por motivos políticos ... num país revolucionário em que a burguesia terá sido expulsa do poder, os burgueses que fomentassem um motim ou uma conspiração mereceriam a pena de morte ... um regime revolucionário deve desembaraçar-se de um certo número de indivíduos que o ameaçam e, para este caso, não vejo outro meio a não ser a morte; é sempre possível sair de uma prisão». No La Cause du Peuple, do qual ele é, desde Maio de 1970, o director titular, pode ler-se apelos a «sangrar os patrões», «esfolá-los vivos como porcos que são», a «linchar os deputados», a «catar os «pequenos chefes», a responder aos patrões sequestrados que ainda pedem «autorização para ir urinar»: «mija nas calças! Não sabes o que são umas cuecas que colam ao traseiro por causa do suor, assim, pelo menos, ficarás a saber o que é ter o cu molhado...», dos comunicados de «operários em revolução», «Vai chegar o dia em que exterminaremos toda a corja de patifes a que pertences». E outras expressões que prefiro não transcrever aqui.

A barbárie de outros textos publicados num jornal, J’accuse, na década de 70, do qual ele se mantém como director e em relação ao qual, ao que se sabe, não deixou nunca de se mostrar solidário: «quanto a esse patrão, será preciso tirar-lhe os miúdos, se eles os tiver, até que as reivindicações sejam satisfeitas...» e a imagem - que também não o parece escandalizar - de Dreyfus, nessa altura patrão da Régie Renault, em que este surge caricaturado como um cão ocupado a sodomizar outro, suposto representar a «canalha sindical» de Billancourt.

Em meados da década de 20, Aron e Sartre haviam prometido, um ao outro, que aquele que sobrevivesse escreveria o obituário do outro no Boletim dos Antigos Alunos da Escola Normal. Aron não honrou essa promessa e explicou porquê: «Demasiado tempo passou entre a intimidade de estudantes e o aperto de mão na conferência de imprensa do “Barco para o Vietname”(*), mas ficou qualquer coisa. Deixo aos outros o encargo, ingrato, mas necessário, de celebrar uma obra cuja riqueza, diversidade e amplitude confundem os contemporâneos, de pagar um justo tributo a um homem cuja generosidade e desinteresse ninguém porá em dúvida, mesmo quando se empenhou, e fê-lo por diversas vezes, em combates duvidosos»

É, de facto, preferível, no interesse da memória de Sartre – que é um filósofo importante e um escritor de mérito – esquecer o Sartre político, cuja lógica do absoluto revolucionário o levou a escrever textos que poderiam figurar em antologias de literatura fascizante. E continuarmos a ler os escritos políticos de Aron, o intelectual lúcido, que durante 40 anos se debateu com a actualidade, tentando captar-lhe o sentido, com objectividade, sem sentimentalismos nem romantismos. Um intelectual que permanece actual.


(*)Em 1979, quando da tragédia dos “boat people” estiveram juntos para sensibilizarem o Eliseu e o povo francês a colaborarem na tentativa de salvamento das dezenas de milhares de refugiados vietnamitas que fugiam do país por mar em condições dramáticas.

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novembro 02, 2004

A Sociedade dos Pigmeus Políticos

Vivemos actualmente numa sociedade enferma, sem capacidade de se regenerar a si própria, que não tem consciência do impasse em que se colocou, e que é, paradoxalmente, vítima dos valores que fizeram a sua grandeza e prosperidade. E esses valores são a democracia e a liberdade. A sociedade ocidental, nomeadamente a europeia, já não consegue distinguir o uso do abuso, a dosagem da sobredosagem. A democracia e a liberdade deixaram de ser factores de progresso e de fortalecimento da sociedade, para se estarem a tornar, paradoxalmente, factores de estagnação e de degeneração sociais.

A capacidade de julgamento dos líderes políticos, avaliada e referendada periodicamente pelo eleitorado, e que era uma das forças da democracia, deixou de ser determinante. Essa capacidade de julgamento é testada, dia a dia, pelas sondagens de opinião. Há uma dependência obsessiva de opiniões voláteis do público. Governa-se, ou pretende-se que se governe, ao sabor dos desejos diários da opinião pública determinada pelas sondagens e avaliada pelos analistas. O papel dos áugures cabe agora às empresas de sondagens e aos “fazedores de opinião”. E o voo das aves ou as vísceras dos animais são agora substituídos por inquéritos de opinião e por análises certificadas pela reverência da comunicação social. E a pressão contínua das sondagens, “fazedores de opinião”, voo das aves e vísceras dos animais exerce-se sobre governos, assembleias legislativas e todos os restantes órgãos representativos no sentido de estes se ajoelharem submissos a este novo Divus interpres.

Edmund Burke, há dois séculos, em campanha eleitoral, declarou: «O vosso representante deve-vos não só os seus actos, mas também o seu julgamento e trai-o se, em vez de vos servir, sacrifica esse julgamento à vossa opinião [...] escolheste um representante, na verdade, mas quando o fizeste, ele não [é já apenas o vosso] representante, mas um membro do Parlamento». E Kennedy, há meio século, rejeitou liminarmente a ideia de que a função de representante do povo (neste caso Senador) era simplesmente reflectir a posição dos seus eleitores: «Tal ponto de vista pressupõe que a população do Massachusetts me mandou para Washington para servir apenas de sismógrafo com a função de registar as mudanças de opinião pública [...] Os eleitores escolheram-nos porque tinham confiança no nosso julgamento e na nossa capacidade de o exercer, segundo o que possamos determinar serem os seus interesses, dentro dos interesses da Nação. Isso significa, se for necessário, ter o dever de dirigir, informar, corrigir e, por vezes, ignorar a opinião pública de que fomos eleitos representantes».

Estas afirmações de Burke e de JF Kennedy são os fundamentos esquecidos da democracia representativa. Tendo o povo delegado os seus poderes legislativos para o exercício governativo durante um período previamente fixado (4 ou 5 anos), essa delegação mantém-se durante esse período - delegata potesta non potest delegari. A democracia representativa não pode funcionar devidamente quando é possível, em qualquer instante, derrogá-la, ou se o seu exercício é continuamente posto em causa pela permanente interpretação da vontade popular (sondagens, acções de rua, opiniões dos órgãos de comunicação, análises de gurus politicólogos, etc.).

Esta genuflexão perante a “voz do povo” não é de agora. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill, o protótipo do líder com opiniões firmes, foi criticado por um outro político, por não prestar atenção ao sentir do povo britânico, e aconselhado que deveria pôr «o ouvido no chão». A resposta foi “à Churchill”: «a nação britânica terá alguma dificuldade em olhar de frente para líderes que sejam apanhados nessa posição».

Churchill tinha razão. Nunca, como agora, a classe política foi tão pouco respeitada. E isto é válido para todo o mundo ocidental, em maior ou menor grau. O que mudou não foi os políticos se terem afastado do eleitorado e desdenharem a sua opinião. O que mudou foi os políticos terem como preocupação primeira, e às vezes única, satisfazerem o que julgam ser a opinião do eleitorado estimada pelas sondagens e avalizada pelos “fazedores de opinião”. O que mudou não foi a classe política desdenhar a democracia, mas sim o estar a tomar uma overdose democrática.

Todas as sociedades ocidentais, e Portugal principalmente, precisam de reformas estruturais profundas, senão afundar-se-ão inexoravelmente. São reformas que exigem sacrifícios, cujos resultados só serão visíveis a médio ou longo prazo, e cujas alternativas conduzem à ruína, também ela só visível a longo prazo. Essas reformas não podem ser conduzidas sob a pressão permanente dos mídia e das sondagens semanais, porque contendem com muitos interesses particulares.

O que se tem verificado é que as medidas estruturais e as medidas com efeitos a longo prazo têm sido tomadas por entidades não sujeitas às pressões da opinião pública: os Bancos Centrais, os “burocratas de Bruxelas”, etc.. O recente Nobel da Economia atribuído a Kydland e Prescott premiou os seus estudos sobre a inconsistência intertemporal, que relaciona a discrepância entre as decisões políticas tomadas em diferentes momentos do tempo e as expectativas de diversos sectores da sociedade. Trabalhos que ajudaram a fortalecer instituições credíveis e independentes do poder político, como dar cada vez mais autonomia e independência aos Bancos Centrais, a criação do Banco Central Europeu e o estabelecimento do PEC. Isto é, entidades não eleitas e não sujeitas ao permanente escrutínio público.

Na ausência destas entidades “não eleitas”, os políticos (e não apenas os portugueses) deixar-se-iam embalar pelas vozes que se elevam das sondagens e legislariam para a rua, em vez de legislarem no interesse a longo prazo dos seus países. E desculpam-se das políticas impopulares impostas externamente, alegando exigências dos “burocratas de Bruxelas, não eleitos pelo povo”. Em Portugal, o bom aluno, os governos ainda não encetaram com esse tipo de justificações, muito vulgares aliás em diversos países da UE.

Mas a sociedade despreza aqueles que bajulam os seus favores, na ânsia permanente de satisfazerem os seus caprichos voláteis e levianos. Vinga-se não lhes dando crédito. Os inquéritos de opinião mostram que as instituições não dependentes do sufrágio popular são aquelas que mais confiança despertam nas pessoas. A opinião pública tem muito mais confiança no Banco de Portugal que nos órgãos que elege periodicamente. Mesmo o poder judicial, que funciona extremamente mal, é mais respeitado que governos e deputados. O clero católico, que nunca foi escrutinado pela população, é muito mais respeitado, mesmo pelos não crentes, que os políticos eleitos. A comunicação social, que nunca foi eleita por ninguém, um elemento corporativo que se auto-reproduz, que serve quotidianamente à população a ementa mais repelente e empolada de todas as misérias e massacres sangrentos, tem mais créditos junto da opinião pública que a classe política. E entre os políticos, Cavaco Silva, que sempre se mostrou pouco simpático para com os mídia, e avesso aos “fazedores de opinião” e às opiniões “instantâneas”, foi provavelmente o político que, enquanto exerceu o cargo, foi o mais respeitado (ou pelo menos o menos desacreditado).

A democracia está a ser vítima de um “excesso de democracia”, ou melhor, a nossa sociedade está a ser vítima de não encontrar líderes que conduzam os destinos do país com firmeza no leme e rumo seguro, e não os encontra porque o frenesim da auscultação permanente da volúvel “vontade popular” expressa nas sondagens e análises mediáticas, obscurece o discernimento para fundamentar medidas políticas, económicas e sociais consistentes e eficazes a médio e longo prazo.

As sociedades europeias, e a portuguesa em particular, vivem numa paranóia ininterrupta de contestação, de pôr em causa, de lançar a suspeição sobre quaisquer decisões ou apenas iniciativas dos poderes políticos. Essa paranóia é potenciada pelos órgãos de comunicação social, e sustentada por análises políticas “certificadas” e por sondagens, cujo significado, em vez de relativizado, é tornado um valor absoluto e inquestionável. E, em Portugal, essa paranóia é igualmente potenciada pela fragilidade política do governo e pela sua inabilidade em lidar com ela.

Se um governo não consegue dar-se ao respeito perante a opinião pública terá desta o desrespeito; se o governo não consegue relativizar a paranóia da comunicação social, obterá desta uma paranóia maior e mais destrutiva. A comunicação social é um vampiro que se vivifica, que se alenta, do sangue e da miséria dos outros. Basta ver os jornais televisivos. Onde há rigor, competência, gravidade, dignidade, a comunicação social torna-se inócua e granjeia-se o respeito da opinião pública.

A democracia representativa baseia-se na delegação de poderes. O eleitorado delega nos parlamentares a sua representação durante uma legislatura. E delega não só pelas promessas que lhes foram feitas, mas também pela capacidade de discernimento que lhes atribui. No termo da legislatura julgará se os seus representantes actuaram devidamente e fará as suas novas escolhas em face do seu novo julgamento. É esta a essência da democracia: delegata potesta non potest delegari. O “excesso” de democracia, de pretender governar de acordo com a volubilidade das opiniões “instantâneas”, não é uma melhoria da democracia, mas a sua perversão; não é mais democracia, é pior democracia. Mais democracia obtém-se melhorando a relação dos eleitores com o seu eleito e estabelecendo um sistema eleitoral em que estes possam ser julgados com mais rigor pelas suas prestações individuais. Mais democracia obtém-se aumentando a transparência das decisões e dos actos da administração pública que afectam o cidadão; mais democracia obtém-se pelo rigor, isenção e espírito de missão de serviço público dos governantes no exercício dos cargos.

Com “eleições” semanais escrutinadas nas sondagens ou nas análises dos pretensos “fazedores de opinião” não se consegue mais democracia, mas a sua perversão. Não existem políticos, mas sismógrafos.

Os cônsules romanos eram eleitos anualmente. Mas eles não tinham que tomar medidas económicas de longo prazo ou de médio prazo. Só tinham que se assegurar que os navios largos e bojudos, vindos do Egipto ou da Sicília, continuassem a demandar o porto de Óstia para permitirem as distribuições de trigo aos proletários romanos, e organizar os espectáculos circenses para alegria e distracção da populaça. As virtudes no exercício dos seus cargos eram medidas pela espectacularidade e grandiosidade dos jogos circenses. Um ano era suficiente para a populaça, e demais para os cônsules, que depois iriam ressarcir-se dos seus gastos, espoliando alguma província distante com o cargo de procônsul.

A nossa sociedade não pode ser governada tentando satisfazer opiniões “instantâneas”, numa situação ainda mais volúvel que a dos cônsules romanos. Não se conseguem resolver os problemas, e os governantes que se colocaram de cócoras perante a opinião pública semanal, têm o respeito que normalmente se atribui a quem é apanhado com frequência inusitada nessa incómoda e desfavorável posição: nenhum.

Uma palavra de esperança, todavia. A nossa sociedade tem progredido pela luta entre a sua afirmação e a sua negação. Os meios modernos possibilitam auscultações quase instantâneas dos sentimentos da opinião pública. Este é um dado que não pode ser postergado. Não é ele que está em causa, mas a forma como tem sido usado pelos diversos protagonistas sociais. Mas a democracia aprende-se no seu exercício contínuo.

Contrariamente à ideia que muitos têm sobre as virtudes “absolutas” da democracia, a história mostra que não é bem assim. A maior quantidade de democracia pode não se traduzir, no imediato, na melhor qualidade da democracia. Louis-Napoléon, para chegar a Príncipe Presidente e depois a Napoleão III, instituiu primeiro o sufrágio universal, que então não existia. A sua ascensão teve uma adesão eleitoral esmagadora. Sem o sufrágio universal nunca atingiria o poder discricionário. Bismarck, para consolidar a sua política nacionalista e diminuir o peso parlamentar dos seus críticos, acabou com o sufrágio censitário, tornando-o parcialmente universal (as mulheres estavam excluídas). Igualmente na Grã-Bretanha, as sucessivas reformas eleitorais, que foram diminuindo o censo, tiveram, na maioria dos casos, o intuito de aumentar os apoios à política imperial. O primeiro efeito do alargamento da base do sufrágio na monarquia austro-húngara, em fins do século XIX, foi a eleição de um líder da extrema-direita.

E Portugal, só em 1918, com um decreto de Sidónio Pais, se alargou o sufrágio a todos os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos. Contudo, este alargamento só duraria um ano, com a reposição do antigo regime de incapacidades, logo que Sidónio Pais foi assassinado, a “República Nova” banida e o regime democrático restaurado. Portanto, foi um alegado aprendiz a ditador quem estabeleceu o sufrágio universal em Portugal, e foram os opositores à ditadura e democratas certificados quem restauraram as restrições eleitorais.

Hitler subiu ao poder aproveitando o regime democrático da República de Weimar, certamente um dos regimes mais abertos da época. Os nazis passaram de 2,6% (em 1928) para 18,3% (em 1930) e 37,3% (em Julho de 1932), havendo um pequeno recuo eleitoral em Novembro de 1932 (33,1%), mas que não favoreceu a esquerda, visto se ter dirigido para a direita clássica. As eleições no Lippe, em Janeiro de 1933, mostraram uma nova subida importante dos nazis e serviram de argumento para a indigitação de Hitler, em 30 de Janeiro, como Chanceler (afinal ele era o chefe do maior partido do Reichstag) à frente de um governo onde os nazis ainda eram muito minoritários (para além de Hitler, Frick no Interior e Goering na Aeronáutica). Um mês depois, nas eleições de 5 de Março, as últimas eleições livres na Alemanha de então, eleições que tiveram uma participação recorde, o NSDAP teve 44% (288 mandatos em 647) a 36 lugares da maioria absoluta. Como os Nacionais Alemães e os Populares (a direita clássica) obtiveram 52 lugares, estava constituída a maioria “democrática” para liquidar a democracia.

Se o mundo ocidental foi aprendendo a gerir o “aumento da democracia” e o sufrágio universal no sentido do fortalecimento da democracia e da liberdade, tal ainda não aconteceu com outras regiões do globo. O dilema nos países árabes é entre a manutenção de ditaduras, mais ou menos corruptas, mas que asseguram alguma tolerância religiosa e estabilidade política, ou a realização de eleições livres e a ascensão ao poder dos fundamentalistas islâmicos, intolerantes e fanáticos. Mesmo mais perto de nós, temos o exemplo das vitórias eleitorais de Hugo Chavez.

É importante meditarmos nas palavras de Tocqueville, há século e meio, ao afirmar que «a democracia tende a generalizar o espírito de corte, entendendo-se que o soberano, que os candidatos aos cargos adularão, é o povo e não o monarca. Mas adular o soberano popular não é melhor do que adular o soberano monárquico. Talvez seja até pior, uma vez que o espírito de corte em democracia é aquilo a que chamamos, em linguagem corrente, a demagogia».

Estes receios de Tocqueville foram simultaneamente confirmados e superados. A sociedade, perante a desregulação da democracia, aprendeu a regulá-la em novos moldes. A rádio e, posteriormente, a televisão, permitiram o advento dos ditadores, que as souberam controlar e usar, mas também ajudaram a à transparência social e política que dificultam o caminho para a ditadura e consolidam a democracia. Actualmente o cerne do problema já não está no controlo da informação. A informação está de tal forma banalizada, é de tal modo incontrolável em face da quantidade de emissores, que o problema é a “obesidade” da informação, a sua triagem, o saber separar o pouco trigo do muito joio, separar a verdade do boato, separar a realidade da manipulação, separar o fenómeno da sua imagem refractada sob ângulos diversos. A essência da política liberal e democrática é a construção de uma rica e complexa ordem social, não de uma ordem dominada pela manipulação, o boato, a meia-verdade, as imagens virtuais.

São estes os desafios que se colocam actualmente. Colocam-se directamente a cada um de nós, mas colocam-se indirectamente a todos nós, porque têm posto em causa a capacidade das nossas sociedades serem governadas com discernimento, com políticas coerentes e consistentes no longo prazo, e adequadas a tornarem as nossas sociedades mais prósperas, com melhor qualidade de vida e mais justas.

A história tem provado que os inimigos da democracia aprendem mais depressa a usarem o aumento da “quantidade” da democracia para a perverterem. Mas também tem provado que a sociedade tem sido sempre capaz de lhes responder e de transformar esse aumento da “quantidade” da democracia em maior “qualidade” da democracia.

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janeiro 01, 2004

O Mito da Caverna da Justiça

Onde Semiramis relata a Glauco, e à blogosfera em geral, o aprisionamento da percepção da verdade

Nós estamos, desde o início desta história da pedofilia, dia após dia, aprisionados na caverna subterrânea da justiça. Os nossos raciocínios e sentimentos estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas na direcção da informação que nos é veiculada, não podendo abri-los em qualquer outra direcção, nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna da justiça permite que uma ténue luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar as sombras que se movem no interior.

Por causa da luz exterior, enxergamos na parede do fundo da caverna algumas sombras processuais: documentos, depoimentos, escutas, testemunhas, etc., mas sem os podermos ver nem os factos, nem as pessoas a que dizem respeito.

Como nunca vimos as coisas “em si”, nós, os prisioneiros, imaginamos que as sombras que vemos são as próprias coisas. Ou seja, não podemos saber que são sombras, nem podemos saber se são factos, nem se são aquelas as pessoas a que respeitam, ou se há outras pessoas relacionadas esses factos fora da caverna. Também não podemos saber o que enxergamos porque imaginamos que toda a luz feita sobre os factos é a que reina na caverna.

Que aconteceria se algo nos libertasse? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria a opinião pública agrilhoada e a luz intensa vinda da abertura. Embora dorido por meses de imobilidade, começaria a caminhada rumo à entrada da caverna.

Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a verdade é como a luz do sol, e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se à claridade, enxergaria as próprias coisas e factos, descobrindo que, durante o ano que passou não vira senão sombras de imagens projectadas no fundo da caverna e apenas as relativas aos factos que quiseram projectar, e que somente agora está contemplando a realidade em si.

Liberto e conhecedor do real, o prisioneiro regressaria à caverna, contaria aos outros o que vira e tentaria libertá-los.

Que lhe aconteceria nesse regresso? Os demais prisioneiros troçariam dele, não acreditariam nas suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo, tentariam fazê-lo por qualquer outra forma e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por o hostilizar e eliminar do seu convívio.

E assim estamos nós. A imagem que nos chega das peças acusatórias é a que nos querem mostrar, reflectida segundo os ângulos que pretendem. O poder mediático e político dos arguidos e o poder corporativo da justiça são, ou podem ser, cristais refractores que criam ilusões onde deveria transparecer a verdade, que nos mergulham na sombra quando a nossa natureza humana anseia por viver banhada na luz da verdade.

Ou de como Semiramis resolveu iniciar o ano a filosofar

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outubro 27, 2003

Política e cultura 2 – Hobbes e Locke

Hobbes foi, politicamente, um apoiante devotado dos Stuarts e da monarquia reaccionária que aqueles tentaram em vão manter em Inglaterra, quer antes de Cromwell, quer durante a Restauração. Pelo contrário, Locke, meio século mais novo, era contra o regime dos Stuarts, e participou no movimento político que liquidou a Restauração e levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange.

Hobbes é temível porque a sua doutrina é clara, radical e detestada. Os seus postulados relativos à natureza humana não são lisongeiros e as suas conclusões políticas são despidas de qualquer liberalismo.

A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista - a moral reduz-se ao interesse e à paixão. Na base de todos os nossos valores, há o instinto de conservação. O homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos.

Assim sendo, o homem tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. É nesta doutrina profundamente individualista que Hobbes fundamenta o poder absoluto.

Escreve Hobbes no Leviatã: Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem.

Quanto a Locke, este deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livres e iguais, têm direito à vida e à propriedade e, na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à natureza humana. Locke admite um estado primitivo da natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas com um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.

Mas em ambos há o mesmo individualismo que contestou a tradição cristã da lei natural. E é inegável que o individualismo de Hobbes a Locke marcou profundamente toda a tradição liberal ulterior. Enquanto princípio fundamental, data de Hobbes. As conclusões deste passarão dificilmente por liberais: todavia os seus postulados estão completamente impregnados de individualismo. Rejeitando os conceitos tradicionais da sociedade, da justiça e da lei natural, é sobre o interesse da sociedade e indivíduos distintos que Hobbes funda a sua teoria dos direitos e obrigações políticas.

Sob a forma de crença na igualdade moral de todos os homens, é ainda o individualismo que se encontra no pensamento político dos Puritanos. E o lugar que ele ocupa em Locke, por ser ambíguo, não é menos considerável por isso. Todas estas doutrinas ligam-se estreitamente à luta pela liberalização do Estado, luta na qual a teoria de Locke e dos puritanos constitui, em grau igual, a principal justificação.

E todos os desenvolvimentos subsequentes, Bentham, etc., assentam nas fundações colocadas por Hobbes.

Os problemas que levanta a moderna teoria da democracia liberal não são senão outra expressão da dificuldade essencial que já aparecia nas origens do individualismo: este é de facto a afirmação de uma propriedade, está ligado indissoluvelmente à posse, ou seja, à tendência em considerar que o indivíduo não é em nada devedor da sociedade da sua própria pessoa ou das suas capacidades, das quais é, por essência, o proprietário exclusivo. O indivíduo não é concebido nem como um todo moral nem como a parte de um todo social que o ultrapassa, mas como o seu próprio proprietário.

O indivíduo não é livre senão na medida em que é proprietário da sua pessoa e das suas capacidades. Ora a essência do homem é ser livre, independente da vontade dos outros e esta liberdade é função do que possui.

Nesta perspectiva a sociedade reduz-se a um conjunto de indivíduos livres e iguais, ligados uns aos outros enquanto proprietários das suas capacidades e daquilo que o exercício destas lhes permite adquirir, em suma, a relações de troca entre proprietários.

Quanto à sociedade política ela apenas se destina a proteger esta propriedade e a manter a ordem nas relações de troca.

Hobbes estará assim tão longe de Locke? O que é substantivo em ambos, não é similar? E as suas opções políticas não serão apenas um epifenómeno de somenos importância?

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outubro 03, 2003

Habermas galardoado

Aproveitando a ocasião de Habermas ter sido galardoado como Prémio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais 2003, gostaria de contrapor Habermas a Marx, um humanista cosmopolita face a um filósofo que o empenhamento político acabou por lhe datar em muito o seu pensamento.

Habermas acha que Marx reduziu a filosofia - e o poder crítico que esta ainda dispunha em Kant e Hegel - a uma mera ciência instrumental e, assim sendo, incapaz de dar conta de outros domínios importantes na compreensão da sociedade e da história em geral, tal como a prática orientada para a comunicação, capaz de combater formas de repressão social e convergir para a emancipação da humanidade. Assim, segundo Habermas, o que não é pensado por Marx é o processo geral de emancipação da humanidade, pois que reduziu a reflexão ao nível instrumental através da categoria trabalho.

Embora reconhecendo a relevância da questão levantada por Habermas, um dos pontos que considero primordial é a perspectiva redutora relativa à forma como Marx interpreta o devir histórico que levou a que os conceitos de «relações de produção» e de «forças produtivas» sejam, com muita frequência, utilizados sem que necessariamente se saiba aquilo de que se abstraiu na formação de tais conceitos. Quando «marxistas» falam das relações recíprocas entre «relações de produção» e «forças produtivas», geralmente menosprezam o número infinito de fenómenos concretos, de homens, de coisas e de acções pelos quais essas relações, expressas de maneira abstracta, surgem concretamente na realidade.

Mas os pensadores marxistas mais clarividentes tiveram consciência de como o devir histórico em Marx poderia ser encarado de uma forma redutora. Engels, no fim da sua vida, tomou seguramente consciência disso, pois numa carta a Borgius, em 1894, frisou que “o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., assenta no desenvolvimento económico. Mas reagem todos, uns sobre os outros, e sobre a base económica. Mas isto não porque a situação económica seja a única causa activa, e tudo o resto não passe de acção passiva. Pelo contrário, há uma acção recíproca”.

Infelizmente para o aperfeiçoamento do pensamento marxista, os sucessores de Engels – Kautsky e Bernstein – foram menosprezados e menorizados com o emergir de Lenine e o triunfo do bolchevismo, e o pensamento marxista ficou cristalizado.

14-Maio-2003

Publicado por Joana às 05:06 AM | Comentários (0) | TrackBack

outubro 01, 2003

Berkeley e o Zé - o "contradictio in se"

Desconheço-o!! Afinal você é mestre em Etelvinas Cardonas. Você sabe tudo dela ... Doutorou-se em Celeste Cardona e aposto que a sua agregação terá como tema uma aula sobre essa ministra malvada.
Quanto ao Reverendo G. Berkeley, Bispo de Coygne ser solipsista, nada feito! Estive ao jantar no Olimpo, absorvendo ambrósia, mel e arroz de lingueirão, a conferenciar com ele, para o convencer a vir a este fórum para debater o imaterialismo e o empirismo escolástico connosco, e provar que ele não advogava que a consciência do sujeito cognoscente é a única existente, mas nada.
O homem tem aquela teimosia própria de bispo anglicano em terras da Irlanda. Uma espécie de reverendo Paisley. Aquele nem se consegue demover se o IRA o atacar à bomba!
E depois, entrincheirado atrás do «esse est percipi», ele negou a existência do ze da esquina, a existência do Expresso, a existência deste site e chegou a negar a minha própria existência, cada vez que eu lhe virava as costas. Aliás disse-me na cara que não sabia se eu existia, a única coisa que podia saber era a ideia que tinha de mim. Pior, ao ter essa ideia, nada lhe garantia que eu existisse, ou que, se existisse, tivesse algo a ver com essa ideia.
Mais, a ideia que ele tinha do exterior tinha sido produzida por um espírito absolutamente perfeito e seria uma hipótese absurda supor que as ideias tivessem qualquer suporte material. Os objectos exteriores são quimeras, garantiu-me.
Ainda me passou pela mente dar-lhe um par de estalos, mas depois, penetrando mais fundo no pensamento do nosso bispo, concluí que tal não adiantaria nada. Ele ficaria apenas com a ideia dos estalos, por muito dolorosa que fosse, mas sempre incapaz de saber se os estalos existiriam exteriormente à ideia. Quanto muito poderia começar a ter dúvidas sobre a perfeição do tal espírito superior ao produzir-lhe ideias tão dolorosas.
Convenhamos que é difícil dialogar assim. É quase tão mau como que dirimir Celestes Cardonas consigo, aqui no fórum. Frequentemente dava por mim a apalpar-me, indecisa sobre a minha própria existência. Então, quando lhe citei Hume, o homem foi aos arames! Ainda está ressentido com as críticas que este lhe fez. Acho que continuam a evitar-se quando se passeiam pelo Olimpo! Aliás, para ele, Hume não existe. É apenas uma ideia obtusa sem suporte material!

26-12-2002 22:13:00

Publicado por Joana às 10:52 AM | Comentários (4) | TrackBack