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janeiro 01, 2004

O Mito da Caverna da Justiça

Onde Semiramis relata a Glauco, e à blogosfera em geral, o aprisionamento da percepção da verdade

Nós estamos, desde o início desta história da pedofilia, dia após dia, aprisionados na caverna subterrânea da justiça. Os nossos raciocínios e sentimentos estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas na direcção da informação que nos é veiculada, não podendo abri-los em qualquer outra direcção, nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna da justiça permite que uma ténue luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar as sombras que se movem no interior.

Por causa da luz exterior, enxergamos na parede do fundo da caverna algumas sombras processuais: documentos, depoimentos, escutas, testemunhas, etc., mas sem os podermos ver nem os factos, nem as pessoas a que dizem respeito.

Como nunca vimos as coisas “em si”, nós, os prisioneiros, imaginamos que as sombras que vemos são as próprias coisas. Ou seja, não podemos saber que são sombras, nem podemos saber se são factos, nem se são aquelas as pessoas a que respeitam, ou se há outras pessoas relacionadas esses factos fora da caverna. Também não podemos saber o que enxergamos porque imaginamos que toda a luz feita sobre os factos é a que reina na caverna.

Que aconteceria se algo nos libertasse? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria a opinião pública agrilhoada e a luz intensa vinda da abertura. Embora dorido por meses de imobilidade, começaria a caminhada rumo à entrada da caverna.

Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a verdade é como a luz do sol, e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se à claridade, enxergaria as próprias coisas e factos, descobrindo que, durante o ano que passou não vira senão sombras de imagens projectadas no fundo da caverna e apenas as relativas aos factos que quiseram projectar, e que somente agora está contemplando a realidade em si.

Liberto e conhecedor do real, o prisioneiro regressaria à caverna, contaria aos outros o que vira e tentaria libertá-los.

Que lhe aconteceria nesse regresso? Os demais prisioneiros troçariam dele, não acreditariam nas suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo, tentariam fazê-lo por qualquer outra forma e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por o hostilizar e eliminar do seu convívio.

E assim estamos nós. A imagem que nos chega das peças acusatórias é a que nos querem mostrar, reflectida segundo os ângulos que pretendem. O poder mediático e político dos arguidos e o poder corporativo da justiça são, ou podem ser, cristais refractores que criam ilusões onde deveria transparecer a verdade, que nos mergulham na sombra quando a nossa natureza humana anseia por viver banhada na luz da verdade.

Ou de como Semiramis resolveu iniciar o ano a filosofar

Publicado por Joana às janeiro 1, 2004 07:37 PM

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Comentários

Platão sempre actual. Bom 2004, sem aparições de Santa Aguiar :-)

Publicado por: PB às janeiro 1, 2004 10:07 PM

Começar 2004 a filosofar é mau prenúncio. Ânimo!
Então não previu retoma em 2004?

Publicado por: Rave às janeiro 2, 2004 10:26 AM

Só se vêem nuvens de fumo lançadas sobre o processo.
Lêem-se mais ataques aos procuradores encarregados do processo e às testemunhas-vítimas que aos arguidos.
Isto ainda vai acabar na condenação dos miúdos e dos procuradores. Também ninguém os mandou meterem-se com gente graúda.

Publicado por: Domino às janeiro 2, 2004 11:10 AM

Há uma grande campanha dos meios de comunicação tentando descredibilizar o processo, mas as coisas hão de vir a público à medida que as peças do processo forem tornadas públicas e a campanha de desinformação tiver menos chances.
Espera-se que a investigação tenha sido mais capaz do que os meios de comunicação dão a entender.
E espera que a campanha de descredibilização do processo não leve a que tudo fique em águas de bacalhau.

Publicado por: Viegas às janeiro 2, 2004 12:02 PM

Temos uma justiça cavernosa, unspolíticos cavernosos, TV's cavernosos.
Vivemos na Idade da Pedra

Publicado por: A Nereu às janeiro 2, 2004 04:32 PM

A questão mais equívoca da actual situação é a de que cada um acredita naquilo que lhe convém, sem ter em conta verdades ou inverdades, mas apenas a sua cor política.
Todos têm concorrido para isso:os políticos, a justiça, os meios de comunicação

Publicado por: Hector às janeiro 2, 2004 05:44 PM

Há de facto muita poeira no ar. E não sei se chegará a assentar com a remexida que fazem todos os dias

Publicado por: Gros às janeiro 3, 2004 11:52 PM

O PGR repetiu ontem o que havia afirmado no dia anterior: há uma campanha de intoxicação contra este processo.

Publicado por: Humberto às janeiro 4, 2004 01:33 AM

Não há dúvida que este texto está muito bem escrito. Parabéns

Publicado por: Rui Pereira às janeiro 4, 2004 05:36 PM

O procurador teve que fazer várias declarações porque a imprensa insistia em interpretá-lo contrariamente ao que ele havia dito.

Publicado por: Hector às janeiro 5, 2004 12:12 AM

Queria igualmente dizer-lhe que este texto está muito bem estruturado. A escolha do motivo, a ausência de politiquice, o plano em que foi escrito. Gostei

Publicado por: Admirador Condicional às janeiro 5, 2004 10:28 AM

Queria felicitá-la. Este texto é do melhor que tenho lido sobre este caso.

Publicado por: L M às janeiro 5, 2004 11:55 AM

Nosso trabalho está ótimo

Publicado por: Levi Paiva às abril 4, 2004 06:43 PM

Estava procurando um texto para trabalhar o mito da caverna com meus alunos e achei uma boa idéia como modo de demonstrar a intertestualidade, bem como a atualidade filosófica da caverna.

Publicado por: jane às maio 14, 2005 06:58 PM

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