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julho 28, 2005
Debates Monásticos
Era uma noite de Inverno, num mosteiro medieval alcandorado nos Alpes, sob um intenso nevão e uma temperatura inferior a 20º abaixo de zero (de acordo com o actual critério de Celsius). Nessa noite gélida, convidativa à introspecção e à meditação sobre a essência das coisas, um grupo de monges embrenhou-se numa discussão sobre a questão de saber se o leite gelava. Horas a fio debateram e procuraram clarificar os conceitos e a essência do leite e do frio, para assim poderem responder à questão.
Um monge agitava um velho rolo de pergaminho com excertos da Física de Aristóteles, outro exibia a sua erudição citando de memória sentenças aristotélicas da Ética a Nicómaco e da Metafísica. As Etimologias de Isidoro de Sevilha, o Apologeticus de Tertuliano, Clemente de Alexandria e Agostinho de Hipona vieram igualmente iluminar o debate. Um monge mais modernista estribava-se com veemência na Suma Teológica. A discussão prolongou-se pela noite dentro, enquanto a lareira crepitava e, aliada ao calor da contenda, mantinha os monges confortados e ao abrigo da intempérie.
De manhãzinha ainda não tinham conseguido concluir nada. Dúvidas consistentes persistiam sobre a essência do leite e do frio. Não havia razões lógicas que tornassem possível qualquer conclusão fundamentada. Adormeceram sobre aquelas dúvidas angustiantes.
Ninguém se lembrou de colocar uma tigela com leite no parapeito exterior de alguma das janelas do mosteiro.
Publicado por Joana às julho 28, 2005 06:14 PM
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Comentários
Não sei se mesmo que o leite da tijela gelasse, os monjes concluiriam alguma coisa. A opinião de todos esses filósofos era capaz de ser mais importante.
Publicado por: Novais de Paula às julho 28, 2005 06:17 PM
Essa parábola está interessante mas pode ter várias leituras. É importante conhecer as coisas, mas também é importante conhecer a teoria. Não podemos estar continuamente a tentar inventar a roda.
Percebo onde a Joana quer chegar. Mas muitos tentarão concluir pela não necessidade de conhecer a teoria.
Publicado por: Novais de Paula às julho 28, 2005 06:22 PM
Absolutamente natural, afinal de acordo com o paradoxo de Murphy fazer as coisas da maneira mais difícil é sempre mais fácil.
Mesmo que o leite gelasse seria sempre no exterior do mosteiro enquanto no quentinho estaria bem apetitoso.
Então para quê preocuparem-se uma vez que se lembrariam da lei da retórica de Hartz que avisa uma discussão levada suficientemente longe termina em semântica.
Publicado por: carlos alberto às julho 28, 2005 06:59 PM
O problema é a discriminação sexual. Se houvesse monjas nesse mosteiro, os monjes não se entretinham com questões menores
Publicado por: Sa Chico às julho 28, 2005 07:33 PM
O problema é a discriminação sexual. Se houvesse monjas nesse mosteiro, os monjes não se entretinham com questões menores
Publicado por: Sa Chico às julho 28, 2005 07:33 PM
Esta estorieta do leite e dos monges faz-me aflorar à mente (perversa,ihihih) a deliciosa cena do Boccaccio de Pasolini em que um surdo-mudo consegue por artes e manhas ser acolhido num convento de freiras,,,
o resto não pode ser aqui descrito, para não causar "irzipela" (é assim que se escreve?) às almas puritanas ( o tanas) democratas-cristônas,,,
O que se torna adivinhável é que,nesse caso, na realidade a temperatura efectivamente subiu,,,
Publicado por: xatoo às julho 28, 2005 07:34 PM
Tem graça, já naquele longínquo tempo os monjes antecipavam o ambiente quotidiano que se vive no Semiramis. Também aqui só se citam os clássicos; ninguém se lembra de colocar a tijela no parapeito!...
Publicado por: Senaqueribe às julho 28, 2005 09:02 PM
Estória muito inducativa
Publicado por: Cisco Kid às julho 28, 2005 09:47 PM
Senaqueribe às julho 28, 2005 09:02 PM:
É para não cair
Publicado por: Cisco Kid às julho 28, 2005 09:49 PM
Continuamos a cerrar presunto...e a adorar quem isso sempre fez. Uma versão semirática do Ovo de Colombo!
Publicado por: elmano às julho 28, 2005 10:04 PM
A joana coloca tantos posts que nem há tempo para comentar.
Publicado por: Mario às julho 28, 2005 10:45 PM
Senaqueribe às julho 28, 2005 09:02 PM:
A prática não é apenas uma colecta de dados empíricos. É igualmente o questionar desses dados e do seu significado. E para os questionar com mais madura reflexão, deve saber-se o que outros teorizaram sobre o assunto.
Publicado por: Joana às julho 28, 2005 11:14 PM
Estará a Joana a querer dizer, no seu texto de abertura, que a reflexão é uma perda de tempo? Pelo que ela por aqui vai escrevendo, no campo da economia, até parece que é isso que ela pensa... A economia é uma cartilha que não se discute?... Até parece fundamentalismo... O que levará pessoas inteligentes a abdicarem do seu senso crítico? Preguiça mental?...
Publicado por: Albatroz às julho 28, 2005 11:47 PM
Já vi serrar presunto, mas ainda não vi cerrar presunto.
Publicado por: Humberto às julho 28, 2005 11:55 PM
cerrar o presunto é metê-lo dentro do armário
Publicado por: xatoo às julho 29, 2005 12:02 AM
Estes monjes foram depois eleitos para a AR portuguesa.
Publicado por: vitapis às julho 29, 2005 12:08 AM
Mario às julho 28, 2005 10:45 PM: e alguns que comentam não tiveram tempo de os ler.
Publicado por: Hector às julho 29, 2005 12:32 AM
Uma boa história, para se ler à noite
Publicado por: Ricardo às julho 29, 2005 12:40 AM
Mesmo de Verão
Publicado por: Ricardo às julho 29, 2005 12:40 AM
A perspectiva científica é moderna e esses monjes eram vítimas do mal da época. Infelizmente continuam a haver muitos monjes. Mas também a simples observação, sem ir ao fundo das coisas, conduz a erros igualmente estúpidos
Publicado por: Rui Sá às julho 29, 2005 09:17 AM
Este blogue entrou em plena silly season.
Publicado por: Luís Lavoura às julho 29, 2005 09:34 AM
Não se preocupe Joana, deve ter sido assim que se descobriu o iogurte.
PS- então e quando vamos ao valor de existência? Talvez se tenha de começar por Heraclito: "nunca passarás duas vezes no mesmo rio porque novas águas correrão sob ti".
Publicado por: pyrenaica às julho 29, 2005 10:33 AM
pyrenaica às julho 29, 2005 10:33 AM
A questão do valor de existência, lembra-me um episódio da minha infância, que passo a relatar (devidamente autorizado):
À entrada da minha aldeia, na fronteira indefinida entre a Gândara e os campos do Mondego, existia um velho pinheiro manso, de porte majestoso. Um dia, o proprietário deste "senhor" resolveu cortá-lo porque lhe criava sombra em meia dúzia de videiras e no batatal. Cortou-o e ali o deixou. Não aproveitou sequer a madeira.
A minha mãe chorou.
Há dias, ao passar no local, perguntei à minha mãe qual a razão daquela tristeza. Respondeu-me que o pinheiro era parte da memória da sua infância.
O pinheiro não valia nada para o seu proprietário. Para a minha mãe tinha um enorme valor de existência.
Colocar isto em números é um desafio...
Publicado por: Vítor às julho 29, 2005 12:19 PM
No caso do pinheiro só pode prevalecer o bom senso do proprietário. Um pinheiro manso demora 30 ou 40 anos a ter um tamanho razoável e algumas centenas a ser enorme.
Publicado por: Hector às julho 29, 2005 12:49 PM
"A prática não é apenas uma colecta de dados empíricos. É igualmente o questionar desses dados e do seu significado. E para os questionar com mais madura reflexão, deve saber-se o que outros teorizaram sobre o assunto."
O pior é que boa parte dos que teorizam não provam nada, ou só provam... que estão errados.
Publicado por: Senaqueribe às julho 29, 2005 06:10 PM
Olá Vítor. É um terrível desafio o que vale é que eu gosto de desafios, mas enfim eu tenho que procurar objectivar o problema, ou melhor colocá-lo numa plataforma intersubjectivamente estável, para a qual não vejo melhor do que a teoria da infoemação. Será sempre apenas uma aproximação.
Desde há um século que se sabe que existem einfinitos tipos de infinito, mas também me irrita uma punhet@ desconstrucionista. Abraço dendrófilo.
Publicado por: pyrenaica às julho 29, 2005 06:30 PM
A questão do leite transformou-se na questão do pinheiro.
Publicado por: asser às julho 29, 2005 07:53 PM
essa faz lembrar o número de dentes das meulheres, que pelas contas de Aristóreles era menor que dos homens. O grande Aristóteles, bem podia ter pedido à mulher para abrir a boca e contá-los. Coisas compreensíveis quando a abstracção se sobrepõe ao próprio conceito de abstracção.
Publicado por: pedro às julho 29, 2005 10:54 PM
Também há a questão das patas das moscas em que se enganaram pela mesma razão
Publicado por: Arroyo às julho 30, 2005 04:08 PM
Enganaram-se?
Quem?
Publicado por: curioso às julho 30, 2005 11:23 PM
Que frio
Publicado por: didi às setembro 8, 2005 11:05 AM