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março 16, 2005

Os Idos de Março de 44AC 6

Política Monetária

Tenho tido a preocupação, nesta série de postas, e em anteriores, de sempre que me refiro a valores romanos, traduzi-los em termos actuais, para se ter uma ideia do valor de que estamos realmente a falar. Aproveito esta posta para fazer uma análise ainda que necessariamente superficial, do sistema monetário romano e da sua equivalência em termos actuais. César mandou cunhar o aureus de 8,186g (40 por libra romana). Quando Augusto, após a vitória sobre Marco António, regressou do Egipto trazendo um imenso tesouro saqueado daquele país, o pôs em circulação para reactivar os negócios que tinham estagnado após a instabilidade da guerra civil, estimulou-os, mas estimulou também os preços, o que provocou uma enorme inflação e uma crise financeira. Já naquela época o keynesianismo não era uma receita segura!

Os bancos e caixas económicas tiveram que fazer frente a uma corrida aos levantamentos, e foram obrigados a encerrar os balcões. As indústrias e as lojas, que vendiam a fiado, não puderam pagar aos fornecedores e tiveram também elas que fechar as portas. O pânico alastrou. A situação só se estabilizou completamente no reinado de Tibério. Augusto (-27 a +14) cunhou assim um novo aureus com 7,96g Au. No tempo de Augusto o sistema monetário romano era o seguinte:

Divisa........Equivalente a........Conteúdo metálico...Euros à cotação do Ouro
Talento...........384 Aureos........3.056,64gr Au...........36.361,10 €
Aureo..............25 denarios..........7,96gr Au...............94,69 €
Denario.............4 Sestercios........3,89gr Ag................3,79 €
Sestercio...........4 ases..............54,50gr Bronze..........0,95 €
Ase.........................................13,60gr Bronze..........0,24 €


Os valores em euros foram calculados de acordo com a cotação actual do ouro. A cotação da prata não colhe para o efeito, pois que o câmbio entre o ouro e a prata, que durante milénios, no mundo ocidental e no médio oriente, variou entre 12 e 13 para 1 (no tempo de Augusto era 12,2 para 1), a partir do último quartel do século XIX disparou, desvalorizando muito a prata, face ao ouro (actualmente o câmbio é de 61 para 1).

Mas não é óbvio que o ouro tivesse então um poder de compra igual ao actual. Tudo indica que a carência de metais preciosos fazia com que o ouro valesse mais então, em face dos restantes bens transaccionáveis. É bastante complexo avaliar em termos de paridade de poder de compra, pois teria que se ter uma ideia precisa do cabaz de compras de então, que desconheço, embora calcule que as despesas de alimentação pudessem constituir 70% a 80% do orçamento médio familiar e que o principal alimento fossem os cereais. Em face dos preços de alguns bens, retirados de várias fontes, nomeadamente do Édito de preços máximos de Diocleciano, de 301AD, estimei que multiplicar os valores calculados acima por 5 poderia fornecer uma avaliação mais correcta. Assim sendo, 1 sestércio de Augusto poderia equivaler a 5€ actuais, mas isto é apenas um feeling, pois não fiz qualquer estudo rigoroso. Posso contudo afirmar que qualquer número entre 3€ e 6€ pode estar certo, mas não me parece relevante ir mais longe no rigor. O que me parece relevante é ter uma ideia aproximada dos valores de que falamos.

O Talento era obviamente uma unidade contável, de cálculo, e não uma moeda. Havia outra divisa, o Sestertium (HS), que valia mil sestércios, e que aparece frequentemente na literatura.

Aqueles cálculos são válidos para o tempo de Augusto. No tempo de Nero (54 - 68) o aureus já só continha 7,4g a 7,6g de Ouro, o que significava uma desvalorização de 5% a 7%. Essa ligeira desvalorização prosseguiu durante os Flávios e Antoninos, mas a partir de Cómodo foi a catástrofe. Só no reinado deste houve uma desvalorização de 30% provocada pela carência de reservas metálicas. A quebra de moeda de Cómodo foi a par com um Édito fixando os preços máximos. Mas como se tem verificado desde sempre, e até hoje, esse tipo de intervenção estatal na economia salda-se invariavelmente por um desastre total. Mas Cómodo, o último dos Antoninos, já não pertence à Antiguidade Clássica, pertence ao período de agonia do Império Romano que não foi mais que a antecâmara da Idade Média.

A partir daí e até Diocleciano não vale a pena fazer contas. O século que mediou entre ambos foi de completo caos na vida económica e política o que lançou o Império na anarquia fiscal e monetária. Uma moeda de prata introduzida então foi o antoninianus, equivalente a 2 denarius. Todavia depreciou-se a grande velocidade. No tempo de Sepímio Severo a moeda tinha 50% a 60% de liga e no tempo de Galiano e Cláudio II a liga passou de 90% a 95% e a 98,5%. Em 256, as moedas de prata estavam já tão adulteradas que não passavam de simples fichas de cobre cobertas por uma delgada película de metal fino. E, como os imperadores não estavam em condições de impor a sua circulação, o custo da vida subiu cerca de 1.000% entre 256 e 280.

Foi Diocleciano (285 – 305) que introduziu um novo aureus (5,45g) e estabilizou, momentaneamente, a moeda. Introduziu igualmente uma moeda de conta denarius communis (1/50.000 de uma libra de ouro de 327g) que se destinava, em caso de carência de metais e desvalorização, a servir de tabela de correspondência. Era uma forma engenhosa de não alterar as listas de preços oficiais com a desvalorização da moeda: mantinha a lista em denarius communis e alterava apenas o factor de conversão. Foi nesta unidade de cálculo que Diocleciano elaborou o célebre Édito de Preços Máximos de 301 (Edictum de pretiis rerum venalium), que chegou aos nossos dias e me serviu de uma das bases para avaliar a cotação do ouro face às outras mercadorias. Esse Édito foi um desastre económico completo. Os mercadores esconderam os bens e os preços subiram sem ter em conta o Édito, que foi mais tarde anulado por Constantino.

Constantino, 2 ou 3 décadas depois, mandou cunhar o solidus, que continha 4,55gr de Ouro, quase idêntico ao aureus de Diocleciano. Esta moeda teve a peculiaridade de dar o nome a uma série de moedas europeias – soldo, sou francês, xelim inglês, etc.

Ler igualmente:
Os Idos de Março de 44AC 6
Os Idos de Março de 44AC 5
Os Idos de Março de 44AC 4
Os Idos de Março de 44AC 3
Os Idos de Março de 44AC 2
Os Idos de Março de 44AC 1

E como complemento sobre o mesmo período:
Orçamento de Estado para 14 AD
O Mercado de Trabalho

Publicado por Joana às março 16, 2005 11:31 PM

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Comentários

Queria dar-lhe os parabéns por estes posts sobre esta época. Nomeadamente por combinarem informação muito interessante com teses "provocatórias" muito ao seu gosto!

Publicado por: L M às março 28, 2005 03:05 PM

Perfeitamente de acordo com o LM. São interessantes, principalmente por serem provocatórios!

Publicado por: Novais de Paula às março 28, 2005 03:43 PM

Talvez demasiado "erudito" para a blogosfera, mas muito interessante para quem se interessa por estes assuntos

Publicado por: v Forte às março 28, 2005 04:34 PM

históricamente muito saudável para dar ar aos alfarrábios da comadre Joana,,,
porem,,,pouco oportuno estar a discutir os sistércios de Roma,, quando o Poder na realidade já está em Bizâncio,,,
por aqui não escapa rato, até os clássicos são manipulados

Publicado por: xatoo às março 28, 2005 06:05 PM

Para os tipos alérgicos a asma é pouco saudável

Publicado por: AJ Nunes às março 28, 2005 06:12 PM

Não conseguindo meter este comentário no sítio próprio (Os Idos de Março 44AC 1), vai aqui mesmo:

Nestas histórias alternativas e reflexões sobre o que teria sido se..., a minha favorita é a seguinte: Que teria acontecido se Américo Tomaz tivesse nomeado Franco Nogueira para a Presidência do Conselho, em vez de Marcelo Caetano, quando da incapacidade de Salazar? Franco Nogueira, que tinha tido as suas origens num republicanismo algo de esquerda, mas que tinha um profundo sentido do interesse nacional, teria provavelmente conseguido democratizar o regime sem abrir as brechas que Marcelo Caetano tão ingenuamente abriu. Ou seja, não teria havido o 25 de Abril, as relações com o Ultramar teriam evoluido para uma comunidade de países interdependentes, Portugal não teria entrado na União Europeia, ou ter-se-ia apenas associado, e estaríamos hoje numa situação política e económica muito melhor. A nomeação de Marcelo Caetano - mera reciclagem da tentativa de golpe de Botelho Moniz - foi o erro mais trágico da nossa história recente. Marcelo não tinha nem a firmeza nem o sentido de Estado para ser um bom governante. Era um lírico, e foi manipulado. Coisa que Franco Nogueira nunca teria sido. Se eu tivesse o poder de mudar a História, era aí que eu interviria. Mais longe na nossa história, teria talvez também impedido o assassinato do Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luis Filipe, o que nos teria evitado as desgraças das três repúblicas...

Publicado por: Albatroz às março 28, 2005 10:57 PM

If...
Com a devida vénia subscrevo Albatroz.

Publicado por: takitali às março 28, 2005 11:56 PM

Eu interviria logo no Afonso Henriques e não deixaria fugir a Galiza. Falavam a mesma língua e hoje tinhamos umas pescas em condições

Publicado por: David às março 29, 2005 12:01 AM

Duvido, caro Albatroz, que o Embaixador tivesse conseguido "neutralizar" - já por alturas de 1969/1970 - os dois imperialismos que se digladiavam no Ultramar de modo a constituir uma «comunidade de países interdependentes». Pelo menos em outra base que não aquela que hoje conhecemos pela designação de PALOP'S.

Publicado por: asdrubal às março 29, 2005 01:54 PM

Caro Asdrubal,
Esquece que, em 1973, Portugal tinha ganho a guerra em Angola e que acabaria por ganhar também a guerra em Moçambique. A Guiné era mais complicada. Esse sucesso militar teria impedido os dois imperialismos de irem muito mais além do que chatear. E Franco Nogueira - que tive o gosto de conhecer pessoalmente - era suficentemente inteligente para perceber que a vitória militar tinha de ser acompanhada do reconhecimento do direito dos angolanos e moçambicanos à autodeterminação. Mas uma autodeterminação que os juntasse a nós num projecto pós-colonial, numa parceria sem senhores e sem vassalos.

Curiosamente acho que esse sonho ainda é possível, se percebermos que o nosso destino não é a Europa. O nosso destino são 200 milhões de lusófonos, dos quais apenas 10 estão na Europa.

Publicado por: Albatroz às março 29, 2005 07:44 PM

Joana: Esta sua série de posts sobre César e as contradições institucionais e sociais de Roma está muito boa. Só agora tive a oportunidade de a ler na íntegra. Contém material precioso, que normalmente não constam dos livros sobre a Antiguidade Clássica (eu pelo menos nunca encontrei) e dá uma visão muito interessante e, parece-me inovadora, sobre este período.
E feita ao seu jeito, ao jeito de outros posts do género que tenho lido. Estamos a ler a sua análise sobre coisas passadas à 2 mil anos e a sentir a sua actualidade, a sentir que os ensinamentos colhidos pelas experiências dessas épocas nos podem ser úteis.
Parabéns

Publicado por: L M às março 30, 2005 11:54 AM

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