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março 28, 2005

A Morte do PEC

O Pacto de Estabilidade e Crescimento acabou. Foi vítima da sua excessiva rigidez e de ser o próprio país que obrigara a sua adopção, como condição necessária da criação do euro, a violá-lo repetidamente. O que é preocupante não foi a sua flexibilização – esta teria que ocorrer. O que é preocupante foi a forma atrabiliária, sem coerência e sem critérios inequívocos, como essa flexibilização ocorreu. Não foi o júbilo por se ter conseguido um avanço; foi um suspiro de alívio, por ter acabado um empecilho. O Ministro das Finanças francês foi claro: o novo pacto é "Mais político e menos tecnocrático". Em linguagem política leia-se: passou a depender das necessidades eleitorais e não de critérios técnicos.

Mantêm-se os limites de 3% (défice) e 60% (dívida pública), mas com uma leitura “flexível”. São toleradas violações desde que ligeiras e temporárias, quando haja um crescimento fraco ou por causas “pertinentes”: reformas estruturais, investimento em I&D, custos de “unificação”(!) (exigido pela Alemanha), a elevada contribuição para o orçamento comunitário, cooperação internacional e despesas militares (da lavra da França), custos com as reformas dos sistemas de pensões (a pedido dos Estados do Leste) .... A UE arrisca-se, em vez de um Pacto de Estabilidade e Crescimento, a ter um Pacto de Flexibilidade e Salve-se-quem-puder. Será a vitória da hipocrisia política sobre o rigor “tecnocrata”.

O fim do PEC, uma regra geral e clara, e a sua substituição por um mecanismo abstracto, que pode ter leituras diversas, ser objecto de regateio e de fácil conluio entre Estados (eu apoio-te nesta questão e tu proteges-me naquela ...), introduz a arbitrariedade na avaliação das situações orçamentais dos Estados membros. Arbitrariedade que só favorece os Estados maiores e mais ricos.

No caso dos países pouco avessos a rigor orçamental, como Portugal, as consequências podem ser mais nefastas. Até à data, o limite de défice orçamental era uma barreira clara e quantificada que estava ali, e para a qual haveria punição se fosse ultrapassada. Agora não.

Ora o excesso de despesa leva a um aumento da procura, induzida pelo aumento do rendimento disponível, um aumento concomitante das importações (parte significativa do aumento do consumo dirige-se a bens importados), à degradação do nosso saldo de transacções com o exterior, a um desequilíbrio cada vez mais grave das nossas variáveis macroeconómicas, a uma diminuição da nossa competitividade com o exterior e ao nosso declínio económico. E o mais grave é este ser um processo económico e social ao qual cada um tenderá a dar a explicação mais conveniente em termos de dividendos políticos.

Antes havia um número. Um número imposto por Bruxelas. Podia criticar-se, mas ele erguia-se perante nós como uma força exterior e incontornável. Agora há a “flexibilidade”. Será que a classe política que nos governa e que tão cobarde se tem mostrado relativamente a soluções de fundo, tem coragem para impor as medidas de saneamento financeiro face os lobbies ou às clientelas políticas que acenam com a “flexibilidade”?

Nos últimos anos criaram-se e fortaleceram-se instituições credíveis e independentes do poder político, deu-se mais autonomia e independência aos Bancos Centrais, e criou-se do Banco Central Europeu. Sempre com o intuito de evitar que os políticos tomassem decisões com as “palas” postas, impedindo de ver tudo o que não se relaciona com as necessidades eleitorais. Devemos ao defunto PEC que a nossa deriva financeira não nos tivesse levado ao abismo. Não foi aos nossos governantes. Eles apenas agiram pressionados pelo PEC e não pelos seus instintos naturais.

Este novo pacto, se não for balizado com critérios quantificados e cuja aplicação não levante dúvidas nem consiga ser iludida, pode tornar impossível, em Portugal, o estabelecimento de uma política rigorosa de controlo das finanças públicas. Com a agravante que enquanto a violação de um limite do défice se vê ao fim de um ano, a estrada que conduz à ruína económica pode percorrer-se muito para além de sinalizações inócuas e sem coimas. Pode percorrer-se até ao abismo.

Publicado por Joana às março 28, 2005 11:37 PM

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Comentários

Joana ,
e uma menção ao político que, enquanto primeiro ministro defendeu o PEC e como número 1 da Comissão está ao lado dos franceses e alemães !?

Publicado por: zippiz às março 29, 2005 12:03 AM

Eu acho bem que o PEC acabe. Era muito rígido. Mas a Joana tem toda a razão para os perigos que alerta.
É como um Código da Estrada sem multas.

Publicado por: Sa Chico às março 29, 2005 12:09 AM

O Peres Metelo já tá de peito feito a falar em 6% ou mais.
Vai ser um regabofe

Publicado por: Fred às março 29, 2005 12:24 AM

É um risco a correr, mas para Portugal pode ser uma solução. Desde que saibamos usá-la sem cair no perigo que a Joana assinala

Publicado por: c seixas às março 29, 2005 01:01 AM

A questão coloca-se ao nível da despesa produtiva e não produtiva. Em Portugal a despesa não produtiva é muito rígida. Haverá que encontrar meios de financiamento do estado, através do investimento público reprodutivo. Se aumenta o rendimento disponível, aumentando o consumo numa primeira fase, aumentará numa segunda o produto e a poupança. O PEC era um impeditivo às medidas contra-cíclicas necessárias.
Parabéns pelo blogue
Cumprimentos
João

Publicado por: palavras interditas às março 29, 2005 02:05 AM

Depois de ver «A fidller on the roof», estou cada vez mais inclinado a tentar o Québec. Isto por cá estamos conversados.

Publicado por: asdrubal às março 29, 2005 03:06 AM

Em Portugal o PEC foi um fracasso. Nunca se conseguiu o controlo do défice, em vez disso recorreu-se a receitas extraordinárias para atingir valores próximos dos 3%.
Quanto à rigidez do PEC, ela só se deve ao mau ponto de partida. Se as políticas fossem contra-cíclicas no período de crescimento existiria um superavit e seria possível tomar medidas para aumentar a procura em caso de recessão. Como no período de expansão já estavamos no limite máximo ficámos sem margem de manobra.

Sem regras simples o PEC não pode sobreviver, com a revisão o PEC acabou.

Publicado por: Daniel às março 29, 2005 10:13 AM

Daniel: se nunca se conseguiu o controlo do déficit com um PEC rígido, muito menos haverá vontade para o conseguir com um pacto à la carte.
Eu acho que o pacto devia ser flexibilizado, mas acito como válidas as dúvidas da Joana sobre se esta flexibilização não poderá servir de suporte ao laxismo português.

Publicado por: Hector às março 29, 2005 12:31 PM

palavras interditas em março 29, 2005 02:05 AM:
Que é isso de "investimento público reprodutivo"? Estradas integralmente pagas pelos utentes? Ferrovias não, porque nunca é possível recuperar os custos. Investimento industrial não, porque o Estado não sabe gerir indústrias. Formas encapotadas de auxílio às indútrias privadas não são permitidas pela UE, etc.

Publicado por: L M às março 29, 2005 12:40 PM

Acho que a flexibilização daquele empecilho vai permitir uma melhoria da nossa economia

Publicado por: Silva às março 29, 2005 01:17 PM

O investimento público não está destinado a ter como fim único adjudicação de obras públicas. Passa por aí, mas não se esgota naquelas. Um exemplo: quando foi permitida a instalação da Ford/VW em Palmela, não se cuidou de exigir que as indústrias adjacentes ao projecto fossem de capital maioritáriamente português. Basta passar no local para ver que uma única empresa é de origem portuguesa e essa produz paletes de madeira. Sintomático e esclarecedor quanto ao falhanço de criar externalidades, com base naquele projecto, que servissem de ponto de partida para o desenvolvimento da região, baseado nas modernas teorias da geografia económica. Vejam-se as privatizações que têm ocorrido, não defendendo a detenção dos meios de produção em mãos nacionais, mesmo que para tanto o estado ficasse com uma parte substancial do capital. É claro que não está nas atribuições do estado a gestão de empresas, porque estas implicam a procura do lucro, a remuneração do capital, para o qual o estado não está fadado, por "defeito" mas também por "feitio" :)
A questão coloca-se, igualmente, ao nível da visão de longo prazo. Ex: formação matemática; demora 20 anos a formar uma geração capaz e este é um investimento da competência do estado, o da formação de massa conzenta.

Publicado por: palavras interditas às março 29, 2005 02:20 PM

Isso que você está a propor, estaria certo antes da adesão à UE, mas agora é impossível. Essa intervenção proteccionista é proibida.
O que o Estado pode fazer é incentivar de forma muito indirecta, para não ser acusado de violação da concorrência.
E o mesmo para a questão das privarizações. Você não pode impedir os estrangeiros de concorrer.

Publicado por: L M às março 29, 2005 02:34 PM

Bom, mas em princípio temos um tecnocrata académico competente para cuidar bem dos números, não? Falo do ministro das Finanças. É uma boa oportunidade a rigidez do pacto ter sido ultrapassada, permitindo investimento e apoios sociais.

Publicado por: pyrenaica às março 29, 2005 03:09 PM

No blogue "Causa nossa" escreveu Vital Moreira:

"nenhumas despesas públicas deixaram de contar para o défice (ao contrário do que foi afirmado). O que foi flexibilizado tem a ver com as justificações para o défice excessivo (evitando as respectivas sanções) e com um período mais longo para repor o cumprimento dos limites (três anos em vez de um ano)"

Isto parece contrariar aquilo que a Joana afirma:

"São toleradas violações por causas “pertinentes”: reformas estruturais, investimento em I&D, custos de “unificação", a elevada contribuição para o orçamento comunitário, cooperação internacional e despesas militares, custos com as reformas dos sistemas de pensões"

Fico baralhado, sem saber se hei-de acreditar no Vital Moreira ou na Joana.

Publicado por: Luís Lavoura às março 29, 2005 03:24 PM

Concordo em parte com LM porque somos portugueses. Experimente, meu caro, colocar as mesmas questões em Espanha. Simplesmente não existem, na prática, esses condicionalismos, porque o proteccionismo legislativo é enorme. As empresas de construção civil portuguesas, para dar um exemplo, (mais haveriam) não ganham uma obra em Espanha; já se questionou porquê? Por falta de capacidade técnica não é, garanto-lhe.
Igualmente fornecer um qualquer bem em Espanha é quase impossível, a menos que aceite abrir uma subsidiária naquele país, transaccionar através desta, pagando os respectivos impostos. Já se passou comigo e com outros empresários que conheço. Um abraço.

Publicado por: palavras interditas às março 29, 2005 03:40 PM

Acredite nos dois, Luis Lavoura, pois ambos dizem o mesmo com intenções diferentes. Uma violação que não sofre "sanções" desde que se invoquem causas pertinentes, é uma figura de retórica.
Se você estiver a conduzir a 200km/h dentro de uma povoação onde o limite é 50km/h está a cometer uma violação da lei. Se não houver coimas, pode conduzir à vontade! Se aparecer o polícia alegue que vai ver uma tia doente.
Portanto a Joana, e eu acho que ela tem razão, alerta para as consequências disso, se não forem estabelecidos critérios inequívocos. Vital Moreira, como bom PS, diz que a os "avisos" continuam a existir ... só que não há sanções.

Publicado por: Hector às março 29, 2005 03:54 PM

A mim também me parece que não há contradição. Dizem ambos o mesmo, mas depois nas conclusões, cada um puxa a água ao seu moinho.

Publicado por: vitapis às março 29, 2005 05:52 PM

quem quer saber do PEC para alguma coisa?
deviam olhar para as consquências dos seus pequenos actos em vez de sublimarem pacotes alheios.

Publicado por: pó às março 29, 2005 06:56 PM

A Joana tem razão em preocupar-se com a degradação do nosso saldo de transacções com o exterior. Mas não é por via do equilíbrio orçamental que resolvemos esse problema. Tendo deixado as coisas chegar a um ponto desastroso, é por via da perda do poder de compra, da redução dos salários reais e do investimento na produção de bens transaccionáveis que lá podemos chegar. As duas primeiras são coisas que nos vão acontecer mesmo se não quisermos, por via de um aumento drástico do desemprego. A última depende da nossa vontade e da nossa inteligência, o que me deixa um bocadinho apreensivo...

Publicado por: Albatroz às março 29, 2005 07:52 PM

Albatroz às março 29, 2005 07:52 PM:
Você tem razão. Mas não podemos diminuir os salários reais. A menos que os congelemos durante uma década ou mais. Mas isso não é solução.
Temos que diminuir o peso do Estado na economia, nomeadamente o peso inútil. O Estado tem gente a mais e gastos a mais para os serviços que presta.

Publicado por: Joana às março 29, 2005 08:03 PM

Luís Lavoura às março 29, 2005 03:24 PM:
Faço minhas as palavras do Hector, ou vice-versa ...

Publicado por: Joana às março 29, 2005 08:04 PM

Portugal corre um risco muito grande de entrar num novo laxismo. E isso seria trágico

Publicado por: Sa Chico às março 30, 2005 01:19 AM

Este governo pode ter a entação de até às eleições entrar num facilitismo, o que será mau porque as reformas quanto mais tarde se fizerem pior serão

Publicado por: Sa Chico às março 30, 2005 01:20 AM

Suprema ingenuidade aquela que acha que um PEC que admite um limite para o défice superior a 0 (neste caso 3%) é rigido.

Parece que foi desloqueado mais um carreamento de heroína para toda a Europa. Enquanto elas nos percorrer as veias ficaremos aliviados.

Publicado por: Mário às março 30, 2005 11:37 AM

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