Há uma semana (Público, 24-08-04) Vital Moreira dava ao lume um texto Debates Socialistas em que se comprazia com a possibilidade de as moções em discussão levarem a um «debate fecundo» num partido que, ao contrário dos seus congéneres europeus, tem dado pouco ênfase a esta matéria, preferindo centrar a controvérsia em meia dúzia de palavras de ordem que o tempo se encarregou de esvaziar de significado, tornando-as chavões ressequidos, mas que servem de biombo ao objectivo único de encontrar um líder capaz de levar o partido ao poder.
O que aquele texto tinha de interessante era a contradição entre a satisfação mostrada por Vital Moreira pelas propostas «inovadoras» de Manuel Alegre relativas ao «Estado estratega» e as suas teses de que «Nem a candidatura de Manuel Alegre pode permitir-se ignorar e deixar de responder aos novos desafios que as mudanças sociais, económicas e políticas da última década, em Portugal, na Europa e no Mundo, trouxeram». Ora as propostas de Manuel Alegre, quer sobre a Saúde, quer sobre a Segurança Social, quer ainda sobre o papel «insubstituível» do Estado, não traziam nada de inovador relativamente às «velhas pechas socialistas» na «competência na governação económica, a disciplina financeira e a eficiência da gestão pública» (limito-me a citar Vital Moreira). Parecia que a satisfação de Vital Moreira seria prematura.
Hoje, igualmente no Público, Vital Moreira escreve sobre A Questão dos Serviços Públicos. O que há de interessante (para mim) e curioso (em face do anterior pensamento do constitucionalista coimbrão) é que eu subscreveria quase tudo o que Vital Moreira escreve a nível de propostas.
Também eu subscrevo (aliás tenho-o escrito aqui por diversas vezes) que «não é possível continuar a ignorar o desafio que a chamada nova gestão pública veio trazer no que respeita ao desempenho da gestão pública tradicional, baseada ... na falta de autonomia e da avaliação e responsabilização das unidades prestadoras. O desperdício e ineficiência são o melhor argumento contra os serviços públicos». Igualmente tenho advertido que «há um problema do limite dos recursos financeiros para enfrentar as crescentes exigências dos serviços públicos».
Mas Vital Moreira, na sua iconoclastia hodierna, vai por aí fora, arrebatado, cavalgando o pensamento neoliberal em desvairado galope, de alabarda em punho e viseira cerrada, carregando impiedoso sobre o Estado Social. Nada escapa à sua transfiguração em flagelo do Estado-Providência que tanto acarinhou in illo tempore: a gestão dos serviços públicos deve ser «melhorada» «mediante a introdução de formas de gestão empresarial e de mecanismos de tipo mercado» ... a crescente participação de entidades privadas no sector público «incluindo as de natureza lucrativa, seja em cooperação com entidades públicas (parcerias público-privadas), quer inclusive como substitutos do Estado na prestação de cuidados e prestações sociais». Todos os piedosos ícones da visão socialista do Estado Social são fragorosamente demolidos e reduzidos a cinzas por este novo e fervoroso advogado do neoliberalismo.
Porém Vital Moreira recusa essa designação. No conflito do ser ou não ser neoliberal, Vital Moreira é neoliberal, de acordo com o rótulo que os seus correligionários colam na testa de quem advoga semelhantes proposições, e não é neoliberal, de acordo com o que ele considera como definidor da «alternativa neoliberal»:a «alternativa mais estreme, que exalta o sistema norte-americano». À laia de providência cautelar, Vital Moreira esculpe uma imagem neoliberal adequada para mostrar que ele cai fora desse rótulo desonroso e aviltante. Neoliberal? Vital Moreira? Nunca! O que ele esquece, ou finge esquecer, é que as propostas de reforma do modelo social europeu, que têm sido diabolizadas como neoliberais pelos seus correligionários, não têm nada a ver com a exaltação de um estreme modelo americano, mas são similares às que ele advoga no seu artigo de hoje.
É verdade que as considerações que Vital Moreira tece sobre a progressiva falência do modelo social europeu, tal como foi estabelecido ao longo das 3 décadas de ouro, são condizentes com o que tenho escrito aqui em diversos registos: «o crescente aumento de custos» dos «serviços e prestações sociais públicos universais e gratuitos» ... o efeito do «aumento considerável da idade média das pessoas», etc..
Mas as conversões rápidas deixam sempre sequelas. O peso da tradição estatizante ainda tem muita força ... Vital Moreira refere como um dos efeitos que levaram aos problemas com que se debate o modelo social europeu é «a contestação da eficiência do modelo tradicional de gestão pública» ... Vital Moreira, o efeito é «a contestação da eficiência» ou a ineficiência propriamente dita? Ineficiência que aliás Vital Moreira reconhece noutro passo do artigo. E mais adiante, quando refere que «o fim do modelo fiscal em que o sistema assentava» foi devido à «contestação da progressividade fiscal» e à «competitividade fiscal internacional, que levou à baixa da carga fiscal», voltamos à questão de saber se o efeito foi o peso fiscal, que tem retirado competitividade às empresas europeias face à emergência dos novos países industrializados, ou foram as queixinhas relativas à carga fiscal.
A questão é saber se Vital Moreia assimilou as causas profundas da actual situação económica e social relativamente à qual ele advoga as medidas em apreço, ou se advoga essas medidas apenas porque lhe parece que há actualmente muitas contestações aos valores que ele anteriormente defendia. E essa questão é pertinente: tomam-se medidas porque são racionalmente necessárias, e não porque estão na moda. Tomar medidas porque estão na moda tem conduzido aos maiores disparates e, em alguns casos, levado à ruína das nações.
Acusa-se frequentemente a economia de mercado de situações nocivas para a sociedade. Um caso curioso em que o mercado é acusado de gerar situações gravosas para a qualidade de vida das populações, refere-se aos prejuízos ambientais. O que é curioso é que as acusações sobre um alegado mau funcionamento do mercado são injustas. Vejamos porquê:
As acções sobre o meio ambiente são designadas, em linguagem económica, como externalidades (custos ambientais e de escassez). Estas externalidades apresentam uma característica interessante: elas resultam da inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade, nomeadamente porque agem sobre os recursos naturais - ar, oceanos, rios, lençóis de água subterrânea, vida animal e vegetal. Se fosse possível o estabelecimento de direitos de propriedade sobre todos os recursos atrás referidos, tal eliminaria a maioria dessas externalidades ou favoreceria o seu controlo.
Se aquelas externalidades tivessem os seus preços determinados livremente no mercado, assegurando-se previamente a sua propriedade e controlo, a questão cairia no caso do óptimo de Pareto e não precisaríamos de nos preocupar com os seus efeitos. Em teoria (no mundo abstracto da concorrência perfeita), aquelas externalidades deixariam de existir.
Portanto, no caso dos efeitos ecológicos nocivos, a culpa reside nas imperfeições dos mercados. Em primeiro lugar pela impossibilidade de se estabelecerem mercados relativamente à utilização de bens ambientais, por inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade. Em segundo lugar porque nos mercados em que as empresas produtoras utilizam recursos ambientais como factores de produção, o custo desses factores era nulo porque esses recursos ambientais não tinham proprietário e eram, por via disso, gratuitos. A inexistência de mercados a montante tornava imperfeitos os mercados a jusante.
Enquanto a produção industrial e agrícola não foi intensiva, não se levantou a questão da escassez dos recursos ambientais. Eles eram em teoria infinitos. Actualmente tal não é possível e é necessário que o meio ambiente seja considerado como um factor económico, sujeito a escassez e com custo alternativo não nulo.
Portanto existe um conjunto de agentes económicos que obtém benefícios com a utilização de recursos ambientais (traduzíveis monetariamente ou não) na maioria dos casos a custo nulo, mas que tem um determinado valor para a sociedade (superior ao custo suportado por quem beneficia). Este valor designa-se por preço-sombra. A consequência é a existência de uma divergência entre o benefício ou custo marginal privado e social, levando a que o equilíbrio encontrado não seja óptimo, isto é, não exista uma alocação eficiente desse recurso. E não existe alocação eficiente justamente pela ausência de mercado.
Em termos analíticos, prova-se que o ponto óptimo é atingido quando o benefício marginal actualizado de utilizar uma unidade adicional de um dado recurso iguala o preço-sombra actualizado do recurso (custo de oportunidade para a sociedade de conservar esse recurso).
Como calcular estes valores? Estes custos e/ou benefícios têm metodologias próprias que se utilizam nas ACB (análises custo-benefício) que complementam os estudos de viabilidade económica dos projectos. Podem citar-se vários métodos de aferição dos custos alternativos, nomeadamente o método dos custos evitados, as funções de dose-resposta (caso particular das funções de produção), o método dos preços hedónicos, o método da avaliação contingencial (mercado hipotético), o método da transferência de benefícios, o método de aferir do valor do bem através da predisposição para pagar (WTP - Willingness to Pay) ou receber (WTR - Willingness to Receive) pelos benefícios obtidos ou pelos danos suportados na utilização do bem, conceitos associados ao excedente do consumidor, etc..
A utilização destas metodologias de quantificação do custo dos recursos ambientais gera algum cepticismo no que respeita à sua fiabilidade. Todavia, na fase dos estudos de viabilidade, é possível haver consenso quanto aos seus resultados, porquanto apenas se procura saber se o projecto é viável ou não. O mesmo não sucede no caso das empresas em funcionamento, como é óbvio, dado que aí é a doer .... Vejamos dois exemplos:
No caso do tratamento de efluentes a legislação portuguesa fixou normas gerais de descarga de águas residuais, estabelecendo os valores máximos admissíveis (VMA) das respectivas concentrações nas águas residuais descarregadas nos meios hídricos receptores. As normas de descarga são fixadas, para cada instalação, pela Direcção Regional do Ambiente competente, tendo em conta, cumulativamente, as normas gerais de descarga, os objectivos ambientais, as utilizações da água dos meios receptores e a sensibilidade dos mesmos. O licenciamento de qualquer descarga de águas residuais é condicionado pelo cumprimento das normas de descarga que lhe forem aplicáveis. A violação das normas de qualidade estabelecidas constitui contra-ordenação punível com coima. Se a empresa não tiver uma ETAR própria, associar-se-á a um sistema de tratamento e pagará de acordo com a carga poluente que emitir para a ETAR colectiva.
Portanto, neste caso, as empresas e as famílias (saneamento urbano) pagam custos ambientais relativamente ao que excede a capacidade de regeneração do meio ambiente. Continua a haver uma parcela de utilização do meio ambiente gratuita (1).
Outro exemplo é o caso da extracção de inertes. O equilíbrio a manter é entre o fluxo de sedimentos transportados e depositados no leito dos rios e a quantidade de inertes extraídos. O difícil é haver um cálculo fiável dos sedimentos transportados e depositados, nomeadamente tendo em conta as alterações no leito dos rios (construção de barragens e açudes, etc.). Mas mesmo que houvesse um equilíbrio entre os inertes depositados e extraídos, nada asseguraria que os locais de extracção seriam os mais adequados, como se viu no caso da queda da ponte de Entre-os-Rios. Adicionalmente há uma dificuldade económica: os inertes são materiais usados na construção civil e têm um custo tradicionalmente muito baixo. Na hipótese da introdução de custos reais (admitindo que fosse possível calculá-los) um aumento substancial do preço dos inertes poderia ter um efeito económico muito negativo. A solução que tem sido seguida é a da contingentação das quantidades extraídas e o pagamento de taxas. É uma solução técnica e economicamente errada, mas que decorre da insuficiência de estudos sobre os leitos dos rios e do mau desempenho dos organismos públicos encarregados do licenciamento e da fiscalização.
Resumindo, para influenciar os agentes económicos para uma utilização mais eficiente dos recursos naturais existem diversos métodos. Métodos económicos, onde se incluem os desincentivos ou incentivos financeiros (impostos ou subsídios), tarifas que cubram os custos de reposição da qualidade ambiental (tratamento de efluentes), licenças, ou o estabelecimento de mercados de quotas de poluição (com um preço e transaccionáveis) e métodos não económicos, que limitam de alguma forma a utilização (p.e. consumir apenas em determinadas situações particulares ou alturas do ano, ou em determinados locais de um rio e em quantidades previamente fixadas).
Conclusão: as agressões ambientais das empresas não decorrem de uma perversão dos mercados, mas da inexistência de mercados dos recursos naturais pelas razões acima aduzidas. A solução económica é simular a existência de mercados de recursos naturais e estabelecer custos alternativos para esses recursos. Uma solução extra-económica é limitar coercivamente a sua utilização.
(1) O custo de remoção das cargas poluentes aumenta exponencialmente à medida que se pretende baixar a concentração. Os VMA considerados na legislação pretendem constituir uma situação de equilíbrio que tem em conta a capacidade de regeneração dos meios receptores e a capacidade de solvabilidade dos utentes (empresas e famílias)
Economia de Mercado sim, Sociedade de Mercado não
Analisemos agora a «palavra de ordem» «economia de mercado sim, sociedade de mercado não».
Numa sociedade pluralista, baseada na livre iniciativa individual e na liberdade de escolha não é possível delimitar uma esfera social onde não haja competição a menos que a iniciativa individual e a liberdade de escolha sejam limitadas (ou reguladas) por lei. A economia sem a sociedade é um jogo abstracto e a sociedade sem a economia uma realidade hemiplégica. A liberdade pressupõe competição e não há liberdade sem competição. A concorrência é parte intrínseca da vida social numa sociedade livre. Começa nos bancos da escola onde, por exemplo, sonhar com uma aprendizagem sem competição tem sido uma das quimeras que tem ajudado a tornar o nosso desempenho escolar uma desgraça colectiva.
É evidente que a competição deve ser regulada. Em primeiro lugar há que assegurar que ela não é desvirtuada por políticas anti-concorrenciais perpetradas pelos agentes económicos (cartelização, monopólio ou monopsónio, etc.). Como a concorrência pura e perfeita é uma situação de referência inatingível na moderna organização industrial (economias de escala, diferenciações dos produtos, barreiras naturais à entrada, etc.), devem ser regulados os procedimentos que permitam uma prática o mais próxima possível dessa situação ideal.
Em segundo lugar verifica-se que a concorrência produz na sociedade um efeito idêntico ao da selecção natural das espécies (empresas e famílias): cavam assimetrias e produzem a prazo a sua extinção. Se no caso das empresas a intervenção estatal só deve ter lugar se, e unicamente, a empresa em vias de extinção for viável por as suas dificuldades serem apenas conjunturais, no caso das famílias a sociedade deve intervir para assegurar a equidade (e não igualdade) social conforme escrevi no meu texto anterior (Mitos e Ideologias 2).
Portanto, é contraditório apostar numa economia de mercado e apostrofar a sociedade de mercado. A menos que este anátema se destine apenas a consumo caseiro.
Um texto que consubstancia as contradições socialistas foi o publicado por Jorge Bateira no Público (22-08-04 O Estado Estratega). Jorge Bateira, que Aarons de Carvalho qualifica noutro artigo no mesmo jornal de «reputado economista», desfia uma série de proposições ou pouco rigorosas ou mesmo absolutamente incorrectas.
Sobre o mercado escreve: «os mercados são uma construção social, não resultaram de qualquer ordem natural. ... É falsa a ideia de que no princípio era o mercado». Pois não, Jorge Bateira, ao princípio era o Australopithecus. Enquanto os hominídeos viveram em bandos, subsistindo através da colecta (frutos e caça) não havia mercado, nem economia, nem socialismo, nem debates no Público ... O mercado iniciou-se com a divisão social do trabalho (diferenciação e especialização progressivas das diversas tarefas e empregos necessários à boa evolução de uma sociedade, conforme escreveu Marx).
Com a divisão social do trabalho aparece a necessidade das trocas (aliás, para Adam Smith é o inverso: a divisão do trabalho é fruto do gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro) e a existência da propriedade (no mínimo, a propriedade do stock de bens para troca posterior) e a necessidade do estabelecimento de uma entidade que, de alguma forma, proteja ou dê segurança à propriedade. Escreve Adam Smith: "É, pois, a aquisição de propriedade ... que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário". Sem haver Estado e um enquadramento legal (escrito ou consuetudinário) que proteja a propriedade e dê segurança à actividade económica, não há mercado, mas também não há economia, apenas miséria. A aquisição pela violência e pelo saque, através da guerra ou da pirataria, conduz ao sofrimento, à miséria e à desmotivação pela actividade económica dada a insegurança que pende sobre os seus frutos.
Portanto quando o «reputado economista» Jorge Bateira escreve que «apenas os economistas de matriz ideológica neoliberal continuam a raciocinar como se fosse possível haver mercado sem intervenção pública» está a dizer um completo disparate pois para haver mercado, economia e civilização, o Estado tem que assegurar a protecção da propriedade e que o mercado funcione sem imperfeições. Nenhum neoliberal tem dúvidas sobre isso. Onde o pensamento neoliberal torce o nariz é ao que considera um excessivo protagonismo do Estado em matéria de justiça social.
Para Hayek: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Calamitosa: a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais.
Às vezes é necessário gritar que o rei vai nu para se começar a notar que o vestuário do rei é absolutamente inadequado. Hayek, inicialmente maldito, passou ao estatuto de guru quando, a partir do fim dos anos 70, o estatismo ultrapassou os limites do razoável e os seus efeitos perversos nas economias ocidentais se tornaram visíveis e iniludíveis. Foi a partir daí que, inicialmente nos países anglo-saxónicos (Reagan e Thatcher) e depois na Europa continental, se começaram a implementar as privatizações de empresas públicas e as parcerias público-privadas para gestão de sectores até então considerados como vocação exclusiva do serviço público.
Prossegue o «reputado economista» Jorge Bateira: «... Não percebendo que sem Estado não há mercado, para estes economistas (os neoliberais ... claro) a intervenção do Estado é uma impureza ... um mal menor. ...Ora os mercados, não sendo entidades cognitivas, também não tomam decisões sobre o futuro, não elaboram estratégias».
No meu texto anterior acima referido escrevi que «o mercado não é uma entidade, é o conjunto de vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. ... Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas» e decisões sobre o futuro ... acrescento agora. E acrescento igualmente que «os mercados, não sendo entidades cognitivas», as empresas que constituem o mercado são-no.
Queria abrir entretanto um parêntesis sobre o termo neoliberalismo. Apesar da aplicação progressiva, embora muito tímida, de algumas receitas neoliberais, ter permitido um novo fôlego às economias ocidentais (incluindo a portuguesa), tem havido um coro enorme de calúnias movidas contra o termo neoliberalismo, mesmo pela gente de esquerda que quando no governo se vê constrangida a que aplicar algumas das suas receitas. O neoliberalismo passou a ser o culpado de tudo o que de mau que acontecia no mundo, sobretudo em regiões onde jamais houve qualquer pensamento neoliberal, como na África, onde predominam regimes que se intitulavam ou intitulam marxistas ou socialistas. O termo "neoliberal" adquiriu uma conotação negativa, embora os que a apliquem não expliquem o porquê. Ora, pode concordar-se ou não das ideias neoliberais, desde que se procure conhecer o que são exactamente essas ideias, submetendo-as então a uma crítica fundamentada. É absurdo debater ideias pela imagem caricatural forjada pelos seus detractores. Mas é exactamente isso que ocorre. Por exemplo, Jorge Bateira apenas o usa como elemento pejorativo. Para facilitar, atribui-lhe intenções que não correspondem às doutrinas dos pensadores neoliberais.
Regressemos a Jorge Bateira: ... «importa reconhecer as limitações da intervenção do Estado na economia ... vários factores ... imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica; dificuldade em encontrar um nível de intervenção adequado para reduzir a incerteza do investimento; criação de efeitos perversos em algumas políticas.»
Estas limitações deixam-me perplexa. Não é o Estado, mas as empresas, fundamentalmente as empresas industriais, que estão confrontadas com a imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica, ou com a incerteza do investimento. São elas que estão permanentemente confrontadas com as incertezas dos mercados. O Estado não tem qualquer vocação para tal. As empresas correm riscos, mas são elas que pagam se cometem erros. Quando o Estado comete erros nas suas decisões sob risco (ou na incapacidade de tomar decisões), quem paga esses erros são os contribuintes. Foi isso que os contribuintes portugueses têm andado a fazer relativamente aos erros cometidos pelo Estado no seu sector público empresarial. Portanto não se vê que tal constitua problema para o Estado, a menos que este regresse às nacionalizações.
Quanto aos «efeitos perversos em algumas políticas» estou de acordo. O Estado português tem tomado medidas enviesando o funcionamento de alguns mercados que a longo prazo se têm virado contra os grupos sociais que pretendiam proteger. Muitas dessas medidas foram entretanto abolidas. Outras ainda se mantêm (mercado laboral, mercado do arrendamento urbano, etc.). A perversidade dos efeitos dessas políticas é de tal monta que a sua abolição, embora necessária, pode causar no imediato situações em extremo complicadas e ter custos sociais elevados, e os resultados positivos só serem sentidos a médio ou longo prazo.
Jorge Bateira termina de forma tranquilizadora: a sua tese «não é compatível com uma Administração Pública desqualificada porque grande parte deste processo só tem eficácia se os interlocutores por parte do Estado forem credíveis.» ... e ... «contudo, há uma condição essencial para que esta alternativa ao neoliberalismo possa fazer o seu caminho: é indispensável que a qualidade cívica, técnica e política dos protagonistas do PS seja consistente com esta visão do Estado».
Ou seja, duas condições que inviabilizam as suas proposições. Podemos ficar tranquilos.
O Estado Estratega
As contradições nas relações dos socialistas com o capitalismo estão plasmadas em alguns chavões que têm acompanhado a campanha para a sucessão a Ferro Rodrigues, como por exemplo, «economia de mercado sim, sociedade de mercado não» e «o Estado estratega».
Na raiz do pensamento dos «Alegretes» está a tese de que o Estado não compete produzir riqueza, mas que o mercado não define estratégias nem, por si só, realiza a justiça social. Quanto à justiça social, obviamente que o Estado deve esbater as assimetrias sociais e económicas, decorrentes do funcionamento do mercado, de forma a serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades e com a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, ordenamento do território, etc., fazendo discriminações positivas.
Quanto à afirmação que «o mercado não define estratégias», tomada na sua generalidade, resulta de uma enorme confusão sobre o que é o mercado e o que são estratégias. O mercado não é uma entidade, o mercado é o conjunto de agentes económicos, vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. A maioria dos agentes económicos que participam nesse mercado nem sequer se conhece. Não é o mercado que toma decisões. São as relações entre vendedores e compradores que asseguram, desde que o mercado funcione em regime de concorrência, o estabelecimento de um sistema de preços e quantidades eficientes, isto é, que constituam o melhor resultado possível para o conjunto dos agentes económicos envolvidos, tendo em conta as funções de custo dos vendedores a as funções de utilidade dos compradores, e, para o conjunto da economia e dos mercados que a constituem, o óptimo para a comunidade.
Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas: política de preços, políticas de produto (quantidades a produzir, diferenciação e segmentação dos mercados, modificações nos produtos e nas tecnologias de produção), políticas de investigação e qualificação e políticas de investimentos necessárias para suportar as anteriores políticas e promover, eventualmente, o crescimento. São estas as estratégias que condicionam ou promovem o crescimento, a prosperidade económica e o nível de emprego e não estou a ver o Estado a substituir-se às empresas afirmando-se como o «Estado estratega».
Mas quando Alegre concretiza quais as estratégias verifica-se que fala da intervenção do Estado nas políticas sociais, e lista uma série de rubricas de distribuição pecuniária (seguro social, revisão da lei de Bases da Segurança Social, de Rendimento Social de Inserção, sistema de protecções à doença e ao desemprego, estabelecimento do mínimo vital de sobrevivência, etc.), percebe-se o «Estado estratega» de Manuel Alegre é o Estado distributivo ... Alegre não se refere à produção mas à distribuição. A vocação de Manuel Alegre (e do esquerdismo) não é produzir, é distribuir.
Mas a estratégia de Manuel Alegre abrange também o nível de emprego. Nada a opor ... vejamos todavia qual a estratégia. Ora Alegre defende que a política do pleno emprego é «a forma mais eficaz de proteger as sociedades da desigualdade e da exclusão social» ... daí que se deve proteger as pessoas contra a «instabilidade dos mercados de trabalho». Alegre cai assim no vício do Parque Jurássico do sindicalismo português querendo manter à força os empregos existentes e desmotivando a criação de novos empregos ao tornar rígido e não concorrencial o mercado de trabalho.
A experiência prática mostra que os países em que o mercado de trabalho é mais concorrencial são aqueles em que se consegue atingir os níveis de pleno emprego e há mais incentivos à qualificação laboral. Essa experiência mostra igualmente que quanto maior for a rigidez e imperfeição daquele mercado maior é a percentagem de desemprego e que, em caso de expansão económica, o aumento do nível de emprego se faz de forma hesitante e mais lentamente que num mercado menos rígido. Circunstância, aliás, que funciona como travão à expansão económica.
Em Portugal, embora o mercado de trabalho seja rígido, existem escapatórias para os empregadores: recibos verdes, contratos a termo, etc.. Essa precaridade laboral coexiste com as pessoas protegidas contra a «instabilidade dos mercados de trabalho». É a existência desse importante segmento laboral com estatuto precário que tem permitido, nas duas últimas décadas até à recessão de 2002, manter um nível próximo do pleno emprego, apesar da rigidez das lei laborais. Quando as perspectivas são boas, os empresários não têm dúvidas em aumentarem a sua massa laboral em regime de trabalho precário, porque sabem que, em caso dessas perspectivas se frustrarem, poderão diminuir essa massa laboral. Ora sucede que essas decisões acabam por ter, normalmente, um efeito dinamizador na economia e muito daqueles trabalhadores precários acabam, mais tarde ou mais cedo, por passarem ao quadro.
Manuel Alegre continua pois agarrado aos mitos do passado desmentidos pela experiência do funcionamento das economias reais.
E como se paga o Estado estratega-distributivo? Com o «orçamento plurianual» responde Alegre. Mas o «orçamento plurianual» apenas permite uma maior estabilidade do horizonte orçamental e não um aumento dos réditos. Isso não perturba Alegre que explica depois ... «as receitas fiscais ...é ... um dos elementos-chave da justiça social». Portanto sangrar o contribuinte é o que promete Alegre, quer directamente, quer indirectamente através das empresas, porque o dinheiro tem que vir de algum lado: vem de quem produz a riqueza. Quem produz riqueza é a vaca à disposição do Moloch estatal para a ordenhar até à exaustão.
Para amenizar, Alegre inventa a «fiscalidade verde»: penalização, através do aumento de impostos, das indústrias poluentes, desagravando por outro lado os produtos que não prejudicam o meio ambiente. Isto é completamente disparatado e contraria a legislação portuguesa. O chamado princípio do poluidor-pagador passou a utilizador-pagador e serve de justificação pertinente às taxas ou tarifas dos R.S.U. (lixo), do saneamento, de utilização do domínio hídrico, etc.. No que se refere aos poluentes industriais só há duas situações: 1) a empresa rejeita efluentes com uma carga poluente abaixo dos valores definidos na legislação, e tem alvará para funcionar; 2) a empresa rejeita efluentes com uma carga poluente acima daqueles valores e é objecto de uma coima e pode ter que fechar as portas (se não for uma situação pontual ou acidental) até repor os valores legais. Uma empresa não pode pagar para ter o direito de poluir o ambiente. Isso contraria a legislação portuguesa, as directivas da UE e é ambientalmente condenável.
É evidente que há empresas que são useiras e vezeiras em fazerem descargas poluentes quando julgam que a fiscalização está ausente. Mas isso é uma questão do foro criminal e a sua repetição decorre do mau funcionamento da nossa administração e não é resolvido por novas leis. As leis que existem estão razoavelmente bem elaboradas, apenas a fiscalização não é suficiente.
Quando Alegre fala da «fiscalidade verde» não sabe o que diz.
Os textos que os apoiantes das diferentes candidaturas à liderança do PS têm publicado nos jornais combinam uma inegável qualidade literária (alguns) com uma desesperante mediocridade conceptual, técnica e teórica (todos). E quanto mais vazios de substância estão mais tentam disfarçar esse vazio com um notável aprumo literário.
O paradigma dessa produção literária é o texto de Jorge Lacão (PS, para que te quero) publicado sábado (21-08-04) no Público. Quem aprecia «les grands mots» deve-se ter deliciado com aquele parágrafo em que ele escreve: «A democracia não deve subordinar-se à pressão do Estado-espectáculo. Logo a esquerda tem dois caminhos: o de aceitar a lógica da pressão mediática da produção dos factos políticos e subordinar-se à vertigem do jogo virtual dos espelhos, onde só a imagem conta, por mais desfocada que seja da realidade; ou o de promover o retorno ao espírito republicano de governo, onde prudência, responsabilidade e credibilidade são lemas incontornáveis.». O medíocre ... é que quer este parágrafo, quer o resto do texto, não tem qualquer conteúdo operacional, não tem substância. São só palavras.
A escrita gongórica de Lacão torna-se menos hermética quando fala da possibilidade das alianças à esquerda: «O dilema é ... entre a opção daqueles que pouco ou nada aprenderam com as experiências do poder do PS e preferem sujeitá-lo, e ao país, aos riscos da deriva estratégica e da instabilidade política.».
Ora quem não aprendeu com a última experiência do poder do PS foi Lacão. Não era a 3ª via de Guterres que foi um mal em si foi a sua incompetência, incapacidade de tomar decisões, laxismo e a sua consequente submissão aos lobbies partidários e aos interesses corporativos que impedem o país de progredir. Não é a política mediática que é um mal em si. Sê-lo-á apenas na medida em que servir para disfarçar a inconsequência política. Uma mulher que se esmera em ser bela e atraente não é um mal sê-lo-á se a sua beleza e sensualidade servir para disfarçar o seu vazio de ideias e a malevolência dos seus sentimentos.
A ala Alegre e a ala Soares, quando atacam o guterrismo, fazem-no colocando-se no ponto de vista da esquerda radical. Por isso não admira que, duma forma rebuscada, Lacão justifique uma aliança com o radicalismo de esquerda.
Todavia, a vocação do esquerdismo não é produzir, é distribuir. Os empresários têm, no imaginário do esquerdismo, o papel de gangsters, sequiosos de lucro, vampirizando os trabalhadores, que protagonizam, em quaisquer circunstâncias, o papel de vítimas indefesas. São uma espécie em vias de extinção e o dever dos esquerdistas é acelerar rapidamente essa extinção. Enquanto não a extinguem, é deixar aos "maus" a responsabilidade de produzir e de gerar postos de trabalho, cuja qualidade e nível salarial constantemente se condena. Como é que Lacão compagina tal com a «prudência, responsabilidade e credibilidade» que enuncia. A menos que estas virtudes de Lacão tenham uma leitura diferente.
Baptista Martins um apoiante de João Soares escreveu em 16-08-04 que a Direita e os seus comentadores demonstram uma certa apetência por Sócrates. E conclui que «a Direita precisa deste adversário». Do ponto de vista do articulista isto constitui uma reposição da tese da esquerda ortodoxa de que se algum dos nossos é elogiado pelos que não comungam a nossa ortodoxia, então é porque ele é um traidor. Constitui também um rótulo que ele aplica a todos os analistas preocupados com a situação económica do país e que pretendem uma política de seriedade, rigor e competência para tirar o país do aperto em que se encontra. Quem se preocupa com a competitividade das empresas e com a eficiência da Administração Pública é rotulado de direita. A esquerda de Baptista Martins preocupa-se com as políticas de distribuição. Por isso aqueles analistas preferem Sócrates. Por isso aqueles analistas não querem correr o risco de uma pugna eleitoral entre o PSD e uma aliança tácita PS-esquerdistas, porque se a demagogia populista, de distribuir o que não há, vencer as eleições, será um desastre para o país.
É certo que a Sócrates pode acontecer o mesmo que a Guterres: ficar submerso pelos caciques e máfias locais do PS. Parte substancial do aparelho do PS apoia Sócrates porque este é o candidato mais bem posicionado para ganhar e há uma grande apetência pelos jobs for the boys de que o PS é muito mais sedento que o PSD porque os seus quadros não são oriundos dos quadros superiores das empresas, muito melhor remunerados e com carreiras que não desejam prejudicar, mas sim, em muito maior grau que o PSD, do próprio aparelho, do funcionalismo público e autárquico, do ensino, etc..Esse aparelho não tem qualquer ideologia ou conceitos económicos e políticos. Estão no PS como quem está no topo da militância no FC Porto, no Benfica ou no Sporting. Apenas esperam que o seu candidato ganhe para obterem o almejado lugar.
Todavia Sócrates tem (ou pelo menos tinha) uma vantagem sobre Guterres: é um homem obstinado e com mais autoridade pessoal.
Todas estas controvérsias e contradições resultam do próprio percurso do socialismo e das suas relações com o capitalismo desde os fins do século XIX até agora: começaram por defender a sua destruição e depois, gradualmente, defenderam a sua reforma. Mas essas reformas, de que os socialistas foram protagonistas importantes, acabaram por conduzir a novas realidades económicas e sociais e à progressiva globalização, que por sua vez possibilitou a emergência de novas economias (primeiro o Japão, depois o Sueste Asiático e agora a irrupção da China e da Índia). Esse alargamento do mercado mundial e do comércio internacional melhorou as condições de vida de mais de um bilião de pessoas, mas acarretou problemas para a competitividade da economia europeia e para o modelo social que fora estabelecido ao longo das «3 décadas de ouro», entre o fim da guerra e o primeiro choque petrolífero.
Os socialistas, na Europa e em Portugal, estão presentemente desarmados perante essas novas realidades que ou não compreendem, ou não querem compreender, ou compreendem, mas não as conseguem explicar ao trabalhadores.
Mas isto será matéria de um próximo texto.
Nota - ler ainda:
Mitos e Ideologias 2
http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/144466.html
Durante as férias fazem-se coisas impensáveis. Não resultam de qualquer acto volitivo ... acontecem simplesmente. Uma dessas coisas é descansar um olhar distraído no rectângulo televisivo. Essas distracções têm-me permitido observar, embora de forma esparsa, alguns curiosos incidentes relacionados com a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos.
E os comentários e entrevistas que eu tenho difusamente observado permitem-me, desde já, expressar aqui a minha revolta contra as autoridades olímpicas portuguesas e a minha compaixão e solidariedade com os infelizes atletas (incluindo os cavalos) que foram obrigados a deslocarem-se à Grécia.
Não há desculpas para a malevolência de se fazer deslocar à Grécia um conjunto de atletas (e cavalos) cheios de pundonor, mas inferiorizados física e mentalmente. Até agora, e exceptuando aquele rapaz baixinho e desconhecido (certamente foi enviado a Atenas por equívoco) que ganhou uma medalha de prata no ciclismo, só assisto, revoltada, a entrevistas em que os nossos inferiorizados atletas desfiam um rosário de maleitas que incapacitariam qualquer um. A minha admiração pela forma corajosa como aqueles bravos lusitanos conseguiram atingir as costas gregas não tem limites. Naquele estado físico e mental eu não conseguiria ultrapassar o Bugio.
São lesões por tudo o que é tecido muscular e cartilagíneo: mãos, pés, tendões ... tudo. Outros estão cheios de febre e de sezões. E os poucos que escaparam às lesões musculares, e às mais diversas e inesperadas patologias, estão psicologicamente diminuídos, stressados, mentalmente afectados. Alguns estavam num estado maníaco-depressivo agudo. Nem precisaram queixar-se, bastava observá-los em competição para se avaliar do seu precário estado psíquico.
E não foram só os atletas humanos, os nossos garbosos cavalos apresentaram-se nas plagas gregas completamente stressados, à beira de uma crise de nervos.
Queria exprimir por este meio a minha mais extremosa compaixão pelos atletas (humanos e equinos) que lutam bravamente na Grécia olímpica contra as enfermidades de que estão a ser vítimas.
A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais
João Dias escreveu um longo panegírico, ontem, no Público, sobre o Plano Tecnológico de José Sócrates (Choque fiscal versus choque tecnológico). É um texto com que na generalidade estou de acordo. Aliás, há dias escrevi aqui que o Plano Tecnológico de Sócrates tinha uma virtude: dizia coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falhava onde nós sempre falhámos: não explicava como é possível concretizar o plano.
Ora o texto de João Dias, embora seja mais elaborado do que o Plano do Sócrates, pelo menos a versão que apareceu na imprensa, enferma do mesmo vício. O exemplo da Finlândia, que aponta, é conhecido e é um caso de sucesso. Todavia, para o reeditar em Portugal torna-se necessária a reforma total da administração pública e, principalmente, do sistema educativo. E Sócrates está disposto a arrostar com os interesses corporativos instalados, nomeadamente os sindicatos?
Mas a reforma não passa apenas pelos corpos docentes. A questão é que na Finlândia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério. Em Portugal todos aqueles segmentos sociais gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices.
Em 4 de Junho escrevi aqui, em Novos Rumos para a Escola que, segundo um estudo da Organização Mundial de Saúde, abrangendo 37 países e entre eles o nosso, os adolescentes portugueses estão, no que respeita à aprendizagem, entre os que mais se sentem pressionados pelo trabalho na escola e os que mais acreditam que os professores não os consideram capazes. Simultaneamente Portugal aparece no grupo dos seis países onde mais adolescentes dizem gostar muito da escola e são os que mais acham que os colegas são simpáticos.
Este estudo prova, como escreveu Fátima Bonifácio anteontem no Público (Mais Dinheiro para a Educação?), que os trabalhos escolares «são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel para crianças e adolescentes» ... e ... «trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a que não dão importância». A escola apenas serve para espaço lúdico. Esforços mentais provocam um stress desnecessário às crianças e são de evitar.
Portanto acabam todos, funcionários do ministério, professores, alunos e pais, por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.
João Dias ao falar na aposta das tecnologias da informação como um desígnio nacional está a pôr o carro à frente dos bois. Devia começar por explicar como se consegue pôr o nosso sistema educativo a funcionar para possibilitar ganhar a seguir a aposta das tecnologias da informação. Na minha opinião tal reforma dificilmente será possível sem um pacto de regime que envolva os dois maiores partidos portugueses, que tenha a duração necessária para que surta efeito e que não seja objecto de chicana por um desses partidos quando na oposição, ou de desvirtuamento pelo outro, quando estiver no governo. Mas para isso seria preciso estarem ambos de acordo sobre um modelo viável e há muitos interesses corporativos que agiriam por dentro dos partidos no sentido de minarem qualquer tentativa de acordo ou tornar o modelo acordado sem efeitos operacionais.
Onde João Dias erra é na oposição que estabelece entre choque fiscal e choque tecnológico. Não se opõem, antes podem ser complementares: se houver incentivos às empresas estas investem e entre esses investimentos haverá sempre uma parcela que é utilizada no aumento da qualificação dos seus efectivos. Certamente que João Dias não pensa que o choque tecnológico é apenas promovido pelo Estado. Em todos os casos de sucesso, parte importante da requalificação da mão de obra passou sempre pela acção das empresas.
Portanto, os incentivos às empresas são necessários. O que eu duvido é que, de facto, a diminuição da taxa de IRC seja o incentivo mais importante. O mais importante continua a ser a reforma da administração pública: desburocratizar os seus procedimentos e tornar, por exemplo, a justiça rápida e eficiente. A actual lentidão e fragilidade de competência da justiça portuguesa protege objectivamente os vigaristas e os que agem de má fé. As empresas que interessam à nossa economia não podem estar à mercê de incumprimentos contratuais que demoram anos ou décadas a serem resolvidos pelos tribunais, quando não prescrevem. Ou estarem à espera que o Estado, os seus institutos e as autarquias demorem 6 meses, um ano ou mais, a pagarem as facturas.
A argúcia dos nossos políticos resume-se, face à dificuldade de fazerem reformas a sério, à implementação do ditado «quem não tem cão, caça com gato». Não resolvem a questão ciclópica da administração pública e, para distrair, prometem o rebuçado do choque fiscal. Mas isso também será o que Sócrates irá enfrentar se chegar a primeiro ministro. Será ele capaz de resolver? Pelas banalidades que tenho lido ... duvido.
Mas, que fique bem claro: Sócrates diz banalidades, porque não explica a concretização das suas propostas ... mas fala sobre factos, sobre o país real. Posso achar que ele está a pôr o carro à frente dos bois, mas ele sabe que existem o carro e os bois e está preocupado como os há-de atrelar. Manuel Alegre só fala de ícones: a «alma da esquerda», «refazer a esquerda», «lutar por convicções de esquerda e não piscar o olho ao centro», «é necessária a convergência à esquerda nesta época globalizante», «combate e construção de alternativas às opções neo-liberais», etc., etc.. Há apenas ícones ideológicos no seu discurso e nos discursos dos seus apoiantes. Não há nada de substantivo. Há apenas rezas aos sacralizados ícones ideológicos.
O problema da esquerda que se reclama de ter «alma» é que não tem qualquer ideia viável sobre a governação e a gestão económica do país. E ícones ideológicos só servem para entreter a devoção dos intelectuais.
A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais.
Segundo uma peça jornalística do JMF publicada hoje na secção Férias do Público os pescadores de Tavira e arredores são especialistas na apanha do polvo que por ali abunda, mas como não é apreciado localmente vendem-no para o norte do país, onde é muito apreciado no Porto e Matosinhos.
Toda esta história indicia que o José Manuel Fernandes fez uma viagem meteórica com o mestre João Manhita e saiu dali com o material verbal discorrido pelo pescador para fazer apressadamente uma peça jornalística, que apareceu primeiro em livro e agora, adaptada, no seu jornal. E isto é ser indulgente. Outra hipótese é o mestre João Manhita ter contado aquela história numa tarde soalheira e dormente, à mesa de uma esplanada, a troco de umas cervejas geladas, douradas e espumosas e o JMF só ter visto polvo em restaurantes (do norte) e em incunábulos escolásticos.
Porque a verdade é que o polvo é dos alimentos principais na composição das ementas do Sotavento algarvio: polvo entomatado, salada de polvo, pastéis de polvo, polvo cozido, etc. Na semana gastronómica de Tavira, que se realiza em Junho, entre os elementos que obrigatoriamente devem figurar nas ementas dos restaurantes concorrentes, estão, à cabeça, aquele ilustre cefalópode e o atum.
Inclusivamente os íncolas (principalmente o pessoal mais ligado à faina marítima) secam o polvo e estão continuamente a cortarem pedacinhos com os canivetes e a mascarem aquilo com grande satisfação.
Quanto aos polvos serem estúpidos é uma ilação superficial. O polvo esconde-se debaixo de conchas grandes, pedras, ou potes ou pedaços de barro e fica aí incrustado. Um leigo que o observe nessa situação apenas julga que se trata de algum resíduo que está agarrado ao barro.
Há uns dez anos sucedeu-me uma aventura curiosa. Estava tranquilamente a nadar quando vi uma vieira (concha que é o emblema da Shell) enorme e bonita. Mergulhei e apanhei-a. Tinha a concavidade suja, mas limpava-se depois ... pensei eu. Para a trazer para terra alojei-a de forma a não prejudicar os movimentos natatórios ... não digo onde porque não pretendo entrar em concorrência com o blog «Meu Pipi».
Quando me estava aproximar da zona com pé senti que algo se estava a passar na concha. Tirei-a precipitadamente e verifiquei que uns tentáculos começavam a emergir desajeitadamente daquele resíduo confuso incrustado na concha. Era um polvo!! O primeiro instinto do desastrado cefalópode foi agarrar-se ao braço que empunhava a vieira. Depois deve ter-se apercebido que aquilo era certamente um tentáculo de um animal mais predador que ele e acabou por se despegar completamente da concha e fugir. Fez bem porque quem estava sem saber o que fazer era eu: a sensação daqueles tentáculos viscosos a enroscarem-se ao longo do braço é muito incómoda e nada tranquilizadora. Além de que precisava daquele braço para nadar ... a menos que eu quisesse fazer concorrência ao Camões e o polvo aos manuscritos dos Lusíadas. Felizmente o polvo tinha escassos interesses literários e desistiu dessa rábula.
O polvo não é estúpido. Apenas tem determinados hábitos que são aproveitados por outros animais, colocados mais acima na hierarquia racional, e que transmitem esse conhecimento, à mesa das esplanadas, a alguns animais colocados a meio daquela escala hierárquica.
Reina grande agitação na Comunicação Social e nos meios judiciais acerca das alegadas gravações ilícitas entre um jornalista do Correio da Manhã, Octávio Lopes, e diversos interlocutores ligados aos meios judiciais que, alegadamente, teriam violado o segredo de justiça. Alegadamente as cassetes foram roubadas ao jornalista que as tinha em seu poder por razões alegadamente desconhecidas.
O Independente publicou alegados excertos das alegadas cassetes, violando, alegadamente, o sigilo do jornalista e o direito à protecção das alegadas fontes. Alegações diversas sugerem uma alegada conivência com um alegado crime de informação de um alegado segredo de justiça e de um alegado roubo de informação.
A Directora do Independente justificou a publicação, alegando o interesse público, uma opção do Estatuto do Jornalista de salvaguarda a tudo o que um jornal pretender publicar para dinamizar a procura e aumentar as tiragens.
Estas alegadas ocorrências levaram à demissão de Adelino Salvado, Director da PJ. Adelino Salvado alegou que apenas estava a travar uma conversa informal com um jornalista sobre uma matéria (o processo Casa Pia) que nem conhecia, visto não ter tido, segundo alegou, acesso ao processo. Segundo ele, está apenas a ser vítima de uma cabala que lhe causou a mais insensata incontinência verbal. Todavia, é deveras preocupante saber-se que, em Portugal, os Directores da PJ falam «informalmente» ao telefone com jornalistas sobre processos a cujo conhecimento têm possibilidade de acesso, mesmo que depois assegurem que o não tiveram. Provavelmente Adelino Salvado, pela sua incontinência verbal, estará actualmente mais vocacionado para ser um fazedor de blogue do que para continuar à frente da PJ. Por sua vez, Sara Pina, a assessora de imprensa da Procuradoria Geral da República que alegadamente teria falado com Octávio Lopes sobre o processo, e cujas conversas este havia gravado, está à espera de Souto Moura para apresentar a sua demissão. Provavelmente também irá dedicar-se futuramente à blogosfera.
Quanto a Octávio Lopes é, na interpretação mais lisonjeira, um alegado jornalista. Um jornalista a sério nunca poderia gravar conversas sem o conhecimento dos seus interlocutores; nunca perderia tempo a travar conversas ociosas com pessoas, como Adelino Salvado, que asseguravam não ter nada a ver com o processo; destruiria o material áudio logo que o tivesse transcrito ou deixasse de o utilizar; nunca o abandonaria à mão de semear no seu local de trabalho. Segundo fontes próximas, Octávio Lopes estaria a ser vítima de uma cabala que o levaria a cometer todos estes disparates e ilícitos.
A emoção foi tal que extravazou da Comunicação Social e dos meios judiciais para algumas cúpulas partidárias. O próprio PR, que participava, em Atenas, na Maratona dos 300 metros sob escolta desportiva, foi chamado à colação e vai começar a semana de férias a reunir-se com os alegados protagonistas destas alegadas ocorrências, para escutar as suas alegações.
Os dirigentes do PS estão excitados pelas mais variadas razões. Ferro Rodrigues, o inspirador da magnífica e inovadora tese da vitimização pela cabala, assegura que para ele não é importante a «perspectiva jurídica» mas sim a ocorrência de uma «abjecta violação do segredo de justiça». Sobre esta qualificação, Ferro Rodrigues é a pessoa mais habilitada a opinar, pois sabe que desde que ele se começou a ca*ar no segredo de justiça, tudo aquilo se terá tornado numa matéria obviamente abjecta. Por sua vez, João Soares pede a divulgação das cassetes roubadas e que se dê conhecimento do seu teor à opinião pública, porque é preciso apurar até às últimas consequências o que se passou. Como é de norma no funcionamento de um Estado de Direito, não é preciso dar conhecimento dos pormenores de um crime à opinião pública, para se apurar o que se passou até às últimas consequências. São as instâncias judiciais que se ocupam disso e não a justiça popular. João Soares pretende apenas queimar definitivamente Ferro Rodrigues.
Como nós só vemos o mundo através do reflexo cavernoso que a comunicação social nos transmite, é normal que permaneça no olvido o alegado jornalista Octávio Lopes. Nunca mais ninguém ouviu falar nele. A comunicação social mantém-no escondido da curiosidade malsã da opinião pública. Afinal ele apenas fez gravações ilícitas, usou-as ilicitamente, guardou-as ilicitamente e deixou-as negligentemente acessíveis, para serem ilicitamente publicadas por outro jornal. Mas os ilícitos jornalísticos estão protegidos pelo seu Código Deontológico: desde que haja interesse público nunca há ilícito. O interesse público prevalece sobre tudo. E quem define o interesse público? os jornalistas e os seus critérios jornalísticos. Os jornalistas são uma classe que se julga e se absolve em causa própria. Aliás o Director do Correio da Manhã assegura que Octávio Lopes e todo o jornal estão a ser objecto de uma cabala que os teria levado a cometer todos aqueles ilícitos e negligências eventualmente dolosas.
A própria assessora de imprensa permanece numa meia obscuridade. Afinal, uma assessora de imprensa é uma jornalista «indirecta». Escreve nos jornais por interpostas pessoas. Só se fala dela quando se exige a cabeça de Souto Moura. Segundo alguns políticos, a assessora de imprensa é inimputável: não passa de um objecto que só se mexe animado pela tensão muscular ou cerebral de Souto Moura. Provavelmente foi vítima de uma cabala urdida por Souto Moura para a fazer discorrer junto de jornalistas sobre assuntos confidenciais de forma incontinente.
Louçã, por exemplo, sempre o primeiro a adiantar-se a pedir a cabeça dos outros políticos, neste caso optou por exigir a cabeça de Souto Moura. A razão é óbvia: este drama da Casa Pia foi um dos principais factores que levaram à queda de Ferro Rodrigues e ao desvanecimento da possibilidade de Louça integrar um próximo elenco governativo e sabe-se como os «princípios» resistem mal ao charme discreto do poder. Aliás, normalmente são aqueles que mostram mais «firmeza» e «arrogância» na defesa de «princípios» que depois os ignoram discretamente.
Quanto ao país ... está em férias. As teorias das cabalas foram banalizadas pelas truculências verbais do Ferro Rodrigues: ninguém lhes liga nenhuma. Quando alguém diz: deixem a justiça funcionar, o país ri-se baixinho. Só quem nunca teve necessidade de recorrer à justiça ignora que esta ou não funciona em tempo útil, ou não funciona de jeito nenhum. Só quem, por motivos profissionais, tem conhecimento das sentenças dos tribunais sobre uma dada matéria, sabe que, para a mesma tipologia de incidente, os juízes emitem as sentenças mais díspares e hílares. E frequentemente recheadas com alegações de âmbito científico que devem resultar de algum copy&paste, feita ao acaso do Google, sem base consistente, pois estão em absoluto fora das suas habilitações e dos seus conhecimentos.
José Manuel Fernandes escreve hoje no Público, em editorial, que afinal Cabrita Neto, agora «transfigurado em líder do sector hoteleiro», vem reconhecer que as coisas estão más no Algarve, que os índices de ocupação são baixos e que há indicadores de catástrofe anunciada. Ora, segundo o Director do Público, quando este havia escrito um artigo seminal: «O Algarve à beira da catástrofe», Cabrita Neto, então governador civil de Faro, tê-lo-ia, segundo JMF se lamenta, insultado.
Ler o jornal, na praia, à beira mar, alternando um olhar distraído pelas páginas do matutino e um olhar concentrado nos miúdos que brincam, pulam e chapinham por entre a ondulação que vem morrer docemente na areia, leva a que se extraiam algumas conclusões apressadas. Após deitar um olhar em diagonal àquele editorial concluí: grande José Manuel Fernandes, tu és a personificação da clarividência jornalística!
Mas de repente, o meu olhar distraído pousou na frase «Há sensivelmente vinte anos fiz para o Expresso uma reportagem ...». Nos breves instantes em que me desconcentrei das inocentes crianças e me concentrei na coluna do José Manuel Fernandes percebi que aquela profecia tinha sido feita há 20 anos e no Expresso.
Há vinte anos José Manuel Fernandes havia profetizado, com a profunda clarividência a que todos os articulistas do Expresso nos têm habituado, que «o Algarve está à beira da catástrofe» e agora Cabrita Neto, vinte anos volvidos, vem reconhecer que «há indicadores de catástrofe anunciada».
José Manuel Fernandes, meu profeta abençoado, meu Jeremias da comunicação social, sabes o que significa «à beira de»? É certo que os profetas e todos os pensadores que marcaram a nossa civilização com a profundidade das suas visões tinham a intemporalidade de quem se havia libertado das pequenas misérias deste mundo. Mas todos esses profetas bíblicos evitaram, prudentemente, comprometerem-se com o prazo das suas profecias. Nenhum se atreveu a dizer que o Messias estava ali, ao virar da esquina, «à beira de» de chegar. Ameaçavam apenas: Há-de vir ... há-de vir, homens de pouca fé.
Portanto, ambos, José Manuel Fernandes (há 20 anos) e Cabrita Neto (agora) reconhecem que «o Algarve está à beira da catástrofe». Quem apenas ler este editorial, sem pensar na realidade no terreno, pode ficar tranquilo: como «o Algarve está à beira da catástrofe» há vinte anos, poderá continuar nessa posição mais algumas décadas ... desde que não dê um decisivo passo em frente.
Além do mais, há outro factor tranquilizador: não é o mesmo Cabrita Neto que contrariou aquela profecia há vinte anos e se desdisse agora. São duas pessoas absolutamente diferentes: o governador civil (Cabrita Neto) tem por missão dizer bem das políticas do governo no que respeita ao ordenamento da região onde ele, civilmente, governa; um líder da hotelaria (Cabrita Neto) tem por missão fazer queixinhas junto das autoridades governamentais, dizendo que tudo vai mal, que o sector atravessa uma crise profunda e que tem que ser obviamente apoiado.
Portanto o governador civil (Cabrita Neto) e o líder da hotelaria (Cabrita Neto) são duas pessoas distintas e contrárias. Se fosse o governador civil (Cabrita Neto) a falar sobre o assunto, voltaria a insultar (provavelmente) o nosso clarividente José Manuel Fernandes se ele se atrevesse a repetir a profecia.
O «meu» Algarve circunscreve-se, por hábitos herdados, à zona que vai da Luz de Tavira até a V R Sto António, com o epicentro na belíssima cidade de Tavira. Come-se muito bem, por preços razoáveis (mesmo em Agosto) e as pessoas são simpáticas. Venho para cá desde que me conheço. Tem-se desenvolvido bastante, mas sem perder as suas características fundamentais.
Há alguns anos, talvez uns dez ou mais, fui ao Festival do Sudoeste e cometi a imprudência de entrar no Algarve por Aljezur. Foi a primeira (e a última) vez que passei pelo Barlavento Algarvio. É detestável. Ao que me contam, no início da década de sessenta, a Praia da Rocha era uma praia óptima e Portimão e Lagos cidades interessantes. Isso acabou.
Todavia há gente que gosta de misturar o sol, a praia e o bulício citadino. A moradia onde estou a passar férias foi comprada pelos meus pais a um casal britânico que tinha entretanto construído uma vivenda em Bensafrim, no centro da «confusão». Isto ocorreu há cerca de vinte anos, na época em que o JMF teria feito a sua profecia. Custa a perceber as motivações daqueles «bifes» mas não foram certamente à procura de tranquilidade, de sossego e da proximidade do mar.
O Algarve tem, ao invés do que JMF dá a entender, diversificado a sua oferta turística. Contrariamente ao que sucedia há alguns anos, o Algarve consegue manter uma ocupação hoteleira relativamente elevada ao longo de todo o ano, mesmo na época baixa. Isso deve-se ao golf (o turista que procura o golf é normalmente bastante endinheirado), aos estágios de equipas desportivas e aos múltiplos eventos que os promotores turísticos têm organizado.
A visão de JMF é a do português que vem ao Algarve no pino de Agosto, à procura de praias tranquilas. Actualmente isso só existe em algumas praias do Sotavento. Todavia, apesar de ser uma visão catastrofista e superficial, ela merece alguma reflexão. Há que ter cuidado com a nossa jóia da coroa. O turismo algarvio é um dos principais factores do precário equilíbrio das nossas contas com o exterior. Não podemos matar a nossa galinha dos ovos de ouro.
Quanto a José Manuel Fernandes, ele errou a profecia: se há vinte anos «o Algarve estava à beira da catástrofe» e esta ainda não ocorreu é porque não estava então «à beira da catástrofe». Custa por isso a perceber a auto-satisfação com que ele escreve hoje no Público.
No sábado passado, no Público, Ana Sá Lopes escreveu um artigo (Tempos Não Absolutamente Novos) sobre a «crise» política decorrente da saída de Durão Barroso, a sua evolução e a decisão do PR.
O que este artigo tem de interessante é que, por muito menos do que Ana Sá Lopes escreve, eu fui aqui vaiada por comentaristas da mesma área política (ou próximos) da articulista do Público.
Ana Sá Lopes começa lapidarmente: «Jorge Sampaio fez bem em não convocar eleições antecipadas: a legitimidade política do Governo em funções era plena, a alternativa coisa difusa». Legitimidade plena? Alternativa difusa?? Eu também tive uma opinião afim (embora nunca me atrevesse a escrever «plena»), e as vaias que li aqui dos comentaristas daquela área política foram ensurdecedoras.
E Ana Sá Lopes, agora rendida ao realismo político, prossegue impiedosa «A esquerda, inebriada com a vitória eleitoral nas europeias, deu um pontapé excessivamente violento no regime institucional». Afinal a própria esquerda descobre agora que a ilegitimidade era dela, pois andava aos pontapés violentos ao regime institucional! E inebriada!?. Ah! Ana Sá Lopes! Isso diz-se? Então não leste o que os teus correligionários escreveram aqui? O que tu própria tinhas escrito anteriormente?
Mas Ana Sá Lopes estava imparável. São sempre os recém convertidos os mais decididos a ajustarem as contas com o seu passado, para que não restem dúvidas sobre a sua abjuração, e escreveu, mortífera: «O acerto da decisão de Jorge Sampaio revelou-se no momento seguinte ao seu anúncio: a demissão de Ferro Rodrigues foi a peça que faltava para a definitiva prova de que o PS não estava preparado para passar de pastoso partido da oposição a alternativa vencedora.»
Algo de transcendente se passou. Uma Anunciação a Ana Sá Lopes feita pelo Arcanjo SantAna? O haver encontrado o SantAna Pedro flutuando sobre uma nuvem, na Estrada de Damasco, ou mais próximo, na Estrada Marginal, inquirindo com estudada indignação paternal: «Ana, Ana, porque me persegues ?».
Pedia aos meus comentaristas, àqueles que tão indignados se mostraram pelo que aqui escrevi entre 27-06-2004 e 12-07-2004, durante a «crise» potenciada pelo «pontapé excessivamente violento no regime institucional» dado pela «esquerda inebriada» que escolham, se fazem o favor, entre insultar publicamente Ana Sá Lopes, de forma convincente e prolongada, ou virem aqui retractarem-se e fazerem um inequívoco acto de contrição.
Porque a única diferença entre o que Ana Sá Lopes escreveu em 7-08-2004 e o que eu escrevi entre 27-06-2004 e 12-07-2004, para além da incomparável maior violência verbal de Ana Sá Lopes, residiu exactamente no mês de permeio entre as duas análises.
Eu fui escrevendo sobre os acontecimentos, quando tudo estava em aberto, qualquer das hipóteses se poderia realizar, todas as dúvidas eram possíveis. As análises então feitas tinham a precaridade própria de quem escreve sobre o futuro. A única consistência que poderiam ter, residiria na minha eventual capacidade, ou não, de entender a sociedade portuguesa e os protagonistas da «crise». O artigo de Ana Sá Lopes refere-se a acções e comportamentos já sedimentados pela realidade dos factos, sobre os quais desapareceram quaisquer dúvidas sobre se ocorreram e como ocorreram.
Em 7-7-2004, antes da decisão presidencial, eu escrevi, em Síntese Política da Semana, que «o PS precisa primeiro de arrumar a casa, promover líderes capazes e constituir-se como alternativa credível». O mesmo que, exactamente um mês depois, Ana Sá Lopes escreve: «é melhor para o PS fazer uma clarificação interna do que ter ido à doida para umas eleições sabe lá Deus como». Ana! Nem eu me atreveria a qualificar o PS de uma tonta embriagada que deambula sem destino!
Em 2-7-2004, eu havia escrito em Dispromisso Político, que «mesmo que o PS tivesse maioria absoluta, a situação não seria muito melhor. Os empresários lançam as mão à cabeça só de ouvirem falar no nome de Ferro Rodrigues». Mais de um mês depois, Ana Sá Lopes é absolutamente peremptória: «Este PS que hoje se lê nos jornais não devia estar no poder». Porém, quando eu, na noite da decisão presidencial (9-7-2004) escrevi em Sampaio escreve direito por linhas tortas que, no caso de eleições antecipadas, se «o eleitorado ... desse a vitória a Ferro Rodrigues, isso teria sido um desastre nacional» sofri críticas acerbas de muitos dos que sempre se reviram nas opiniões de Ana Sá Lopes.
Hoje em dia, é fácil, para quem não tiver o cérebro obliterado por fósseis ideológicos (e estiver sóbrio, após a ressaca do período "inebriado"), constatar que tudo o que escrevi então estava certo e que a opção do PR, pecando embora por tardia, era aquela que, de longe, o faria correr menos riscos e seria a que conduziria a uma solução mais estável para o país.
Até a Ana Sá Lopes, descobriu isso, nas colunas do Público do sábado passado.
Santarém foi o resultado de um erro e da sua correcção por parte do Criador. Depois de ter criado aquelas sete colinas magníficas sobranceiras a um rio largo e vagaroso, rodeadas por uma lezíria ubérrima que se estende por dezenas de quilómetros, mas sem se perder de vista, tal a proeminência da colina principal, amuralhada há milénios, concluiu que tinha sido extremamente injusto na distribuição das benesses divinas e resolveu remediar a injustiça e equilibrar o balanço, com o povoamento que fez brotar daquelas terras.
Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. A própria ninfa Calipso, entediada por reter sete anos o adorado Ulisses na sua ilha, levou-o, numa escapadela turística, às plagas lusitanas, subiu Tejo acima, até àquelas amenas e formosas paragens, e aí desovou o fruto da sua paixão, o príncipe Ábidis.
Mas as forças vivas daquela terra sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. O rei da terra mandou que Ábidis fosse lançado numa cesta às águas do Tejo, para servir de alimentação da fauna piscícola e aparecer mais tarde, nas ementas regionais, sob a epígrafe de «açorda de sável».
Mas o que os homens fizeram, os animais desfizeram, e também nas margens do Tejo, à semelhança do Tibre, uma loba salvou, amamentou e criou um futuro rei. E assim, escapando à voracidade do sável, Ábidis passou a patrono de pastelarias e hotéis do burgo multi-milenar.
E todos foram rendendo tributo à sua importância: Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Visigodos, Muçulmanos, etc. Essa importância geo-estratégica e económica de Santarém tornou-a um dos locais preferidos das cortes portuguesas e um dos povoados em que mais tempo permaneceram os nossos monarcas até ao acidente equestre ocorrido nos arredores de Santarém que causou a morte do infante D. Afonso, filho do rei D. João II.
Mas foi ainda em Santarém que D. António Prior do Crato se aclamou rei de Portugal, em 1580, na tentativa falhada de impedir a perda da independência de Portugal. Foi em Santarém que, durante a Guerra Civil entre liberais e absolutistas, D. Miguel estabeleceu o seu último reduto de resistência aos liberais e foi de lá que D. Pedro IV dirigiu a liquidação final das forças miguelistas.
Massena escolheu Santarém para a sua posição militar chave, na tentativa frustrada de romper as Linhas de Torres, atrás das quais estava o último reduto da Europa Continental que se opunha às águias napoleónicas. Se, em vez do «filho querido da vitória», tivesse vindo o próprio Napoleão, este teria certamente proclamado aos seus soldados, para lhes avivar o entusiasmo: «Do alto daquelas muralhas trinta séculos vos contemplam». Felizmente tal não aconteceu. Não apenas por Napoleão ser um adversário mais temível que Massena, mas também porque se Napoleão tivesse reeditado a ordem do dia «burros e sábios ao centro», geraria longa e penosa controvérsia sobre quem seriam os sábios e quem seriam os burros.
Durante séculos todas as vilas e burgos do Ribatejo renderam tributo a Santarém. Era um tributo natural pela sua posição geográfica e por os serviços administrativos, o liceu, etc., estarem aí situados. Os proprietários das grandes casas agrícolas da região também procuraram essa colina sobranceira ao Tejo para olharem, sobranceiros, os íncolas que labutavam ao longe, sol a sol, pela lezíria.
Todo este enquadramento geográfico e histórico criou uma camada social proeminente, extremamente fechada, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Todavia, as circunstâncias que permitiram ao longo dos séculos a sua criação modificaram-se nos últimos 30 anos. Houve descentralização dos equipamentos culturais e educacionais. As cidades e vilas ribatejanas conheceram um grande dinamismo e começaram a ficar mais próximas dos centros de decisão de Lisboa, sem passarem pela intermediação de Santarém. Quem conheça bem a região não deixará de notar que nas duas últimas décadas Santarém tem tido uma modernização menos significativa que a da maioria dos aglomerados ribatejanos que a rodeiam (Cartaxo, Almeirim, Rio Maior, etc.). Tudo se modificou, menos a mentalidade daquela camada social.
Há semanas o governo pôs a hipótese de transferir a Secretaria de Estado da Agricultura e da Alimentação para Santarém. Os dirigentes escalabitanos comportaram-se então com o elevado sentido da importância que a si próprios se atribuem. O presidente da autarquia da ínclita cidade estava tranquilamente em férias e o vice-presidente, do alto das suas sobranceiras muralhas, declarou ao CM (30-07-2004) que a «autarquia não tem imóveis preparados para receber uma estrutura deste género» e que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores».
Como escrevi acima, as forças vivas de Santarém sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. Portanto, desvalorizar essas alegadas benesses, seria um passo imprescindível e necessário para um autarca puro-sangue escalabitano, antes de as aceitar. Seria Santarém a fazer o favor de aceitar ... assim é que estava certo e mandava a tradição
Todavia aconteceu algo que seria inverosímil décadas atrás, e que continua a sê-lo para as mentalidades escalabitanas: O presidente da Golegã, perante o que ele qualificou de «inércia e inépcia de Santarém» disponibilizou junto do governo um magnífico palácio do século XVII, interiormente modernizado, apto para utilização imediata e mesmo no centro da terra.
O presidente da CMS ficou de tal forma siderado que interrompeu as férias. Criticando a CM Golegã por ter feito aquela proposta insidiosa (mau tom e deselegante) e que violava os direitos de vassalagem devidos pela Golegã, o presidente da CMS propôs, apressadamente, o que viu mais à mão, de relance: a EZN (que não é da CMS, mas do próprio Ministério da Agricultura) e o CNEMA (cujo accionista maioritário é a CAP, em cujo Conselho de Administração a CMS só tem 1 representante, entre 6, e que tem tido relações péssimas com a autarquia). Isto é, a CMS «disponibilizou» ao governo instalações de outrem e que, para cúmulo, se encontram ocupadas.
A Golegã não tem bons acessos na direcção de Lisboa. A estrada Santarém Golegã é um caminho de cabras. A melhor solução é ir na direcção do Entroncamento e tomar a A1 no nó de Torres Novas. Mas as localizações que, tardiamente, a Santarém sugeriu, para além de serem de outrem e de estarem ocupadas, são muito periféricas relativamente à cidade: 2,5 kms (CNEMA) e 8 kms (EZN), bastante distanciadas do tecido urbano.
Neste processo, os autarcas de Santarém mostraram o lado mais negativo do carácter «puro-sangue» escalabitano e o porquê da estagnação relativa da cidade. Sobranceiros perante a «oferta», quando julgaram que não havia concorrência, coléricos perante o vassalo (Golegã) que renegou os seus deveres de fidelidade, arranjando apressadamente soluções de recurso insensatas quando se viram postergados.
Se a CMS achava que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores», deveria manter essa posição até ao fim. Teria sido mais digno e, sobretudo, coerente, que arranjar soluções de recurso insensatas e criticar Golegã por haver disponibilizado uma solução alternativa.
E o mais curioso é que ambas as autarquias são socialistas e que a Golegã nem sequer tem qualquer vereador do PSD, de tal maneira o PSD é uma força minoritária no concelho. Até 1997 Golegã foi uma Câmara CDU. O PS ganhou em 1997 e esmagou literalmente a CDU em 2001.
E quando Feminina, Serve-se Gelada
Em Março deste ano desenrolou-se uma pitoresca controvérsia sobre a aquisição pela Câmara Municipal de Lisboa do Hotel Bragança na Rua do Alecrim para nele instalar uma Casa Eça de Queiroz. Maria Filomena Mónica publicou no PÚBLICO de 24/3/04, sob o título "Uma casa vazia para Eça de Queirós", um texto em que contestava a aquisição de um edifício que ela considerava historicamente erróneo, uma vez que se pode estabelecer a confusão com o Hotel Braganza, de outra localização, e já não existente, local de reunião dos "Vencidos da Vida". E aproveitou esse texto para sugerir que então se comprasse a casa onde viveu Cesário Verde.
No dia seguinte, Santana Lopes escreveu no DN, sob o título As Musas, um texto que combinava a civilidade formal, ao estilo dele, com insinuações sobre eventuais processos de intenção que estariam na base da controvérsia, escrevendo a certa altura que «tenho a impressão que o problema não está propriamente no prédio que a CML comprou mas no facto de ter convidado para dirigir a Casa de Eça de Queirós outra musa». E acrescentou, de forma sinuosa, que concordo que será bonito haver uma casa dedicada a Cesário Verde. Se está disposta a indicar-nos a localização do prédio digo, desde já, que estou disposto a comprar a casa, se estiver à venda a preço razoável, a dedicá-la a Cesário Verde e a convidar Maria Filomena Mónica para a dirigir.
Uma semana depois, a outra «Musa», Ana Nascimento Piedade, directora indigitada da Casa Eça de Queirós em disputa, dava a lume, no PÚBLICO, uma Breve Bengalada Numa Petulante Diatribe onde derramava toneladas de ácido gástrico sobre Filomena Mónica. Nada escapou à bengala da futura directora: Filomena Mónica não passava de uma versão menor do Conselheiro Acácio, obtida por contágio em leituras mal digeridas da obra do ilustre escritor, e que toda a análise queirosiana da «Musa» Filomena apenas continha «opções metodológicas equívocas e afirmações duvidosas», sem «fundamentação documental» Além do mais Filomena Mónica não passaria de uma «Musa» dogmática.
É evidente que Filomena Mónica ao ter escrito que «a CML gastou dinheiro com a aquisição de um prédio onde apenas poderá exibir a Dra. Ana Nascimento Piedade», alegando que não há espólio suficiente para pôr lá dentro, deu azo a esta excessiva secreção gástrica de Ana Piedade e às insinuações maliciosas de Santana Lopes. Mas há limites para tanta má língua, mesmo tratando-se de um imóvel que irá custar cerca de 1,5 milhões de euros.
Nuca tive os nossos agentes culturais em grande conta. Tenho ouvido contar tantas histórias sobre a forma como mendigam o vil metal pelas antecâmaras, fingindo desprezá-lo em público, sobre o seu inveterado hábito de caluniar, em privado, os restantes «agentes culturais», enquanto os elogiam em público, que lhes dou o prejuízo da dúvida. Isto é, a menos que provem o contrário para além de qualquer dúvida, acho que são uns hipócritas e falhos de ética.
De Maria Filomena Mónica só conheço a obra dela e os artigos que tem publicado esporadicamente nos jornais. Aprecio, quer a obra, quer os seus artigos de opinião. Sempre mostrou firmeza nas suas convicções, não pactuando com o laxismo social e no ensino. E eu sempre apreciei quem não pactua com o «politicamente correcto». Como não a conheço dos bastidores culturais não me alongarei sobre a sua personalidade. Prefiro ficar-me pela obra escrita dela.
Anteontem, Quarta-feira, 04-08-04, no Público, Filomena Mónica brindou-nos com um O Diário Secreto de Santana Lopes com a Idade de 48 Anos escrito no mais puro estilo brechtiano dos Negócios do Senhor Júlio César. Absolutamente impecável, de uma subtileza genial, Filomena Mónica exorciza e ajusta as contas em atraso com Santana Lopes e aproveita para, indirectamente, parodiar num estilo neutro, mas mordaz e tremendamente eficaz, um sem número de políticos e comentadores da nossa praça, que ela reduz a simples e pequenos títeres sem qualquer densidade política.
Santana Lopes aparece em travesti de quem ganhou o cargo de Primeiro Ministro num bingo de miúdos da escola básica. E através da infantilidade ingénua do «premiado» desfila o nosso provincianismo político-cultural: o velho queque do Porto (Miguel Veiga), a Mona Lisa de Lisboa (Teresa Gouveia), o sex symbol da Lapa (Miguel Sousa Tavares), o bom rapaz que precisa de orientação (Arnault), Sampaio, Sócrates, Sousa Santos, etc., etc..
A vingança serve-se fria ... gelada mesmo.
Ou a Vingança do Mercado
Adam Smith escreveu há quase dois séculos e meio que os agentes económicos, funcionando em mercado livre, ao tentarem satisfazer o seu próprio interesse promovem, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretendem fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público. Esta frase é lapidar: aqueles que tentaram, julgando servir o bem público, constranger ou impedir, o livre funcionamento do mercado, criaram situações de muito maior injustiça social e muito mais ineficientes e dispendiosas para o bem público e para toda a comunidade em geral, do que se não o tivessem feito.
Foi o que aconteceu com o mercado do arrendamento urbano. A legislação que, durante o Estado Novo, regulamentou o congelamento de rendas em Lisboa e Porto foi feita com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação. Essa legislação e esse congelamento mantiveram-se, apesar do aumento da inflação iniciado no período marcelista e tornado galopante após o 25 de Abril, sempre com a melhor das intenções sociais. O congelamento das rendas era uma das muitas vacas sagradas do pensamento social português.
Em meados dos anos 80 acabou o congelamento e as rendas puderam subir, mas sempre abaixo da inflação, excepto para os contratos mais antigos, onde foram permitidos reajustamentos ligeiramente superiores. Em valores reais, as rendas continuaram a descer. Tudo isto com as melhores e mais sagradas intenções de benemerência social.
Mas não foram só as rendas habitacionais que escaparam às regras do mercado. As rendas comerciais foram tratadas da mesma forma. A nossa justiça social e a ânsia de dar esmolas aos mais pobrezinhos, que presidiu a esta legislação, encarregou os senhorios, contra vontade destes, de subsidiarem, ao longo de décadas, a actividade comercial: lojas, escritórios, etc.. Portanto, em Portugal, rendas comerciais não são um factor de produção: não passam de uma potencial fonte de extorsão praticada pelos senhorios a que o Estado deve pôr cobro, intervindo no mercado do arrendamento comercial.
Toda esta filantropia social de que o Estado encarregou os senhorios teve um efeito absolutamente perverso: a degradação do parque habitacional, a ruína dos centros históricos de Lisboa e Porto e, em menor grau, das restantes cidades do país, a inexistência de um mercado de arrendamento eficiente, a opção pela aquisição de casa própria e o endividamento exponencial das famílias para o conseguirem. No caso do comércio verificou-se o que já se sabia de outras actividades produtivas: uma política cega de subsídios retira incentivos à modernização. Assim sendo, o comércio dos centros históricos foi perdendo qualidade relativa, cristalizou, e perdeu mercado face ao comércio menos central e com maior mobilidade e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.
Ora aqui está como a regulamentação do mercado, estabelecendo preços que não correspondem aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à dificuldade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à absoluta injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios e à mercê de qualquer intempérie que lhes pode causar prejuízos que eles não têm capacidade de suportar, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores e com uma punção fiscal proporcionalmente mais benévola.
A perversão do sistema é total. Muitos dos prédios em risco de derrocada nem sequer têm senhorios conhecidos. Quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis. Aliás, muitos dos prédios em ruína têm um valor real negativo. Há 3 ou 4 anos um grupo escocês quis adquirir o Palácio Rosa, na zona da Mouraria, para aí construir um hotel de «charme». O vereador António Abreu ficou indignado quando os escoceses lhe disseram que o imóvel tinha um valor real negativo. Como se lhe tentou explicar depois, os escoceses tinham, tecnicamente, razão, pois o que custaria a reabilitação daquele imóvel e espaços adjacentes nunca seria recuperado qualquer que fosse a posterior utilização dada ao Palácio.
O único mercado que funciona neste ambiente que o Estado perverteu, é o mercado paralelo. Inquilinos que pagam rendas ridículas, subalugam por «preços de mercado» e exigem obras aos senhorios (quando estes existem); estabelecimentos comerciais que fazem trespasses avultados a pretexto de usufruírem de rendas baixas ou, mais recentemente, em face de algumas restrições nos trespasses, fazem cessão de quotas (a firma mantém-se mas os donos são outros), operação que nem sequer têm que comunicar ao senhorio.
O Estado, ao intervir décadas a fio, no mercado de habitação, distorceu completamente o funcionamento dos mercados de arrendamento e de construção.
No mercado de arrendamento já se resumiram as calamidades sociais a que esta legislação iníqua, cheia de boas intenções filantrópicas, conduziu. Mas o mercado de construção em Portugal também foi enviesado. Contrariamente aos restantes países europeus, o investimento em reabilitação urbana em Portugal é baixíssimo. Há pouca experiência nessa matéria no nosso país e os construtores civis fogem de a fazer porquanto não têm qualificações adequadas e têm receio de concorrer à execução desse tipo de obras, pois como não têm domínio dessa área, podem estar a fazer orçamentos ruinosos.
E não há mercado de recuperação de imóveis, porque os investimentos na reabilitação urbana não têm viabilidade financeira visto as rendas praticadas não permitirem o retorno do investimento. É falso que o custo das obras possa ser incorporado nas rendas através de uma taxa de retorno de 8% ao ano. Apenas as obras para além das consideradas obrigatórias em termos de beneficiação e conservação se inscrevem naquela condição. Mas em qualquer dos caso os senhorios dos imóveis degradados, na sua quase totalidade, são idosos, estão descapitalizados e não têm possibilidades nem financeiras nem de qualificação para empreenderem quaisquer obras de vulto. Reabilitar um edifício em adiantado estado de degradação custa mais e é mais complicado que construir um edifício de raiz.
Por outro lado, reabilitar edifícios antigos e manter as tipologias existentes é insensato. As divisões não têm as áreas mínimas obrigatórias; as instalações sanitárias ou não existem ou são inadequadas; etc.. Não faz sentido reabilitar um edifício e manter tipologias impróprias para as necessidades actuais de habitação. Portanto toda a ocupação e organização do espaço teriam que ser revistas. Mas como compaginar isso com o realojamento futuro dos inquilinos existentes? Aumentar a área de construção? Mas isso implicaria aumentar as cérceas, o que pode não ser possível pelo RGEU e pelas disposições camarárias. E como é que o senhorio, ou a entidade que pretende reabilitar, consegue resolver estes problemas em face dos constrangimentos actuais?
Nesta situação absolutamente perversa, cada vez que há uma derrocada, procura-se encontrar bodes expiatórios: os senhorios (que às vezes nem existem); as Câmaras, que frequentemente não têm capacidade legal de intervirem ou, se têm, o que há a fazer é de tal monta, que não têm dinheiro suficiente; etc. Mas os culpados somos todos nós, na pessoa do Estado português. E às vezes quem tem ganho com a situação são aqueles que depois mais esbracejam e gritam frente às câmaras de TV.
Está prevista uma nova lei do arrendamento urbano. Não me posso pronunciar porque desconheço o seu conteúdo. Espero apenas que quer os lobbies das corporações comerciais, quer os ícones da filantropia social não conduzam os legisladores a situações dúbias, em que apenas mudem as vítimas e os beneficiários, mas o mercado continue sem funcionar.
E vice-versa
O Plano Tecnológico de Sócrates tem uma virtude: diz coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falha onde nós sempre falhámos: não explica como é possível concretizar o plano.
O Plano é, por via disso, um rosário de banalidades: «estamos a divergir» ... temos que «descobrir como obter uma taxa de crescimento superior» ... «a nossa competitividade não pode continuar a assentar no velho e inviável modelo dos baixos salários», etc. e de ilusões, tais como «precisamos de retomar o rumo de uma convergência sustentada». A ilusão (?) de Sócrates é que nós nunca tivemos «uma convergência sustentada». A nossa convergência resultou do realinhamento de diversas variáveis macroeconómicas decorrente da adesão e do estabelecimento da moeda única e dos efeitos directos e, sobretudo, induzidos, dos fundos comunitários.
O governo de que o Engº Sócrates fez parte não se deu conta dessa ilusão. Com a queda drástica das taxas de juro e o incremento do consumo público, os agentes económicos, famílias e empresas, endividaram-se e a procura interna, o emprego e o PIB cresceram significativamente, mas de forma não sustentada. Neste quadro, e em face das debilidades estruturais da economia portuguesa, o que iria obviamente acontecer seria um aumento desmedido das importações, uma diminuição do peso das exportações e um desequilíbrio insustentável, a médio prazo, da balança de transacções com o exterior.
Esgotada a capacidade de endividamento de empresas, das famílias e do Estado (este por imperativos do PEC), veio a recessão e o desemprego, visto que, como Sócrates muito bem assinala no seu Plano, no enquadramento actual já não é possível esse ajustamento fazer-se recorrendo «às receitas tradicionais da desvalorização cambial». O reajustamento faz-se, mais tardiamente e mais dramaticamente, através da recessão e do desemprego. Foi o que veio a acontecer.
A afirmação de Sócrates que a «escolha do Governo foi apostar tudo numa agenda financeira e orçamental» está incorrecta. A contenção orçamental era um imperativo resultante de estarmos no euro. O insucesso dessa contenção (se não entrarmos em conta com as receitas extraordinárias) resultou fundamentalmente da recessão económica portuguesa gerada pela política financeira e económica do governo anterior (onde estava o Engº Sócrates) e do marasmo económico europeu, nosso principal parceiro comercial.
É evidente que Sócrates tem razão ao afirmar que o nosso problema está na economia e que a actuação do governo nessa área não foi convincente. Eu também tenho essa opinião. Todavia duvido que, por muito boa que tivesse sido a actuação governativa, fosse possível evitar o aumento do desemprego. Aliás, também duvido (e nisso concordo com Sócrates) que a diminuição da taxa de IRC tenha impacte significativo na competitividade.
A eterna questão de Portugal é que as medidas com impacte, capazes de inverter as tendências da nossa economia são muito difíceis de implementar porque bolem com todo o nosso tecido social, porque implicam sacrifícios no imediato em muitos segmentos sociais e porque não temos competências suficientes para as implementar no terreno.
Ora a questão que se coloca é saber se Sócrates está interessado nessa política de verdade ou se o «salto qualitativo» de que fala é apenas uma figura de retórica. Porque Sócrates pretende a quadratura do círculo: o salto qualitativo sem as medidas impopulares necessárias para se «formar» esse salto. Diz, por exemplo, que «países que recusaram uma visão neo-liberal conseguiram dar um salto qualitativo». Gostava de saber quais. Se ele se está a referir à Europa Central e Setentrional das «3 décadas gloriosas» entre o fim da guerra e o 1º choque petrolífero, está a viver de ilusões porque aquele enquadramento económico e demográfico já não se volta a repetir. E são justamente os países que deram aquele «salto» que agora tentam reajustar os seus modelos sociais e económicos para permitir sustentar a continuação do crescimento.
Quando Sócrates escreve que o problema está na «baixa infra-estrutura social, nomeadamente nos domínios da qualificação dos recursos humanos e da tecnologia» ou que «Quanto mais baixa é a qualificação dos recursos humanos, maior é a tendência para se instalarem actividades com baixa componente tecnológica, sobretudo quando as novas tecnologias reclamam elevadas competências» apenas edita algo que qualquer um de nós subscreveria. Mas isso não é suficiente.
O que Sócrates propõe a nível do ensino do Inglês, Português e Matemática é o que se pratica, por exemplo, na Suécia (pelo menos era o que se fazia há 3 anos quando passei por lá). A questão que ponho é saber porque é que os suecos conseguem isso (obviamente com o Sueco em vez do Português) com despesas na educação proporcionalmente inferiores às nossas e nós não o conseguimos sequer em Português e Matemática. Na Suécia não é possível a progressão de ano sem se passar nas 3 disciplinas. E há turmas de recuperação em horário suplementar para quem mostre dificuldades. Em Portugal tentaram-se medidas semelhantes mas não resultaram. Havia demasiadas reprovações o que degradava as estatísticas do ensino e as turmas de recuperação não funcionavam apesar do rácio professor-aluno ser superior em Portugal. A questão é que na Suécia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério e aqui todas aquelas corporações gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices. E assim acabam todos por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.
David Justino declamou coisas maravilhosas sobre a educação. O que é que ele realizou? Sócrates proclama que temos que «desenvolver medidas sérias de combate ao abandono escolar». Medidas sérias? Antes deveria interrogar-se porque é que há décadas que ninguém leva a sério quaisquer medidas que se tomem e que acabam sempre por ficar sem efeito. Quando não se sabe como resolver as coisas, usam-se adjectivos e advérbios «fortes»: medidas «sérias», programas «consequentes». Que eu saiba, nunca ninguém prometeu medidas «hilariantes» ou programas «inconsequentes». Infelizmente foi o que sempre aconteceu depois.
Um edifício constrói-se a partir das fundações. Portanto, nesta matéria, Sócrates deveria primeiro resolver o que está de errado no sistema educativo português e pô-lo a funcionar devidamente. Mas sem gastar mais dinheiro, pois o nosso sistema educativo já é o segundo mais caro da UE dos 15, e o pior, de longe, em desempenho.
Relativamente à formação científica e profissional, Sócrates repete aquilo que todos os governos têm prometido, cada vez com mais veemência, de há décadas a esta parte, e sempre falharam a seguir. Não constitui por isso novidade.
Nesta matéria tenho verificado uma clivagem completa entre a comunidade universitária e científica e as empresas. A comunidade universitária e científica portuguesa não sabe o que se passa nas empresas e estas, na sua quase totalidade, não têm qualificação suficiente para saberem como melhorarem significativamente o seu desempenho.
Por um lado, para que as empresas admitam pessoal com elevada qualificação científica e apostem na inovação tecnológica, não basta que tal se encontre disponível no mercado. É preciso que elas percebam que isso lhes traz vantagens.
Por outro lado, não vale a pena apregoar grandes investimentos nas áreas de investigação científica e interessar os investigadores em permanecerem no país, sem se compreenderem as razões que levam a que a investigação científica não tenha efeitos práticos no tecido produtivo português.
Há que promover, de forma intensiva, protocolos entre empresas e universidades e centros científicos para dinamizar uma investigação com efeitos práticos. Promover a investigação para dizer que temos investigadores, para além dos efeitos positivos na docência universitária, é deitar dinheiro à rua. Nomeadamente porque os investigadores, para ascenderem na sua carreira (e não apenas por questões salariais) acabam por ir para o estrangeiro.
É óbvio que não devemos descurar a investigação abstracta. Interessa à melhoria da docência universitária e é um dever que temos para com os membros da nossa comunidade científica. Mas devemos sobretudo apostar na investigação ligada com o nosso tecido económico, porque aí se poderão gerar muitas sinergias que melhorem as qualificações e competitividade de empresas e institutos públicos e agarrem os investigadores aos nossos problemas e à sua solução.
É essa investigação que teremos que dinamizar quer através de incentivos às empresas, quer interessando nela universidades e centros científicos. E é essa investigação direccionada que poderá abrir novas perspectivas às empresas e às universidades e centros científicos e realimentar futuros desenvolvimentos. Só a permanente permeabilidade do conhecimento e de ideias entre as entidades económicas e científicas permitirá, em Portugal, o avanço científico e tecnológico de uma forma sustentada e a rentabilização dos investimentos na investigação.
Mas isso não pode ser feito «à portuguesa», aproveitando eventuais subsídios para as empresas obterem mão de obra barata durante alguns anos. Têm que ser protocolos com objectivos claros e com avaliações intermédias.
A questão socrática do Plano Tecnológico é que ele não é convincente para o tecido empresarial, porque se perde em banalidades, nem para a esquerda «mais à esquerda» para a qual o que continua a valer são os seus ícones ideológicos de que nunca abdicarão ... por muitos Muros de Berlim que caiam. Tecnologias ... disciplina orçamental ... competitividade ... avaliações de desempenho ... tudo truques do capitalismo para tornear os imperativos éticos e cívicos e vacilar a alma esquerda do PS.
Neste entendimento, a luta entre o Plano Tecnológico de Sócrates e o Plano Ideológico de Alegre pode acabar, em face das banalidades do primeiro e da obsolescência do segundo, numa mistela sem efeitos operativos, eventualmente satisfatória para a vender a eleitores em busca de ilusões. A menos que a consabida obstinação de Sócrates consiga outro tipo de equilíbrio.
Sócrates termina sublinhando que o seu Plano Tecnológico não é um truque de magia que aspire a transformar a nossa sociedade e a nossa economia da noite para o dia. Não ... ele teve o cuidado de dizer que levava algum tempo. Quanto ao resto, pela forma como está elaborado, parece mesmo um «truque de magia»
José Sócrates é um excelente comunicador televisivo, verbaliza bem as questões e constrói uma argumentação eficaz em termos de comunicação verbal. Todavia, agora que aspira a líder do PS, Sócrates teve que enveredar igualmente pela comunicação escrita e esqueceu-se que uma argumentação verbal, que parece convincente pela sua fluência, pode reduzir-se a mera banalidade, quando se produz sob a forma escrita. Foi o que aconteceu com as últimas produções de Sócrates que vieram a lume.
Conheci Sócrates quando ministro e considero que foi o nosso melhor ministro do Ambiente. Aliás, este elogio nem sequer é lisonjeiro tendo em conta os ministros que têm gerido aquela pasta. É um homem vivo, perspicaz e com boa capacidade de decisão. Em contrapartida foi frequentemente um sujeito muito teimoso, talvez devido ao excesso de auto-estima que tem ou, pelo menos, teve enquanto ministro.
Concordei com muitas medidas que ele tomou e impulsionou: leis de protecção ao consumidor, fim das lixeiras, co-incineração, etc. Houve outras com que não concordei. A mais grave foi a clara chantagem feita às autarquias para aderirem aos sistemas multimunicipais, controlados pelas Águas de Portugal, directamente, no caso do abastecimento e do saneamento, e, indirectamente, através da EGF, no caso dos Resíduos Sólidos Urbanos. Quem aderisse via as suas candidaturas ao Fundo de Coesão avançarem e os seus projectos serem comparticipados até 85%, quem não aderisse via as suas candidaturas estagnarem nos serviços do ministério do Ambiente.
Ainda hoje, vários ministros passados, Sócrates continua a concitar muitos ódios entre os autarcas, nomeadamente entre aqueles que queriam ter sistemas independentes da ingerência estatal.
A sua política de permitir a construção de aterros sanitários gigantescos foi errada. Os aterros devem ser construídos faseadamente, célula a célula, de acordo com o ritmo do enchimento, caso contrário tornam-se, no Inverno, extensos lagos de RSU flutuantes, com enormes prejuízos ambientais: o aumento da humidade acelera a libertação do metano, que é muito mais nocivo (cerca de 20 vezes mais) que o CO2 no que toca ao efeito estufa; o período demasiado extenso de enchimento de uma única unidade inviabiliza o aproveitamento da quase totalidade do biogás libertado pelo aterro; a exposição das telas isolantes à intempérie (sol e chuva) anos a fio não será muito conveniente para a manutenção das suas características impermeabilizadoras, etc..
Teria uma vantagem financeira: as comparticipações da UE foram mais substanciais para cada unidade. Todavia não sei se uma análise mais aprofundada, numa óptica custo-benefício, entrando em conta com todos os factores financeiros e sociais quantificáveis, não conduziria a resultados contrários. E haveria certamente outros projectos que pudessem aproveitar os fundos estruturais sobrantes.
Acrescento ainda que, de entre os sistemas de tratamento de RSU, os aterros sanitários são os mais negativos do ponto de vista ambiental. Aliás, a UE deixou de comparticipar aterros há dois ou três anos, enquanto continua a comparticipar as incineradoras, embora com uma taxa mais reduzida que, por exemplo, a reciclagem multimaterial ou a valorização orgânica (compostagem e digestão anaeróbia). Incineradoras, que por razões de populismo barato, se tornaram nas bestas negras dos ambientalistas portugueses.
Sócrates falhou em levar avante a co-incineração, mas foi muito torpedeado dentro do seu próprio partido e a queda inesperada do governo liquidou o assunto. A co-incineração tinha-se tornado matéria política e não técnica, e quando a política se substitui à técnica, todas as desgraças podem acontecer.
No cômputo geral, a sua prestação como ministro foi positiva. E se fizermos essa apreciação em termos relativos e dado ter-se tratado de um governo de indecisos, a começar pelo 1º ministro, pode mesmo afirmar-se que foi uma prestação muito positiva.
Amanhã falarei da sua actual prestação como candidato a candidato.
O debate do programa de Governo decorreu com toda a normalidade. Santana Lopes, os ministros, as oposições e os meios de comunicação pareciam personagens de um espectáculo devidamente encenado, em que cada um sabia as suas deixas, as suas marcações, os seus tempos de entrada. Tudo perfeito na sua previsibilidade.
Santana Lopes foi o que cada um esperava dele. Se as crónicas tivessem sido escritas dias antes do debate, diriam exactamente a mesma coisa. Se a oposição se tivesse equivocado na data e discursado dias antes, diria exactamente o mesmo. Nada de surpresas.
Santana Lopes é, por natureza, um imediatista que assentou toda a sua carreira política numa invulgar capacidade de improviso e numa enorme intuição política. Como os grandes improvisadores, não tem paciência para estudar com profundidade os dossiês. Provavelmente nem julga necessário fazê-lo. Nesse ponto é aliás similar a Mário Soares, que sempre preferiu igualmente circunscrever-se às generalidades políticas do que embrenhar-se pelos meandros áridos, cansativos e embaraçosos dos números e estatísticas.
Tal como Mário Soares, Santana Lopes está mais à vontade a reagir e a responder aos ataques dos seus adversários do que a produzir discursos aprofundados e elaborados. Por via disso, os meios de comunicação bem pensantes presentearam-no com todos os epítetos adequados a quem está atacado de exclusão cultural e intelectual: «respondeu quase sempre ao lado ou ignorando mesmo as questões concretas»; «discurso ... desconexo e projectando uma imagem displicente .. desconhecimento dos dossiers e assuntos com que era confrontado ... pelo facto de não avançar os números, as percentagens».
Aliás, Santana Lopes deve evitar beber água e, acima de tudo, não respirar durante os seus discursos. Uma das críticas mais perspicazes que provou a sua «insegurança» foi a existência de «pausas feitas para respiração, beber água». Todavia deve ser fácil para Santana Lopes evitar futuramente estes embaraços. Como o homem tem uma clara aversão a discursos longos, deverá sair-se bem da prova de apneia que terá doravante que realizar em simultâneo com os seus futuros discursos parlamentares. E isto apesar de se tratar de um quarentão à beira dos cinquenta e debilitado pelo fumo, pelo álcool e pela nite das discotecas da kapital.
Foi neste cenário que os meios de comunicação bem pensantes também colaboraram nesta produção magnífica. A sua tónica foi que Santana Lopes «passou ao lado dos problemas do país e deixou a Barreto, Bagão, Portas e Aguiar Branco, a tarefa de discutir as orientações programáticas» ...foi realçar «a vacuidade que mora na cabeça do novo titular de São Bento» ... foi acentuar «o pouco que sabe sobre alguns dos grandes problemas que vai encontrar».
Ora o papel que Santana Lopes tinha distribuído a si próprio era exactamente aquele, liberto de papéis, e acentuando a sua faceta de tribuno. Para os números, as estatísticas, os dossiês relativos às diversas áreas, há os ministros: Morais Sarmento, Álvaro Barreto, Bagão Félix, Paulo Portas, Aguiar Branco, António Mexia, etc.. A intuição e o improviso são qualidades importantes num político desde que bem apoiadas numa segunda linha que assegure as competências específicas.
Numa organização, empresarial ou política, cada um faz aquilo em que é competente (ou aquilo em que é ... menos mau) e actua consoante a posição que ocupa. É estulto estar a acusar Santana Lopes de ter agido como se o governo fosse uma estrutura organizada, porquanto a delegação de competências não significa necessariamente «vacuidade», «ignorância», etc. (embora não exclua tal). Mas afirmar que essa condição é suficiente significa, em contrapartida, «vacuidade» e «ignorância» de quem produz tais afirmações.
A oposição também se prestou a não destoar neste espectáculo. O BE e o PCP agiram como é seu hábito. Quem sabe que não vai governar e ser responsabilizado pelas soluções que propõe torna-se naturalmente irresponsável e demagogo.
O PS agiu como um partido que está preso nas suas próprias contradições. O PS esteve dois anos a contrariar a política de contenção da despesa pública, cavalgando a impopularidade que essa contenção causava. Mesmo durante o «período de reflexão» do PR, em que havia uma forte possibilidade de eleições antecipadas e Ferro Rodrigues já andava em pré-campanha eleitoral, o PS evitou cuidadosamente falar da contenção da despesa pública, antes referindo a sua aposta no reforço dos «objectivos sociais» com o que sabemos do que isso significou em termos de despesa no anterior governo PS.
Sendo assim, o PS, acusando embora PSL de populismo, comportou-se sempre defendendo posições populistas e demagógicas. Tem portanto dificuldade em acusar a coligação de menor empenho na contenção orçamental, quando ele próprio nunca mostrou qualquer intenção de prosseguir esse objectivo, antes pelo contrário. Não pode extrair significado despesista da saída de Manuela Ferreira Leite quando ele próprio foi, durante os dois anos de actuação da ex-ministra, um dos seus maiores detractores.
Concluindo, Santana Lopes renovou os compromissos do governo anterior: equilíbrio das finanças públicas, combate à fraude e evasão fiscal e aumento da produtividade e competitividade. Em contrapartida enterrou o discurso da tanga. Veremos se a economia lhe permite que não o tenha que ressuscitar. Em qualquer dos casos o discurso do novo governo conseguiu dar uma imagem de ruptura com o governo anterior, mesmo quando falava de continuidade.
Foi uma postura pragmática que mostrou a capacidade que o PSD tem em suceder a si próprio, dando a imagem de um partido diferente, com novas prioridades e atitudes. Santana Lopes quer ganhar as eleições de 2006.